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domingo, 27 de novembro de 2016

Criminosos comuns aderem à jihad, informa instituto britânico

Por Sheila Sacks
“Quando as portas da prisão se abrem, o verdadeiro dragão sai voando” (Ho Chi Min, líder comunista vietnamita, falecido em 1969)

Prisões europeias estão transformando jovens que assaltam e roubam em futuros terroristas. A doutrina da guerra santa se infiltrou entre as grades e deu sentido aos seus históricos de violência.

publicado no Correio do Brasil

Em mais uma de suas pesquisas focadas no extremismo político, o Centro Internacional de Estudo da Radicalização e Violência Política (ICSR, na sigla em inglês), do King’s College London, divulgou relatório em que aponta a crescente adesão de criminosos comuns e ex-presidiários a grupos religiosos fanáticos como o Estado Islâmico (EI), a rede al-Qaida e a milícia síria Jabhat al-Nusra que pregam a Jihad - guerra santa -  contra aqueles que não estejam alinhados com o ideário de um Islã fundamentalista. Segundo o estudo, a conexão entre o terrorismo e a deliquência tem aumentado na Europa e para isso concorre o próprio sistema prisional que abriga centenas de “jovens revoltados” que acabam se radicalizando de forma mais rápida nas prisões do que quando doutrinados nos centros religiosos ou guetos.

Na apresentação do trabalho, em outubro deste ano, o diretor do ICSR e co-autor da pesquisa, Peter Neumann, observou que jovens detidos por crimes violentos são mais propensos ao extremismo bárbaro. “O Estado Islâmico representa a brutalidade, a força e o poder que esses jovens, frequentemente ex-integrantes de gangues, buscam.” Neumann, nascido na Alemanha, é mestre em Ciência Política, especialista em segurança e terrorismo, professor do King’s College London e autor de vários livros sobre o tema, sendo o mais recente “Radicalized: New Jihadists and the Threat against the West” (“Radicalizados: Novos Jihadistas e a ameaça contra o Ocidente”, em tradução livre).

Recrutamento nas prisões 

Com 52 páginas, o documento “Criminal Pasts, Terrorist Futures: European Jihadists and the New Crime-Terror Nexus” analisa os perfis de 79 extremistas que a partir de 2011 se deslocaram para o exterior para combater no Iraque e na Síria ou participaram de atentados na Europa. Eram originários da Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Holanda e Reino Unido, alguns com descendência árabe.

O documento elaborado pelo ICSR  descobriu que mais da metade deles, cerca de 57%, tinham antecedentes criminais, tendo passado um período presos antes de aderir ao jihadismo. Desse grupo, 27% dos detidos se radicalizaram na prisão contrariando o senso comum de que são as mesquitas e os centros religiosos os locais dessa prática de aglutinação, conforme o foco e as ações dos serviços de segurança.

Para Newmann a familiaridade de ex-presidiários com armas, drogas e ilícitos em geral – como o acesso a documentos falsos e a circuitos ocultos de financiamento - promove uma funesta interação entre o crime e o terror, agora pretensamente justificados sob  o manto da religião. Se antes eram considerados criminosos comuns, a partir de seu recrutamento pela jihad ganham uma espécie de aval para cometer crimes ainda maiores com a salvaguarda de uma suposta redenção e ascensão ao paraíso.

O relatório reproduz um pôster de um grupo jihadista que estampa o slogan: “Sometimes people with the worst pasts create the best futures” (“Às vezes pessoas com os piores passados criam os melhores futuros”, em tradução livre). A propaganda apresenta um jovem de costas, de botinas e roupa preta, empunhando um fuzil kalashnikov, de fabricação russa, tendo ao fundo uma luz fulgurante. O cartaz foi compartilhado no facebook pelo grupo britânico jihadista Rayat al-Tawheed que alicia para o EI jovens envolvidos com gangues criminosas, prometendo a salvação de suas almas pela jihad. Algo bem diferente de tempos atrás quando os movimentos islâmicos enfatizavam o valor da crença e o fervor religioso absoluto à causa.

Pouco conhecimento teológico

Em entrevista ao “The Independent”, jornal britânico on-line, o professor Newman explica que com o surgimento do EI o perfil dos extremistas islâmicos tem mudado. ”Muitos analistas continuam dizendo que os terroristas são oriundos das classes média e alta, recordando, por exemplo, que Osama Bin Laden era filho de um milionário e o ataque de 11 de setembro foi praticado por estudantes. Mas essas afirmações não refletem a realidade que temos hoje com o Estado Islâmico”.

Na reportagem “Isis recruiting violent criminals and gang members across Europe in dangerous new crime-terror nexus”, veiculada em 10.10.2016, Newman revela que a pesquisa constatou que os atuais extremistas recrutados pelo EI não apresentam um conhecimento teológico profundo da Shaaria (conjunto de leis baseado no Alcorão, o livro sagrado do Islamismo, e na vida do profeta Maomé) e continuam a fumar, beber e a usar drogas até a partida para o local do combate. Diferentes dos terroristas da al-Qaida - indivíduos radicalizados para a violência em função de uma interpretação extremista do Islã - , os novos militantes do terror são pessoas de comportamento violento que encontraram no radicalismo islâmico uma maneira de prosseguir no submundo do crime sob uma pretensa justificativa religiosa. 

A propaganda de recrutamento é bem explícita, analisa Newman. “Basicamente diz que você pode se inscrever para a missão mesmo sem conhecer o verdadeiro Islã. A ideologia do EI enfatiza menos o conhecimento teológico e mais a absoluta obediência a sua própria interpretação da luta jihadista. O estudioso acredita que  em muitos casos é bem mais difícil convencer algum ativista estudantil que passa a apoiar a ideologia jihadista a praticar um ataque com mortes do que um outro com um passado de atos de violência.

O relatório do ICSR cita alguns exemplos de criminosos que aderiram à  jihad. Um deles é Abderrozak Benarabe, nascido na Dinamarca, perigoso traficante de drogas, conhecido como “Big A”, dono de um extenso prontuário criminal em Copenhague e que decidiu se voltar para o jihadismo e lutar na Síria depois que seu irmão foi diagnosticado com câncer. “Não basta apenas rezar, com tanta coisa errada que eu fiz”, justificou. O britânico de descendência síria, Ali Almanasfi, também viajou à Síria e se juntou à milícia Jabhat al-Nusra, em 2013. Envolvido com drogas e roubos, ele passou um longo período na prisão após participar de um violento assalto a um idoso. Ao explicar a um amigo a razão de seu engajamento à  jihad, Almanasfi, que morreu cinco meses depois, aos 22 anos, na cidade síria de Idlib, confessou: “Pelo menos uma vez eu quero fazer alguma coisa boa. Alguma coisa pura.”  

 Sem futuro

Fortalecendo a tese, o antropólogo francês Alain Bertho, professor da Universidade Paris 8, atribui o sucesso do Estado Islâmico entre os jovens desestabilizados ao fato de o grupo terrorista oferecer um sentido ao mundo e às suas vidas. “O Estado Islâmico lhes dá até uma missão”, acentua. Respondendo às perguntas do jornalista Ivan Du Roy, do site alternativo “Basta!”, focado em problemas sociais, econômicos e ambientais, o antropólogo culpa as sociedades em geral de não investirem no futuro dos jovens, na sua educação e nas universidades. “Será que refletimos bem sobre como seria a revolta sem esperança?”, provoca. 

Segundo Bertho, para combater de forma eficaz o Estado Islâmico e sua oferta política de morte e desespero “é preciso refletir sobre a revolta que está na raiz desses crimes”. Ele observa que “uma sociedade que já não consegue se reinventar leva as pessoas a manifestações de desespero e de raiva’, e que “o século 21 abandonou o futuro em nome da gestão do risco e da probabilidade, indiferente à ira das gerações mais jovens”.

Autor do livro “Les enfants du chaos” ( “Os filhos do Caos” ), Bertho acusa a globalização e a crise generalizada da representação política de aumentarem a violência e os motins, provocando uma onda de desilusão, desesperança e “fúria radical” nas novas gerações. “Gerencia-se o cotidiano através de políticos que manipulam o risco e o medo como meios de governo, seja o risco à segurança ou o risco cambial, que falam muito de aquecimento global, mas são incapazes de antecipar a catástrofe anunciada.” De acordo com o antropólogo, essas revoltas radicais encontram-se hoje diante de tamanhos impasses que o Estado Islâmico surge como uma opção de ira, martírio e libertação. 

Fracasso na educação

O estudioso em Ciência das Religiões, professor Paulo Mendes Pinto, da Universidade Lusófona de Lisboa, também credita ao sistema educacional uma forte dose de responsabilidade no crescimento do extremismo na Europa. Ele denuncia o fracasso do modelo educacional europeu como causa da adesão de jovens ocidentais ao radicalismo do Estado Islâmico. "Os jovens, perante os desalentos que a Europa lhes dá - desemprego, falta de valores, corrupção, luta cega por riqueza -, optam por um modelo diferente”, critica o acadêmico, em depoimento à agência de informação Lusa (“O que atrai os jovens ocidentais ao Estado Islâmico?”, em 26.09.2014).

 À frente do Instituto Al-Muhaidib de Estudos Islâmicos, Mendes Pinto é editor da revista “Cadernos de Estudos Sefarditas”, da Universidade de Lisboa e mantém uma coluna sobre religião no jornal “Público”. Em sua opinião, o sistema de ensino que deveria alimentar as ideias de liberdade, fraternidade e igualdade da Revolução Francesa, que ainda continuam válidas, objetivamente não consegue passar esses princípios. “Devemos pensar sobre o que é que a nossa sociedade tem que faz com que, quando pensávamos que vivíamos em regimes onde a liberdade nos tinha vacinado de radicalismos, acontece exatamente o contrário”, alerta o especialista.

Um exemplo dessa falha social pôde ser constatado com a prisão de Khalid Zerkani, em julho de 2015. A justiça belga o condenou a 12 anos de prisão por difundir ideias extremistas entre “jovens ingênuos, frágeis e agitados”. Com 42 anos, ele foi acusado de participação em atividades de organização terrorista e considerado “o arquétipo de um mentor subversivo”.  

Doutrina de ódio

Morador do bairro de Molenbeek, em Bruxelas, Zerkani manteve conexões diretas ou indiretas com os jovens que participaram da série de ataques em Paris (o maior deles à casa de show Bataclan), em 13 de novembro de 2015 - que matou 130 pessoas e feriu 352 -, e nos atentados no metrô e no aeroporto de Bruxelas, em 22 de março de 2016, com 32 mortes e 300 feridos. "Zerkani perverteu toda uma geração de jovens, especialmente no bairro de Molenbeek" (de maioria islâmica), afirmou o promotor belga Bernard Michel que acompanhou o caso. É o que mostra a reportagem “Em Bruxelas, mentor jihadista ensinava ‘islamismo bandido’ a jovens revoltados” (“The New York Times” e “UOL internacional”, em 12.04.2016).

 Segundo as autoridades de segurança da Bélgica, por mais de uma década Zerkani foi um elemento central da rede terrorista que abasteceu com conselhos, dinheiro, armas e explosivos jovens muçulmanos de origem europeia ansiosos para combater na Síria e na Somália ou para causar destruição na Europa. Investigadores citam Abdelhamid Abaaoud, 28 anos, apontado como comandante operacional dos ataques em Paris (morto cinco dias depois pelo polícia francesa) e Najim Laachraoui, 25, um dos homens-bomba suicida nos atentados em Bruxelas e que igualmente esteve envolvido com o massacre na capital francesa.  Abaaoud já tinha sido preso três vezes por assalto e outros delitos e Laachraoui - que chegou a estudar engenharia na Universidade Livre de Bruxelas, mas não concluiu o curso – esteve na Síria, em 2013, nas fileiras do Estado Islâmico lutando contra o regime de Bashar al-Assad.

Outros envolvidos com Zerkani seriam Mohamed Abrini, 31 anos, preso acusado de ter participado dos ataques em Bruxelas e morador do distrito de Molenbeek, e Reda Kriket, um francês de 34 anos, preso em março deste ano pela polícia francesa, suspeito de estar planejando um ataque iminente e “sem precedentes”. Em seu apartamento foi apreendido documentos falsos, produtos químicos e um arsenal de armas e explosivos semelhantes aos usados nos ataques em Paris e Bruxelas.

Com 1,6 bilhão de praticantes (23% da população mundial), o islamismo tem maioria religiosa em 49 nações. A previsão para os próximos 35 anos é que haja um crescimento considerável desse grupo religioso, em virtude de sua maior taxa de fertilidade e de população jovem. Um estudo demográfico realizado pelo “Pew Reseach Center”, de Washington, em 2015, sobre o futuro das religiões (Global Religious Futures) calcula que em 2050 o Islã terá 2,76 bilhões de seguidores (29,7%), aproximando-se dos 2,91 bilhões de cristãos que irão compor os 31,4% da população global.