linha cinza

linha cinza

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O jornalismo entre o real e o aparente


por Sheila Sacks

“... a vida só termina para os mortos” (Roberto DaMatta, antropólogo)
publicado no site Observatório da Imprensa
http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed673_prisao_de_nem__o_jornalismo_entre_o_real_e_o_aparente

Na semana em que as forças de segurança do Rio de Janeiro anunciavam a ocupação da favela da Rocinha, na zona sul da cidade, fatos ainda pouco esclarecidos antecederam e se seguiram ao evento, ocorrido em um domingo, 13 de novembro de 2011. A megaoperação planejada há pelo menos um ano, segundo a subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança, contou com efetivos das polícias Federal e Estadual, fuzileiros navais e blindados da Marinha, equipamentos sofisticados e agentes infiltrados que se instalaram nas favelas meses antes para mapearam os principais pontos utilizados pelos traficantes de drogas.

Apontado pela polícia como chefe do tráfico de drogas da favela da Rocinha, Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, de 35 anos, tinha essa atribuição desde 2004 quando sucedeu o traficante Luciano Barbosa dos Santos, o “Lulu”, morto por policiais do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais). Capturado três dias antes da invasão da Rocinha, escondido no porta-malas de um carro, quando tentava escapar do cerco policial, Nem chegou a oferecer R$ 1 milhão por sua liberdade. Três homens o acompanhavam no veículo, que foi parado por policiais militares em uma das saídas da favela por estar com a suspensão baixa. Ao revistar o carro, os PMs encontraram Nem. A Delegacia de Combate às Drogas do Rio fez a estimativa de que o comércio ilegal da Rocinha é um negócio que movimenta cerca de R$ 100 milhões anuais ou quase R$ 2 milhões por semana (“Nem com R$ 1 milhão” - Correio Braziliense, em 11.11.2011).

Maior favela do país, com população estimada em 120 mil moradores, a Rocinha (que agrega as favelas do Vidigal e da Chácara do Céu) também é considerada o mais importante entreposto de drogas da cidade principalmente em relação à venda de cocaína. Em entrevista ao jornalista Gil Alessi, meses antes de sua prisão, Nem revelou que tinha sob a sua responsabilidade 300 homens e que todos recebiam salário, inclusive décimo terceiro, e que em caso de prisão ou morte a família recebia pensão vitalícia. Ele também comandava a facção Amigos dos Amigos (ADA) da Rocinha, um grupo criminoso com ramificações em numerosas favelas cariocas (“Conversas com Antônio” – Carta Capital, em 04.12.2011).

Nem negociava rendição

Levado preso para a sede da Polícia Federal do Rio, o traficante prestou depoimento e disse que negociava há cerca de dois meses a sua rendição com a ONG (Organização Não Governamental) Grupo Cultural AfroReggae que vem atuando como mediadora de conflitos sociais em favelas que envolvem traficantes, viciados e os próprios moradores (“Traficante Nem diz que negociava sua rendição com o AfroReggae há dois meses.” “Bandido revela ainda que faturava R$ 1milhão por mês” - O Globo, em 12.11.2011).

Originária do grupo musical Banda AfroReggae, a ONG criada nos anos 1990 instalou suas primeiras oficinas de música e dança afro para os jovens da favela de Vigário Geral, na zona norte da cidade, e depois expandiu seu trabalho para outras comunidades pobres do Rio. Do objetivo inicial de resgatar, através da música e da arte, as crianças e adolescentes da influência dos traficantes, a instituição ampliou a sua área de atuação e em anos recentes tem trabalhado na ressocialização de presos e foragidos, contando com apoio jurídico de escritórios de advocacia. De acordo com matéria publicada em O Globo, em 29.11.2011, cinco fugitivos do sistema penitenciário voltaram à prisão depois de procurarem a ONG. Eles são acusados de assaltos, homicídios e tráfico de drogas (“Afro Reggae faz mediação e 5 bandidos se entregam”).

O coordenador executivo da AfroReggae, José Junior, confirmou que a entidade negociava a rendição de Nem e que ele manteve contato com o traficante até algumas horas antes de sua prisão pela Polícia Militar. A informação, postada pelo próprio José Junior na rede de microblogs Twitter, foi veiculada um dia depois do subchefe operacional da Polícia Civil do Rio, delegado Fernando Velloso, anunciar que havia uma negociação em curso com o advogado de Nem para a rendição do bandido. “Venho a público esclarecer que os policiais civis estavam em uma missão legítima e legal, que foi autorizada por mim”, afirmou Velloso, justificando a ação dos três policiais que tentaram evitar que o traficante preso fosse levado para a sede da Polícia Federal, como acabou acontecendo. Porém, segundo os policiais federais, o traficante não citou qualquer policial civil na negociação (“Coordenador diz que Nem negociava rendição com AfroReggae” – Jornal do Brasil online, em 12.11.2011).

Sambista executado com oito tiros

A prisão de Nem na madrugada de quinta-feira, 10 de novembro, foi seguida, horas depois, pelo seqüestro e assassinato de uma “mediadora de conflitos” do AfroReggae, levada de sua casa em Vigário Geral, na zona norte do Rio, e encontrada morta, com um tiro na cabeça, em um matagal no bairro Campos Elísios, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Tânia Cristina Moreira, 44 anos, trabalhava na ONG há sete anos e fazia parte de um grupo com cerca de 20 pessoas que atua junto a criminosos e traficantes de facções rivais no sentido de diminuir a violência e o confronto nas favelas.

Com um filho preso por envolvimento com o tráfico de drogas, a mediadora teve a casa – que fica a poucos metros da sede da ONG - invadida por três homens que a levaram em um Gol branco, de acordo com a mãe e uma amiga que estavam no local. Nenhum objeto foi roubado e os policiais da Divisão Anti-Sequestro (DAS) disseram acreditar na hipótese de vingança relacionada a algum dos casos em que a funcionária da ONG serviu como mediadora. Mas, a direção do AfroReggae negou que o assassinato tivesse algo a ver com o seu trabalho. Vizinhos contaram que veículos de policiais civis foram vistos nas imediações da casa de Tânia na noite do crime. (“Mediadora do AfroReggae é sequestrada e morta no Rio de Janeiro” – Estado de São Paulo, em 11.11.2011).

Dias depois desse assassinato, um outro crime com características de execução vem a público, desta vez ocupando as primeiras páginas dos jornais cariocas. A vítima, de 32 anos, é o músico e vocalista da banda “Samba Firme”, Carlos Eduardo Mendes de Jesus, o Dudu, filho do coreógrafo e dançarino Carlinhos de Jesus.

Assassinado com 8 tiros ao sair do “Boteko Carioca”, na zona oeste do Rio, local onde havia se apresentado com a banda, o músico foi atacado por dois homens em uma moto que fizeram os disparos e fugiram. Também nesse caso a polícia disse acreditar na hipótese de vingança, “pela ausência de subtração de pertences e pela ausência de anúncio” (“Polícia investiga se filho de Carlinhos de Jesus foi executado” – O Globo, em 21.11.2011). Um policial militar que teria se envolvido em uma discussão com integrantes do grupo, uma semana antes, seria o principal suspeito de ter assassinado o músico (“PM é o principal suspeito de matar filho de Carlinhos de Jesus, diz polícia” – JB online, em 22.11.2011).

Atentado à bomba

Observa-se que, assim como o AfroReggae está presente na Rocinha e em várias comunidades pobres através de suas oficinas de música e arte, o coreógrafo Carlinhos de Jesus também é padrinho de um grupo da comunidade da Rocinha, que atende 60 jovens de 13 a 26 anos. Eles recebem aulas de dança na academia do artista, no bairro de Botafogo, e aprendem todos os ritmos para se apresentarem em festas de debutantes e outro eventos (“Grupo de Valsa Noite de Encantos e Carlinhos de Jesus”- site Rocinha.org). Por sua vez, a banda de Dudu de Jesus tinha entre seus convidados o cantor e compositor Renato da Rocinha, nascido e criado naquela favela, e que foi durante muitos anos a voz dos “Acadêmicos da Rocinha”, a escola de samba da comunidade.

A criação de grupos musicais, de dança e de arte nas favelas como tentativa de afastar as crianças e os jovens do vício e da possibilidade de envolvimento com o ilícito e a marginalidade que, infelizmente, muitas vezes fazem parte do cotidiano desses adolescentes, tem tido o apoio e a participação de artistas de renome e de ativistas sociais. Em 2008, em reconhecimento ao trabalho desenvolvido nas áreas artística e social, Carlinhos de Jesus e o grupo cultural AfroReggae (José Junior) foram condecorados pela Assembléia Legislativa do Rio (ALERJ): o primeiro com o título de Benemérito do Estado do Rio de Janeiro, e o segundo, com a Medalha Tiradentes, a mais alta condecoração da Casa. Em 2009, a revista Época incluiu José Junior na sua lista anual das 100 pessoas mais influentes do país.

Uma semana após o assassinato do músico, dois homens em uma moto lançaram um explosivo contra carros estacionados em uma via importante da Tijuca, bairro de classe média da zona norte. O atentado ocorreu na madrugada de domingo, 29 de novembro, a 200 metros do batalhão da Polícia Militar e destruiu cinco veículos. No dia seguinte, a polícia prendeu em Bangu, zona oeste da cidade, a 40 quilômetros do ocorrido, dois homens suspeitos de chefiar o tráfico no Morro do Andaraí, comunidade de 13 mil habitantes que fica nos arredores da Tijuca. De acordo com as investigações, os traficantes perderam R$ 6 mil reais mensais com a entrada dos policiais naquela favela, em 2010. (“Incêndio a carros:suspeitos presos” – O Dia, em 01.12.2011).

Rocinha cresceu 23%

A migração dos bandidos das favelas da zona sul da cidade para outras mais distantes do foco prioritário da polícia é um fato que tem sido denunciado por moradores das comunidades das zonas norte e oeste, da Baixada Fluminense e da área metropolitana, que abrange municípios como Niterói e São Gonçalo. do outro lado da Baía de Guanabara. O desembarque de criminosos, traficantes e armamentos em favelas distantes 50 a 100 quilômetros do centro do Rio, muitas delas filiais menores das grandes facções criminosas dominantes no cenário carioca, tem elevado ainda mais os altos índices de criminalidade nessas regiões que contam com um efetivo policial insuficiente observando-se a extensão territorial dessas localidades (“Moradores:dois caminhões-baú levaram traficantes da Rocinha para Belford Roxo” – JB online, em 21.22.2011).

Por outro lado, a distância não tem sido obstáculo para as ações de intimidação e violência dos criminosos que comumente se valem da mobilidade das motos e de mototaxistas ligados ao ilícito para a prática de assaltos e assassinatos em qualquer ponto do estado. Desde a ocupação policial da Rocinha, em novembro, aumentaram os assaltos no local e moradores estão reclamando que cresceu a sensação de insegurança. “O clima é de muito medo, segundo relato de uma moradora, empregada da zona sul do Rio de Janeiro. Moradores estão fechados a sete chaves e apavorados dentro de suas casas.” (“Casas estão sendo assaltadas na Rocinha” -JB online, em 13.12.2011). Uma conhecida rede de eletrodomésticos que instalou uma filial na favela, em outubro, teve suas dependências invadidas por assaltantes. O imóvel de três andares foi inaugurado após um investimento de R$ 1 milhão (“Loja de eletrodomésticos é assaltada na Rocinha” – O Dia online, em 13.12.2011).

É importante lembrar que a cidade do Rio de Janeiro, de acordo com os mais recentes dados do Instituto Pereira Passos, órgão da prefeitura, tem 152 complexos de favela e 467 favelas isoladas (em 2009, o mesmo instituto somou 968 favelas), onde vivem perto de 1,1 milhão de pessoas, cerca de 18º da população carioca. Desse total de favelas, 28 estão ocupadas pela polícia que mantém 3,3 mil homens nesses locais. Há poucos meses, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou um estudo onde mostra que algumas das maiores favelas do Rio, na última década, tiveram um aumento de população acima da média da cidade, que foi de 7,9. Somente a favela da Rocinha cresceu 23% (“População das favelas cresceu acima da média carioca” - Estado de São Paulo, em 01.07.2011).

Mundo do faz de conta

Três semanas após a prisão de Nem, um festejado líder comunitário da Rocinha, agraciado em 2004 pela ONG Sou da Paz pelos seus esforços no desarmamento na favela, é preso acusado de negociar armas para o traficante. William de Oliveira, 41 anos, que foi presidente da Associação de Moradores da Rocinha, tinha bom trânsito nas esferas política e social por sua popularidade entre os moradores - tornando-o uma cobiçada base eleitoral para os candidatos a cargos eletivos- e também pela sua proximidade com os traficantes, um detalhe recorrente “que costuma marcar a atuação de organizações sociais em favelas subjugadas pelo crime” (“O bom moço vendia fuzil” – Revista Veja, em 04.12.2011).

Funcionário da Câmara Municipal do Rio, William estava lotado no gabinete da vereadora Andréa Gouvêa Vieira, e ganhava como assessor parlamentar um salário de 5.300 reais. Um vídeo mostrando a negociação de um fuzil de fabricação russa para o traficante Nem, com a participação de William e do ex-vice-presidente da Associação de Moradores da Rocinha, Alexandre Leopoldino da Silva, o Peninha, também exercendo cargo na administração pública, colocou ambos na prisão, ao mesmo tempo em que foram sumariamente exonerados. De acordo com a polícia, o vídeo foi feito por uma moradora , em setembro, e entregue ao titular da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (DRFA), Marcio Mendonça (“Vídeo com Nem leva líder comunitário à cadeia” –O Dia, em 03.12.2011).

Em artigo publicado em O Globo, o antropólogo Roberto DaMatta analisa as nuances e as inovações dos papéis sociais, sua falta de coerência institucional, e do mundo de faz de conta presente no comportamento de governantes e figuras públicas: “No teatro, mente-se quando se representa um papel, mas um ministro mentir, um presidente abusar de seu cargo ou um delegado mandar matar não ocorre num palco onde a peça se repete todo o dia e na qual os mortos (que fingem morrer) voltam a viver porque aquilo não é coisa de verdade, mas uma novela” (“Papéis e atores”, em 07.12.2011).

O traficante Nem, confinado desde 19 de novembro em um presídio federal, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul (assim como os três homens de sua escolta), tornou-se figurante de um obscuro “enredo” onde os “atores” dificilmente “morrem”, porque são titulares de papéis sociais “corporativos e outorgados através de uma investidura, ou obtidos por nomeação ou eleição competitiva e liberal”.

Sobra então, para os que estão atrás das grades e para os demais figurantes da bandidagem sob a mira da polícia, a consciência do peso da “vida real”, integralmente assumida no seu dia-a-dia pelos viventes comuns que, ao contrário do que ocorre no teatro, morrem de verdade. Muitos prematuramente, vitimados pela violência e pelo “poder que brutaliza”.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Troca de prisioneiros: quando um é muito


por Sheila Sacks
publicado no "Observatório da Imprensa"
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_troca_de_prisioneiros__quando_um_e_muito


“Não posso escolher como me sinto, mas posso escolher o que fazer a respeito.” (William Shakespeare)

Em maio deste ano, por ocasião das homenagens às vítimas holandesas da II Grande Guerra, pediu-se aos moradores de Amsterdã para sinalizarem com cartazes as casas onde residiam os judeus que foram deportados para os campos de concentração nazistas. Para isso, os atuais proprietários dessas casas receberam um cartaz com o seguinte texto: “Esta é uma das 21.662 casas em que viveram judeus antes de serem mortos durante a Segunda Guerra Mundial.”

Com o apoio do Arquivo Nacional da Holanda, procurou-se dar uma conotação mais emotiva e educativa ao evento, lembrando às gerações futuras os acontecimentos trágicos ocorridos há pouco mais de 70 anos. Em um artigo para a Radio Nederland Internacional (RNW), a jornalista Myrtille van Bommel constatou a boa receptividade dos moradores à ideia e lembrou que, em 1941, viviam cerca de 80 mil judeus em Amsterdã – 10% do total da população da cidade. “A maioria dos judeus de Amsterdã, 61.700 homens, mulheres e crianças, não sobreviveu à guerra. Morreram em campos de extermínio” (“Amsterdã sinaliza casas de judeus deportados”, em 2/5/2011).

Por outro lado, também como parte da programação em homenagem às vítimas, o canal NCRV da televisão pública holandesa exibiu um documentário sobre os chamados “soldados negros” (Zwarte Soldaten), oficiais holandeses da Gestapo ligados ao extinto partido pró-germânico NSB (Netherlands Socialistic Union) que atuaram nas forças de repressão durante a ocupação alemã. Dias antes, dada a expectativa gerada pela veiculação da fita, a imprensa holandesa adiantou alguns extratos do filme que, ao contrário do que seria o esperado, mostrou que “as feridas da II Guerra Mundial seguem abertas na Holanda”. No documentário, os seis entrevistados – o mais novo, com 85 anos – não demonstravam nenhum sinal de arrependimento ou remorso em relação à matança dos judeus e se negaram a pedir perdão a seus compatriotas por terem colaborado com os ocupantes nazistas.

“Ausência de arrependimento”

Na reportagem publicada pelo jornal espanhol El Mundo (“Ex SS holandeses hablan en público: “Hitler hizo lo correcto!”, em 27/4/2011), o diretor do documentário, Joost Seelen, apontou a idade avançada dos entrevistados como justificativa para as “surpreendentes” declarações dos antigos membros das SS holandesas, colhidas em 2009 através de depoimentos individuais que duraram até três horas. “Eles nada tinham a perder, conscientes que estavam que lhes restavam poucos anos de vida”, ponderou o diretor. Contando originalmente com o testemunho de oito participantes, dois deles vieram a falecer antes da exibição do filme.

Em seus depoimentos, os entrevistados defenderam Hitler e a estratégia da “solução final” dos campos de extermínio. “Eles se ocuparam de manter a pureza da raça e não sinto nenhum remorso até os dias de hoje”, afirmou Kris Kol, um dos antigos SS. “Hitler conseguiu fazer uma boa limpeza”, reforçou o seu colega Klaas Overmars, recentemente falecido. Segundo a reportagem, o que sobressaiu nos polêmicos testemunhos foi um indisfarçável “ódio aos judeus”, expresso de forma direta e sem rodeios. “Hitler fez o correto,” reafirmou Kol, demonstrando orgulho de seu passado.

Cinco meses depois da exibição do documentário holandês, quando da troca do soldado israelense Gilad Shalit por 447 prisioneiros palestinos condenados por terrorismo (de um total de 1027 a serem libertados), novamente a questão da “ausência de arrependimento” veio à tona no artigo da jornalista Frimet Roth, que teve a filha de 15 anos morta em agosto de 2001 no ataque à pizzaria Sbarro, em Jerusalém. Publicada pelo jornal israelense Haaretz (16/10), a matéria apelava ao primeiro ministro Benjamim Netanyahu para que não libertasse a jordaniana Ahlam Tamimi, envolvida no ataque, face à frieza demonstrada pela terrorista todas às vezes que fora instada a falar sobre o ocorrido. Tamimi, então com 20 anos, foi a encarregada pelo Hamas da missão de transportar, de Ramalah, na Cisjordânia, até Jerusalém, os 10 quilos de dinamite usados pelo homem-bomba que explodiu a pizzaria matando 15 pessoas e ferindo mais de 100.

Ações de Israel influenciam antissemitismo

Em um vídeo apresentado pelo canal 2 de notícias da TV israelense, Tamimi reafirmou o que já havia dito em 2006 sobre a sua participação no ataque. Respondendo ao repórter da emissora, ela disse que não se sentia mal ou com pena das vítimas e se houvesse uma nova oportunidade ela faria novamente. “Não me arrependo do que fiz. Por que tenho que me arrepender? Não fiz nada de errado”, disse. Condenada a 16 prisões perpétuas, Tamimi foi libertada em 18 de outubro pelo governo israelense e retornou a Jordânia. Em Amã, em entrevista à rede de TV Al Jazira, ela expressou lealdade ao braço militar do Hamas: “Deus tem escolhido seus soldados nesta terra, e eles são os soldados das brigadas de Al-Qassam (braço armado do grupo que controla a Faixa de Gaza)”, declarou à rede. Tamimi também revelou, em uma das entrevistas, que a escolha de Jerusalém para alvo do ataque levou em conta o grande número de judeus ortodoxos residentes na cidade, os quais são considerados pelo Hamas os seus principais inimigos pela ferrenha posição de defesa do território bíblico de Israel.

A declaração em si não traz nenhuma novidade mas intensifica o inquietante quadro político instalado, há décadas, no Oriente Médio, a partir da visível ascensão da sharia (leis islâmicas) e dos partidos islâmicos nos futuros governos dos países árabes sacudidos por rebeliões populares. A correspondente de O Globo, Graça Magalhães-Ruether, destacando a vitória dos islamistas na Tunísia, berço da chamada Primavera Árabe, chama a atenção para dois outros países, a Líbia e o Egito, ambos a caminho da islamização. “Na Líbia, o Conselho Nacional de Transição (CNT) já informou que a sharia (lei islâmica) será a fonte de inspiração legal do novo governo e no Egito a Irmandade Muçulmana desponta como força de peso no cenário pós-HosniMubarak.” Para o cientista político tunisiano Hammadi el-Aouni, da Universidade livre de Berlim, “há risco de se sair de uma ditadura para entrar em outra, a islâmica” (“Entre a sharia e a democracia”, 26/10/2011).

Em recente pesquisa sobre antissemitismo realizada pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) e divulgada pela Delegação das Associações Israelitas da Argentina (Daia), 25% dos argentinos consultados creditaram as ocorrências de violência contra judeus na diáspora a um sentimento anti-Israel. Mas a esmagadora maioria, cerca de 75% dos entrevistados, respondeu que o sentimento antijudaico (antissemitismo) ainda é o principal motor das manifestações contra os judeus que vivem fora do Oriente Médio. O sociólogo argentino Patrício Brodsky lembra que, em 2009, uma pesquisa semelhante realizada na Europa pela Anti-Defamation League - ADL (Liga Antidifamação) mostrou que uma percentagem maior de europeus, cerca de 39%, via correspondência entre os atos contra os judeus e o sentimento anti-Israel, sendo que 17% admitiam que medidas políticas adotadas pelo estado de Israel influenciavam sua opinião sobre os judeus. Outro dado importante dessa pesquisa analisado por Brodsky é a visão da atual crise mundial e a percepção de possíveis culpados. Segundo 48% dos argentinos entrevistados, os judeus têm algum grau de responsabilidade nesse quadro econômico, percentagem superior aos 31% dos europeus que em 2009 tinham a mesma opinião. A Argentina tem a maior comunidade judaica da América Latina, com 300 mil membros.

Caminho certo

A pesquisa também abordou o Holocausto, um tema presente e recorrente nas consultas que incluem o antissemitismo na sua forma mais disseminada na diáspora: a de se constituir em um dispositivo sutil de preconceito e de embutir um mecanismo reticente de exclusão social. Ainda que o genocídio judaico seja uma das mais infames tragédias levadas a efeito pela mente humana conjugada com o poder do Estado – um marco aterrador na história do século 20 –, 49% dos argentinos e 44% dos europeus concordaram com a seguinte frase: “Os judeus falam demasiado sobre o que lhes aconteceu no Holocausto” (“El antisemitismo en Argentina”, publicado no site de notícias Aurora, em 18.10.2011).

Diante de situações controversas e de pesquisas que demonstram que o antissemitismo persiste, entende-se a preocupação dos líderes israelenses de preservar uma única vida, a do soldado Shalit, a despeito do desespero dos pais e parentes das vítimas dos ataques terroristas, inconformados com a decisão do governo de libertar mais de mil condenados por assassinatos. Sobre os pretensos dividendos políticos ganhos por Netanyahu nessa negociação com o Hamas, o inverso parece ser o mais lógico: mesmo sendo Israel uma das poucas democracias da região e o genocídio praticado pelo regime nazista apresentar uma inquestionável relevância histórica, o sentimento antijudaico não tem dado mostras de arrefecer.

E em tempo de desafios, com um planeta alcançando o incrível patamar de 7 bilhões de habitantes, o Estado de Israel e as comunidades judaicas instaladas em dezenas de países, que somam pouco mais de 13 milhões de pessoas, se rejubilaram pelo retorno do soldado israelense ao convívio de seus familiares. Para a maioria dos judeus, aplicou-se a máxima do Talmud (comentários e explicações das leis judaicas) que diz: “Quem salva uma vida é como se salvasse o mundo inteiro.” Para os 300 ex-prisioneiros palestinos que retornaram a Gaza, a jordaniana Ahlam Tamimi e a multidão que gritava “queremos um novo Shalit”, a troca estabeleceu a certeza de que o Hamas está no caminho certo, “sugerindo que o resultado prático da captura do soldado israelense pode incentivar a repetição da iniciativa para obter a liberdade de mais prisioneiros” (“Shalit tem feriado judaico em casa”, Correio Braziliense, 20/10/2011).

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A face judaica-templária da Maçonaria

por Sheila Sacks

Publicado em "Maçonaria.Net"
 http://www.maconaria.net/a-face-judaica-templaria-da-maconaria/

Na obra “Antigas Letras”, o Grão-Mestre Leon Zeldis, 33º da Maçonaria de Israel ( The Grand Lodge of the State of Israel), chama a atenção para o fato de que os textos religiosos hebraicos onde aparecem os nomes divinos de D’us não são destruídos quando envelhecem, mas enterrados ou guardados em um lugar especial da sinagoga conhecido como guenizá. Diz a tradição judaica que qualquer fragmento de um texto sagrado que contiver o nome do Criador deve ser enterrado de acordo com determinados rituais. Entretanto, com o passar dos séculos e em função das perseguições sofridas pelos judeus, muitos documentos hebraicos foram apenas escondidos, daí o nome de guenizá (esconderijo), que corresponde em hebraico ao termo lignoz e significa guardar, manter secreto.

Provavelmente, quando os primeiros templários chegaram à Terra Santa comandados por Hugues de Payen, em 1118, quase duas décadas após a conquista de Jerusalém pelos Cruzados (1099), o objetivo real de sua presença não ficaria apenas circunscrito a dar proteção aos peregrinos que se deslocassem a Jerusalém. O grupo de nove nobres franceses oriundos da região de Provença que se estabeleceu na ala leste do palácio do rei Balduíno II, patriarca de Jerusalém, sob o nome de Ordem dos Pobres Cavaleiros do Templo de Salomão, passou quase dez anos promovendo escavações na área da Mesquista de Al-Aqsa, erguida sobre o local onde existiram dois grandes templos judaicos: o primeiro Templo, construído em 960 antes da Era Comum pelo rei Salomão e destruído por Nabucodonosor, da Babilônia, em 586 a.E.C., e o segundo Templo, reconstruído cinquenta anos depois no mesmo local e que resistiu até 70 da E.C. quando foi arrasado pelas legiões romanas.

No livro “A Chave de Hiram”, os autores maçons Christopher Knight e Robert Lomas destacam que os clérigos que acompanhavam os cavaleiros templários eram “todos capazes de ler e escrever em muitas línguas e eram famosos por suas habilidades em criar e decifrar códigos”. E transcrevem um comentário do historiador francês Gaetan Delaforge sobre os reais motivos dos templários: “A verdadeira tarefa dos nove cavaleiros era realizar uma pesquisa na área para recuperar certas relíquias e manuscritos que continham a essência das tradições secretas do Judaísmo e do Antigo Egito, algumas das quais provavelmente datavam do tempo de Moisés” (The Templar Tradition in the Age of Aquarius).

Uma Ordem acima de reis e rainhas

Legitimada pelo papa Honório II, em 31 de janeiro de 1128, a Ordem do Templo ganhou estatuto, regras e um comandante: o Grão-Mestre Hugh de Payens. Havia mais de 600 artigos no estatuto dos templários, segundo o historiador inglês Piers Paul Read, autor de “Os Templários”, sendo que a regra 325 relacionava-se com o uso de luvas de couro, que era consentido apenas aos capelães e aos pedreiros construtores de santuários e fortalezas. Mas, “em nenhum lugar havia qualquer menção a peregrinos ou a sua proteção, aparentemente ignorando a única razão para a criação dessa Ordem” (A Chave de Hiram). O papa seguinte, Inocêncio II, através da bula “Omne datum optimum” (1139), estabelece privilégios que tornam a instituição independente de toda interferência de autoridades políticas e religiosas. Segundo a encíclica, os templários só deviam obediência ao Papa.

Durante os próximos 200 anos a Ordem do Templo cresce e se expande em poder e riqueza, recebendo doações em dinheiro e propriedades na Europa. De acordo com os investigadores históricos ingleses, Michael Baigent e Richard Leigh, que pesquisaram a herança templária no surgimento da maçonaria, “em meados do século 12, a Ordem do Templo já tinha começado a se estabelecer como a mais poderosa e rica instituição isolada em toda a Cristandade, com exceção do Papado, com frotas de navios, territórios extensos e ligações secretas com líderes sarracenos” (O Templo e a Loja). Esses mesmos autores e mais Henry Lincoln ainda afirmam que coube aos templários criar e estabelecer a moderna instituição bancária. “Através de empréstimos de vastas somas a monarcas necessitados, tornaram-se os banqueiros de todos os tronos da Europa” (O Santo Graal e a Linhagem Sagrada).

Com a perda de Jerusalém para os muçulmanos em 1291, a Ordem do Templo se transfere para Chipre. A ilha tinha sido conquistada pelo rei Jayme I (Coração de Leão), da Inglaterra, em 1191, e vendida, anos depois, para os templários. Em 1312, a Ordem é oficialmente extinta por um decreto papal emitido por Clemente V, sem que um veredicto conclusivo de culpa tenha sido pronunciado. Através da bula "Vox in excelso" o Papa extingue a Ordem do Templo “proibindo estritamente qualquer um de conjeturar em entrar para a referida Ordem no futuro, ou de receber ou usar seu hábito, ou de agir como um templário” (Os Templários). Em bula subsequente, a "Ad Providam", todos os bens e propriedade dos templários são transferidos para a Ordem dos Hospitalários, uma instituição similar a dos templários, que também funcionava na Terra Santa.

Na França, por ordem do rei Filipe IV, o Belo, os templários são perseguidos, presos e torturados. A Inquisição também se alastra por toda a Europa. As acusações concentram-se em supostas heresias e rituais praticados pelos membros da Ordem. O seu Grão-Mestre, Jacques de Molay, é condenado a morrer na  fogueira, na Ile de la Cité, em 1314.

Estado templário preocupava a Igreja

Setecentos anos depois desses acontecimentos, dúvidas ainda persistem sobre a verdadeira natureza da Ordem e de seus cavaleiros. Seriam eles guardiões de um conhecimento secreto adquirido na Terra Santa em contato com outras culturas ou mesmo oriundo de documentos sobre as origens do Cristianismo descobertos nas escavações? Para Baigent e Leigh, o impacto de antigas formas de pensamento cristão, não Paulinas, podem ter influenciado as atividades da Ordem no seu projeto para a criação de um Estado Templário e na sua política de reconciliar o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo. “Os templários não negociavam apenas dinheiro, mas pensamentos também. Através de seu contato com as culturas muçulmana e judaica começaram a atuar como introdutores de novas ideias, novas dimensões do conhecimento, novas ciências” (O Santo Graal...).

A pesquisadora da Biblioteca do Vaticano, Bárbara Frale, em artigo publicado no “L’Osservatore Romano” (21.08.2008), jornal oficial da Santa Sé, afirma que os documentos originais do processo contra os templários, encontrados no Arquivo Secreto do Vaticano, demonstram que foram infundadas as acusações de que os cavaleiros praticavam em segredo ritos pagãos e haviam abandonado a fé cristã. De acordo com a autora, os templários não eram hereges e o que se descobriu nas atas conservadas no Vaticano é que “a disciplina primitiva do Templo e o seu espírito autêntico se haviam corrompido com o passar do tempo, deixando a porta aberta para a difusão de maus costumes” (Revelações do Arquivo Secreto do Vaticano: templários não foram hereges,no portal 'Zenit').

Aí caberia a indagação: quais seriam os “maus costumes”, segundo a avaliação da pesquisadora, adquiridos pelos templários? No mesmo artigo, Frale reconhece que “ainda há verdadeiramente muito que investigar” e adianta que o estudo da espiritualidade desta antiga ordem religiosa dará à cultura contemporânea novos motivos de discussão.

Escócia: refúgio dos templários e berço dos maçons

Da extinção oficial da Ordem até a fundação da primeira grande Loja Maçônica em Londres (1717), os autores  do “Santo Graal e a Linhagem Sagrada” registram que os templários ingleses e franceses encontraram refúgio na Escócia (país que ignorou a bula papal), e muitos deles também se integraram a outras Ordens e sociedades secretas na Alemanha, Espanha e Portugal. Conta-se que em 1689, na batalha de Killiecrankie, na Escócia, um dos aliados do rei Jayme II da Inglaterra, John Claverhouse, Visconde de Dundee, estava usando uma antiga vestimenta da Ordem do Templo, de antes de 1307, quando foi morto na luta. A referência ao fato foi publicada no jornal da primeira Loja de Pesquisas Maçônicas do Reino Unido (Quatuor Coronati), em 1920: “Lorde Dundee perdeu sua vida como líder do Partido Escocês Stuart. Segundo o testemunho do abade Calmet, ele teria sido Grão-Mestre da Ordem do Templo na Escócia” (O Santo Graal...).

Mas, muito tempo antes, nos meados do século 16, um manuscrito já comprovava a existência dos chamados franco-maçons e a sua subordinação à monarquia dos Stuart, principalmente ao soberano escocês Jaime I (1566-1625), que também foi rei da Inglaterra e da Irlanda. O historiador maçônico, Robert F. Gould, em “The History of Freemasonry”, transcreve o que era exigido dos franco-maçons à época: “... que sejais homens leais ao rei, sem nenhuma traição ou falsidade e que não tolerais qualquer traição ou falsidade, tratando de combatê-las ou notificá-las ao rei”. Segundo definição de um ilustre estudioso maçom José Maria Ragon (1781-1866), o termo franco-maçom somente se aplicaria àqueles que efetivamente cooperassem na obra de instrução e regeneração da humanidade. Os demais membros de obreiros construtores e integrantes da corporação de pedreiros seriam denominados simplesmente maçons.

Observa-se que a Grande Loja da Inglaterra, criada para centralizar a franco-maçonaria inglesa e que se constituiu no marco oficial da imagem pública da Maçonaria, foi instituída em 24 de junho de 1717, data emblemática para os templários e que lembra o nascimento de João, o Batista. A devoção a essa figura histórica é um dos elos que ligam os franco-maçons aos templários. Segundo o “Dicionário de Maçonaria”, de Joaquim Gervásio de Figueiredo 33.º, João Batista é o patrono da Maçonaria e todas as lojas maçônicas simbólicas são intituladas Lojas de São João.

A tradição judaica dos essênios

Preso e decapitado em 32 da Era Comum por ordem de Herodes Antipas, governador da Galiléia, Yochanan ben Ezequiel (nome hebraico de João Batista) provavelmente era membro da seita dos essênios, uma comunidade judaica que existiu durante os dois últimos séculos da era do Segundo Templo (150 antes da E.C. a 70 da E.C.). Historiadores judeus do século 1, Flavio Josefo e Philo de Alexandria, registraram a presença desse grupo ascético, que praticava um judaísmo ultra-ortodoxo, com jejuns frequentes e banhos rituais diários, e que habitava o deserto da Judéia, entre Jericó e Ein Guedi.

A partir de 1947, e até 1956, com a descoberta dos pergaminhos nas cavernas de Qumran (os manuscritos do Mar Morto), a tese de que os essênios eram seus autores ganhou força entre estudiosos e peritos de várias nacionalidades. Segundo Leon Zeldis 33º, os iniciados da comunidade de Qumran, cujas idades variavam entre 25 e 50 anos, aprendiam a “amar a justiça e ter aversão à maldade”. Consideravam-se herdeiros dos reis sacerdotes, simbolizados por Salomão (do hebraico Shlomo, que deriva da palavra Shalom-paz) e Melquizedek (do hebraico Malki-Tzadik, rei justo), rei de Salem (a atual Jerusalém), à época de Abraão. Alguns de seus membros, como João, o Batista, faziam votos de nazareos - do hebraico “nazir” que corresponde a “separado” ou “consagrado”. Os autores do livro “A Chave de Hiram” acreditam que “a voz que clama no deserto” poderia ser a de João Batista “que viveu uma vida dura no deserto, de retidão qumraniana, comendo apenas os alimentos permitidos, usando um cinturão de couro e uma túnica de pelo de camelo”.

Na obra “Os Manuscritos do Mar Morto”, o professor e doutor em teologia Geza Vermes destaca que os membros da seita se consideravam “o verdadeiro Israel”, fiéis representantes das autênticas tradições religiosas. Os sacerdotes, chamados de “filhos de Zadok” (o sacerdote da Casa de David), se constituíam na autoridade máxima da comunidade. A hierarquia era rigorosa. Cada membro era inscrito na “ordem de seu grau”. O mais alto cargo recaía na pessoa do Guardião, conhecido também como “Mestre” (maskil, em hebraico). Eram também instruídos a reconhecer “um filho da Luz” de um “filho das Trevas”. Na lista de infrações e de suas penas correspondentes, o pecado mais grave que demandaria em imediata expulsão da congregação seria qualquer tipo de transgressão, por ato ou omissão, às diretrizes da Lei de Moisés.

Em um dos manuscritos – o Preceito do Messianismo – é especificado que somente a partir dos 30 anos os homens eram tidos como maduros, podendo participar das assembleias, de casos em tribunais e tomar assento nos altos escalões da seita. O neófito vindo de fora que se arrependia de seu “caminho de corrupção”, iniciava-se “no juramento da Aliança” no dia em que conversava com o Guardião, mas nenhum estatuto da seita deveria ser divulgado a ele. Na avaliação do professor Geza Vermes, o retrato que assoma da leitura dos manuscritos em relação às ideias e aos ideais religiosos dos essênios é uma observância fanática à Lei de Moisés. No campo político, os essênios eram frontalmente contra a dinastia de Herodes e o domínio dos romanos sobre a Terra Santa.

Os livros secretos de Moisés

Dizimada pelos romanos em 66-70 da E.C., a comunidade de Qumram pode ter enterrado sua história, seus segredos e sua tradição secreta ligada a Moisés em algum lugar do templo de Jerusalém, seguindo a prática judaica de não destruir documentos sagrados (a cidade de Jerusalém fica a 40 minutos de carro de Qumram). Na obra “A Chave do Hiram”, os autores aventam a hipótese desses manuscritos terem sido descobertos pelos templários, no século 12, em função das sigilosas escavações realizadas no local por mais de uma década. No livro “A Odisseia dos Essênios”, o historiador britânico Hugh Schonfield faz referência aos livros secretos que Moises teria dado a Josué para que ele os mantivesse ocultos “até os dias de arrependimento”.

No livro do escritor francê Michel Lamy - "Os Templários. Esses senhores de Mantos Brancos"(1997) -  é lembrado o interesse do abade Estevão Harding, amigo e mentor de Bernardo de Clairvaux (incentivador da criação da Ordem dos Templários e autor de suas regras), por textos hebraicos. O abade procurava a ajuda de rabinos nas suas traduções do hebraico dos livros do Velho Testamento. Para Lamy, esse intenso interesse por textos hebraicos demonstram a crença na existência de um tesouro oculto enterrado sob o monte do Templo e algum tipo de relação com o lugar que mais tarde se tornou a moradia dos templários. O historiador Piers Paul Read também destaca que uma das primeiras traduções encomendadas pelos templários na Terra Santa foi a do “Livro dos Juízes”, do Velho Testamento. “Havia uma íntima e inquestionável identificação dos cristãos da Palestina com os israelitas de antigamente” (Os Templários).

Erguido pelo rei Salomão para abrigar a “Arca da Aliança” – relicário das palavras divinas a Moisés no deserto - , o grande Templo de Jerusalém concentrava nesse local toda a sua santidade. Construído sobre o Monte Moriá, o aposento onde ficava a arca sagrada era o lugar mais recôndito do Templo, chamado de “o Sagrados dos Sagrados” (Kodesh há-Kodashim), recinto cuja santidade era tal que somente o grande sacerdote (Cohen Gadol, em hebraico) tinha permissão de lá entrar, uma única vez durante o ano, no Dia do Perdão - Yom Kipur (Revista Morashá).

A adoção pelos templários e maçons dessa simbologia estruturada nos mistérios e segredos que se iniciam com Abraão, tem seu ápice em Moisés, se perpetua com a construção do Primeiro Templo por Salomão e sofre transmutações generalizadas a partir dos primórdios da Era Comum (após a destruição da comunidade de Qumram), ainda permanece envolta em véus em sua nascente e tem se mostrado um desafio para a Igreja Católica. De igual forma, a imensa quantidade de publicações, teorias e suposições a respeito do tema ainda não produziu uma resposta diferente daquela que anima e justifica o trabalho da maioria dos pesquisadores: a da “busca pela verdade” .

Os guardiões da Aliança

Em “As Intrigas em torno dos Manuscritos do Mar Morto”, o leitor acompanha a trajetória dos manuscritos, desde das primeiras descobertas no deserto da Judeia, em 1947, durante o mandato britânico na Palestina, até o início da década de 1990, quando o conteúdo de muitos documentos ainda não tinha sido divulgado. A batalha para o livre acesso e publicação de mais de 800 manuscritos por parte de inúmeros pesquisadores de renome mundial é relatada por Michael Baigent e Richard Leigh que culpam a chamada “equipe internacional” comandada pelo padre Roland de Vaux, da École Biblique de Jerusalém, de manter por longo tempo o monopólio sobre os manuscritos. A polêmica se estendeu até a imprensa através das páginas do influente jornal americano "New York Times" que em editorial publicado em 9 de julho de 1989 criticou a morosidade das pesquisas, observando que “passados 40 anos, um círculo de estudiosos indolentes continua esticando o trabalho, enquanto o mundo espera e as preciosas peças vão se desmanchando em pó”.

Hoje sabemos que os membros da comunidade de Qumram costumavam referir-se a si próprios como “os guardiões da Aliança”. Tal conceito se baseia essencialmente na grande importância da “Aliança”, que impunha um voto formal de obediência, total e eterna, à Lei de Moisés. Daí a expressão “Ossei ha-Torá”, encontrada em um dos pergaminhos, que pode ser traduzida por “Agentes da Lei”, expressão talvez que fosse a origem da palavra essênio (As intrigas em torno dos Manuscritos...). Mas, para o pesquisador Robert Eisenman, autor de vários livros sobre os Manuscritos, termos como essênios, zadoques, zanoreanos, zelotes, sicários, ebionitas (os pobres) apontam para um mesmo grupo ou movimento ortodoxo de rigoroso cumprimento da lei mosaica.

Em seu estudo “Paulo como herodiano”, apresentado na Sociedade de Literatura Bíblica (Society of Biblical Literature), em 1983, Eisenman credita a Paulo (Saulo de Tarso) o papel de agente secreto dos romanos, após ser ameaçado de morte pelos “zelosos da Lei”. A partir dos manuscritos e de referências encontradas no Novo Testamento, o pesquisador afirma que a entrada de Paulo em cena mudou o rumo da história. “O que começou como um movimento localizado dentro da estrutura do judaísmo existente, e cuja influência se restringia aos limites da Terra Santa, se transformou em algo de uma escala e magnitude que ninguém na época poderia ter previsto. O movimento que estava nas mãos da comunidade de Qumran foi efetivamente convertido em algo que não tinha mais lugar para seus criadores” (As Intrigas em torno dos Manuscritos...).

Para os autores ingleses de “A Chave de Hiram”, Saulo de Tarso não conhecia profundamente os ritos nazoreanos da comunidade de Qumram e a sua simbologia da “ressurreição em vida”, cerimônia adotada pela Maçonaria em seu ritual de 3º Grau. Em um dos manuscritos encontrados, denominado “Preceitos da Comunidade”, é explicado que ao entrar na comunidade o sectário era elevado a uma “altura eterna” e unido ao “Conselho Eterno” e à “Congregação dos Filhos do Céu” (Geza Vermes, em “Os Manuscritos do Mar Morto”).

Outro importante estudioso dos manuscritos, o historiador John Allegro, em seu livro “The Treasure of the Copper Scroll” que traz a tradução completa do Manuscrito de Cobre, explica que “Qumram” é uma palavra árabe moderna e que no século 1 da E.C. o local era conhecido como Qimrôn, raiz da palavra hebraica que significa abóbada, arco, portal. O pesquisador também observou a utilização de códigos no Manuscrito de Cobre quando são citados os 64 esconderijos com metais preciosos e manuscritos pertencentes à Comunidade. Detalhe igualmente notado pelo padre J.T.Milik, que fazia parte da equipe internacional que analisou os manuscritos em Jerusalém. O religioso constatou a presença de técnicas de codificação críptica em alguns documentos secretos que continham informações sobre eventos futuros.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Em Israel não existe gente comum

por Sheila Sacks

O jornalista Clóvis Rossi, colunista da Folha de São Paulo, conta que quando foi escalado pelo jornal para cobrir as eleições em Israel, nos idos de 1996, ele primeiro resolveu ter contato com as pessoas comuns, antes de procurar autoridades e políticos, para sentir o clima eleitoral no país. Na época já existia o que ele chamou de salas de conversações eletrônicas, no caso um desses chats frequentados somente por israelenses.

Ao explicar que queria conversar com gente comum sobre as eleições, não demorou muito para receber uma resposta curta e grossa que deixou o jornalista pasmo: “Em Israel, não há pessoas comuns”. Rossi confessa que na hora chegou a ficar com raiva da arrogância de seu interlocutor virtual, mas depois entendeu que talvez aquela inusitada afirmação tivesse a sua razão de ser. Na visão do jornalista, Israel é realmente um país com características inéditas no planeta porque reúne a maior concentração de história e religiosidade do mundo cercada por uma das maiores concentrações de força militar. Segundo Rossi, uma das coisas que mais o fascina em Israel é justamente a presença de todas as religiões monoteístas que pregam a paz terem alguns de seus maiores símbolos sempre cercados pelos símbolos da guerra.

Essa historinha está no prefácio de “Israel, Terra em Transe: Democracia ou Teocracia”, da jornalista Guila Flint, correspondente da BBC Brasil em Israel, em parceria com a socióloga Bila Grin Sorj, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). O livro é um apanhado de 16 entrevistas realizadas com intelectuais, religiosos, laicos, judeus e árabes que vivem em Israel e aborda aspectos do fundamentalismo judaico que turbinam a vida política israelense. Publicado em 2000, os depoimentos contidos no livro, muitos deles surpreendentes e polêmicos, não perderam a sua contemporaneidade.

Sem uma Constituição escrita

Conforme explicam as autoras, Israel é um país sem uma Constituição escrita, porque à época do primeiro Parlamento,em 1949, os partidos religiosos se opuseram à adoção de uma Constituição, argumentando que o povo judeu tem apenas uma lei suprema, a Torá (o Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia antiga). Dessa forma, o Parlamento (Knesset) tem poderes quase ilimitados e funciona, de fato, como uma assembleia constituinte permanente que edita leis que podem ser, contudo, facilmente modificadas. A bancada dos religiosos no Parlamento aumentou consideravelmente desde a fundação de Israel, passando de 16 para 30 representantes, 25% da totalidade dos parlamentares.

A importância e a força da religião no estado judeu tem gerado situações de conflitos e impasses entre grupos ultraortodoxos e seculares, geralmente encaminhados à decisão da Suprema Corte, órgão que funciona como uma espécie de guardião dos valores democráticos, com ênfase na proteção dos direitos humanos. Conciliar os diversos interesses, posições e pensamentos da complexa sociedade israelense - moderna, participativa e tradicionalista – é sempre um grande desafio que, ao longo dos anos, tem sido enfrentado a contento face aos sólidos princípios de justiça e liberdade que norteiam as decisões judiciais. A complexidade das respostas dos entrevistados e a diversidade de seus pontos de vista expressos de maneira incisiva demonstram essa heterogeneidade de pensamentos que é, afinal, a marca da nação judaica: a controvérsia levada ao extremo.

Afinidades com a população árabe

Assim ficamos sabendo que Uri Avnery, 88 anos, jornalista que trabalhou nos jornais mais importantes do país, como o Haaretz e Maariv, ex-parlamentar, membro do mítico Irgun (resistência armada judaica que combateu os ingleses durante o Mandato Britânico na Palestina, de 1931 a 1948) e fundador do movimento “Gush Shalom” (Bloco da Paz), se declara muito mais próximo de um cidadão árabe de Israel (em seus ideais e nacionalismo, ainda que em campos diferentes) do que de um cidadão ultraortodoxo judeu (haredi), de Jerusalém. Ele é autor do livro "Meu amigo, o inimigo" que narra seus encontros com Yasser Arafat e outros líderes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).

Em agosto de 2002, em entrevista à revista inglesa New Internationalist (action for global justice), Avnery lembrou de seu passado de luta armada para a instalação do estado de Israel. Quando questionado sobre a sua posição em relação aos ataques suicidas e os atentados à bomba praticados por grupos palestinos radicais contra civis israelenses, ele retrucou: “Você não precisa me dizer o que é terrorismo. Eu fui terrorista. E quando se está envolvido com movimentos de libertação se lida com a intransigência, a brutalidade e um diferente conjunto de valores", justificou.

Ainda atuando na vida pública israelense, o combativo jornalista, que já sofreu várias ameaças de morte e foi vítima de um atentado em 1975 que o deixou gravemente ferido, tem seus artigos traduzidos para o português e republicados pelo site "Vermelho", do Partido Comunista do Brasil (PcdoB).

Outro entrevistado é Haim Hanegbi, 76 anos, antigo jornalista e ativista político (um dos líderes do extinto movimento comunista e antissionista Matzpen), oriundo de família ortodoxa, neto de rabino e cuja família emigrou da Espanha para Hebron, a Cidade dos Patriarcas, à época da Inquisição. Desde 1996 sob a administração da Autoridade Palestina, Hebron fica a 10 quilômetros de Jerusalém e abriga os túmulos de Abraão, Isaac e Jacó. Há três mil anos, David foi ungido rei de Israel nessa cidade e lá reinou por sete anos até estabelecer Jerusalém como capital do reino.

Muito identificado com os costumes e o modo de viver dos árabes, Hanegbi culpa o sionismo pela extinção das antigas comunidades judaicas do mundo árabe, como as de Damasco, Cairo, Alexandria, Bagdá, Marrocos e Casablanca. A criação do estado de Israel e as guerras advindas deste fato histórico desencadearam uma onda de perseguições aos judeus nascidos e estabelecidos, há várias décadas, no mundo muçulmano, ocasionando o esfacelamento desses núcleos que viviam integrados e adaptados aos costumes e as culturais locais.

Estado democrático e judaico

Para Avraham Burg, do Partido Trabalhista, por três vezes eleito parlamentar e presidente da Agência Judaica Mundial (1995-1999), é preciso separar a religião e o estado. “Pessoalmente, creio que seria necessário acabar com a participação que a religião tem na estrutura do governo de Israel e reposicionar a religião e o judaísmo, que passariam a fazer parte da cultura, parte da responsabilidade individual, em vez de estarem sujeitos a elementos coercitivos do estado.”

Por sua vez, o professor de pensamento e filosofia judaica da Universidade Hebraica de Jerusalém, Moshe Halbertal, 54 anos, acredita que qualquer tentativa de definir o judaísmo através de uma legislação fará com que os judeus de várias partes do mundo sintam que esta não é sua casa. Isso porque, na sua concepção, existem diferenças profundas entre os judeus sobre o judaísmo. Para ele “Israel precisa decidir basicamente se deseja ser a casa dos judeus ou se pretende ser um estado judeu”.

Defendendo a integração estado-religião, a jornalista Bambi Sheleg, 43 anos, de uma família de judeus religiosos e sionistas, acredita que a comunidade não-religiosa em Israel perdeu muitos de seus ideais. “O sionismo religioso considera o retorno a Sion a verdade histórica mais importante. Mas em função disso também será necessário aceitar os valores da modernidade? É essa a grande questão.” Participando de grupos que se reúnem para ler a Torá, Sheleg vê o estado de Israel democrático e judaico ao mesmo tempo. “O estado de Israel é uma anomalia histórica, deve incluir esses dois valores, caso contrário deixará de existir.”

Indo mais longe, ela insiste que os israelenses devem ter consciência de onde vieram e para onde estão se dirigindo "pois o estado de Israel não foi criado para fornecer empresas para desenvolver alta tecnologia para os EUA. Não foi esse o sonho de retorno a Sion". E conclui: - Em minha opinião, é muito importante que Israel seja um país que tenha compaixão, que tenha um comportamento digno em relação aos trabalhadores estrangeiros, aos árabes, e a todos aqueles que chegam de outras regiões.

Esse aliás é o cerne da questão, segundo Clovis Rossi: “Na batalha entre religiosos e laicos, as armas são os argumentos e argumentos não se medem em calibres, não atingem o corpo, visam a alma – e aí tudo fica muito mais complexo.” Daí que ao término das 357 páginas do livro e diante do monumental “desfile” de personagens e argumentos, Rossi dá a mão à palmatória e se rende à afirmação julgada pretensiosa, em um primeiro momento: - Em Israel, não há pessoas comuns.

Observação:
Atualmente vivem em Israel mais de 120 mil judeus negros da Etiópia. Também existem outras comunidades de judeus negros, como os Black Hebrews, que vieram dos Estados Unidos. Judeus asiáticos, principalmente chineses, têm emigrado para Israel.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Lição de cidadania:portal do governo publica matérias desfavoráveis (ao governo)

por Sheila Sacks

Notícia alvissareira: o site governamental Portal ClippingMP (do Ministério do Planejamento), implantado na era Lula, tem se mantido intacto em sua saudável originalidade nesses primeiros seis meses do governo de Dilma Rousseff. Exemplo singular de um espaço institucional livre e democrático que expõe com uma generosidade inusitada as notícias desfavoráveis e as opiniões críticas mais relevantes registradas pelos mais influentes jornais e revistas do país (muitas delas só possíveis de serem lidas mediante a compra das publicações), o portal se constitui em uma pujante lição de democracia ao alcance de todos os brasileiros.

A disponibilização diária de uma qualificada listagem de textos, incluindo matérias de capa, economia, colunas, artigos e editoriais das mais variadas tendências políticas, eximida das omissões e exclusões intencionais tão a gosto de 99% dos sites oficiais de estatais, prefeituras e governos estaduais, é um balde de água fria sobre os jornalões que insistem em apregoar a suposta ojeriza do ex-presidente Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT) pela imprensa em geral.

A facilidade no acesso à leitura e a praticidade na impressão das matérias são itens a destacar em face da lerdeza de muitos sites jornalísticos tomados por grandes imagens que demoram a se materializar, interferindo e atrasando a apresentação do texto que vem a reboque. Um exercício de paciência que não combina com a estreita margem de tempo que a maioria das pessoas tem, no seu dia-a-dia, para se manter atualizada.

Fatiar reportagens em capítulos

A suposta falta de interesse da imprensa em divulgar as iniciativas e eventos considerados positivos pelos governos e entidades públicas municipal, estadual e federal, costuma levar seus dirigentes a elaborar mecanismos próprios de irradiação de notícias, valendo-se de múltiplos expedientes como a inserção de publicidade institucional nos veículos de comunicação, a inclusão de “notinhas” em colunas, o adiantamento de pautas exclusivas para editores e articulistas e a criação de sites que abrigam os incansáveis releases em sua função básica de detalhar as diversas atividades desenvolvidas pela administração pública e os serviços disponíveis para a população.

É voz corrente que a atenção e o interesse da imprensa passam longe dessas informações oficiais, sempre focados em repercutir denúncias de falcatruas, obras superfaturadas, nepotismo, tráfico de influências e outras mazelas recorrentes na esfera pública. Filho dileto das redações, o jornalismo investigativo, com a sua tática cruel de fatiar as reportagens em capítulos estarrecedores, é hoje uma das armas mais eficientes e letais na missão de expor, à luz dos holofotes e às vistas da sociedade distraída, as maracutaias e os crimes de lesa pátria acertados no bar da esquina, à beira da piscina ou via celular (se bem que, em muitos casos, assim como as denúncias surgem e se ampliam no correr dos dias, elas se evaporam, repentinamente, e nas semanas e meses subsequentes o tema em questão sequer volta a ser ventilado).

Jogando por terra preconceitos

No Portal ClippinMP o cidadão brasileiro tem a oportunidade de acompanhar as reportagens investigativas que sacodem, de tempos em tempos, a letargia reinante e descobrir o que pensam e dizem os mais importantes formadores de opinião acerca do governo de Dilma e do ex-presidente Lula. Retrato da grande imprensa nacional, o site apresenta uma maior quantidade de matérias críticas e desfavoráveis às ações e às personalidades públicas que habitam a capital federal. O que espanta, tratando-se de um site oficial, é a correção e a transparência na exibição de artigos e editoriais contundentemente contrários à presidente Dilma e sua equipe de governo, algo pouco provável de ocorrer até em nações com uma larga tradição democrática. Descartados países do Cone Sul como Venezuela e Equador, onde jornais de oposição são fechados e jornalistas impedidos de trabalhar.

Enfim, enquanto os brasileiros puderem dispor de um site oficial de notícias de tamanha qualidade e integridade – que joga por terra os preconceitos que ainda animam grande parte da mídia em se tratando do núcleo governamental e suas relações com a imprensa – não será demais nem exagerado ou estapafúrdio proclamar, parafraseando Lula em seus rompantes juvenis, que nunca, jamais, em tempo algum, na história do Brasil se viu coisa assim...

( o artigo foi reproduzido no site da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (SECOM), em 27.07.2011, no link Sala de Imprensa-clipping)

Nota: O Portal em questão, infelizmente, foi extinto no ano seguinte.


terça-feira, 28 de junho de 2011

Primavera Árabe: As ambiguidades do governo brasileiro

por Sheila Sacks

Ao se declarar contra o apedrejamento de mulheres no Irã, logo após assumir a presidência em janeiro, e se alinhar a favor do envio de um relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) àquele país para apurar denúncias de violações de direitos humanos, a presidenta Dilma Rousseff ouriçou os comentaristas políticos e editorialistas dos grandes jornais, que imediatamente enxergaram uma mudança de rumo na política externa brasileira.

A ducha de água fria veio com a posição do Planalto em negar à ativista iraniana Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz em 2003, uma audiência pessoal com a presidente Dilma. Uma das principais vozes de oposição ao regime de Mahmoud Ahmadinejad, a advogada e ex-juíza, de 63 anos, que vive exilada na Inglaterra desde 2005, esteve em Brasília, no início de junho e, diante da impossibilidade de ser recebida pela presidente brasileira, se absteve de se encontrar com o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia, indicado para atendê-la. Ainda em Brasília, no plenário da Câmara dos Deputados, Shirin passou por novo constrangimento ao falar sobre os maus tratos, perseguições religiosas e prisões arbitrárias no Irã para uma pífia plateia de menos de dez parlamentares.

Dias depois, em Genebra, durante a conferência mundial da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os ministros do Trabalho do Brasil, Carlos Lupi, e do Irã, Abdolreza Sheikholeslami, anunciaram um plano de cooperação visando à implementação no país persa de projetos de capacitação de trabalhadores e de programas similares ao Bolsa Família e Brasil sem Miséria. O objetivo seria evitar a repetição do cenário de crise social – com milhões de pessoas sem trabalho – que fermentou a derrubada dos governos da Tunísia e do Egito. A pedido do Irã, o governo brasileiro irá desenvolver iniciativas que possibilitem a criação de mais de 2 milhões de empregos no Irã e promover ações sociais que aliviem o impacto do embargo econômico e comercial que lhe é imposto pela ONU. “Nós falamos com todos os países e vamos cooperar com quem nos peça cooperação, incluindo o Irã”, justificou Lupi.

“É o cumprimento de uma lei internacional”

Desde a eleição de 2009 que reelegeu Ahmadinejad, o regime islâmico tem perseguido e encarcerado dissidentes, ativistas de direitos humanos, líderes religiosos, advogados e jornalistas. Atualmente 26 profissionais da imprensa permanecem presos pelo regime de Ahmadinejad. Em abril, o jornalista e professor de Ciências Políticas Ahmad Zeidabadi, detido há dois anos, foi homenageado com o Prêmio Guillermo Cano World Press Freedom, concedido pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), por sua “coragem excepcional, resistência e compromisso com a liberdade de expressão, democracia, direitos humanos, tolerância e humanidade”. Editor do jornal Azad e colaborador da BBC de Londres, Zeidabadi foi condenado a seis anos de prisão, mais cinco de “exílio interno” e proibido de exercer a profissão para o resto da vida, acusado de conspirar contra o governo.

Em relação à Líbia, a decisão da diplomacia brasileira de se juntar aos demais membros do Conselho de Segurança da ONU – formado por 15 membros, sendo cinco permanentes e dez temporários – na aprovação de uma resolução votada em fevereiro que impunha sanções à Líbia de Kadafi, também contribuiu para fomentar editoriais e artigos sobre o novo posicionamento da presidente Dilma e do Itamaraty no cenário internacional.

Muitos se animaram com a publicação no Diário Oficial da União do decreto determinando as sanções da ONU à Líbia (embargo à venda de armas, congelamento de bens e proibição da entrada de parentes de Kadafi). Assinado em 15 de abril por Michel Temer, presidente em exercício, o documento não se constituiria em uma iniciativa isolada do Brasil, e sim, atenderia à Resolução nº 1.970, aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, dois meses antes. “É o mínimo de cumprimento de uma lei internacional”, afirmou na ocasião ao jornal Correio Braziliense o especialista em Oriente Médio Márcio Scalércio, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Segundo ele, ao publicar a medida o Brasil simplesmente acatou a determinação do Conselho.

Minas brasileiras na Líbia

É importante observar que na votação da Resolução nº 1.973, desse mesmo Conselho, em 17 de março, o Brasil se absteve de votar contra a Líbia, posicionando-se ao lado da China, Rússia, Índia e Alemanha. A medida impôs uma zona de exclusão aérea sobre o país, autorizando o uso da força para suspender voos sobre o território líbio. A resolução foi aprovada por maioria (10 votos) e, três dias depois, o presidente americano Barack Obama, ainda em território brasileiro, autorizou os ataques das forças aliadas contra o regime de Kadafi. A reação diplomática brasileira veio logo depois em forma de um comunicado do Itamaraty lamentando as mortes ocorridas pelos bombardeios, reiterando sua solidariedade com o povo líbio, criticando o uso da força pela coalização internacional e pedindo “um cessar-fogo efetivo”. Posição reforçada na reunião de cúpula dos Brics – grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – ocorrida em abril na China, com a presença da presidente Dilma Rousseff. A declaração conjunta divulgada ao final do encontro condenou o uso da força na Líbia e novamente apresentou propostas de reforma do Conselho de Segurança da ONU.

Uma semana depois da reunião dos Brics, a missão do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU enviada à Líbia concluiu que pelo menos 10 mil pessoas morreram no país desde o início da revolta contra Kadafi. O chefe da delegação, Cherif Bassioun, afirmou que foram encontrados indícios de crimes de guerra, com ataques a civis e a missões humanitárias. Por outro lado, Jacob Zuma, presidente da África do Sul e membro do Conselho da União Africana, em visita ao ditador líbio, em Trípoli, manifestou seu repúdio aos ataques da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ao país. Em telefonema posterior à presidente Dilma, o sul-africano pediu apoio do Brasil para uma articulação no Conselho de Segurança da ONU no sentido de encontrar uma saída política para a crise na Líbia. Na conversa, que durou cerca de 10 minutos, de acordo com o porta-voz da Presidência Rodrigo Baena, os dois presidentes se mostraram preocupados com os ataques aéreos contra a Líbia, que estariam indo além da resolução aprovada pela ONU, provocando “impactos negativos na população civil das ações das políticas ocidentais”.

Na mesma época, a principal organização de combate ao uso das minas terrestres, a International Campaign to Ban Landmines (ICBL), prêmio Nobel da Paz de 1997, constatou a presença de minas de fabricação brasileira sendo utilizadas pelo regime de Kadafi contra os rebeldes. Em carta ao ministro Antônio Patriota, a diretora da ONG Kasia Derlicka pediu explicações sobre o fato, lembrando a condição do Brasil de signatário do Tratado de Ottawa, posto em vigor em 1999, que proibiu a fabricação, uso e venda de minas “antipessoal”. A instituição pediu ainda que o Brasil condene o uso de minas e exija a sua suspensão (segundo a assessoria do ministro, o Brasil não exporta mais esse tipo de artefato, em respeito ao tratado, mas mantém estoque do armamento, parte dele usado pelo Exército em exercícios militares).

Missão para investigar tortura e execuções

O emprego de métodos cruéis para calar vozes discordantes é comportamento-padrão no regime Kadafi. Em 1996, o ditador foi responsável por um dos crimes mais brutais que atingiram a sociedade líbia. Trata-se do massacre na prisão de Abu Salim, onde 1.167 pessoas supostamente opositoras do governo foram assassinadas em poucas horas pelos soldados do regime. Com depoimentos e provas suficientes para condenar Kadafi em uma corte internacional por crime contra a humanidade, o ativista de direitos humanos e advogado das famílias das vítimas Fathi Terbil conta que os corpos das vítimas foram jogados em buracos e cobertos com cimento. Um dos poucos sobreviventes da chacina, o engenheiro Issa el-Bira, revelou que centenas de presos foram forçados a sair para o pátio enquanto atiradores os matavam de cima dos telhados.

Iniciada em março, a revolta popular na Síria contra o regime de Bashar Assad já contabiliza 1.200 mortes e 10 mil presos qualificados pelo governo como “sabotadores”. O presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas, Joseph Deiss, frente a sinais de que o Brasil não estaria disposto a apoiar uma resolução de condenação no Conselho de Segurança contra a repressão e atrocidades cometidas contra civis e as mais de mil mortes promovidas pelas forças sírias, deslocou-se até Brasília para uma reunião com a presidente Dilma e o chanceler Patriota. Na visita, ocorrida em 20 de junho, Deiss tentou sensibilizar o governo brasileiro a votar a favor da resolução que prevê, entre outros tópicos, a implantação de reformas políticas no país, a libertação de prisioneiros e o fim da violência contra os opositores. Entretanto, a posição brasileira – que coincide com as da Rússia e China – é de que possíveis ações militares tenderiam a piorar ainda mais a situação. “ASíria é um país central, quando se leva em conta a estabilidade no Oriente Médio”, afirmou Patriota em entrevista na ONU. “A última coisa que gostaríamos é contribuir para exacerbar as tensões no que pode ser considerada uma das regiões mais tensas de todo o mundo.”

Esse posicionamento do Brasil tem intrigado diplomatas dos Estados Unidos, Reino Unido e França, países membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Um deles se mostrou decepcionado e explicou: “Tivemos até mesmo a preocupação de não colocar nenhum trecho que pudesse dar chance para uma intervenção externa na Síria. Mas parece não ter sido suficiente para convencer os brasileiros”, disse. Em abril, o Brasil votou favoravelmente no CDH pelo envio a Damasco de uma missão para investigar violações de direitos humanos no país, principalmente tortura e execuções. Dois meses depois, observadores da ONU foram impedidos de entrar na Síria.

Exportações para o Egito cresceram 135,7%

Mesmo assim, o governo de Assad pediu o apoio do Brasil para a sua pretensão de concorrer a uma vaga no CDH. Diplomatas sírios acreditavam na influência do voto brasileiro para mudar a posição de outros países. Mas, uma semana antes da votação a Síria retirou a sua candidatura. Membro da entidade desde 2008, o Brasil encerrou seu mandato em maio, quando 15 das 47 cadeiras do Conselho foram renovadas. Em março, a Assembleia-Geral da ONU já havia decidido pela suspensão da Líbia no CDH, com voto favorável do Brasil.

Uma das mais significativas áreas de comércio do Brasil no norte da África e principal destino das exportações brasileiras para aquele continente, o Egito pós-Mubarak foi alvo de uma visita do ministro Antônio Patriota em maio. Parceiro extra-regional do Mercosul, assim como Israel, o país de 80 milhões de habitantes abriga a sede da Liga dos Países Árabes e é considerado pelo Itamaraty como um interlocutor de grande influência no mundo árabe. Segundo a nota nº 179, divulgada no site do Itamaraty em 6 de maio, o Egito “tem envolvimento crescente nas negociações relativas à questão israelo-palestina, do que é demonstração a assinatura, no Cairo, no último dia 4/6, do acordo de reconciliação entre o Fatah e o Hamas, além de outros 11 grupos políticos palestinos.”

Apesar das revoltas populares e da derrubada do governo de Mubarak, as exportações para o Egito cresceram 135,7% nos três primeiros meses de 2011 em relação a igual período de 2010, alcançando a média diária de 8,5 milhões de dólares. Para a Tunísia, país que inaugurou os confrontos de rua contra os regimes autoritários árabes, culminando com a queda do ditador Zine Ben Ali, as exportações brasileiras aumentaram ainda mais, cerca de 408,2%, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Na Argélia, país árabe que também enfrenta distúrbios, a compra de mercadorias do Brasil teve um crescimento de 218,81%.

Liderança geopolítica
Em setembro, quando a primavera se anunciar no Cone Sul, Dilma estará em Nova York para a abertura da Assembleia Geral da ONU. O secretário-geral, Ban Ki-Moon (reeleito para o cargo por mais quatro anos), no encontro que teve com a presidente brasileira no Palácio do Planalto, em 16 de junho, lembrou que Dilma será a primeira mulher a abrir o debate geral daquela entidade. Em nota, ao cumprimentar o sul-coreano pela votação, o Itamaraty ressaltou algumas prioridades do governo brasileiro no campo político internacional: a reforma do Conselho de Segurança da ONU, a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e a busca de uma solução política para as crises que atingem o Norte da África e o Oriente Médio.

Sabendo-se que líderes palestinos apoiados por países árabes já preparam um plano de mobilização para pedir o reconhecimento da ONU na sessão anual de sua Assembleia Geral de um estado palestino delimitado pelas fronteiras de 1967, e que o Brasil, compartilhando espaço com países que incitam o ódio ao Estado de Israel, já reconheceu essas fronteiras em dezembro de 2010, é pouco provável que haja qualquer alteração, por parte da presidente brasileira, das diretrizes já assumidas acerca desse e demais temas que envolvem os conflitos no mundo árabe e o terrorismo praticado por grupos político-religiosos da região. Ainda que a grande imprensa distingue o compromisso da presidente com a questão dos direitos humanos, a visão ideológica e as aspirações brasileiras por uma liderança geopolítica regional e terceiro-mundista – sinalizadas pelo partido a qual está ligada – acabam por estreitar e dogmatizar seu campo de ação. Para desalento das editorias e dos articulistas políticos que insistem em repaginar o perfil de Dilma, creditando supostos pontos de vista e opiniões que mais adiante não se confirmam.

As fotos mostram manifestações de rua em Bahrein, Síria e Egito, no que a imprensa mundial chamou de Arab Spring - Primavera árabe, ou a luta desses povos pela democracia. Contudo, tanto na praça Tahir quanto em outras ruas e praças do mundo árabe, bandeiras de Israel foram queimadas, justamente de um país que é uma das poucas democracias da região.

domingo, 5 de junho de 2011

Os super-heróis do Serviço Público

Os desafios diários dos jornalistas que trabalham em Assessorias de Comunicação

por Sheila Sacks
publicado nos portais da Associação dos Servidores do Tribunal de Justiça(Assestjsp) e da Federação das Entidades de Servidores Públicos de São Paulo(FESPESP).


Já há alguns anos, as páginas dos jornais que estampam as reclamações de leitores sobre os mais variados assuntos têm público certo e cativo, que tende a crescer. Da mesma forma, o rádio, a TV e a internet somam espaços particularizados para as denúncias de serviços não executados ou malfeitos, promessas descumpridas, produtos danificados, deslizes no atendimento e omissão danosa de regras, prazos e acordos. Ciente e consciente de sua respeitável posição de cliente, usuário, consumidor, comprador e pagante, o cidadão brasileiro encontra na mídia – entendida como os meios de comunicação de massa – um eficiente canal para dragar e escoar, a céu aberto, as solicitações, reclamações e relatos dessas pendengas que aborrecem e tumultuam o cotidiano de qualquer ser humano.

Mas é na área do serviço público que o cidadão brasileiro está tendo a oportunidade de recorrer, mais assiduamente, aos préstimos da mídia, sempre atenta aos problemas urbanos das cidades. Ainda que uma escola com goteiras, localizada em um bairro da periferia, não tenha o mesmo peso editorial de um cano que se rompe e inunda uma rua da Zona Sul do Rio de Janeiro, o reclamante sempre encontrará um espaço na rede midiática para expor, veicular, sensibilizar e transmutar um fato isolado e distante em um problema próximo e de interesse comum.

Fogo cruzado

É nessa hora que as assessorias de comunicação dos órgãos públicos afetados pelas ocorrências são instadas a desfazer ou deter o possível dano causado à imagem dos mesmos. O registro da imprensa, rádio e TV de crianças estudando em uma sala de aula com água escorrendo pelas paredes ou carteiras escolares molhadas tem um forte impacto emocional na população. Assim com o de uma importante via alagada e interditada ao trânsito; do desespero de moradores de baixa renda diante da demolição de seus casebres, ainda que erguidos irregularmente nas encostas; ou de idosos e crianças doentes enfileirados, durante horas, frente à entrada de postos de saúde e hospitais, aguardando atendimento.

A simples exposição do fato, que naturalmente incorpora o poder público como culpado da situação, muitas vezes estimula a mídia a se acercar do assunto, ampliando o seu foco com desdobramentos em matérias correlatas. Em sequência, as assessorias de comunicação são imediatamente bombardeadas pelos repórteres que urgem dar uma resposta, firme e precisa, aos seus leitores, telespectadores e ouvintes.

Às assessorias não basta se reportar e responder tecnicamente ao jornal que publicou o fato. Necessitam ir muito além da informação. Faz-se necessário, basicamente, corresponder positivamente às expectativas da comunidade escolar afetada (que se mobilizou para tornar o fato público), dos funcionários do órgão (engenheiros e técnicos que trabalham incansavelmente nessa área), da direção do órgão público atingido (profissionais capacitados nomeados para cargos de confiança), da sociedade atingida pela notícia e da própria mídia, que a cada dia torna-se mais competitiva e investigativa. Enfim, é preciso que os jornalistas que trabalham nessas assessorias se descubram portadores de habilidades muito especiais, tais quais os super-heróis das cultuadas HQs, para saírem totalmente ilesos desse fogo cruzado.

Informar é desestabilizar

O cuidado com o uso dos termos a serem inseridos nos releases é outra preocupação a rondar as assessorias. Um exemplo sobre o estrago que uma palavra pode causar a um profissional da comunicação é a polêmica que se instalou em torno do jornalista Luiz Lobo, da TV Brasil. Demitido da emissora, no início de abril de 2008, o profissional alegou que existia uma ordem do governo federal para que a palavra "dossiê" não fosse usada nos noticiários. Segundo Luiz Lobo, haveria na TV Brasil o que ele classifica de "um cuidado que vai além do jornalístico", interferindo na independência da emissora.

Na mesma época, em sua coluna diária em O Globo (20/4/2008), o jornalista Merval Pereira abordou essa questão da independência na transmissão das mensagens, dando voz e espaço a Régis Debray – amigo pessoal de Fidel Castro e Che Guevara nos anos 1960 –, hoje um especialista em "midialogia" (estudo das mídias). Para o filósofo, jornalista e professor francês, de formação marxista (passou três anos preso na Bolívia), existe uma diferença entre a comunicação e a informação. Para ele, os sistemas de comunicação trabalham mais com a comunicação do que a informação, já que a comunicação vive de seduzir o leitor ou o ouvinte. Essa sedução seria traduzida por uma espécie de mimetismo, onde as mídias em suas mensagens imitariam o pensar e o falar dos que recebem as notícias e vice-versa. Daí que a mídia, como um todo, seria sempre um reflexo de uma sociedade, repercutindo "os que os escutam e os que os lêem".

Em contrapartida, o ofício de informar seria bem mais difícil: "Informar alguém é sempre desestabilizá-lo, deixá-lo desconfortável, mexer com suas ideias já fixadas", explica Debray. Logo, caberia à informação o ônus de ser o diferencial, de se compor como uma mensagem dissociada a termos e expressões estigmatizantes, tendo como premissa os fatores da imparcialidade e da independência em relação ao público leitor. Essa, aliás, seria a função precípua das assessorias de comunicação da área pública: a de informar objetivamente, mantendo-se imune à tentação de repetir a lingüística utilizada pela grande mídia.

Múltiplas habilidades

De 1950, quando os primeiros cursos de Comunicação Social foram implantados no país, aos dias atuais, com as redes de comunicação transformadas em conglomerados poderosos e atuantes em todos os setores da vida humana, aumentou bastante a percepção, entre os profissionais e aqueles que estudam e pesquisam o fenômeno das mídias, da importância de se conhecer e entender o funcionamento dessa multifacetada engrenagem de massa, capaz de criar e destruir mitos e governos, fomentar idéias e teorias e até mudar o curso da história.

Profissionais formados na tradição das escolas de Jornalismo mais convencionais procuram se adaptar ao aparato e a tecnologia que as novas mídias impõem. Nas assessorias, o repasse de releases via e-mail já não é novidade. Folders e cartazes são elaborados utilizando-se da computação gráfica. A solicitação de vídeos ou CDs, com animação, sobre serviços realizados pelos órgãos e empresas (projetos, obras etc.) também está virando rotina, juntamente com o acompanhamento eletrônico diário do noticiário dos jornais, revistas, rádio e TV e a permanente atenção à mídia e à análise da temperatura social de suas mensagens, embutidas em notas, colunas e reportagens.

Atentas a essa perspectiva transformadora da comunicação, universidades como a Federal Fluminense (UFF), do Rio de Janeiro, e a de Campinas (Unicamp), em São Paulo, abriram cursos de estudos de mídia ou Midialogia, que visam à análise e discussão das diversas mídias, em seus contextos, códigos, linguagens e campos conceituais. Segundo o professor Adilson Ruiz, da Unicamp, "o midiólogo, na sua expressão mais pura, deverá ser um grande consultor de mídia para empresas de qualquer natureza, sejam elas da esfera pública ou privada". Estará preparado para opinar sobre som, fotografia, cinema, vídeo e computação gráfica, atuando na produção, realização e recepção desses produtos. Sem deixar de lado a formação no campo humanístico, estético e sociológico, base instrumental e técnica da expressão e item imprescindível para a construção de cada mídia específica (escrita ou audiovisual).

Portanto, para esse novo super-herói que já desponta no horizonte, vale indicar um proveitoso estágio em uma assessoria de comunicação social de um órgão público. Ainda o melhor lugar para um profissional exercitar suas múltiplas habilidades.