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quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O violino mágico (cenas de um filme polonês)

por Sheila Sacks

Há quase 5 décadas, em 19 de agosto de 1965, encerrava-se em Frankfurt, na Alemanha, o chamado Julgamento de Auschwitz. O processo durou dois anos e 22 ex-guardas da Gestapo que atuaram no campo nazista de extermínio, na Polônia, foram julgados por cumplicidade ou homicídio. Seis deles foram condenados à prisão perpétua por assassinato. As câmaras de gás de Auschwitz funcionaram de 1942 a 1944, matando mais de 1 milhão de judeus.


Ontem eu vi
“A Passageira”
de Andrzej Munk,
prenhe de horrores
trazidos do campo cão
de Auschwitz.
 Da tela suspensa
a imagem cinzenta explodiu.
Vi gente marcada, medrosa e acuada,
gente cercada de olhos farpados
e botas de grosso calibre.

Ontem eu vi um desfile singular,
gente condenada, maltratada,
marchando calada,
os olhos secos, semblantes marcados.
Gente que olhava pra mim
sem um pedido sequer.
Faces lívidas de frio e cansaço.

Na sala escura
entre poltronas vazias,
eu assisti contrito
o aflorar das feridas.
Vi, entre surpreso e aflito
a tela se abrir em clareiras
e as imagens em cadeia
afrontarem as barreira
do tempo e da sensatez.

Ontem eu vi
na cinemateca do bairro,
amontoado de ossos,
dentes arrancados e aros de óculos.
Sapatos de solas furadas,
meias rasgadas
tudo ao meu lado
restos de histórias
empesteando a sala
encharcando o espaço
de espanto e horror.

Me vi sem bússola ou mapa
em uma ilha assombrada,
porto macabro de um povo
posto à deriva pelo vil preconceito.
Altar infame e maldito
dos cavaleiros do apocalipse.

Pelos alto-falantes
do campo de Auschwitz,
ontem eu ouvi a terrível sinfonia
de soluços e gemidos.
De onde vinham tais sons,
da tela ou de um tempo
urdido nas sombras?

Ao meu lado o carrasco batia,
gritava e bramia
seis mil anos de ódio,
seis mil anos de ira.

De repente
tal qual um súbito clarão,
o raio riscou a sala
do teto ao chão.
Parecia que vinha do céu,
ou quem sabe? das longínquas
fronteiras da razão.
A multidão olhou para o alto
E sem sentir,
afrouxou o passo.

Na tela a imagem inchou,
criou corpo, peso e coragem,
adentrou pela sala e puxando-me de lado,
me fez personagem.



Ontem eu vi,
ouvi e senti
o solo do violino mágico.
Qualquer coisa tão doce e delicada
que a multidão condenada
suspirava em arpejos, acordes
e staccatos.
Na fria madrugada
só a suave melodia
servia de meia e sapato.

Também eu,
junto à multidão condenada
acompanhei a caminhada
do violino encantado.

Maltrapilho e despojado
pela estrada enlameada
eu o segui,
sem ao menos me importar
com a vingança do carrasco.

Ontem,
anteontem
ou hoje?
Quando foi afinal
no cinema
eu vi.

(O cineasta polonês Andrzej Munk morreu aos 39 anos em um acidente de carro durante as filmagens de “A Passageira”. O filme iniciado em 1961 foi concluído por seus assistentes e lançado em 1963. A história mostra uma ex-carcereira da Gestapo em Auschwitz que ao retornar de navio à Europa, na década de 1960, crê reconhecer uma antiga prisioneira levada à câmara de gás. Aí têm início as suas lembranças do campo da morte e da triste melodia do violino mágico: o adágio do Concerto nº 2 de Bach.)