Sheila Sacks /
Há mais de duas décadas, em 1997, um antigo editor do jornal britânico “The Times” publicou um livro intrigante cuja primeira página se inicia com a citação “o futuro é desordem”, extraída da peça ”Arcádia”, do dramaturgo de origem tcheca Tom Stoppard, 83 anos.
O autor, o jornalista e escritor Lord William Rees-Mogg,
falecido em 2012, e que ganhou o título de nobreza, em 1988, das mãos
da dama de ferro Margaret Thatcher, teve
como parceiro um guru de investimentos com livros na área da economia, o americano James Dale Davidson, de 74 anos
Intitulado “ O Indivíduo Soberano: a futura revolução
econômica e como sobreviver e prosperar nela” ( em tradução livre do inglês), o
texto previa que a tecnologia digital tornaria o mundo extremamente
competitivo, mais desigual e instável. Os almejados estados de bem-estar ficariam
impossíveis de financiar, com as sociedades mais fragmentadas, os impostos
menos pagáveis e os governos mais fragilizados financeiramente. Assim, em um
mundo mais difícil e cruel, apenas a pessoa mais talentosa, ágil, autossuficiente
e tecnologicamente apta – o indivíduo soberano – alcançaria sucesso e
independência econômica.
Por outro lado, os chamados “perdedores” da economia se
voltariam para o nacionalismo e a nostalgia ácida, tentando impedir o movimento
do capital e das pessoas através das fronteiras.
Visão apocalíptica
No livro, os autores citam o ano de 2010 como ponto inicial da
ascensão desses novos tempos de tecnologia imperial e feroz , assumindo previsões
pioneiras como a guerra eletrônica nos sistemas de comunicação, a criação de criptomoedas (moedas digitais), o domínio dos smartphones e
a possibilidade de bots online (robôs) imitarem os humanos. Uma visão quase
apocalíptica do futuro que recebeu críticas na Inglaterra porque o Ocidente, na
época, entrava em um período de relativa prosperidade, igualdade social e
otimismo político.
Nos Estados Unidos a obra foi melhor recebida ,
principalmente pelos acadêmicos da Universidade de Stanford , um dos principais
campos de recrutamento da elite do seleto Vale do Silício , na Califórnia, maior centro de startups e empresas globais de tecnologia. Peter
Thiel, o criador do PayPal, o primeiro sistema de pagamentos online, confessou
em entrevista à revista Forbes, em 2014, que o “Indivíduo Soberano” foi seu
livro de cabeceira e fator fundamental
para o sucesso de sua vida profissional.
Uma obra sobre a qual o jornalista e consultor estratégico Alastair Campbell, principal assessor do primeiro-ministro britânico Tony Blair, classificou de “o livro mais importante do qual você nunca ouviu falar”. Ainda que seus autores não visualizassem o advento de uma pandemia e a implantação do Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia), acontecimentos históricos que marcaram 2020, acertaram na previsão do crescimento vertiginoso do fluxo e da consolidação das tecnologias digitais, abarcando e influindo em todos os aspectos da existência humana.
Tecnologia e pandemia
Analisando 2020 é fácil observar
que frente a um coletivo global impactado e fragilizado economicamente por
conta da Covid-19 (mais de 80 milhões de infectados e 1.8 milhão de mortos até janeiro de 2020),
coube aos mandarins das indústrias farmacêuticas assumirem o protagonismo, como
indivíduos soberanos, impulsionados pelo boom de pesquisas científicas na busca
de tratamentos e vacinas contra o coronavírus.
A pandemia, que resultou em produtos e
serviços altamente monetizados criou novos bilionários como foi o caso do
chinês Zhong Shanshan, 65 anos, dono de uma indústria de água engarrafada que se tornou o maior acionista da gigante farmacêutica Beijung Wantai
Biological, produtora de testes e vacina anticovid. Hoje ele é o homem mais
rico da China e a oitava fortuna do mundo.
No campo político das nações, o
Reino Unido se impôs como indivíduo soberano em relação ao coletivo europeu com
a destemida iniciativa do Brexit - -
junção das palavras “Britain” (Bretanha) e “Exit” (saída) -, após 47 anos
integrando a União Europeia. Desde então, bandeiras e símbolos britânicos foram
retirados do Parlamento e do Conselho Europeu e, já a partir de 2021, mudam as
relações comerciais, de trabalho e de trânsito no bloco, algo impensável há
poucos anos. Uma dissidência que implica na quebra da aparente solidez da
unidade europeia, construída a partir de 1993 e que tem, como símbolo maior, a queda
do Muro de Berlim, ocorrida em 1989.
Enfim, o horizonte que se avista
com a imposição do primado das tecnologias digitais traz um aprofundamento da crise
social, alijando pessoas de empregos tradicionais, eliminando postos de
trabalho, desordenando as finanças das nações, concentrando riquezas
transnacionais e configurando um novo mundo de falsas utopias e ansiedades. Por seu lado, o nacionalismo exacerbado provocará
rupturas internas e externas, abalando o conceito político de solidariedade
entre povos e nações.
Já no campo da ciência, cientistas
alertam para a possibilidade de novas pandemias oriundas da vida selvagem
transmitidas para os seres humanos. O
presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), o pesquisador
Pedro Fernando da Costa Vasconcelos, afirma que mais de 99,9% da virosfera do
planeta não é conhecida. Apenas cerca de 10 mil vírus estão catalogados e a
estimativa é que devam existir vários milhões de vírus, passando talvez do
bilhão. Um conhecimento pífio e preocupante sobre esses terríveis agentes de
doenças.