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quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O futuro que nos espera, será?

Sheila Sacks / 


Há mais de duas décadas, em 1997, um antigo editor do jornal britânico “The Times” publicou um livro intrigante cuja primeira página se inicia com a citação “o futuro é desordem”, extraída da peça ”Arcádia”, do dramaturgo de origem tcheca Tom Stoppard, 83 anos.

O autor, o jornalista e escritor Lord William Rees-Mogg, falecido em 2012, e que   ganhou o título de nobreza, em 1988, das mãos da dama de ferro Margaret Thatcher,  teve como parceiro um guru de investimentos com livros na área da economia, o  americano James Dale Davidson, de 74 anos

Intitulado “ O Indivíduo Soberano: a futura revolução econômica e como sobreviver e prosperar nela” ( em tradução livre do inglês), o texto previa que a tecnologia digital tornaria o mundo extremamente competitivo, mais desigual e instável. Os almejados estados de bem-estar ficariam impossíveis de financiar, com as sociedades mais fragmentadas, os impostos menos pagáveis e os governos mais fragilizados financeiramente. Assim, em um mundo mais difícil e cruel, apenas a pessoa mais talentosa, ágil, autossuficiente e tecnologicamente apta – o indivíduo soberano – alcançaria sucesso e independência econômica.

Por outro lado, os chamados “perdedores” da economia se voltariam para o nacionalismo e a nostalgia ácida, tentando impedir o movimento do capital e das pessoas através das fronteiras.

Visão apocalíptica

No livro, os autores citam o ano de 2010 como ponto inicial da ascensão desses novos tempos de tecnologia imperial e feroz , assumindo previsões pioneiras como a guerra eletrônica nos sistemas de comunicação, a criação de criptomoedas (moedas digitais), o domínio dos smartphones e a possibilidade de bots online (robôs) imitarem os humanos. Uma visão quase apocalíptica do futuro que recebeu críticas na Inglaterra porque o Ocidente, na época, entrava em um período de relativa prosperidade, igualdade social e otimismo político.

Nos Estados Unidos a obra foi melhor recebida , principalmente pelos acadêmicos da Universidade de Stanford , um dos principais campos de recrutamento da elite do seleto Vale do Silício , na Califórnia, maior centro de startups e empresas globais de tecnologia. Peter Thiel, o criador do PayPal, o primeiro sistema de pagamentos online, confessou em entrevista à revista Forbes, em 2014, que o “Indivíduo Soberano” foi seu livro de cabeceira e fator  fundamental para o sucesso de sua vida profissional.

Uma obra sobre a qual o jornalista e consultor estratégico Alastair Campbell,  principal assessor do primeiro-ministro britânico Tony Blair, classificou de “o livro mais importante do qual você nunca ouviu falar”. Ainda que seus autores não visualizassem o advento de uma pandemia e a implantação do Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia), acontecimentos históricos que marcaram 2020, acertaram na previsão do crescimento vertiginoso do fluxo e da consolidação das tecnologias digitais, abarcando e influindo em todos os aspectos da existência humana. 

Tecnologia e pandemia 

Analisando 2020 é fácil observar que frente a um coletivo global impactado e fragilizado economicamente por conta da Covid-19 (mais de 80 milhões de infectados e 1.8 milhão de mortos até janeiro de 2020), coube aos mandarins das indústrias farmacêuticas assumirem o protagonismo, como indivíduos soberanos, impulsionados pelo boom de pesquisas científicas na busca de tratamentos e vacinas contra o coronavírus.

 A pandemia, que resultou em produtos e serviços altamente monetizados criou novos bilionários como foi o caso do chinês Zhong Shanshan, 65 anos, dono de uma indústria de água engarrafada  que se tornou  o maior acionista da  gigante farmacêutica Beijung Wantai Biological, produtora de testes e vacina anticovid. Hoje ele é o homem mais rico da China e a oitava fortuna do mundo.

No campo político das nações, o Reino Unido se impôs como indivíduo soberano em relação ao coletivo europeu com a destemida iniciativa do Brexit -  - junção das palavras “Britain” (Bretanha) e “Exit” (saída) -, após 47 anos integrando a União Europeia. Desde então, bandeiras e símbolos britânicos foram retirados do Parlamento e do Conselho Europeu e, já a partir de 2021, mudam as relações comerciais, de trabalho e de trânsito no bloco, algo impensável há poucos anos. Uma dissidência que implica na quebra da aparente solidez da unidade europeia, construída a partir de 1993 e que tem, como símbolo maior, a queda do Muro de Berlim, ocorrida em 1989.

Enfim, o horizonte que se avista com a imposição do primado das tecnologias digitais traz um aprofundamento da crise social, alijando pessoas de empregos tradicionais, eliminando postos de trabalho, desordenando as finanças das nações, concentrando riquezas transnacionais e configurando um novo mundo de falsas utopias e ansiedades.  Por seu lado, o nacionalismo exacerbado provocará rupturas internas e externas, abalando o conceito político de solidariedade entre povos e nações.

Já no campo da ciência, cientistas alertam para a possibilidade de novas pandemias oriundas da vida selvagem transmitidas para os seres humanos. O presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), o pesquisador Pedro Fernando da Costa Vasconcelos, afirma que mais de 99,9% da virosfera do planeta não é conhecida. Apenas cerca de 10 mil vírus estão catalogados e a estimativa é que devam existir vários milhões de vírus, passando talvez do bilhão. Um conhecimento pífio e preocupante sobre esses terríveis agentes de doenças.