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quarta-feira, 18 de julho de 2012

Os mistérios do Livro da Criação


“O sentido da revelação é concedido àqueles que têm a mente desarmada para o mistério” (Abraham Joshua Heschel) 
 
/ Sheila Sacks  /  

Talvez por ser um dos mais antigos e misteriosos textos do judaísmo místico, o Sêfer Ietsirá (O Livro da Criação), que trata das origens do mundo, tem sido estudado por teólogos, filósofos e historiadores ao longo dos séculos. O rabino norte-americano Arieh Kaplan, falecido aos 48 anos, em 1983, foi um dos inúmeros eruditos que se debruçaram sobre esse pequeno texto (1.300 palavras, em sua versão curta) envolto em superstições e proibições, em razão das dificuldades que o mesmo apresenta para o seu entendimento. 

De forma generosa e até ousada, Kaplan, que antes de se dedicar aos estudos da teologia judaica trabalhou como físico para o governo dos Estados Unidos, se dispôs a realizar a difícil tarefa de tornar mais acessível aos leigos, através de suas pesquisas, análises e comentários, os ditos e as expressões contidos neste texto milenar. 

Na apresentação da tradução brasileira, o estudioso da Cabalá (a dimensão mística do judaísmo), o paraense Erwin Von-Rommel Vianna Pamplona, alerta para a complexidade da obra. “Este não é um livro fácil”, escreve. “Necessita de pré-requisitos para ser aprendido.” 

O tradutor lista então certas condições indispensáveis ao leitor para o entendimento da obra: equilíbrio emocional, persistência, determinação, tranquilidade e merecimento, esse último item a ser atingido pela caridade e reza. Erwin também aconselha que a leitura do texto seja compartilhada por duas pessoas, porque “o praticante solitário pode, em dado momento, perder a noção do que é realidade e imaginação”. 

À parte esses cuidados, Erwin Von-Rommel faz uma afirmação empolgante: assegura que para o neófito o livro se constituirá na porta de entrada para os mistérios do Universo. Dando como exemplo a sua própria experiência como estudioso da Cabalá (‘recebimento’, em hebraico), ele diz que comprovou, no campo material, o poder dos ensinamentos interpretados e analisados por Kaplan, que lançam maiores luzes no conteúdo desse texto obscuro com “fortes insinuações mágicas”. 

Texto remonta ao patriarca Abraham 

Os primeiros comentários conhecidos sobre o Sefer Ietsirá datam do século 10. À época, o rabino Saadia Gaon atribuiu a sua origem ao patriarca Abraham (Avraham), o primeiro hebreu da história. Nascido na Mesopotâmia no século 18 antes da Era Comum (atual Iraque), o patriarca viveu e morreu em Canaã (hoje Israel), sendo versado nos mistérios da astrologia e das letras hebraicas. Daquele início da trajetória do povo de Israel até os séculos seguintes, os ensinamentos teriam sido passados oralmente através das gerações. Entretanto, algumas fontes dizem que já havia comentários escritos sobre o Livro da Criação no período do Segundo Templo (516 a.E.C. a 70 E.C.). 

Um dos envolvidos nos mistérios do Sêfer Ietsirá seria Menhachem, o essênio, que profetizou que Herodes seria rei. Essa seita judaica monástica e ascética que vivia no deserto, em Qumran, a 32 quilômetros de Jerusalém (do século 2 a.E.C. até o século 1) e cujos rituais e práticas foram conhecidos com a descoberta dos rolos do Mar Morto, em 1947, mantinha um comportamento religioso ortodoxo e rigoroso no cumprimento das leis de Moisés. 

O historiador Flavio Josefo (século 1), em seu livro sobre as guerras judaicas contra os romanos, afirma que os essênios podiam predizer o futuro mediante diversas purificações e métodos dos profetas. Eles tinham desapego aos bens materiais e se empenhavam na busca da evolução espiritual. Menachem teria sido morto pelos soldados romanos no ano 4 a.E.C., segundo o historiador israelense Israel Knohl.

Outra figura histórica que teria vivido na comunidade de Qumran seria Yochanan ha-Matbil - João, o Batista, que morreu em 25 da E.C. O teólogo alemão Otto Betz assinala que o pregador recebeu forte influência mística da seita, principalmente no tocante às orações e hinos. 

Letras e números formam caminhos

Mas, é no século 16 que surge a versão escrita do Sêfer Ietsirá mais aceita pelos cabalistas, devido ao refinamento do texto e por estar em concordância com o Sêfer ha-Zohar (O Livro do Esplendor) – a obra principal e mais sagrada da Cabalá. Coube ao o rabino Isaac Luria (1534-1572), em Jerusalém, a compilação e interpretação do texto original que comporta 1.800 palavras. 

O interessante é que muitos estudiosos especulam que os ensinamentos originais seriam limitados a 240 palavras. Segundo Kaplan, a obscuridade do texto impõe uma cuidadosa análise de cada palavra e sua correspondência na literatura bíblica (Torá/Pentateuco, Neviim/ Profetas e Ketuvim/Escritos) e talmúdica (de Talmud, do hebraico ‘aprendizado’, obra de compilação, comentários e interpretação das leis e tradições judaicas). 

Quando o Sêfer Ietsirá se inicia assinalando que “com 32 caminhos místicos de Sabedoria gravou Yah (o Eterno)”, esse número corresponde a soma das 22 letras do alfabeto hebraico com os 10 dígitos ou dez Sefirot – as fontes nas quais os números se originam. Os cabalistas observam que esses 32 caminhos são aludidos na Torá (do hebraico ‘ensinamento’) no capítulo do Gênesis, quando 32 vezes aparece o nome de D’us no relato da Criação. 

Outro detalhe significativo: o número 32 é escrito em hebraico com as letras Lamed e Bet, que se lê Lev, a palavra hebraica para coração. Também a primeira letra do Gênesis é justamente Bet, da palabra Bereshit (No princípio), e a última letra do Torá é Lamed, de Israel, formando novamente a palavra coração. 

É importante ressaltar que a Torá é vista como o coração da Criação, sendo as letras entendidas tanto como responsáveis pelo começo do mundo – já que em cada ato da Criação está escrito “D’us disse“ – como também por sustentá-lo constantemente. Acerca da Torá, um dos muitos mestres do texto bíblico, o rabi Elazar ben Padat que chefiou a academia de Tiberíades, na Terra Santa, em 279 da E.C., defendia os poderes existentes no livro sagrado: “Os parágrafos da Torá não estão em ordem. Se estivessem na ordem correta, qualquer um que lesse seria capaz de ressuscitar os mortos e fazer milagres.” 

Segundo a tradição judaica os patriarcas através de suas visões proféticas transmitiam oralmente a Lei de D’us. Só mais tarde, Moshé (Moisés), o maior profeta e líder do povo hebreu, colocou parte dessa tradição por escrito na Torá. Mas o nível de interpretação mais secreto continuou sendo transmitido oralmente por Moshé para alguns iniciados, os nistarim (literalmente ‘os ocultos’). 

Passado, presente e futuro juntos 

Para Kaplan, se um indivíduo deseja obter uma experiência mística e aproximar-se da dimensão da Sabedoria (a Mente pura e indiferenciada), ele deve percorrer os 32 caminhos que os cabalistas antigos definem como “diferentes estados de consciência”. No livro “Universo Kabbalístico”, o inglês Z’ev bem Shimon Halevi,  escritor e professor de Cabalá, falecido em 2020, ensina que as 10 Sefirot são ligadas por 22 caminhos-fluxo de letras que formam uma rede de subsistemas. 

Essa busca pela Sabedoria é um anseio que persiste na alma humana indiferente ao progresso científico e tecnológico. O Talmud declara: “Quem é sábio? Aquele que percebe o futuro”. Kaplan explica que a Sabedoria é a força mental pura que transcende o tempo. “No nível da Sabedoria, o passado, o presente e o futuro ainda não foram separados. Portanto nesse nível, alguém pode ver o futuro exatamente como o passado e o presente.” 

 Ainda sobre a relação das Sefirot com o tempo, existe um dado interessante explicitado pelo cabalista Moisés ben Nachman, há 800 anos, no século 12. No livro “O Poder da Cabala”, o rabi Yehuda Berg, codiretor do “Kabbalah Centre” e autor de “Os 72 Nomes de D’us” (livro de exercícios de meditação), cita esse conceito de que existe um segredo cabalístico por trás da frase “Seis dias de Criação”, já que “um D’us todo-poderoso não necessitaria de qualquer quantidade de tempo para criar um Universo”. 

Os dias da Criação seriam as seis dimensões (sefirot) das 10 que precederam o nascimento de nosso Universo. Isso porque a Criação não tem nada a ver com o conceito de tempo conforme nós conhecemos. “Trata-se de um código para a união de seis dimensões do mundo superior em uma. As quatro que restam são as precursoras de nosso universo tridimensional (largura, comprimento e altura) e da quarta dimensão de espaço-tempo.” 

Assim, a realidade existiria em 10 dimensões, sendo que seis delas compactadas em uma. Berg assinala que os nossos cinco sentidos nos impedem de ver ou experimentar a dimensão do tempo. ”São unicamente os limites de nossa consciência que nos impedem de perceber o ontem e o amanhã nesse exato momento.” 

Ele dá como exemplo um prédio de 30 pavimentos em que o observador esteja em um apartamento no 15º andar. Os andares abaixo, do 1 ao 14, representam o passado, o tempo que o trouxe até este momento. Os andares de 16 a 30 representam o futuro. Mas, o observador através dos seus cinco sentidos somente vê onde está, no 15º andar. Contudo, todos os andares existem - isto é, o passado, o presente e o futuro - como um todo unificado. E se ele for para fora do edifício e olhar de longe, poderá ver todos os 30 andares juntos.

Letras hebraicas como símbolos

Sobre a mística das letras hebraicas, o rabino Kaplan chama a atenção para os três aspectos que envolvem a interpretação das letras:  1 – a representação física, que é a maneira como elas são no texto; 2 - seu valor numérico (guematria), quando cada letra representa um número; 3 – a sonoridade da letra e o modo como é pronunciada. 

No primeiro aspecto, a forma física da letra no texto (sêfer) está vinculada ao espaço, visto que sua forma só pode ser definida no espaço, ou seja, no Universo. Sua utilização como número (sefar) implica em sequencia, que tem correspondência no tempo, ou ano. Quanto ao som da letra, esse aspecto a remete à narração ou comunicação (sipur) e aplica-se à mente e à dimensão espiritual, ou à Alma. 

 Um dos mais importantes eruditos judaicos, Iehuda Halevi, nascido em Toledo em 1075, afirma que as letras hebraicas não são meros sinais. Elas simbolizam com exatidão aquilo que designam. Em sua obra “Cuzari”, no capítulo sobre a santidade e a importância do idioma hebraico, ele assinala: “Não surpreende, portanto, que certas invocações ou amuletos feitos com estas letras sejam eficazes.” Está escrito no Sêfer Ietsirá: “E criou Seu universo com três livros/com texto (Sêfer)/com número (Sefar)/e com comunicação (Sipur).” 

Segundo Kaplan, essas três palavras (sêfer, sefar e sipur) definem a palavra sefirá (dimensão) e seu plural, sefirot. Na Cabalá, as 10 Sefirot são os conceitos básicos da existência, os canais pelos quais as emanações divinas fluem, e os meios através dos quais o homem se comunica com D’us. Todos os nomes das sefirot são derivados da Escritura: Kéter (Coroa), Chochmá (Sabedoria), Biná/Dáat (Entendimento/Conhecimento), Chéssed (Amor), Guevurá (Força), Tiféret (Beleza), Nêtsach (Vitória), Hod (Esplendor), Iessód (Fundação) e Malchut (Realeza). 

Em sentido místico, as sefirot se constituem em uma escada através da qual se pode ascender e se aproximar do Infinito. De acordo com os comentaristas, o “princípio, a causa” é Kéter, e o “fim, o efeito” é Malchut, os pontos terminais das dimensões espirituais. Kéter também é identificado como “a Vontade”, a causa de todas as ações. Por estar mais perto de D’us, Kéter é chamada de “o Bem”. Já a sefirá Malchut, por ser a mais afastada e estar na direção oposta de D’us é dita como “o Mal”, com a ressalva de que o termo está associado aos estágios inferiores da Criação. 

A disposição completa das Sefirot é chamada de “A Árvore da Vida” e também está associada ao sonho de Yacoov (Jacob) – o terceiro e último patriarca hebreu, mais tarde chamado de Israel - representado por uma longa escada apoiada na terra, cujo topo se estende céu adentro. 

As bases para a meditação 

Segundo Rambam – o médico e rabino Moisés Maimônedes (1135-1204), nascido em Córdoba e um dos mais reverenciados teólogos da história judaica – “todo o despertar de baixo motiva um despertar de cima”. Significa que quando se eleva mentalmente alguma coisa a sua essência espiritual, similarmente também se faz descer o sustento espiritual a esse objeto particular. Essa correspondência, para os cabalistas, pode gerar mudanças físicas no mundo. 

A respeito do mundo físico, a questão mais básica para muitos estudiosos se concentra na indagação: por que D’us criou um mundo físico? Qual o motivo da existência de um mundo físico, se D’us criou o universo pra dar o Bem a sua Criação e este Bem é puramente espiritual. Sabemos que o espaço físico só existe no mundo físico. No espiritual, não há o espaço na forma que conhecemos. Kaplan explica: “D’us criou o conceito de espaço. As coisas espirituais podem se ligar ao material do mesmo modo que a alma está ligada ao corpo. E o fato de o bem e o mal existirem no mesmo espaço físico também permite o bem superar ao mal neste mundo.” 

Dessa forma, para influenciar alguma coisa no universo físico, deve-se fazer uso da forma física das letras hebraicas. Isso envolve técnicas de meditação que consistem em visualizar determinadas letras ou a combinação apropriada de letras, eliminando todos os outros pensamentos da mente. 

Por outro lado, para influenciar na dimensão espiritual, usa-se o som das letras ou de seus nomes. Entretanto, o anseio de alcançar a Sabedoria (Chochmá), um estado puro de consciência não-verbal, esbarra na dificuldade de esvaziar a mente dos devaneios e reflexões que habitam normalmente os pensamentos das pessoas. 

As técnicas de meditação consistem em eliminar, por momentos – e através dos exercícios ir estendendo o tempo desses momentos – os pensamentos que habitam nossa mente, através da visualização ou repetição das letras hebraicas. No Sefer Ietsirá está dito: “Ele as gravou (as 22 letras), esculpiu, permutou, pesou, transformou...”. 

Kaplan observa que cada letra representa um tipo diferente de informação e através das diversas manipulações das letras, D’us criou todas as coisas. Nota-se que as letras hebraicas têm três partes básicas: topo, centro e base. O topo e a base são feitas de linhas horizontais grossas, e o centro constituído de linhas verticais finas, como fossem lados de paredes a separar uma letra da outra. A meditação consiste em focalizar as letras hebraicas escolhidas, visualizando-as (gravando-as em sua mente), fazendo-as preencher toda a consciência, permutando-as ou manipulando-as através de seus valores numéricos e diferentes códigos. 

Escrever ou recitar as combinações das letras funcionaria como uma espécie de mantra para alcançar o estágio superior de consciência. Essas técnicas, porém, funcionariam apenas como meios para limpar a mente de todo o pensamento. A experiência real das Sefirot só ocorre quando a pessoa se encontra em um estágio em que todos os processos pensantes estão silenciados e a mente se fecha a todo pensamento verbal e descritivo. Daí a recomendação do Sêfer Ietsirá: “Refreia tua boca de falar e teu coração de pensar".


Os 231 portões da Criação 

O Sêfer Ietsirá também faz uma conexão das 22 letras hebraicas com “231 Portões”. Segundo os cabalistas antigos, as letras que formam a palavra Yisrael (Israel) igualmente formam a palavra Yeshrla, que significa “existem 231”. É uma alusão de que a Criação teve lugar através de 231 portões. 

Outra constatação: o número 231 representa a quantidade de modos que duas letras diferentes do alfabeto hebraico podem ser conectar. Este também é o número de palavras de duas letras que podem ser formadas, sempre que a mesma letra não se repita e a ordem não seja considerada. A meditação a respeito das conexões das 22 letras com os 231 portões é mostrada por Kaplan através da apresentação de vários quadros e tabelas em diferentes disposições das letras hebraicas e números formando sistemas de códigos, sequências e associações adotados por eruditos e cabalistas através dos séculos. 

Ele afirma que a utilização de Nomes Divinos também é efetiva na meditação, especialmente o Tetragrama, o nome mais elevado de D’us, que escrito com as letras hebraicas Yud, Hei, Vav e Hei unifica todas as Sefirot. 

Ainda sobre o Eterno, o Séfer Ietsirá declara: “Mestre único, D’us, Rei fiel”. Kaplan observa que ao descrever D’us, o livro não emprega a palavra Um (Echad, em hebraico), mas dita que Ele é Único (Yachid), isto é, Ele é tão absolutamente único que não existe qualidade alguma que Lhe possa ser atribuída. “Embora não possamos dizer o que Deus é, pelo uso de atributos negativos nós podemos dizer o que Ele não é. Do mesmo modo, com atributos de ação, nós podemos falar o que D’us faz.” Em hebraico, a frase em questão se lê “El Melech Neeman” e as letras iniciais de cada uma das palavras formam o termo hebraico “Amén”, usado nas orações judaicas. 


Enfim, o mistério do simbolismo está presente em todos os ensinamentos do Sêfer Ietsirá e Kaplan admite a complexidade em se entender suas expressões visto que, como já foi dito, todo o conceito do não-físico é de difícil compreensão para o ser humano. 

Acerca do tema, um dos mais importantes teólogos judaicos do século 20, Abraham Joshua Heschel (1907-1972) dizia que a percepção da glória é uma ocorrência rara em nossas vidas. Isso porque  o homem falha em responder ao acontecimento do milagre. “Essa é a tragédia de toda a humanidade: ofuscar o milagre com a nossa indiferença. A vida é rotina, e a rotina é a resistência ao milagre” (do livro ‘Deus em Busca do Homem’). 

E de fato, recorrendo ao Zohar, a obra máxima da Cabalá ( compilada e escrita pelo Rabi Shimon bar Yochai, no século 2), lá está dito: “Abram para mim uma abertura do tamanho do buraco de uma agulha, e Eu lhes abrirei os portões celestiais”.

Texto atualizado

domingo, 1 de julho de 2012

Rio+20: um líder polêmico na vitrine

por Sheila Sackspublicado no site "Observatório da Imprensa" , em 26.06.2012http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed700_um_lider_polemico_na_vitrine

Há pouco mais de um mês, em 17 de maio, as agências internacionais revelaram a vontade do presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, de estar presente nas Olimpíadas de Londres, a serem realizadas em julho e agosto próximos, para acompanhar o desempenho dos atletas iranianos. A notícia também deixava claro que a presença do político persa não seria bem vista pelas autoridades do Reino Unido. “Me encantaria estar ao lado dos atletas iranianos durante os Jogos Olímpicos para estimulá-los, mas eles (britânicos) têm problemas com minha presença”, disse Ahmadinejad. Vale lembrar que em novembro de 2011 um grupo de estudantes islâmicos invadiu, depredou e saqueou o prédio da embaixada britânica em Teerã, inclusive acuando os funcionários, o que levou o governo do Reino Unido a fechar a sua embaixada naquele país. Na ocasião, o primeiro-ministro David Cameron qualificou de “ultrajante” o ataque à embaixada e pediu ao governo iraniano que processasse os culpados.

Diferentemente de Londres, Ahmadinejad não deve ter sido assolado por dúvidas quanto a conveniência de sua presença na Rio+20 – a conferência da ONU para o desenvolvimento sustentável que ocorreu no Rio de Janeiro, de 13 a 22 de junho - e a possível receptividade que mereceria das autoridades brasileiras, a grande maioria ainda sob a chancela carismática do ex-presidente Lula. Com efeito, nas 48 horas que passou em solo carioca, o líder iraniano teve uma cobertura da imprensa brasileira acima da esperada, levando em conta a quantidade de chefes de Estado e personalidades políticas presentes ao evento representando 193 países. A mídia o acompanhou quando ele discursou emoldurado por coleção de bandeiras e o logo da ONU; em sua conversa com os jornalistas iranianos; na entrevista coletiva para a imprensa internacional; no café da manhã para 70 intelectuais brasileiros, do qual foi anfitrião; e na reunião com Ban Ki-Moon, o secretário geral das Nações Unidas.

Performance midiática

Presente no plenário da Cúpula de Chefes de Estado, Lula ouviu o discurso de Ahmadinejad que o cumprimentou logo depois de finalizar a sua participação, quando ambos conversaram. Segundo a agência O Globo, “após um abraço caloroso, os dois trocaram algumas palavras com a ajuda de um intérprete e Ahmadinejad disse a Lula que o povo do Irã reza por sua total recuperação”. Momentos antes, em mais uma de suas performances midiáticas, o iraniano havia aconselhado os “amigos” governantes a recorrerem ao sentimento da “compaixão” no gerenciamento do mundo.

“Detentor de um dos pronunciamentos mais aguardados do primeiro dia de reunião dos chefes de Estado”, de acordo com a jornalista Ângela Chagas, do Portal Terra, Ahmadinejad também aproveitou os seus 20 minutos de fama (a Rio+20 reuniu 4 mil jornalistas) para atacar os países ricos e a atual ordem mundial que, segundo ele, ”é formada por um grupo minoritário de nações desenvolvidas que está sempre impondo padrões para os outros seguirem”.

A repercussão de suas palavras ganhou destaque através da Agência Brasil (‘Presidente iraniano pede que países usem amor e compaixão para garantir o futuro do mundo’);agência EFE, espanhola (‘Na Rio+20, Ahmadinejad pede ordem mundial que se baseie na compaixão’); Uol notícias (‘Em discurso rápido, Ahmadinejad pede compaixão para enfrentar crise’); BBC-Brasil (‘Ahmadinejad defende mundo mais igualitário na Rio+20’); agência Estado (‘Ahmadinejad critica imposições de países desenvolvidos’); portal G1 (‘Presidente do Irã defende mundo igualitário na Rio+20’); Folha de São Paulo (‘Presidente do Irã pede mudanças com base em um Deus único’), e de centenas de sites e blogs repetidores de notícias.

Diante desse despudor de repisar o óbvio, da pregação falsa e enganosa, da impostura das palavras que soam como galhofa frente ao continuado martírio de grupos religiosos minoritários, como os Bahá´is (350 mil fiéis no país), perseguidos pelo braço autoritário e sem compaixão do líder iraniano, que inclusive os impede de ter acesso ao ensino superior, a mídia nacional, talvez premida pelo tempo, repercutiu as frases de efeito e os parágrafos propositalmente pseudo sentimentalistas, sem contestação ou crítica, face ao conhecido histórico de Ahmadinejad - possuidor de um currículo povoado de atentados e assassinatos contra aqueles que o contestam.

Recente relatório do Conselho de Direitos da ONU (março de 2012) apontou para um aumento assustador de execuções no Irã, que cresceram de 100, em 2003, para 670, em 2011, sendo 249 realizadas secretamente. O relator especial para o Irã, Ahmed Shaheed, sem permissão para visitar o país, contou com depoimentos que indicaram padrões recorrentes de violações de direitos humanos fundamentais, como o de opinião e de opções religiosas. Não poupando nem menores de idade em suas execuções, o regime de Ahmadinejad também é acusado pela justiça argentina por sua responsabilidade no atentado ao prédio de uma associação judaica, ocorrido em 1994, em Buenos Aires, quando morreram 85 pessoas e 300 ficaram feridas. Há poucos meses, em entrevista à TV estatal alemã ZDF, Ahmadinejad voltou a despejar afirmações cínicas acerca do Holocausto (‘é mentira’), do estado de Israel (‘eles nunca foram os governantes dessa terra’) e das reais finalidades do programa nuclear iranino (‘bombas atômicas são amorais. Em princípio, sou contra’).

Energia nuclear para todos

Na coletiva à imprensa, realizada um dia após o pronunciamento de “paz e amor” na plenária da Rio+20, o presidente do Irã outra vez se valeu de premissas ilusórias para advogar proposições que teriam como base a sua verdade que é contestada pela maior parte das democracias respeitáveis integrantes da ONU. Ahmadinejah afirmou que os Estados Unidos usam o discurso de temor pela fabricação de bombas atômicas para “mascarar” o interesse pelo petróleo iraniano. Também acusou os EUA e o grupo de países que fazem parte das negociações (Rússia, China, França, Reino Unido e Alemanha) de serem contra o uso da energia nuclear pelo Irã porque, segundo ele, “não querem o progresso” de seu país. Acenando para o Brasil e os amigos bolivarianos Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador), Hugo Chávez (Venezuela) e Raúl Castro (Cuba), o iraniano disse acreditar que a energia nuclear, como outros meios energéticos, devem ser acessíveis para todas as nações.

Também em relação à entrevista, a mídia embarcou na performance teatral de Ahmadinejad, na sua fala mansa e no seu jeitão dissimulado, somando frases e opiniões que em nada remetem para a figura ditatorial, radical e fria desse político que mente, solenemente, acerca de tudo que envolva as suas ações. A entrevista produziu os seguintes títulos: ”Ahmadinejad contesta críticas do Ocidente sobre programa nuclear do Irã” (agência EFE); “Ninguém deve possuir armas nucleares, diz Ahmadinejad no Brasil” (G1); “Ahmadinejad critica monopólio da energia nuclear” (O Globo); “Presidente do Irã defende democratização da energia nuclear para mudar a ordem mundial” (R7 Notícias); “Brasil pode ter papel importante na nova ordem mundial, diz presidente do Irã” (Agência Brasil).

“Roubando os nossos bolsos”

Por fim, coube a um café da manhã em um hotel à beira do mar, na Zona Sul do Rio, com a participação de 70 brasileiros convidados do presidente do Irã, tornar-se o evento mais retrô da Rio+20, no melhor estilo déjà vu (expressão francesa que significa ‘já visto’) dos anos 1960. Na reportagem de Rafael Lima, publicada pela Veja.com os leitores são informados da presença de professores universitários, lideranças estudantis, UNE e políticos de partidos como PSB, PCdoB e PT, entre os comensais, que adoraram ouvir “o ditador” lançar ataques deliberados aos Estados Unidos. ”É como se enquanto estamos aqui, tomando esse café da manhã, os Estados Unidos estivessem roubando os nossos bolsos”, disse o iraniano para delírio dos antiamericanos, registrou o repórter (‘O fã clube brasileiro de Ahmadinejad’).


A reportagem também confirma o intento estratégico de Ahmadinejad de se aproximar dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), e particularmente do Brasil e dos brasileiros para “limpar sua imagem” que na opinião dele tem sido distorcida pela mídia “que apresenta uma visão desfavorável do Irã e do mundo islâmico.” Uma tarefa, diga-se de passagem, que parece já estar sendo delineada, tendo em vista o teor da cobertura oferecida ao presidente iraniano na Rio+20, o que o levou a avaliar sua estadia carioca como “positiva” no café da manhã com seus admiradores brasileiros. De fato, o contato incidental de uma mídia nacional apressada e pouca cuidadosa no quesito da pesquisa com as múltiplas agências de notícias europeias de viés ideológico, e mais a presença oficial da Agência Brasil, a competente e eficaz estatal de notícias vinculada à Presidência da República (que distribui seus textos, muitos em inglês, para todo o país, América Latina, Portugal e países africanos), devem ter proporcionado a Ahmadinejad a surpreendente sensação de que não está só, nem tampouco isolado, nesse quadrante do mundo. Pelo menos, por enquanto.