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terça-feira, 31 de março de 2015

Imprensa em questão: o domínio da opinião

Por Sheila Sacks
Publicado no "Observatório da Imprensa"

  “Os inteligentes sempre facilitaram as coisas para os bárbaros” (Theodor W. Adorno, filósofo)

Na série de TV Good Wife, ambientada nos tribunais de Chicago, uma das magistradas possui determinada característica que desarma os bacharéis que recorrem à sua jurisdição. Dependendo do viés interpretativo adotado pelos advogados de defesa e de acusação em relação ao tema em julgamento, a juíza interrompe a argumentação com o bordão “na sua opinião”, sinalizando aos contendores e aos membros do júri que o raciocínio expresso pelo profissional em questão representa um ponto de vista pessoal e não necessariamente uma visão verdadeira ou correta dos fatos em exame.

Diferente dos tribunais, cujos parâmetros legais dificultam e restringem eventuais manipulações na construção de um raciocínio, a imprensa é um campo aberto a observações pessoais especulativas pela própria natureza de seu serviço voltado à livre difusão da informação e por extensão ao livre exercício da opinião. Ainda que o comentário afronte conceitos éticos e apresente visões distorcidas da realidade, o jornal lhe confere visibilidade e, essencialmente, o crédito da confiabilidade. O historiador americano Christopher Lash (1932-1994), crítico dos processos de disseminação da informação no mundo globalizado, teve essa percepção ao enunciar em seu livro “Cultura do Narcisismo” (de 1979), que “para algo ser aceito como real, basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável”.

Artistas opinativos

Recente consulta do Ibope apontou que 58% dos entrevistados confiam “muito ou sempre nos jornais impressos”, percentual superior a outros meios de comunicação como rádio, televisão e internet (“O consumo da informação”, em O Estado de São Paulo de 28.12.2014). Outro dado significativo é que a grande maioria dos leitores (84%) lê jornais para se informar e se inteirar das notícias, segundo a mesma pesquisa.  Mas, tratando-se de páginas de opinião, presume-se que o interesse do leitor irá convergir naturalmente para o editorial, que enuncia a posição ideológica do jornal, e também para os habituais colunistas que repercutem os temas políticos nacionais e internacionais que impactam a vida do cidadão e da sociedade.

Na última década, ampliando a influência subjetiva das páginas opinativas que interferem na formação e avaliação da realidade, a imprensa vem agregando a esse plantel de profissionais de jornalismo uma plêiade de personalidades do mundo artístico, aparentemente em prol da diversidade de ideias e conceitos que balizam a liberdade de expressão nas democracias. Se antes, cineastas, atores, músicos e outros astros populares “bons de escrita” se expressavam nos suplementos de cultura ou “segundo caderno” sobre a sua arte, agora migraram para as páginas reservadas à prática e observação jornalísticas das cenas político-sociais, concorrendo em igualdade de espaço e mérito com os textos do “pessoal da casa”.

A seu favor, os próprios currículos festejados pela imprensa e a admiração dos leitores-fãs, dois referenciais de peso a embasar pontos de vista individuais e impositivos que caracterizam “a superioridade bem informada” conceituada pelo filósofo e sociólogo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969). Na obra “Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada” (1951), Adorno então em seu exílio nos Estados Unidos chama a atenção para a responsabilidade que deve prevalecer entre a elite formadora de opinião – “os inteligentes” – quando se propõe a expressar suas ideias e opiniões valendo-se de um meio de comunicação de massa. “Nenhum pensamento é imune à comunicação e proferi-lo no lugar errado e por meio de entendimento errado é suficiente para solapar sua verdade”, escreveu.

Acrescentando que à responsabilidade que se requer consciente e justa na formulação de conceitos e interpretações críticas soma-se uma carga de poder bastante presente dado o alto grau de influência que essas opiniões produzem.  Para o professor de Ciências da Comunicação da Universidade Nova Lisboa, João Pissarra Esteves, aqueles que têm acesso à mídia estão investidos de um poder extraordinário, “porque impõem a sua própria realidade perante os outros, de acordo com os seus valores e interesses próprios” (“A Ética da Comunicação e os Media Modernos”, de 1998).

“Legisladores invisíveis”

Maior contundência mostra o autor de “Nossa Cultura ou o que restou dela” (2005), o psiquiatra e escritor inglês Theodore Dabrymple, de 65 anos, um implacável analista da sociedade globalizada com uma dezena de livros publicados. Ele credita aos artistas, diretores de cinema, romancistas, dramaturgos, jornalistas e até cantores populares – além de economistas e filósofos sociais – o poder de indução e controle das sociedades. “São eles os legisladores invisíveis do mundo e devemos prestar muita atenção àquilo que dizem e como dizem”, assinala no prefácio do livro.

É o que se acompanha em relação a dois artigos publicados em O Globo nas edições de domingo. O primeiro – “O Jeová do DVD” - assinado pelo compositor Aldir Blanc foi dado a conhecer uma semana antes da realização do primeiro turno das eleições presidenciais que elegeram Dilma Rousseff (28.09.2014). Manejando as palavras como petardos, o compositor adota uma linguagem “jihadista” para firmar sua posição ideológica de não votar na então candidata Marina Silva. Acusa-a de estar “enganando os trouxas” e faz pouco da crença da candidata. “O que a inspira (na Bíblia)? A matança dos inocentes? Um pai que sacrificaria o filho porque o velho é um Deus ciumento? O absurdo e cruel sofrimento imposto a Jó? Os incestos e traições?”

Antes, o autor insinua que a queda do avião de Eduardo Campos teve o dedo de agências de inteligência internacionais. “Há quem diga que o avião foi sabotado pela CIA, Mossad, a poderosa empresa transacional Testemunhas de Jeová e outros interessados.” E conclui: “Afastem do povo brasileiro essa bíblia arcaica, cheia de dólares e mentiras.”

Opinião contestada

No segundo artigo – “A Hollywood de Hitler”, em 16.11.2014 – o cineasta Cacá Diegues repercute o livro do americano Ben Urwand “A colaboração – O pacto entre Hollywood e o nazismo” (2013) que versa sobre um suposto compromisso de não agressão aos nazistas por parte dos donos de estúdios americanos na década de 1930. Dados contestados pelo jornalista e crítico de cinema da revista “The New Yorker”, David Denby, à época da publicação do livro. Ele classifica de enganosa e cheia de erros e omissões a tese acadêmica de Urwand que originou a obra, questionando e desmentindo fatos descritos pelo autor (“How Could Harvard Have Publisher Ben Urwand’s ‘The Collaborations’?, em 23.09.2013).

Filme contra o nazismo 
(1939)
Mas, Cacá Diegues assume as afirmações de Urwand como verdades absolutas e define seu julgamento: “O curioso é que os chefões dos estúdios eram quase todos judeus (...). Em benefício de seu balanço, eles preferiram ignorar o que se passava com os judeus na Alemanha de Hitler e em toda a Europa.”

Mais adiante, ele reforça esse ponto de vista: “Se considerarmos as leis do mercado acima de todas as coisas, estaremos consagrando a superioridade do dinheiro sobre a ética (...), “o fim do próprio humanismo e do amor à vida.” Ou seja, não satisfeito em endossar fatos controversos, o cineasta desloca o eixo das responsabilidades no que concerne ao maior e mais abominável processo de matança institucionalizada do Ocidente. Crime levado a efeito por uma política de estado e para o qual a maioria dos governos europeus fechou os olhos, em uma cumplicidade, essa sim, que consagra o fim do humanismo e do amor ao próximo.

Os bastidores de um jornal 
(1952)
Lamentavelmente, em ambos os artigos, reconhecida a capacidade intelectual de seus autores, a lógica do pensamento mantém-se superficial e primária, repetindo estereótipos que corrompem um correto juízo de valor. Associar o Velho Testamento e Jeová a “dólares e mentiras” assim como o cinema de Hollywood a Hitler são duas faces tendenciosas e estigmatizantes da mesma moeda. Pondo de lado fatores pessoais como preconceitos, inconsciente e linguagem, vale a resposta da filósofa Hannah Arendt (1906-1975) ao jornalista Samuel Grafton, do New York Post, em 1963, sobre a coerência da superficialidade com o mal. “Nós resistimos ao mal, ao não sermos arrastados pela aparência das coisas, ao pararmos e começarmos a pensar; isto é, ao alcançarmos outra dimensão que não a do horizonte do cotidiano. Em outras palavras, quanto mais superficial alguém for, mais probabilidade terá de se render ao mal.” (“The Jewish Writings”, de 2007).

Ao leitor consciente, portanto, sobra a desagradável sensação de impotência diante da leitura de textos bem articulados, produzidos por uma elite inteligente respaldada por um veículo da imprensa do porte de O Globo. Nesse caso soa perfeita a observação do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, de 89 anos, quando afirma que “nunca fomos tão livres e tão incapazes para mudar as coisas”.