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sexta-feira, 10 de março de 2017

Israel:visões cristalizadas

por Sheila Sacks
Pouco mais de dois meses nos separam do ano anterior e já estamos navegando, nesse início de 2017, rumo ao alto mar de tempos incertos. Acontecimentos se atropelam, comportamentos refluem, prioridades se desorganizam e a humanidade repete caminhos já percorridos atolada em um confuso emaranhado de percepções e sentimentos ilusórios acerca de hipotéticos novos desafios que batem à sua porta. 
Titãs mundiais perseveram nas palavras e gestos teatrais e manipulatórios nos quais a verdade não é um item primordial e, portanto, submerge nos embates ancorados por megainteresses transnacionais. Monopólios econômicos, políticos e doutrinários devidamente dissimulados e blindados perpetuam jogos pirotécnicos, promovendo expectativas de tempos melhores que não se confirmam. Megalíticos e insuperáveis em sua abrangência e poder.
 Nesse ambiente real de cartas marcadas e posições estratificadas – dissociado e dissonante das fantasias midiáticas que alimentam narrativas de liberdade individual e de autossuficiência - sociedades e governos tentam interagir na organização e administração das nações no sentido da preservação de um pacto civilizatório que possa manter o trato formal de boa convivência com seus pares.
Um universo de imposições e ações com frequencia apartado dos valores éticos sociais e dos contornos de conduta de milhares de organizações mundiais criadas para fazer valer o escrito das boas intenções e que na prática são ignoradas e atropeladas por sangrentos conflitos civis, incongruentes incidentes diplomáticos, atos insanos de terrorismo e, notadamente, pela descabida presunção e cega intolerância que conduz as guerras entre países.
Jogo de palavras
No século 21, o estado de Israel é um exemplo de nação cuja situação peculiar permanece ainda pouco compreensível para grande parte da população mundial. Na mídia não faltam artigos tentando explicar, de um lado, as “imprecisões e omissões” dos que atacam o país, e em oposição, as supostas “verdades sobre israelenses e palestinos”. Títulos de dois textos antagônicos publicados pelo jornal “O Globo”, na primeira semana de janeiro, seguidos de uma tréplica, a favor de Israel, onde o termo “verdades”, um tanto pretensioso, é substituído pela palavra “fatos”, que sugere algo mais pé no chão, mais afeto à realidade.
Diferente de temas caros ao maior e mais influente matutino carioca - como o agronegócio que dificilmente é questionado em suas vertentes de desigualdade em seus painéis de opinião - o estado de Israel é um tópico recorrente em suas páginas, com apreciável destaque (similar ao que acontece nos jornais “Folha de São Paulo” e “O Estado de São Paulo”), principalmente quando o país é posto em um patamar negativo sob o prisma internacional ou sofre sanções e restrições.
Imediatamente pipocam na imprensa as naturais manifestações individuais ou de representantes da comunidade judaica brasileira que ao abrirem espaço na mídia para a defesa de Israel automaticamente também escancaram aos seus antagonistas espaços iguais e valiosos para as contestações repetitivas de clichês que esses diálogos pós-verdade produzem: a sensação de que apelos à emoção e a crenças pessoais repercutem de maneira mais eficaz na opinião pública do que a correta apresentação de fatos objetivos. 
No apagar das luzes

O gatilho para o mais recente embate de verborragia foi o longo discurso do secretário de Estado do ex-presidente Barack Obama, John Kerry, em 28 de dezembro do ano passado - a pouco menos de um mês do término dos oitos anos de gestão democrata -, justificando a posição americana de se abster de votar no Conselho de Segurança da ONU sobre as colônias israelenses na Cisjordânia e de tampouco se valer de seu poder de veto sobre a questão (o que foi usado em 2011 em situação semelhante). A resolução aprovada cinco dias antes pelos 14 países-membros exigia que Israel interrompesse de imediato a implantação de assentamentos sob o argumento de que as colônias são um entrave para a paz e “colocam em risco a viabilidade da solução de dois Estados”.
O veterano jornalista Zevi Ghivelder, que foi correspondente em Israel da extinta revista “Manchete”, em artigo crítico à fala de Kerry (“Imprecisões e omissões”, em 1/1/2017), perseverou na indispensável premissa política necessária para o início de qualquer negociação que envolva os dois lados da questão: o reconhecimento, pelos palestinos, do direito de Israel de existir. Uma equação elementar que, de forma vexatória, o governo israelense precisa reprisar, dia após dia, como se fosse um mantra indecifrável e intrincado acima da compreensão dos simples mortais.  
Ghivelder também alerta para um detalhe que faz toda a diferença, já que no âmbito palestino existem hoje dois estados distintos, um na Cisjordânia, sob a administração do Fatah, e a outro na Faixa de Gaza, dominado pelo Hamas. E indaga:  “Com quem, então, negociar?”. Com a agravante de que o grupo extremista na Faixa de Gaza continua armazenando mísseis e construindo túneis para atacar Israel.
Outro ponto lembrado pelo jornalista foi a proibição por Israel de novos assentamentos, logo no início do governo Obama, em 2009. Resultado: durante os dez meses em que isso ocorreu não houve avanço nas negociações de paz entre as partes. Quanto ao retorno às fronteiras de 1967, variante ressuscitada irresponsavelmente, de tempos em tempos, Ghivelder aponta um fato inconteste em matéria de segurança nacional: o afunilamento da faixa territorial israelense resultaria em tragédia porque em questão de minutos o país seria cortado ao meio no caso de uma invasão.
No campo das “omissões”, Guivelder se utiliza de um argumento-padrão bastante usual entre os que apoiam Israel que é o de apontar outras situações geopolíticas complicadas que também mereceriam reprimendas das grandes potências ocidentais. Esse tipo de comparação se constitui em uma armadilha se analisado pela perspectiva ética de que um provável mal não justifica outro. Diante da opinião de Kerry que julga “inaceitável” a presença de Israel no território palestino, o articulista cita a ocupação do Tibete pela China e a presença da Rússia na Crimeia, Chechênia e leste da Ucrânia, situações que têm passado ao largo do censor crítico do ex-secretário americano, segundo o analista.
Mão de obra barata
 Por outro lado, a fala de Kerry agradou ao jornalista Rasheed Abou-Alsamh que escreve regularmente em “O Globo” e é correspondente na América Latina do “Arab News”, da Arábia Saudita. Ele nasceu em Washington, de mãe americana e pai árabe, e tem nacionalidade saudita. Alsamh classificou o discurso de “emocionante” e comparou os palestinos aos latinos explorados nos EUA. “Parece-me que os palestinos são vistos como uma fonte de mão de obra barata pelos israelenses”, avalia o jornalista. Ele destaca que os “palestinos são obrigados a esperar em filas horas a fio, e são humilhados pelos soldados israelenses, somente para entrar em Israel para trabalhar ou voltar para a Cisjordânia”
Culpando a direita e a extrema-direita que comandam Israel pelo impasse que inviabiliza a solução de dois estados, Alsamh afirma que todos os palestinos e árabes querem “um Estado palestino independente na Cisjordânia e em Gaza, com Jerusalém Oriental como a sua capital”. Para o jornalista árabe não é verdade que Israel está rodeada de inimigos como justificam as autoridades israelenses. “Israel já tem acordos de paz com o Egito e a Jordânia. E tem relações camufladas com quase todos os países do Golfo”, afirma Abou-Alsamh, citando a visita de uma delegação não oficial de empresários e acadêmicos sauditas que se encontraram com membros do parlamento (Knesset), em julho de 2016.
Diante dessa visão cor de rosa e simplista de que Israel exagera em sua paranoia de segurança, o jornalista evoca a iniciativa de paz árabe de 2002, em que todos os países árabes reconheceriam o estado de Israel, mas com a condição de que os israelenses se retirassem de todos os assentamentos e de Jerusalém Oriental, e até indenizassem os palestinos que saíram de Israel por vontade própria. Com essas iniciativas, de acordo com o articulista, “os ataques contra israelenses cairiam dramaticamente” (“Verdades sobre israelenses e palestinos”, em 6/1/2017).
A esse respeito, Ghivelder lembra que com a implantação do estado de Israel, em 1948, milhares de judeus tiveram que deixar os países árabes onde viviam há várias gerações. “A rigor, quem vai compensar os 800 mil judeus, homens, mulheres e crianças que foram expulsos dos países árabes naquele mesmo ano?”
Exemplo de Gaza
Em contraponto ao texto de Abou-Alsamh, que lamentavelmente representa uma vertente global majoritária, o presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (Fierj), Herry Rosenberg, se dispôs a esclarecer o que classificou de “inverdades e meias verdades” sobre o conflito entre israelenses e palestinos expressas no artigo do jornalista árabe. Segundo o representante judaico, Gaza foi devolvida integralmente aos palestinos em 2005, sem as colônias judaicas ali existentes, e nem por isso estabeleceu-se a paz. Ao contrário, de Gaza saem os mísseis e os terroristas que provocam danos e mortes (“Os fatos sobre israelenses e palestinos”, em 13/1/2017).
No tocante às barreiras de proteção, Rosenberg lembra que o trânsito era livre “até que os palestinos passaram a aproveitar essa liberdade para enviar dezenas de homens-bomba para explodirem-se em ônibus, restaurantes e universidade de Israel”. E cita a presença de quase dois milhões de árabes vivendo no país com plenos direitos de cidadãos, enquanto palestinos advogam um futuro estado palestino “livre de qualquer judeu”.
Considerando que a Cisjordânia é parte da história bíblica judaica, região originalmente conhecida como Judeia e Samaria, soa como uma intransigência descabida a não permissão aos judeus de continuarem morando nesses locais. Daí a demanda israelense nesse sentido em qualquer negociação de paz, associada à questão da segurança nacional. ”Enquanto os israelenses não estiverem seguros de que um futuro Estado palestino não será usado como plataforma para ataques a Israel, como já acontece em Gaza, não haverá chance de acordo”, prevê o representante da Fierj.
Guardião do povo judeu
Encerrando o singular ciclo opinativo sobre Israel e a temática judaica, o cônsul honorário de Israel no Rio de Janeiro, Osias Wurman, na véspera do Dia Internacional em memória das vítimas do Holocausto (26.01.2017), reforçou a tese de que “se houvesse o Estado de Israel na época (da Alemanha nazista), o genocídio não aconteceria” (“A ONU e o Holocausto”, em 26/1/2017). Ainda que pese a comprovada ignorância de considerável parcela da humanidade acerca do assassinato em massa de seis milhões de judeus.  “Uma pesquisa global realizada em 2014, já mostrava que 46% dos entrevistados nunca tinham ouvido falar de Holocausto!”, alerta Wurman.
O texto também tem como miolo central a Resolução 2.334, de 23 de dezembro de 2016, aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, que condenou os assentamentos judaicos na Cisjordânia e em Jerusalém Ocidental, alegando que os mesmos se constituíam obstáculos para a paz. Wurman rebate esse argumento observando que entre 1948 e 1967 não havia qualquer colono morando em território pretendido pelos palestinos e ainda assim houve atentados, agressões e incitamentos ao ódio por parte dos palestinos. “Desde 1948, quando foi declarada a independência do Estado de Israel, até 1967, quando Israel defendeu-se do ataque de seus vizinhos, conquistando a Cisjordânia e libertando Jerusalém Oriental da soberania jordaniana, não houve um dia sequer de paz.”
Por fim, a posição oficial do governo israelense é explicitada mais uma vez de maneira peremptória: “Nada que a ONU ou a Unesco propuseram através de resoluções que ignoram as raízes judaicas existentes nas cidade de Jerusalém e nas bíblicas Judeia e Samaria fará com que o sonho de dois estados convivendo lado a lado possa ser concretizado.”
Em resumo, quatro textos de bom calibre que apenas reforçam ideários, posições e propostas já consagradas, de ambos as partes. Agora é imaginar se alguma coisa mudou na cabeça do leitor comum, que não é judeu, em relação a Israel e ao conflito com os palestinos. Ou a finalidade era outra?


Um adendo pós-matéria: O cineasta Cacá Diegues que escreve regulamente aos domingos em “O Globo” e já emitiu críticas ácidas ao poder dos judeus em Hollywood, mudou o disco e abordou de maneira simpática a presença dos judeus no emblemático filme “Casablanca” (“Sempre haverá Casablanca”, em 12/3/2017). Isso se deu em face de um livro recém-lançado, escrito por um judeu, que conta os bastidores do filme. Importante:o livro lhe foi ofertado pelo jornalista Zevi Ghivelder. Um tipo de iniciativa que talvez surta mais efeito do que mil argumentos entrincheirados em confortáveis bunkers.