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domingo, 17 de fevereiro de 2019

Os mortos-vivos da lama de Brumadinho

Sheila Sacks / 

“A polêmica que se formou nas redes sociais acerca da presença de israelenses em Brumadinho revela que, para certos grupos da sociedade, tragédias como as da cidade mineira são monopólio nacional. Será que somente mensagens de solidariedade seriam bem-vindas?” 
Sheila Sacks, Rio de Janeiro

(Mensagem enviada e  publicada no painel de leitores de ‘O Globo’ e da ‘Folha de São Paulo’, em 02.02.2019)


A presença de israelenses na região atingida por uma das maiores tragédias ambientais ocorridas no Brasil – o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, em 25 de janeiro - trouxe à tona espectros fantasmagóricos que até então viviam submersos ou atolados no pântano da sordidez e da maledicência.

Nos cinco dias (de 27 a 31 de janeiro) em que a equipe de profissionais de Israel esteve em solo brasileiro para uma ajuda humanitária, já realizada em diversos países, e que tem como foco o atendimento a grandes desastres, uma guerra de palavras se instalou nas redes sociais, tendo de um lado os que elogiavam a iniciativa e em oposição aqueles que criticavam a ajuda.

A simples constatação de que ações beneméritas podem sofrer questionamentos e servir de base para inalações mentirosas envolvendo conspirações e outras calúnias de cunho racista e preconceituoso funcionou como um alerta para muitos judeus brasileiros que desconheciam a virulência do antissemitismo pátrio.

Sem simpatia

A mídia brasileira, em suas reportagens sobre o desastre ambiental e o trabalho das equipes de resgate, incluindo aí a participação israelense (136 profissionais e toneladas de equipamentos), se comportou como de hábito ao reportar diariamente os fatos - introduzindo afirmações, opiniões e vereditos - e expondo e traduzindo, sob determinados ângulos, as percepções e humores das centenas de envolvidos.

Porém, é lúcido apontar, totalmente insensível e apartada de uma possível simpatia à atitude humanitária e generosa de Israel, que deslocou aeronave, pessoal altamente treinado e equipamentos sofisticados para se incorporar às forças civis e militares que trabalhavam em Brumadinho.

Enquanto isso, mídias alternativas que povoam a internet repercutiam as reportagens, principalmente àquelas que traziam as opiniões de técnicos da Defesa Civil que questionavam a utilidade dos equipamentos israelenses no caso específico da tragédia na cidade mineira.

Também o apoio explícito do atual governo brasileiro à presença da equipe de resgate de Israel contribuiu para os evidentes sinais de má vontade subliminares expressos nas mídias impressa e televisiva que se mostram em oposição ao governo.

A impossibilidade de salvar vidas, em um cenário apocalíptico em que a lama de rejeitos de minérios cobriria um prédio de 10 andares, nem de longe foi levada em conta. A equipe israelense chegou no domingo à noite, dois dias depois do rompimento da barragem e iniciou os trabalhos na segunda-feira de manhã, quando o mar de lama já tinha percorrido mais de 80 quilômetros. 

Mas, a impraticabilidade de encontrar sobreviventes naquelas circunstâncias não deveria diminuir e nem empanar o valor da presença dos profissionais israelenses que se juntaram às equipes brasileiras na procura e resgate dos corpos das vítimas, aguardados ansiosamente por familiares e amigos.

Antissemitismo presente

Repetindo atitudes como a do político paranaense Roberto Requião e do cartunista Carlos Latuff, centenas de internautas difundiram mensagens antissemitas dissimuladas, focadas nos equipamentos de Israel que não teriam eficácia e sugerindo que a ajuda humanitária era uma estratégia de marketing. Outros ousaram afirmar que os israelenses tinham interesses ocultos nos minérios brasileiros.

O primeiro postou no twitter um comentário infame, indigno e até ridículo, em sua essência, sugerindo que a equipe de soldados israelenses, em uniformes militares, mais parecia a de um grupo de assalto à vizinha Venezuela. O segundo postou uma charge grotesca e ofensiva à chegada dos soldados israelenses, associada às mortes de palestinos, reproduzida nas redes sociais até por quem se sentia insultado pela imagem.

Curiosamente, apesar de todo esse mal-estar que atingiu a comunidade judaica, o espaço dedicado às mensagens dos leitores não refletiu o inegável clima de insatisfação. Talvez pelo cerceamento imposto pela mídia brasileira quando o assunto envolve religião e o antissemitismo. São questões delicadas que os editores evitam fomentar através desses painéis, visto que em suas análises o nível de antissemitismo no Brasil é baixo e não merece um enfoque especial.

Sobrou, então, para os dirigentes das federações judaicas a tarefa oficial de manifestarem sua repulsa frente a essas ocorrências, apesar do pouco ou nenhum espaço reservado pela mídia, graciosamente, a esses tipos de comunicado.

História e tecnologia

Posteriormente, artigos assinados por acadêmicos amigos, alguns de ascendência judaica, pontilharam as páginas de opinião de alguns jornais, evocando e discorrendo sobre um passado judaico da população brasileira, representado pelos cristãos-novos que aqui chegaram à época dos Descobrimentos. Uma afinidade, segundo os autores, de mais de cinco séculos.

Igualmente, considerações variadas sobre o ganho tecnológico que o Brasil obteria com o estreitamento das relações bilaterais com Israel foram aventadas em colunas opinativas, com o inefável toque de uma publicidade oficiosa.

Enfim, não é novidade a relação difícil e complexa da mídia mundial com o estado de Israel. Na Europa, o fenômeno é mais aparente. Aqui, a presença dos israelenses em Brumadinho fez aflorar, do lamaçal pútrido da barragem, os terrificantes e asquerosos mortos-vivos da discriminação, do preconceito e do antissemitismo. Duendes do mal que a comunidade judaica jamais se permitiu conceber em seus piores pesadelos noturnos.

A indagação que se faz, a partir de agora, é de como agir, em se tratando de estratégia permanente de comunicação, frente à constatação da presença de um antissemitismo escancarado e ativo que se dispôs a macular uma ação humanitária protagonizada por um país amigo.

Simplesmente seguir adiante, como nada tivesse acontecido; minimizar as ocorrências por conta de uma suposta liberalidade em relação ao mantra “liberdade de expressão”; ou fingir que, no final das contas, a comunidade judaica saiu aparentemente ilesa e os soldados de Israel cumpriram a sua missão.

Esses são os comportamentos usuais que todos conhecem, mas, nem por isso, exemplares e recomendáveis.