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quinta-feira, 25 de julho de 2019

A batalha do Museu Judaico de Lisboa

Sheila Sacks /

 
Há três anos, por ocasião da cerimônia da formalização da criação do Museu Judaico de Lisboa, a historiadora, escritora e fundadora da Associação Portuguesa de Estudos Judaicos, Ester Muznik, assinalou a força simbólica do local onde seria construído o museu: o Largo de São Miguel, no bairro de Alfama, o mais tradicional e antigo de Lisboa.

Isso porque bem perto ficava a chamada Judiaria de Alfama, um dos quatro guetos antigos de Lisboa, fundada em 1373 e da qual constava uma sinagoga.

Porém, o que parecia em setembro de 2016 uma empreitada cultural e histórica das mais tranquilas e harmoniosas, dados os vários acordos de colaboração - incluindo investimentos de recursos e doações de entidades internacionais - e o apoio oficial da Câmara Municipal de Lisboa (CML), em pouco tempo se mostrou uma proposição difícil e embaraçosa, alvo de uma batalha nos tribunais de Justiça, ainda longe de uma solução.

Moradores são contra 
                                         
Desde o lançamento do projeto, associações de defesa do patrimônio, moradores e comerciantes se posicionaram contra a construção do museu no local, considerando que a obra iria desfavorecer o plano urbanístico do bairro.


Em setembro de 2017, a Associação do Patrimônio e População de Alfama (APPA) apresentou uma ação popular na Justiça para sustar a construção do museu. 

Meses antes, representantes da associação reclamaram, em um encontro com membros da CML, tanto da localização quanto da arquitetura contemporânea da obra, um projeto da arquiteta portuguesa Graça Bachmann, autora do monumento construído no Largo de São Domingos em homenagem aos judeus mortos em Lisboa no massacre de 1506.

A ação da APPA inicialmente recebeu uma decisão desfavorável da Justiça, mas a associação recorreu e conseguiu interromper parte da demolição das casas onde seria construído o museu. Por sua vez, a CML apresentou recurso para a liberação das obras, mas, no início deste ano, o Supremo Tribunal Administrativo rejeitou o pedido de revisão da decisão judicial e manteve suspensa a construção do museu e a demolição das casas.

Em abril, novamente a APPA interpôs uma ação judicial contra a implantação do museu, desta vez advogando a construção de habitações no Largo de São Miguel “para estancar a expulsão de moradores e trazer habitantes para Alfama”, segundo a associação. Três meses antes, uma petição intitulada “Queremos casas no Largo de São Miguel”, com 1.200 assinaturas foi encaminhada pela organização para a Assembleia Municipal de Lisboa (AML) com idêntica reivindicação.

Outro local


Enquanto não sai uma decisão judicial definitiva, o projeto do museu tem sido alvo de um desgaste continuado até porque a imprensa tem noticiado com frequência cada embate judicial assim como o posicionamento e as diversas manifestações promovidas por moradores e integrantes da APPA, que contam com o apoio do Movimento Fórum Cidade de Lisboa, que em seu blog -Cidadania Lx - afirma que a preocupação do grupo é com “uma Lisboa pelos lisboetas e para os lisboetas”.

Para esses grupos o museu deveria ser instalado na Rua do Jardim do Tabaco, junto ao Rio Tejo, ainda dentro dos limites do histórico bairro de Alfama, local turístico onde já está instalado o museu do Fado e com “vários edifícios devolutos”, segundo alegam.

A presidente da APPA, Lurdes Pinheiro, esteve no início de julho no plenário da AML, integrado por 75 deputados, defendendo a petição para a construção de habitações no espaço onde estaria o museu. Ela recorreu a esta estância depois de ter ciência que a CML, composta de 17 vereadores, continua em sua posição de construir o museu judaico no Largo de São Miguel e que aguarda a finalização do processo judicial para emitir parecer sobre a questão.

A petição da APPA pede que a CML, dona do terreno, venha a “tomar medidas adequadas para que os edifícios até agora destinados ao Museu Judaico de Lisboa sejam recuperados para habitação de longo prazo” e que também possa “contribuir para que seja encontrada outra localização para o museu no bairro de Alfama”.

Segundo a APPA, “o Museu Judaico de Lisboa é importante para a cidade, mas não menos importante é preservar a cidade que o próprio povo judaico ajudou a construir”. Para a associação, “a construção do Museu Judaico no Largo de São Miguel iria lesar o equilíbrio, a escala, a estética e toda a malha urbana, arquitetônica e histórica do Largo de São Miguel”. 

Daí o pedido para que a CML não aguarde a decisão judicial e por decisão própria anule a licença de construção do museu, “respeitando os objetivos declarados e os regulamentos que a própria Câmara aprovou para esta zona histórica”.

“Dever de memória”


Quando da assinatura do protocolo para a criação do museu judaico, em 2016, o então ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, diplomata e escritor, enalteceu a instalação do museu lembrando que existe “um dever de memória para com o passado judaico de Portugal” e que o museu “será esse lugar de memória”.

O presidente da CML, vereador Fernando Medina, também destacou, na ocasião, a importância da iniciativa, afirmando que o museu será “um marco sobre a presença judaica em Portugal e, acima de tudo, um instrumento de futuro para a cidade”. Ele avaliou em 5 milhões de euros o total de investimentos, com as parcerias do Fundo de Desenvolvimento Turístico (através das receitas da taxa turística), da Rede de Judiarias de Portugal e da Fundação Lina e Patrick Drahi.

De acordo com o protocolo,  um milhão de dólares será disponibilizado pela CML que cederia o espaço (que reúne quatro imóveis) para erguer o museu, e mais 1,2 milhão de euros doado por Patrick Drahi, o bilionário dono da Altice Portugal (antiga Portugal Telecom), um francês nascido no Marrocos, com cidadanias portuguesa e israelense, gestor da citada fundação. Somente para a construção do museu estão previstos a aplicação de 2,9 milhões de euros.

Outro parceiro será o fundo norueguês EEA Grants, que financia a Rede Portuguesa de Judiarias (Rede Sefarad), colaborando com 312,8 mil euros. Também ficou acertado que a Associação de Turismo de Lisboa (ATL) daria uma contrapartida de 55,2 mil euros para as obras, assumindo a gestão do espaço, e a Comunidade Israelita de Lisboa contribuiria com documentos e peças históricas.

A expectativa era de o museu atrair 60 mil visitantes por ano, principalmente os de origem judaica, com bilhetes de entrada individuais no valor de 3,80 euros.

Zona de proteção


Projeto questionado pela APPA, o espaço do museu teve um dos imóveis demolido e atualmente as demais demolições estão embargadas pela Justiça.

Em entrevista aos jornais locais, moradores criticam as “caixilharias” das fachadas em alumínio, o tamanho do museu formado por dois prédios (quatro andares acima do nível da rua), com duas fachadas distintas, “uma delas com uma Estrela de David em baixo relevo e pedra lioz (tipo de calcário) virada para o largo e a Rua de São Miguel”, elementos que, segundo eles, vão descaracterizar o lugar.

Do mesmo modo se dizem preocupados com a construção do museu no sentido em que este venha acabar com o pouco estacionamento no bairro, impossibilite as cargas e descargas para os comerciantes e afaste as tradicionais barraquinhas que se espalham no largo, principalmente durante as festas juninas.

Uma das representantes do “Fórum Patrimônio 2017” ocorrido em Lisboa, a arquiteta Soraya Genin, lembra que o Largo de São Miguel está inserido na zona de proteção da Igreja de São Miguel, um imóvel classificado de “Interesse Público” e é parte do núcleo histórico de Alfama e Colina do Castelo. Por essa razão, afirma, tudo que for construído no local precisa respeitar as características arquitetônicas do local.

A arquiteta do Fórum cita o despacho da apreciação técnica do projeto feita pela própria CML em que a instituição reconhece que o edifício se “destacará da linguagem arquitetônica dos edifícios confinantes, dissonando das referências das composições arquitetônicas dominantes no conjunto do Largo”. 

Quanto à demolição dos quatro imóveis, segundo ela, não foi apresentada “uma justificação suficiente” do ponto de vista do estado de conservação das construções.

Duas edificações


Por sua vez, a arquiteta Graça Bachmann (que doou o projeto, no valor de 75 mil euros) defende o layout do museu explicando que a fachada de pedra lioz de cor clara e a “sobriedade de linhas e dos acabamentos adotados” respeitam a proximidade de “um imóvel classificado”, no caso a Igreja de São Miguel. Mas, admite que o museu terá um traçado distinto das características do local, maioritariamente residencial, e que o projeto, pela sua identidade e funcionalidade, deve balizar um novo tipo de ocupação.

No térreo ou piso zero do museu serão instaladas a recepção, uma loja e parte do espaço museológico. O primeiro piso, que será “semienterrado”, terá uma área para exposições temporárias que também poderá ser utilizada como sala polivalente com capacidade para 50 pessoas. Essa aplicabilidade também será repetida no segundo piso, ficando o terceiro piso reservado a uma cafeteria com terraço e à direção do museu.

O segundo prédio – o de documentação -, ao lado do primeiro e com fachada diversa (‘semelhante ao edificado residencial típico do bairro’) terá entrada pelo Beco da Cardosa e vai acolher as salas do Centro de Documentos nos pisos zero e um, ficando os serviços administrativos nos pisos dois e três.

O programa geral do museu foi desenvolvido pela historiadora Ester Mucznik e além de sua função pedagógica pretende contar a história dos 800 anos da presença judaica em Portugal, funcionando ainda como um centro de recolhimento, preservação e divulgação do patrimônio material e imaterial judaico-português. Afora as mostras temporárias, haverá uma exposição permanente baseada em dois componentes: o percurso temático e histórico.

A historiadora assinala que o percurso temático abordará a identidade religiosa através da exposição de objetos de culto, e o histórico focará na história dos judeus em Portugal, incluindo o regresso contemporâneo do judaísmo no país.

Memória


Em abril de 2017, frente à petição de moradores do local que questionavam a construção do museu – “Museu judaico em Alfama? Sim! No Largo de São Miguel? Não!” -  Mucznik falou aos deputados na Comissão Permanente de Cultura da AML sobre o sentido da escolha daquele espaço público. Ela lembrou que este é um lugar de grande simbolismo para o judaísmo português, pois lá existiu uma judiaria e também uma sinagoga.

A judiaria de Alfama começou a se formar em 1373 e a sua sinagoga foi construída entre 1373 e 1374. Era formada, basicamente, por uma rua, dois becos, dois pequenos largos e um arco que servia de porta para o gueto. 

Em 1496, por ordem do rei D.Manuel (1469-1521), todas as judiarias foram extintas, mas restou um registro da história daquela época na chamada Rua da Judiaria, “que vai do Arco do Rosário (antiga porta do gueto), no Terreiro do Trigo, até o Largo de São Rafael”. Junto a esse largo, segundo Mucznik, funcionava a sinagoga, no atual Beco das Barrelas, número 8.

Quanto as preocupações daqueles que temem que o dia-a-dia daquela zona seja afetada, a historiadora garante que o museu não vai impedir a vida no bairro nem as festas populares que ocorrem regularmente.

Mas, até que a Justiça bata o martelo, o sonho de um museu judaico no Largo de São Miguel terá que esperar, sujeito que está à pressão dos moradores e das organizações de conservação do patrimônio que se mostram frontalmente contrários ao projeto naquele local.

Em tempo: Na página do facebook criada pela Associação dos Amigos do Museu Judaico de Lisboa é possível acompanhar a mobilização da comunidade judaica em favor da implantação do museu.


quarta-feira, 3 de julho de 2019

Espiões, hackers e a imprensa livre


Sheila Sacks / 
A extradição de Assange, fundador do WikiLeaks, pedida pelos Estados Unidos em função da divulgação ilegal de documentos sigilosos do governo americano  e as conversas hackeadas publicadas por Greenwald no The Intercept Brasil , envolvendo o ex-juiz Moro e o procurador Deltan Dallagnol, da Lava Jato, são faces da mesma moeda: a de um jornalismo de risco que está na mira dos órgãos de segurança nacional.
publicado no "Observatório da Imprensa"
Em um artigo instigante veiculado pelo site de notícias políticas “Real Clear Politics” (RCP), o jornalista Lee Smith, especializado em Oriente Médio e autor de dois livros sobre o tema (‘Strong Horse’ e ‘The Consequences of Syria’)  alerta para as mudanças que vêm ocorrendo no jornalismo americano, notadamente quando envolvem temas políticos e de segurança nacional.
No texto  “Spies Are the New Journalists” (Espiões são os novos jornalistas), publicado no início de junho, o autor cita nominalmente ex-agentes do FBI (Federal Bureau of Investigation), CIA (Central Intelligence Agency) e de outros órgãos de segurança e inteligência que migraram para as grandes redes de comunicação, como a CNN (Cable News Network) e NBC (National Broadcasting Company), e também compõem o staff dos jornais New York Times e Washington Post.
Smith critica o fato de que com a ajuda dos grandes conglomerados midiáticos esses ex-agentes estão transformando o jornalismo em uma operação de inteligência. Muitos, com formação em Direito, mantendo laços de amizade com ex-colegas de ofício e possuindo um conhecimento inside dos procedimentos e processos investigativos levados a cabo nessas oficinas de espionagem, agora atuam nos meios de comunicação como analistas de segurança nacional, arrogando para si os direitos e a proteção do que antes era uma prerrogativa de uma imprensa livre.
Para o autor, “a mídia está hoje abertamente entrelaçada com o establishment da segurança nacional de uma maneira que seria inimaginável antes do advento da era do dossiê”. O que se observa, continua Smith, é a criação de um cânone de privilégios desfrutado por esses grupos que não se aplica, por exemplo, a maioria dos cidadãos. Estes estão atados à força da lei que se faz cumprir integralmente, sem nichos facilitadores. 
No artigo em questão, o jornalista - que é membro do “Hudson Institute”, uma organização em Washington que promove estudos e pesquisas sobre políticas públicas - afirma que a mídia e a inteligência forjaram um relacionamento no qual os dois parceiros buscam interesses profissionais e políticos conjuntos. “Eles visam adversários compartilhados e protegem amigos em comum.”
Tratamento diferenciado

Um exemplo desse tratamento diferenciado em relação aos ex-agentes e hoje jornalistas, segundo Smith, seria o que vem ocorrendo com Julian Assange, fundador do WikiLeaks. Acusado pelo Departamento de Justiça americano de espionagem e conspiração por publicar, em 2010, documentos secretos vazados pelo ex- analista militar transexual Bradley/Chelsea  Manning, os EUA  já pediram formalmente a extradição  do australiano, após o Equador revogar o seu asilo político, em abril. O ativista estava abrigado na embaixada daquele país, em Londres, há sete anos.
 O procurador-geral da Segurança Nacional, John Demers, já havia adiantado, uma semana antes do pedido oficial de extradição, ocorrido em 11 de junho, que a situação de Assange não se encaixaria na Primeira Emenda da constituição americana, que versa sobre liberdade de imprensa. “Ele não é jornalista”, disse em entrevista coletiva.
Afirmação rebatida pelo editor do WikiLeaks, o jornalista islandês Kristinn Hrafnsso, ao garantir que  Assange tem carteira profissional de jornalista. Presente no 30º Congresso da Federação Internacional de Jornalistas (IFJ, na sigla em inglês), ocorrido entre 11 e 14 de junho em Túnis, Hrafnsso atesta que Assange é membro da associação de jornalistas australianos e que escreve na imprensa europeia.
Porém, o entendimento de Demers sobre a situação de Assange, ressalta Smith, tem encontrado amplo apoio na mídia americana e tem sido defendido pelos tais ex-agentes que rebatizados de jornalistas se apresentam nas telinhas dos noticiosos como comentaristas políticos e de segurança nacional. A analista jurídica e de segurança nacional da rede CNN, Asha Rangappa (ex- FBI), repetiu Demers em sua justificativa: “Assange não é jornalista. Ele não está ligado a nenhum órgão de comunicação.”
Para esses ex-espiões, a eventual exposição de documentos sigilosos requer de quem divulga uma ligação formal de trabalho com a mídia impressa ou televisiva. Assim, os próprios “novos jornalistas” oriundos da comunidade de inteligência estariam agora abrigados no oportuno guarda-chuva da mídia e protegidos pela Primeira Emenda.
Jornalismo tradicional

Smith pondera que, ao contrário dos “novos jornalistas”, Assange atende à definição tradicional do autêntico jornalista. Aquele disposto a assumir riscos pessoais para publicar informações sobre instituições e pessoas poderosas que rotineiramente mentem para a sociedade a fim de avançar em suas agendas políticas e particulares.
 Porém, para o ex-diretor da CIA e ex-secretário de Defesa, Robert Gates, a maneira como foram disseminadas as informações sigilosas, sem qualquer consideração pelas consequências que poderiam atingir manobras militares no Afeganistão e no Iraque, a política externa americana e os próprios informantes, tornam Assange moralmente culpado.
Opinião compartilhada pelo procurador-geral que acusa Assange de atacar a democracia americana. “Nenhum profissional responsável, jornalista ou não, publicaria propositalmente nomes de pessoas que seriam fontes confidenciais em uma zona de guerra.” O fato se refere ao vazamento de uma lista de informantes (2011) que o WikiLeaks alega ter sido acidental.
No final de maio, os Estados Unidos apresentaram 17 novas acusações contra Assange, sendo 16 delas no âmbito da lei de espionagem que trata da obtenção e difusão de informação sigilosa. Em 2010, o WikiLeaks vazou cerca de 250 mil telegramas diplomáticos confidenciais e meio milhão de documentos secretos.
Assange também é acusado de pirataria informática e “conspiração” por supostamente ter “ajudado” e “estimulado” o então soldado Manning a violar a senha de um computador do Departamento de Defesa para obter informações confidenciais que poderiam trazer risco ao país. Essa acusação invocada pela Justiça americana, segundo Hrafnsson, revela a natureza da denúncia que se vale de uma legislação específica antiga, datada de 1917, e jamais usada contra uma publicação ou um jornalista. Se for condenado em todas as acusações, o australiano pode ser sentenciado em até 175 anos de prisão.
“Era do dossiê”
Mas, na visão de Smith as acusações contra Assange confirmam ainda mais a degradação do que chama a “era do dossiê” na esfera pública americana, onde os ex-espiões se encarregam de dar forma às notícias com o objetivo de avançar nas suas próprias agendas institucionais, processar acertos políticos e manter a si mesmos e a seus patrões fora do alcance das leis que se aplicam aos cidadãos comuns.
Nessa linha de pensamento, Smith lembra que o Prêmio Pulitzer de Jornalismo de 2018, o mais importante da categoria, foi para as equipes do New York Times e do Washington Post, justamente pelo conjunto de reportagens sobre a interferência russa nas eleições presidenciais de 2016 que tiveram origem em vazamentos de informações confidenciais, inclusive de interceptação extraída de autoridade estrangeira, no caso o embaixador russo nos EUA, Sergey Kislyak.
A natureza desses vazamentos, para Smith, é tão sensível que deveria ter provocado uma investigação imediata das autoridades americanas visto que muitas das 20 reportagens premiadas parecem ter origem em vazamentos de informações confidenciais. O jornalista faz uma comparação com as informações divulgadas pelo WikiLeaks,  assinalando que a metade dos 250 mil telegramas diplomáticos vazados não tinha o carimbo de “classified”. O restante estava nominado como “confidential” e 11 mil como “secret”. Nenhum deles, nem os documentos sobre o Afeganistão, Iraque e a baía de Guantánamo estavam nominados como “Top Secret”.
A percepção de que a imprensa rotulada como livre possa manter relações ocultas de conluio com órgãos de espionagem e similares no tocante a reportagens investigativas, principalmente quando o foco são instituições e autoridades públicas, é o aspecto mais chocante da “era do dossiê”. Muitas vezes, quando surgem insinuações e até denúncias de que determinadas reportagens investigativas estejam atreladas a comportamentos profissionais duvidosos, a atitude de seus autores e dos meios de comunicação envolvidos é minimizada porquanto não ameaça diretamente o establisment.  
Smith cita o comentarista de segurança nacional Ken Dilanian, da rede NBC, que trabalhou como repórter investigativo em veículos importantes como a Associated Press e o Los Angeles Times. Uma reportagem da plataforma HuffPost, em 2014, revelou que o jornalista enviava seus artigos, antes de serem publicados, para a sede da CIA para checagem dos fatos.
Além de compartilhar as histórias, a CIA fornecia a sua visão/versão dos dados apurados pelo jornalista, o que se supõe um comprometimento do uso do material publicado.   A troca de e-mails entre Dilanian e a assessoria de imprensa da CIA, em 2012, foi apresentada pelo site The Intercept, e Dilanian confirmou o envio dos textos para a CIA, reconhecendo, anos depois, que a atitude não foi correta.
Lava Jato
No Brasil, a divulgação de conversas privadas entre o ex-juiz e atual ministro da Justiça e de Segurança Pública, Sérgio Moro, e o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, o procurador Deltan Dallagnol, pelo site The Intercept Brasil, no início de junho, mobilizou a Polícia Federal que busca os autores das interceptações ilegais.
As conversas hackeadas ocorreram entre 2015 e 2018 através do Telegram - o aplicativo russo de mensagens instantâneas, similar ao WhatsApp - e dizem respeito ao andamento da operação. Pela abordagem das reportagens apresentadas pelo site, o ex-juiz Sérgio Moro supostamente estaria orientando a condução de processos da Lava Jato que corriam no âmbito da Procuradoria, em Curitiba, com a finalidade de evitar o retorno do PT ao poder na eleição presidencial de 2018. 
O ministro Moro nega qualquer interferência nos processos e considera naturais que ocorram conversas entre juízes, promotores e advogados. Em audiência no Senado, ele alertou ser alvo de um ataque hacker criminoso que mira as instituições e que tem como objetivo anular as condenações por corrupção levadas a efeito pela Lava Jato.
O editor e fundador do The Intercept Brasil, o jornalista e advogado americano Glenn Greenwald, em entrevista ao site “Pública” (Agência de Jornalismo Investigativo), dois dias depois da publicação da troca de mensagens, acusou a “grande mídia” de estar “trabalhando para a Lava Jato”. Segundo ele, “os jornalistas pararam de investigar e questionar e simplesmente ficaram aplaudindo, apoiando e ajudando”.
Premiado com o Pulitzer, em 2014, pelas reportagens veiculadas no jornal britânico The Guardian sobre as ações de espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) vazadas pelo ex-analista da CIA Eduardo Snowden, exilado na Rússia desde agosto de 2013, Greenwald vive há 14 anos no Brasil e procura não se ausentar do país com receio de ser alvo de represália do governo americano pela divulgação desses documentos.
Snowden foi acusado de espionagem, roubo e transferência de propriedade do governo por ter revelado o programa secreto americano de vigilância eletrônica que obtinha dados privados de milhões de pessoas, dentre elas políticos importantes.
As condenações relativas a essas acusações geralmente não são aplicadas a jornalistas, pois estes estão protegidos pela Primeira Emenda da constituição americana. Porém, alternativamente, os promotores podem usar a lei de espionagem de 1917 que torna crime disseminar informações prejudiciais ao país. Lei que serve de base para as acusações contra Assange e abre um precedente que preocupa os defensores da liberdade de imprensa.
“Eles estão acusando Assange de coisas que todo o jornalista faz o tempo todo, eu inclusive”, observa Greenwald. Ou seja: “encorajar uma fonte a conseguir mais documentos. Se isso é crime, todos os jornalistas estão em perigo”, afirma.
Em 2016, na eleição presidencial americana, novamente Greenwald e o The Intercept publicaram reportagens polêmicas tendo como fonte e-mails hackeados, desta vez da então candidata Hillary Clinton. Os documentos revelavam a estratégia da equipe de campanha de Hillary para cooptar jornalistas e figuras da mídia “potencialmente amigáveis”; o fornecimento de matérias já prontas para serem apresentadas por profissionais “confiáveis”; e os pagamentos dirigidos a colunistas que apareciam regularmente nos noticiários de TV por assinatura.
Interpretar a lei
Diante desse contexto, onde se encaixaria o que se convencionou chamar de imprensa livre? A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 220, inciso 1º registra: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.”
Então é preciso estar ciente de que é vedado o anonimato em qualquer manifestação de pensamento (IV); que está assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem (V); e que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação(X).
Por outro lado, é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (XIII), sendo assegurado a todos o acesso à informação, resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional (XIV).
Vale lembrar ainda o item XII que garante a inviolabilidade de sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Em relação às penalidades, além daquelas relacionadas aos “crimes contra a honra” que abrangem “calúnia”, “difamação” e “injúria” (artigos 138,139 e 140 do Código Penal brasileiro), a lei nº 12.737, de 2012, incluiu no âmbito de “Divulgação de Segredo” o artigo 154-A que estabelece pena de até dois anos de reclusão para quem “invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”. E com agravante (inciso 3º) “se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido”.
Imprensa “transgressora”
Com tantos cerceamentos jurídicos rondando o jornalismo, a pergunta que não quer calar é obvia: para a imprensa ser efetivamente livre é preciso que seja “transgressora”? Desafiar permanentemente as leis que em suas raízes são feitas para proteger a sociedade e os cidadãos em suas individualidades, privacidade e liberdade?
É fato que o uso de agentes públicos que se escondem no anonimato e de hackers solitários ou a serviço de determinadas ideologias como fontes de informações confidenciais ou secretas pode mudar o rumo de eleições, desmerecer políticos e figuras públicas, levar empresários para a cadeia, revelar maracutaias e conchavos, escancarar casos de corrupção e trazer à luz acertos e conluios espúrios. Mas igualmente afasta qualquer premissa ética a corroborar o trabalho jornalístico, já a partir do comportamento delituoso das fontes. Seria como carimbar que os meios justificam os fins.
Simultaneamente, o absoluto crédito dado a essas fontes em relação à autenticidade e veracidade de documentos sigilosos vazados ou de interceptações eletrônicas hackeadas torna-se a única afirmação da verdade que se pretende transmitir. Um risco que o jornalismo de investigação assume em sua narrativa fundamentada, identificada e comprometida, de forma incondicional, com as verdades e, consequentemente, com as motivações e intenções de seus informantes.
Um caminho instável, acidentado e de rumo incerto já percorrido outras vezes por Greenwald , cuja visão da profissão incorpora o conceito de imprensa “transgressora”, na medida que minimiza os possíveis entraves legais e conjuga do mito do quarto poder independente e transformador na estrutura do sistema ocidental democrático. Há poucos dias, em entrevista, ele afirmou textualmente: “Se você não quer esses riscos, você não deve fazer jornalismo.”
A respeito dessa compulsão pelo risco que envolve espiões, hackers e a imprensa, o comentarista de segurança nacional da rede de tevê MSNBC, o “novo jornalista” Naveed Jamali, ex-agente do FBI, autor do livro “How to Catch a Russian Spy” e que se descrevia nas redes sociais como “agente duplo” e “oficial de inteligência”, postou no twitter: “Uma vez que você cruzou a linha pela primeira vez, a segunda fica mais fácil.”
Que o diga Assange, que iniciou aos 16 anos sua vida de hacker em Melbourne e aos 20 foi acusado pela polícia federal australiana de 31 delitos, dentre eles de ter invadido o principal terminal da empresa de telecomunicações canadense “Nortel”. Na época ele escapou de ser preso e apenas pagou uma multa. Mas, a partir daí, nunca mais parou.

Em uma reportagem de 2010, na revista The New Yorker, o jornalista investigativo Raffi Khatchadourian, autor de diversas reportagens sobre Assange, seus companheiros e a dinâmica de suas atividades, classificou o australiano de “traficante internacional” (‘No Secrets – Julian Assanges’s mission for total transparency’).  E justificou: “Ele e seus colegas coletam documentos e imagens que os governos e outras instituições consideram confidenciais e os publicam no site WikiLeaks.”
No seu mais recente artigo, em 11 de abril, logo após a prisão de Assange, em Londres (‘Julian Assange versus the Trump Administration’), Khatchadourian voltou ao tema e chamou a atenção para a tentativa do governo Trump de redefinir o WikiLeaks como um “serviço de inteligência hostil, não estatal - uma organização que não pertenceria ao âmbito do jornalismo”. Uma artimanha engenhosa que poderá abrir espaço para criminalizar jornalistas, sites, jornalismo de investigação e organizações de imprensa que sistematicamente se utilizam de espiões, hackers e outras fontes não lícitas como base de reportagens que afrontam políticas de governo, a privacidade de autoridades públicas e o próprio eixo da segurança nacional.