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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

De Auschwitz às prisões da Suíça: a história de Petra Krause

por Sheila Sacks


Os meios de comunicação são o oxigênio do terrorismo. Sem eles, os terroristas seriam sufocados e morreriam.” (Adam Lockyer, especialista em segurança, inteligência e contraterrorismo) 

Em 2010, uma professora de inglês do ensino médio em Nápoles publicou um pequeno romance de 78 páginas cujo título estampava o nome de uma personagem misteriosa e enigmática que já foi rotulada por agências de inteligência ocidentais como a maior terrorista do século 20. O livro “L’intervista a Petra Krause” de Mara Fortuna conta a história de uma estudante de jornalismo que em meio à turbulência dos movimentos de esquerda que sacudiram a Europa, com bombas e mortes na década de 1970, tenta entrevistar uma ativista antifascista – Petra Krause - acusada de terrorismo. Mas um incidente trágico a afasta desse encontro que só vai se realizar trinta anos depois.

No lançamento do livro a autora disse que escreveu focada nos adolescentes que na sua maioria tem uma visão distorcida desse tempo de turbulência no continente europeu marcado por sucessivos atentados e sequestros praticados por grupos radicais. Mas, esses grupos extremistas, de acordo com a professora, eram formados por jovens idealistas e revolucionários. Acrescenta-se que tais movimentos tinham um leque bastante amplo de ações: se opunham ao regime de apartheid da África do Sul, às juntas militares na Grécia e às ditaduras de Franco (Espanha), Salazar (Portugal) e Pinochet (Chile); apoiavam as lutas pela libertação da Argélia, Irlanda do Norte e das colônias portuguesas de Angola e Moçambique; e mantinham conexões com organizações clandestinas - como a dos Tupamaros no Uruguai - que lutavam contra as ditaduras militares instaladas em países da América do Sul.


Lembrando Albert Camus (1913-1960), jornalista, escritor e filósofo, argelino de nascimento e prêmio Nobel da literatura em 1957, “a revolta não nasce, única e obrigatoriamente, entre os oprimidos, podendo também nascer do espetáculo da opressão cuja vítima é o outro”. 


Os rebeldes de 1968

A jornalista e escritora americana Claire Sterling (1919-1995), que viveu na Itália durante essa década turbulenta e foi correspondente do The New York Times e colunista política do Washington Post, aponta o ano de 1968 como aquele em que uma geração nascida após a segunda guerra mundial declarou a sua própria guerra contra a sociedade. “A força colossal deflagrada por um bando de jovens beatniks, antes ignorados como uma periferia de lunáticos, tirou o fôlego dos vários sistemas do mundo. Não apenas tirou o presidente Johnson da Casa Branca e o general De Gaulle do Palácio Elysée, como transformou a derrota militar do Vietcong após a Ofensiva do Tet numa conquista política que colocou um ponto final na guerra do Vietnã.”

Explica-se: com o barulho dos movimentos dos jovens universitários americanos e da geração beat (precursora dos hippies) contra a guerra do Vietnã crescendo nos EUA, somado ao surpreendente ataque do Vietnã do Norte ao Vietnã do Sul onde se concentravam as forças americanas, em 31 de janeiro de 1968 (a chamada Ofensiva de Tet, em referência ao ano novo lunar dos vietnamitas conhecido como “Tet Nguyen Dan”), Lyndon Johnson não obteve a indicação dos democratas para tentar a reeleição e o presidente francês, após 10 anos no poder, renunciou em abril de 1969, depois de enfrentar protestos violentos de estudantes e trabalhadores, e ser derrotado em um referendo popular sobre reforma do senado.

Porém, o questionamento mais contundente que os historiadores ainda fazem dessa época conhecida na Itália como os “anni di piombo” (anos de chumbo) é a forma violenta de ação adotada por esses grupos cujos alvos e vítimas foram as próprias democracias da Europa Ocidental e seus cidadãos. O chamado euroterrorismo se deu a partir da década de 1970 e atravessou os anos de 1980 como uma extensão dos protestos estudantis de 1968, com movimentos de extrema esquerda radicalizando suas posições políticas por meio de atos terroristas que inicialmente atingiram a Alemanha Federal e a Itália e depois se alastrou para outros países do continente. A guerra do Vietnã, as ditaduras na Europa e na América Latina, a luta pela independência da Argélia, a causa palestina, o fantasma latente do fascismo e a repressão policial serviram de combustível para que esses guerrilheiros urbanos incendiassem a Europa.

“Geração de Auschwitz”

Andreas Baader e Gudrun Ensslin
Mas o rastilho de pólvora foi aceso na própria Alemanha pós-guerra a partir da fundação do “Grupo Baader-Meinhoff”, em 1970, também conhecido como “Fração do Exército Vermelho” (RAF - Rote Armee Fraktion, em alemão), uma organização de extrema-esquerda responsável por uma série de ações armadas no país e que somente foi oficialmente considerada extinta em 1998, após mobilizar três gerações de militantes. Liderados inicialmente por Andreas Baader (1943-1977), oriundo do movimento estudantil, Ulrike Meinhoff (1934-1976), jornalista e ativista política, e Gudrun Ensslin (1940-1977), doutora em filosofia, os três foram assassinados nas prisões onde cumpriam suas penas, provavelmente por policiais, apesar de o governo alemão alegar que os prisioneiros cometeram suicídio.

No livro “Legacies of Dachau: The Uses and Abuses of a Concentration Camp, 1933-2001” - que aborda a história e a memória de uma Alemanha pós-genocida, a partir de Dachau, o primeiro campo de morte nazista -, o professor americano Harold Marcuse reproduz o desabafo de Ensslin à imprensa após policiais matarem o estudante Benno Ohnesorge durante uma manifestação estudantil, em junho de 1967, contra a visita do Xá Reza Pahlevi do Irã a Berlim. A ativista, então com 27 anos, foi enfática ao se referir aos policiais: “Eles vão nos matar a todos. Vocês agora sabem o tipo de porcos contra os quais nós estamos lutando. Esta é a geração de Auschwitz. Você não pode dialogar com as pessoas que criaram Auschwitz. Eles têm armas e nós não. Nós precisamos nos armar!”

Para o jornalista alemão Stefan Aust, que foi editor do semanário Der Síegel (de 1994 a 2008) e que acompanhou a formação da RAF e conviveu com alguns de seus líderes, essa é a primeira geração nascida desde a guerra que começa a fazer perguntas e questionar os pais acerca dos acontecimentos no regime hitlerista. Eles criticavam aquilo que lhes parecia ser a relutância da sociedade alemã em confrontar-se com seu passado nazista. 

Autor do best-seller “Der Baader Meinhof Komplex”, de 1985, que virou filme em 2008 e dividiu o público alemão, pois muitos viram uma espécie de glamourização dos terroristas, Aust escreve sobre a geração de 1968: “A Segunda Guerra Mundial tinha terminado apenas há 20 anos. Os que chefiavam a polícia, as escolas, o governo, eram as mesmas pessoas que estavam no comando durante o nazismo. O chanceler Kurt Georg Kiesinger era um ex-nazista. Por causa do passado nazista, tudo de ruim era comparado ao Terceiro Reich. Se você ouvia falar de brutalidade policial, diziam que era igual à SS. No momento em que você vê seu próprio país como a continuação de um estado fascista, você se dá a permissão de fazer quase qualquer coisa contra ele. Você vê as suas ações como a resistência que seus pais não tiveram.”


De fato, uma pesquisa popular feita nos primeiros anos das atividades da RAF apontou que um quarto dos alemães com menos de 40 anos tinha simpatia por seus integrantes e que um décimo dessas pessoas esconderia seus membros se fosse necessário.


Vida clandestina

Petra Krause nasceu em Berlim, em 19 de fevereiro de 1939, e com poucos meses de vida foi levada para o campo de extermínio de Auschwitz com sua família, onde seus pais morreram nas câmaras de gás. Seus primeiros três anos são passados neste campo de horrores e por puro acaso consegue sobreviver e é adotada por uma família cristã. Chega à Itália pela primeira vez em 1957, ainda adolescente, e filia-se ao Partido Comunista. Dezoito anos depois, em março de 1975, já como cidadã italiana divorciada de um médico de Milão e mãe do jovem Marco, é detida na Suíça sob a acusação de contrabando de armas e de participação em atentados terroristas contra a embaixada espanhola em Berna e um banco em Zurique.

Escrevendo sobre os grupos de esquerda na Europa que adotaram a violência em suas ações, a jornalista Claire Sterling reserva um capítulo para relatar as atividades clandestinas de Krause em seu livro “A rede do terror - a guerra secreta do terrorismo internacional" (1981). Conta que no início ela emprestava seu passaporte para fugitivas dos regimes de Franco e de Salazar ou as abrigava em seu apartamento em Milão. Depois passou a ser enviada a países da África, como a Argélia e as colônias portuguesas de Angola e Moçambique. Na Itália trabalhava como intérprete e tradutora para a editora de Giangiacomo Feltrinelli, um milionário admirador de Fidel Castro e filiado ao partido comunista que apoiou e financiou os movimentos armados. Após a morte de Feltrinelli, em 1972, Krause “mergulha na clandestinidade total, adota novo nome, adquire um passaporte falso, arranja um insignificante emprego de escritório em Milão e viaja bastante percorrendo os circuitos terroristas europeus”, afirma Sterling.

Em outubro de 1974, Krause atravessa a fronteira e se instala em Zurique. Policiais italianos se lançam a sua procura depois de encontrarem o carro de sua propriedade no local do incêndio que destruiu uma fábrica da multinacional ITT de componentes eletrônicos, causando prejuízos de 10 milhões de dólares. Na época, segundo Sterling, Krause já gerenciava a distribuição de armamentos para vários grupos extremistas sob o nome de “Anna Maria Grenzi”.

Procurada pela CIA
  
De acordo com o relatório da CIA (Central Intelligence Agency) de 1978, o grupo de Petra Krause também chamado de “o grupo de Annababi” funcionava na Suíça em parceria com a organização anarquista AKO (Anarchistische Kampf-organization), fundada por jovens suíços em 1970 e que cultuavam o mito revolucionário do argentino Che Guevara, braço direito de Fidel Castro executado na Bolívia em 1967.  Eles foram responsáveis por roubar toneladas de armamentos e explosivos dos arsenais das forças armadas suíças para suprir grupos extremistas como o Baader-Meinhof da Alemanha, as Brigadas Vermelhas da Itália, os irlandeses do IRA, o ETA dos bascos espanhóis e o Diretório Europeu dos palestinos em Paris, liderado pelo venezuelano Ilich Ramirez Sanchez, conhecido como “Carlos, o Chacal” (atualmente com 66 anos, cumprindo pena de prisão perpétua na França).

A chegada de Krause à Suiça, assinala Sterling, impulsionou o abastecimento de armas e explosivos roubados, o fornecimento de identidades e passaportes falsificados, o tráfego de esconderijos para militantes perseguidos e a mobilização para a formulação de sucessivas ações violentas na Itália e na Alemanha. Anos mais tarde, em declarações a jornais, Krause justificou a sua opção pela militância armada: “Comecei como marxista-lenilista ortodoxa e passei da completa não-violência ao ponto em que compreendi que a não-violência é um luxo burguês” (Newsweek, em 18.07.1978). Em outra entrevista, desta vez para o Le Nouvel Illustré, de Genebra, Krause revelou que sabia que a polícia andava em seus calcanhares. “Comecei a ver a necessidade de ter outros instrumentos para combater o estado burguês e minhas reservas quanto à violência caíram por terra.”

Prisão na Suiça

Em março de 1975 Krause é detida pela polícia suíça em uma movimentada praça de Zurique. Usando pseudônimo e passaporte falso, ela está acompanhada de Elizabeth Van Dyck, da liderança do grupo Baader-Meinhof, que viria a ser fuzilada por policiais na Alemanha, quatro anos depois, aos 28 anos, em um esconderijo da organização.


 Antes de ser presa, Krause vinha sendo vigiada pelo serviço de segurança suíça. Meses antes, ela teria atravessado a fronteira alemã e entregue pessoalmente fuzis automáticos, minas e granadas para Van Dick e Siegfried Haag, um advogado simpatizante da RAF que depois se tornou líder e militante nas ações armadas do grupo. Esse armamento foi encontrado nas ruínas da embaixada alemã em Estocolmo, semanas depois da explosão do prédio que fora invadido por um comando da RAF, em abril de 1975, com o intuito de trocar os diplomatas feitos reféns na embaixada por Baader, Ensslin e Meinhoff que estavam presos. 

Em 1979, Haag é condenado a 14 anos de reclusão pela preparação do atentado na Suécia, recrutamento de pessoal e aquisição de armamentos. Na sentença do tribunal de Zurique, Petra Krause é citada como a pessoa que forneceu as armas a Haag em Waldshut, na Alemanha Ocidental, em 31 de janeiro de 1975 (Haag, de 70 anos, teve sua pena suspensa em 1987 devido ao seu estado de saúde).

Presa na Suiça, Krause fica por mais de dois anos encarcerada aguardando julgamento, sendo que em total isolamento no primeiro ano. Pesam sobre ela acusações de envolvimento em atentados terroristas, roubo de equipamento militar e contrabando de armas. Passa por quatro presídios, sofre uma tentativa de estupro por parte de um carcereiro, faz três greves de fome, perde 14 quilos e grande parte dos cabelos.

Debilitada, com nódulos linfáticos em todo o corpo e sentindo muitas dores, Krause é deportada à Itália para tratamento de saúde, após 28 meses de confinamento. Contribuem para o desfecho a mobilização da mídia e a pressão exercida por um comitê de deputadas que vai a Suíça e constata as péssimas condições de saúde da prisioneira. Um apelo pela libertação de Krause ganha às páginas do jornal La Repubblica, em julho de 1977. Quem assina é o dramaturgo Dario Fo (Prêmio Nobel de Literatura de 1997) e sua mulher, a atriz Franca Rame (falecida em maio de 2013) que também pede a interferência do então presidente italiano Giovanni Leone a favor de Krause.

Retorno à Itália

Já de volta à Itália, onde responde a um processo pelo incêndio de uma fábrica em Milão e a ocultação de um carro roubado, Krause é levada para uma prisão em Nápoles. Mas em razão de seu estado de saúde ela paga fiança e obtém a liberdade provisória. Nas ruas de Nápoles, jovens da extrema-esquerda comemoram a sua saída do presídio e em passeata proclamam a inocência da acusada (EL Pais, em 26.08.1977).

Franca Rame, que além de atriz era ativista feminista, estava no aeroporto de Fuimicino na chegada de Krause. Ela conta que o ostensivo aparato policial inclusive com cães para escoltar a prisioneira foi vista como uma manobra teatral para reafirmar a periculosidade da prisioneira. Um prólogo grotesco, segundo ela, considerando que o genocida alemão Herbert Keppler, responsável pelo envio de mais de onze mil judeus italianos para as câmaras de gás de Auschwitz e condenado a prisão perpétua na Itália, horas depois driblava a vigilância policial escapando de um hospital militar em Roma, onde se encontrava para tratamento de um câncer, rumo à Alemanha que negou devolvê-lo às autoridades italianas (ele morreu poucos meses depois, aos 70 anos ).

Reportando a sua detenção na Suiça, Krause lembra que ela e a amiga estavam em Bellevueplatz, a estação de bondes de Zurique, quando foram cercadas e brutalmente separadas por vários homens que a imobilizaram e arrancaram a sua bolsa. “Se isso acontecesse na Itália e eu estivesse armada teria atirado como louca. Teria a certeza de que se tratava de uma agressão fascista”, disse.


Tempos depois, na petição que faz contra a Suiça por sua prisão, Krause invoca um artigo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, instituída em 1953, que estabelece que ninguém pode ser qualificado pelas autoridades como culpado de um crime sem que esta culpa tenha sido previamente comprovada por um tribunal. Isso porque por ocasião de sua detenção, o ministro da Justiça suíço foi a TV dizer que Krause era autora de crimes que envolviam a utilização de explosivos. Tal declaração violava o entendimento jurídico de que só o processo penal pode conduzir à constatação formal da culpa e de que a revelação pública de uma suspeita por parte dos serviços do Estado pode ter conseqüências negativas para a posição jurídica da pessoa, influenciar juízes e promover condenações antecipadas.

Sentenças

Em novembro de 1978, Krause é absolvida na Itália por falta de provas. Tem ao seu lado grande parte da imprensa italiana que faz longas reportagens relatando as torturas físicas e mentais sofridas pela prisioneira, incriminada por “um suposto roubo de munições de um arsenal do exército suíço e vítima de acusações por supostos atos subversivos que nunca foram provados” (Il Manifesto, diário comunista que encerrou suas atividades em 2012 e Lotta Continua, diário da ultra-esquerda extinto em 1982).

O conhecido cartunista italiano Giorgio Di Vita, um jovem de 22 anos à época, recorda que a imprensa destacava o histórico de Krause como uma menina judia sobrevivente de um campo de concentração nazista e de seu compromisso político de não-violência que a levou a manter contato com os principais movimentos antifascistas da Europa, principalmente com os grupos de esquerda da Alemanha. Também era conhecido seu compromisso de solidariedade com os espanhóis exilados, gregos, argelinos e todos os perseguidos dos regimes ditatoriais, inclusive aqueles que militavam contra as ditaduras da América do Sul.

Opinião que contrasta com a de Sterling que em seu livro enfatiza a ligação de Krause com o terrorismo: “Conhecida por seu bando como ‘Annababi’, Petra Krause foi descrita pela polícia suíça como a ‘terrorista do século’ ao ser apanhada (...) Não era assassina como o resto. Tudo o que fazia era cuidar do negócio.”

Em 9 de março de 1981, o tribunal de Zurique condena Krause a três anos e seis meses de prisão, e em 2 de maio de 1982 a Corte de Apelação de Milão também a sentencia a 6 anos de reclusão.  Muitos dos seus companheiros estão presos ou mortos. Ainda assim, quase duas décadas depois, a jornalista Maria Antonietta Calabró, do influente jornal Corriere della Sera publica artigo afirmando que Krause estaria por trás da reorganização de grupos armados a nível internacional (19.05.2000). Segundo a jornalista, com a captura de “Carlos, o Chacal” no Sudão, em agosto de 1994, Krause estaria desempenhando um papel mais atuante no submundo do terrorismo e ativando a sua teia de relações, já que algumas antigas lideranças estariam em liberdade, ainda que sob vigilância.

 Assassinatos


O artigo que cita Krause e sua suposta associação com grupos de extrema esquerda vem à tona em razão do assassinato, em 1999, de Massimo d’Antona, crime reivindicado pelas Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse) - organização  terrorista de extrema-esquerda responsável pelo sequestro e assassinato do político democrata-cristão Aldo Moro, em 1978. Para a surpresa dos italianos que julgavam o grupo extinto. Conselheiro do Ministro do Trabalho, d’Atona fez parte do grupo que adequou a legislação trabalhista do país às diretrizes da União Europeia, um dos motivos da execução assinalados na mensagem das Brigadas.

Dois anos depois, outro conselheiro do Ministro do Trabalho é morto pelas Brigadas. Desta vez é o professor Marco Biagi, coautor de uma polêmica reforma trabalhista que desagradou os maiores sindicatos italianos. Pela internet, as Brigadas assumem o assassinato do economista tachando-o de “um dos promotores da regulamentação da exploração do trabalho”. Peritos em balística constatam que nos dois assassinatos foi usada a mesma arma de calibre 9mm.

Relatório publicado em 2001 pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado italiano sobre terrorismo no país contempla com duas dezenas de páginas “La controversa figura di Petra Krause”. Entre seus contatos é citado o libanês Michel Moukarbal, definido como “o superior direto de Carlos na resistência palestina ativa na Europa” (Moukarbal foi morto por Carlos, em 1975, por suspeita de traição). Sterling afirma que o grupo suíço de Krause forneceu armas para Moukarbal suprir os grupos separatistas ETA, dos bascos espanhóis, e o IRA dos irlandeses.

Uma atuação superdimensionada de acordo com o jornalista e professor da Universidade de Leipzig, Michael Haller. Articulista do jornal alemão Der Spiegel por um longo período, Haller contesta as afirmações de Sterling acerca do poder de Krause.“O que é certo é que Petra Krause participou de duas ações amadoras, uma em Zurique e outra em Berna, que não tiveram sucesso.” E continua: “Krause chegou a Milão no final dos anos 1960 junto com outros ultraesquerdistas que manifestavam solidariedade a espanhóis antifascistas e negros africanos.”

Para Heller é questionável atribuir a Krause uma posição de liderança no terrorismo da esquerda europeia, ao lado do editor italiano Giangiacomo Feltrinelli, simpatizante da esquerda e morto em um ataque a bomba (1972), e o egípcio de origem judaica Henri Curiel, assassinado em 1979 e que presidiu em Paris a organização “Solidariedade” para acolher os fugitivos e militantes da esquerda perseguidos principalmente pelas ditaduras da América do Sul. “É ridículo montar um best-seller com alegações e especulações infundadas, baseadas em preconceitos vigentes”, critica Heller acerca do livro de Sterling (“Das internationale Terror- Netz”, em 22.02.1982).


Porém, para a autora de “A rede do terror”, a década do medo (1970) ampliou o conceito do general alemão Von Clausewitz (1780-1831) de que a guerra é a continuação da política por outros meios. A jornalista destaca o patrocínio da Líbia do ditador Muammar Khadafi (1942-2011) nesse contexto profissional de terror, e o classifica de “o papai rico do terrorismo”, por manter, em 1976, um fundo especial de 580 milhões de dólares para treino e ações terroristas em solo europeu.


Enfim, militante antifascista para a intelectualidade italiana e terrorista fichada pelas agências de inteligência, Petra Krause foi um produto da juventude europeia pós-Holocausto, comprometida com a violência ideológica e o terror, mas que aparentemente sempre contou com a simpatia da mídia. Um fenômeno que de alguma forma encontra paralelo nos dias atuais, nas dissimuladas elegias midiáticas  ao pseudo terrorismo heroico de grupos fundamentalistas. É a brutal rede de terror que ressurge e avança pelo século 21, mais uma vez favorecida e amparada pela superficialidade, mitos e estereótipos que parcializam e partidarizam grande parte da imprensa global.

Atualizado em setembro de 2015



sábado, 30 de novembro de 2013

O projeto baiano de Reuven Feuerstein

“Educar é apostar no outro” (Feuerstein)

 por Sheila Sacks

Há quase 15 anos, um senhor de longa barba branca, sorriso bondoso e olhos meigos aterrissou em Salvador, na Bahia. O ano era de 1999 e ele, apesar da roupa escura e pesada, parecia bem à vontade naquele paraíso tropical. O professor e psicólogo Reuven Feuerstein, então beirando os 80 anos, vinha do outro lado do mundo, do pequeno estado de Israel, para assinar um contrato com o governador do estado e a Fundação Luis Eduardo Magalhães na área da educação pública. Pelos próximos 10 anos, até 2009, o seu método de melhoria de aprendizado conhecido como PEI – Programa de Enriquecimento Instrumental, seria aplicado nas escolas de ensino médio baianas. Na ocasião, Feuerstein declarou textualmente: “É a primeira vez quer um governo entende que a inteligência é um direito, e assume o dever de proporcionar condições para desenvolvê-la.”

O método, que visa aumentar o potencial de aprendizado dos alunos, foi criado há quase 50 anos em Israel por Feuerstein para aumentar o desempenho cognitivo de crianças e jovens sobreviventes dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Atualmente vem sendo utilizado em mais de 40 países, sempre sob a supervisão do ICELP de Jerusalém (Internacional Center for the Enhancement of Learning Potencial), fundado pelo professor Feuerstein – ele mesmo um sobrevivente do Holocausto.

O programa em larga escala desenvolvido na Bahia durante 10 anos é sempre citado por Feuerstein como um dos mais importantes para a divulgação de sua teoria. Em 2004, na Holanda, por ocasião do 25º Seminário Internacional do ICELP, a experiência baiana ganhou efusivos elogios do mestre israelense: “O Brasil merece os parabéns não apenas como campeões do futebol, mas também por ser um exemplo pelos cuidados com o desenvolvimento, progresso e adaptabilidade a grandes massas de populações carentes de ajuda (...). Por isto e por muito mais gostaríamos de expressar a nossa gratidão às autoridades educacionais na Bahia e no Brasil, em geral.”

Um método que nasceu com os órfãos de guerra

Reuven Feuerstein, de 92 anos, iniciou os seus estudos de Pedagogia e Psicologia na Romênia e emigrou para Israel em 1944, com 23 anos. Ainda em Bucareste, entre 1940 e 1944, foi professor de crianças com distúrbios e deficiências de aprendizado. Fez parte da Resistência contra os nazistas e teve que fugir para se salvar. Em Israel, entre 1945 a 1948, atendeu os órfãos sobreviventes dos campos de concentração, muitos deles classificados, nos testes de QI, como mentalmente retardados.

Concluiu seus estudos em Psicologia geral e Clínica na Universidade de Genebra (1954) e obteve o Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento na Universidade de Sorbonne, em Paris (1970). Estudou com grandes mestres, como Carl Jaspers, Carl Jung, L. Szondy, Andrey Rey e Jean Piaget. Entre 1950 e 1954 foi diretor do Serviço de Psicologia do Programa Youth Aliyah, na Europa, que trouxe milhares de crianças e adolescentes judeus de Marrocos, Tunísia, Argélia e Egito para uma vida integrada em Israel. Durante muitos anos foi diretor do Instituto de Pesquisas Hadassah-Wizo-Canadá, em Jerusalém - para crianças com distúrbios emocionais e mentais – incorporado, em 1993, ao ICELP.

Sua teoria parte do princípio de que o cérebro é modificável, e por isso é possível elevar o nível de inteligência em crianças e jovens marcados por grandes privações e traumas. De forma geral, o programa é formado por 14 exercícios semelhantes a testes psicotécnicos. O aluno explica como fez para resolver os exercícios, discute as conclusões e as relaciona com sua vida. Desenvolve a capacidade analítica, o raciocínio lógico e a autoestima, além de trabalhar a ansiedade e a impulsividade.

Feuerstein também ensinou Psicologia Educacional na Universidade Bar-Ilan, em Ramat Gan e foi professor adjunto da Vanderbilt University’s Peabody College of Education, nos Estados Unidos. Filho de rabino e pai do rabino Rafi Feuerstein – também psicólogo e vice-diretor do ICELP - o professor Reuven tem um neto de 24 anos com Síndrome de Down.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O Enigma das Cidades

por Sheila Sacks

“Não existe política social sem um movimento social capaz de impô-la” (Pierre Bourdieu, sociólogo francês/1930-2002).

Publicado no "Observatório da Imprensa"

Morro do Vidigal
Em recente visita ao Brasil, o arquiteto Alejandro Echeverri, responsável pelo processo de transformação urbana da cidade de Medellín (a segunda mais importante e populosa da Colômbia, depois da capital Bogotá), defendeu a prática de uma arquitetura de alta qualidade como ferramenta de política social de inclusão dos mais pobres ao ambiente econômico e cultural das cidades. Em entrevista ao Estado de São Paulo, o arquiteto que foi secretário de Desenvolvimento Urbano de Medellín, uma cidade até a década de 1990 mundialmente associada à violência e aos cartéis de drogas, revelou que um dos modelos que o inspirou foi o programa Favela-Bairro da prefeitura do Rio de Janeiro, desenvolvido pelas diversas administrações municipais entre 1994 e 2008.

Alçado à posição de guru por conta do PAC das favelas (Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal voltado à urbanização das favelas) que repercutiu a experiência de urbanismo social introduzida em Medellín entre 2004 e 2008 como parâmetro para os projetos de melhorias de infraestrutura e moradias nas favelas cariocas, Echeverri chama a atenção para a importância das intervenções públicas urbanas ganharem o apoio das comunidades a serem atingidas pelas mudanças. Por outro lado, ele também reconhece a dificuldade de se chegar a um consenso comunitário quando o assunto envolve deslocamentos de moradores para atender a questões estratégicas de transporte e obras em espaços públicos (‘Nas cidades, decisões têm de ser acordadas’, em 24.09.2013).

Um dia antes, em outra entrevista, desta vez para O Globo, o arquiteto colombiano já tinha enfatizado o foco no design arquitetônico argumentando que a “estética” tem se mostrado uma importante aliada na mudança de comportamento e no aumento da autoestima das populações residentes em aglomerados mais pobres nas periferias das cidades. No caso de Medellín, à parte os programas de construção de novas moradias, foram erguidos centros de convivência e negócios, várias bibliotecas-parque (espaços culturais multimídias), museu de ciência, galeria de arte, aquário, dezenas de escolas, teleférico, escada rolante etc, valorizando áreas antes esquecidas pelo poder público. Isso fez com que essas comunidades se integrassem à cidade formal, atraindo o turismo e iniciando um processo de renovação econômica e social. Em março deste ano, a cidade ganhou o título de a mais inovadora do mundo em uma votação pela internet promovida pelo Wall Street Journal e a organização “Urban Land Institute” (ULI), superando as finalistas Nova Iorque e Tel Aviv.

Urbanização encarece moradias e serviços

Escada rolante em favela de Medellín
O urbanismo social aplicado em favelas e zonas pobres periféricas têm tido a simpatia da mídia que regularmente abre generosos espaços para saudar essas intervenções da engenharia e arquitetura estatais voltadas para a melhoria da infraestrutura e das moradias, ocupando os espaços públicos com construções e equipamentos ligados à educação, cultura, saúde, mobilidade e segurança. Mas a inserção dessas populações às áreas formais das cidades está longe de transitar no generoso âmbito das benemerências isentas de qualquer compromisso. O preço da formalidade vai funcionar como uma espécie de imposto embutido que se incorpora ao projeto de urbanização traduzido por uma série de serviços a serem pagos mensalmente (água, esgoto, energia elétrica, coleta de lixo etc), muito deles já existentes de forma precária e na maioria das vezes de forma clandestina. Aí incluída a oferta de TV a cabo conhecida como “gatonet”.

Também em relação aos terrenos ocupados onde antes se erguiam barracos e que hoje são casas de alvenaria ou novos conjuntos habitacionais, a tendência é implantar uma taxa similar ao IPTU (imposto predial e territorial urbano) cobrada aos moradores formais da cidade, resultante da regularização fundiária dos terrenos promovida pelo estado com o apoio de bancos de fomento e instituições federais. A legalização dos imóveis têm se tornado um polo de atração para os estrangeiros que chegam ao Rio de Janeiro e optam por comprar ou alugar casas nas favelas – em especial àquelas localizadas na zona sul da cidade com vista para o mar – por seu baixo custo em relação as demais situadas nos bairros adjacentes. Moradores locais têm reclamado do aumento dos preços dos imóveis e muitos não estão conseguindo pagar os aluguéis sendo obrigados a se deslocarem para favelas distantes, longe de seus postos de trabalho (“Invasão estrangeira na favela”, O Globo a mais, em 24.11.2012).

Teleférico no Morro do Alemão
Um contexto desfavorável que promete ao longo do tempo redefinir o atual perfil do morador das favelas, muitos vivendo em áreas de risco nas partes mais altas dos morros. Reportagem veiculada pelo Portal Terra mostra que “a especulação imobiliária e as remoções agora obrigam (ou seduzem) moradores que haviam criado raízes no morro a procurar um novo lugar para viver.” O motivo da saída é a incapacidade das famílias de arcarem com os novos custos dos serviços introduzidos a partir da urbanização (água e esgoto, coleta de lixo, energia elétrica, TV a cabo). Segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas, o preço do aluguel nessas favelas teria aumentado 6,8% a mais do que em bairros como Copacabana, cujos imóveis tiveram valorização de 45% nos últimos dois anos de acordo com o Sindicato de Habitação-Secovi Rio (“Casa em morro do Rio chega a custar R$ 700 mil”, em 13.07.2013).

O marketing da inclusão social

Contudo, o inevitável e nem sempre suportável acréscimo nas despesas familiares dessas comunidades de baixa renda por conta das diretrizes ideológicas dos governos nas suas políticas de planejamento urbano não tem merecido atenção dos meios de comunicação. Ao contrário das dificuldades reais que permeiam o cotidiano dessas pessoas, a mídia embarcou na via marqueteira de explorar o hipotético potencial de negócios que se abrem nessas localidades face às anunciadas obras de infraestrutura e o reforço no policiamento.  Como num passe de mágica, as favelas cercadas pela informalidade, pobreza e tráfico de drogas transformaram-se em novos eldorados de consumo habitadas por uma classe C emergente ávida em viajar para o exterior, comprar roupas de grife e eletrônicos, frequentar shoppings semanalmente e com suas contas pagas em dinheiro cash (“Poder de consumo dos moradores de favela no país chega a R$ 56 bi por ano – valor é equivalente ao Produto Interno Bruto da Bolívia” – IstoÉ online, em 20.02.2013).

Biblioteca parque em Manguinhos
Imagem que ganha reforço com a pesquisa divulgada pela ONG Central Única das Favelas (Cufa) que constatou a presença de TVs de plasma em quase metade das casas das favelas brasileiras, com o destaque de que em 28% delas seus moradores usufruem de TV por assinatura (“Favelado Chique” – Coluna de Ancelmo Gois, O Globo em 13.10.2013). Logo, pelo foco da mídia, as favelas brasileiras - onde majoritariamente faltam do saneamento básico à iluminação pública, além de moradias seguras, já que grande parte reside em áreas de risco – são aglomerados urbanos que concentram populações (estimadas em 12 milhões, de acordo com a reportagem da IstoÉ ) que possuem  bons empregos e ganham salários razoáveis constituindo-se, portanto, cidadãos aptos para assumir as suas responsabilidades formais com o estado e seus parceiros econômicos nos setores de serviços, transportes, construção civil, indústria e comércio. A inserção mercadológica aí confundida com a inclusão social que se imagina muito mais abrangente porque inclui bens imateriais como a educação e cultura.

Analfabeto funcional e baixos salários

Em recente simpósio realizado no Rio de Janeiro, a pesquisadora Rosana Fontes do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (lets) revelou que um em cada cinco microempreendedores das favelas pacificadas do Rio é analfabeto funcional, ou seja, não concluiu a quarta série do ensino fundamental. A renda mensal dessas pessoas é de R$ 709, a metade obtida em outras regiões da cidade. Da mesma forma, a renda média geral dos trabalhadores residentes nessas favelas é de R$1.137, inferior à da região metropolitana que é de R$1.916 (“O desafio de empreender nas áreas pacificadas”, O Globo em 18.10.2013).

Passarela na Rocinha
Estudiosos do fenômeno das favelas lembram ainda que as atividades comerciais nessas localidades (bares, pequenas mercearias, cabeleireiros, lojas de roupas) têm nos promotores de bailes funk – uma cultura nascida na favela - um estímulo importante para o incremento de seus negócios. Porém, com a proibição por um período de tais eventos nas favelas, devido a sua identificação com o tráfico de drogas, diminuiu bastante a circulação de dinheiro nessas áreas além de afetar a autoestima dos moradores e calar a sua mais importante forma de expressão cultural (“Extinção dos bailes funk deixou 9 mil sem trabalho”, O Dia em 18.08.2013).

Outro fato que marca as favelas é a ausência de CEP e as ruas sem nomenclaturas oficiais. O sociólogo Demétrio Magnoli considera a situação discriminatória, já a partir da substituição da palavra favela por comunidade, um termo adotado por muitos e incorporado ao abecedário da mídia. Para ele a palavra comunidade, “tanto na Biologia quanto na Sociologia não designa um espaço geográfico, mas uma coletividade distinta e singular”, o que justificaria a sua percepção de que a favela permanece apartada da cidade legal (“Ruas sem nome”, em O Globo de 10.10.2013).

1 bilhão morando em assentamentos informais

Uma condição que os urbanistas na sua função de operadores da política estatal acreditam que podem mudar através do design e de suas pranchetas. A defesa do papel social dos designers é sustentada pela americana Cynthia Smith, curadora de um museu em Nova York (Smithsonian Cooper-Hewitt, National Design Museum) dedicado ao design que privilegia os projetos de baixo custo que atendam às populações carentes. Com base em dados que mostram que uma em cada sete pessoas do planeta (quase 1 bilhão) vive em densos assentamentos informais em razão da maciça migração urbana, e que em 20 anos esse número deve dobrar, a designer propõe um comprometimento desses profissionais com o desenvolvimento urbano focado nos mais pobres. Mas, sem impor visões externas e sim “dando suporte para que inovem e ampliem a criação de soluções próprias e adequadas à sua cultura.” (“O design social cria soluções para a pobreza”, O Globo em 23.10.2013).

Complexo esportivo na Rocinha
No Brasil, o fenômeno da migração urbana também criou bolsões urbanos de pobreza e marginalização. O arquiteto Sérgio Magalhães, que esteve na linha de frente do programa “Favela-Bairro” na década de 1990, nota que em 70 anos os moradores das cidades pularam de 12 milhões para 170 milhões e que hoje 85% dos brasileiros vivem em cidades. Porém a cifra mais preocupante se refere ao número de moradias. Os 2 milhões de domicílios urbanos passaram a 50 milhões, multiplicando 25 vezes nesse período sem que esse crescimento fosse acompanhado de políticas públicas específicas para a absorção desse contingente populacional. Com isso expressiva parcela desses migrantes se instalou de forma irregular em loteamentos sem infraestrutura ou em favelas (“Minha casa no país do carro zero”, O Globo em 27.04.2013).

Consciente desse histórico e talvez premido pelas atuais manifestações de rua que desafiam políticos e atingem a integridade física de prédios públicos e privados, coletivos, carros e equipamentos urbanos, o Planalto se apressou em prometer mais recursos para o saneamento básico desses aglomerados informais que ainda apresentam neste quesito condições vergonhosas que os remetem ao contexto da Idade Média (“Dilma libera R$ 13,5 bi para PAC 2 e diz que investimento não tem tom de campanha”, Folha de São Paulo em 24.10.2013).

Inovações urbanas não eliminam a violência

Elevador no Cantagalo
Mas, semelhante ao exemplo de Medellin – que encontrou na mudança urbanística e na asfixia do narcotráfico uma forma de responder aos questionamentos da sociedade formal – o Rio de Janeiro avança nesse caminho para tentar superar suas pendências com a “cidade legal” que diariamente cobra soluções rápidas para problemas que se arrastam por décadas. No caso da cidade boliviana de 2,5 milhões de habitantes, ainda que contemplada com prêmios internacionais que valorizam as inovações urbanas adotadas, ela ainda não se livrou do crime e da violência. Em 2010, as autoridades locais identificaram três centenas de organizações criminosas com mais de 4 mil membros atuando na cidade, muitas delas ligadas ao narcotráfico. Em 2012 houve 1.258 assassinatos, sendo 117 de menores de idade, e 9.9431 deslocamentos intraurbano de famílias ameaçadas por milícias e narcotraficantes. A Defensoria local estima que 19 mil crianças e adolescentes moradores de “comunas” (o correspondente as nossas favelas) correm risco de aliciamento por parte de grupos ilegais armados para traficar drogas e transportar armas. (“En Medellin hay más de 300 bandas criminales identificadas”, minuto30.com em 16.07.2010; e “En Medellin, grave crisis humanitária”, El Mundo.com em 25.03.2013).

A extorsão a pequenos comerciantes estabelecidos nas comunas de Medellin é outra prática denunciada pela “Defensoria del Pueblo” ao governo da Colômbia. Pelo menos 25 mil deles são extorquidos mensalmente por grupos criminosos que também estabeleceram uma espécie de “fronteiras invisíveis” que impedem crianças e jovens de transitarem por diferentes zonas ocasionando um aumento na deserção escolar nos últimos três anos. Verifica-se, pois, uma flagrante desconexão entre as teorias de planejamento urbano e o cotidiano real que infringe e resiste a essa adequação de políticas públicas. O sociólogo espanhol Manuel Castells, autor da obra “A Questão Urbana” (1972) que discute as contradições urbanas inerentes ao crescimento das cidades, argumenta que "os verdadeiros impulsores da mudança e da inovação das cidades são os movimentos urbanos e não as instituições de planejamento."

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Por outro lado, as melhorias urbanas realizadas tanto nas comunas de Medellin como nas favelas do Rio de Janeiro são inegáveis do ponto de vista de acesso à modernidade na ocupação de espaços e seus derivativos. Entretanto, como bem alertava o líder trabalhista britânico Aneurim Bevan (1897-1960), lá pelos idos de 1945 a 1951 – quando criou o Serviço Nacional de Saúde na Inglaterra e foi Ministro do Trabalho -, “de nada serve replicar que as coisas sempre estão melhor que outrora. As pessoas vivem no presente, não no passado. O descontentamento nasce do contraste entre aquilo que se sabe ser possível e o que efetivamente existe.”

Por fim é importante frisar que as expectativas, contradições e dúvidas que essas novidades urbanas ensejam no cotidiano das favelas ainda não alcançaram a mídia que se sente desembaraçada em repercutir os interesses do ramo imobiliário e de um sistema econômico que transforma os lugares em cenários de consumo (“Favelas do Rio movimentam R$ 13 bilhões durante o ano”, O Dia em 6.11.2012). Tampouco empalideceram o estigma de violência e criminalidade que as acompanham no seu dia a dia e que fornece habitualmente farto material para reportagens, principalmente quando envolvem crianças em bocas de fumo em um paraíso chamado Rio de Janeiro (“War for Paradise: Inside Rio’s Violent Drug Gangs”, ABC News em 15.10.2013).

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

As mil e uma histórias de uma sinagoga na Croácia

Em Dubrovnik, no sul do país, casa de orações resistiu ao terremoto de 1667, a dois conflitos mundiais e à guerra na Croácia nos anos de 1990

 /  por Sheila Sacks  / atualizado em 2021



Em meio a lojas de comestíveis, quinquilharias e souvenirs em uma das muitas ruelas estreitas tomadas por escadarias de pedras desalinhadas que levam as partes mais altas da cidade amuralhada de Dubrovnik, uma porta de carvalho anuncia em letras douradas a existência de uma sinagoga e do “Zidovsky Muzej”, um espaço com peças de seu acervo. Trata-se da mais antiga sinagoga sefardita em atividade no mundo e a segunda mais antiga da Europa (a de Praga é do final do século 13), estabelecida em 1352 e reconhecida formalmente em 1408.

Situado na Zudioska ulica (rua dos judeus), nº 5 - no antigo gueto judaico que se expandiu por conta da chegada dos judeus da Península Ibérica (sefarditas) expulsos da Espanha (em 1492) e posteriormente de Portugal (1496) -, o estreito sobrado de pedra branca abriga na parte superior a silenciosa sinagoga da Idade Média e no térreo uma sala com objetos religiosos. O pequeno museu abriga manuscritos do século 14, pergaminhos da Torá, menorás de prata e um tapete do século 13. Uma senhora de semblante distante cobra 25 kunas (na época, cerca de 12 reais) pelo ingresso e avisa que estão proibidas fotos na visita que transcorre breve e um tanto melancólica.

No interior da sinagoga, remodelada em meados do século 17 em um estilo barroco que contrasta com suas origens medievais, pesados móveis de madeira escura e ornamentos de prata abarrotam o pequeno recinto. Pelas janelas que se abrem para um paredão de pedra que os dedos parecem alcançar ,apenas uma solitária réstia de claridade recorta de luz um canto do comprido banco de madeira que se estende por toda a parede. É difícil imaginar que o lugar possa reunir mais de 30 pessoas com o mínimo de conforto. No entanto, o local agora recebe alguns turistas curiosos, de bermudas e sandálias, que exaustos pelo calor do verão e do ritmo das caminhadas aproveitam para recuperar o fôlego, apreciar as peças antigas,  falar ao celular e até tirar um cochilo naquele ambiente sossegado e recluso.

Cercada por muralhas e banhada pelo mar Adriático, a cidade velha de Dubrovnik – do croata dubrava que significa bosque de carvalhos - fica no extremo sul do país e foi fundada no século 7. Alguns historiadores, porém, contestam essa versão devido a descobertas arqueológicas que mostram vestígios de construções e utensílios da época grega, antes da era comum. A cidadela tem seus imóveis e fontes preservados nos mesmos moldes do século 13, com apenas duas entradas para a esplanada principal e não mais de 4 mil residentes.  Em 1929, em visita à cidade, o dramaturgo nascido na Irlanda George Bernard Shaw (1856-1950), encantou-se com o cenário: “Se querem ver o paraíso na terra, venham a Dubrovnik”, declarou. Nos últimos anos o turismo aumentou e a cada verão 9 milhões de turistas visitam a Croácia (quase o dobro de sua população), grande parte se direcionando para essa estância da ensolarada região da Dalmácia, declarada Patrimônio Mundial da Unesco em 1979 (a moderna Dubrovnik tem 43 mil habitantes).

Gueto é estabelecido em 1546

Os historiadores registram que a sinagoga de Dubrovnik remonta ao início do século 15, mas há registros da presença de um médico judeu contratado pela administração da cidade em 1326 e de comerciantes itinerantes em 1368. Na época, Dubrovnik era conhecida pelo nome italiano de Ragusa (rocha, no antigo idioma romano), constituindo-se em um importante porto comercial que mantinha ligações com as cidades da costa leste da Itália e da bacia do Mar Egeu onde existiam comunidades judaicas. Os judeus eram tolerados como comerciantes transitórios na região que esteve sob o governo da República de Veneza de 1205 a 1358, quando enfim conquistou a sua independência e passou a ser uma cidade-estado (Dubrovnik fica a duas horas de barco de Veneza).

A comunidade judaica local teve um aumento significativo com a chegada dos judeus em fuga da Espanha e de Portugal, no final do século 15, muito deles a caminho da Turquia, mas que acabaram se instalando em Dubrovnik. Anos antes do édito de expulsão (1492), os reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela já haviam instituído em 1478 o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição na Espanha para oficializar a conversão forçada de judeus e mouros. Em Portugal, a ordem de expulsão dos judeus do país se deu em 1496, e foi assinada pelo rei D.Manuel I.

Em 1546, com o crescimento da população judaica – formada inclusive por marranos (judeus convertidos que exerciam o judaísmo secretamente) e cristãos-novos - as autoridades permitem o assentamento dos judeus no extremo noroeste da cidade amuralhada, estabelecendo o gueto na  Zudioska ulica com um pórtico que o separava das demais moradias. Entretanto os judeus que não queriam permanecer confinados e seguiam para fora das muralhas se viam pressionados à conversão pela Igreja Católica.

Tempos difíceis e catástrofe

Nos 450 anos como cidade independente (em 1808 foi conquistada por Napoleão) houve muitos episódios de perseguições, execuções, livros judaicos queimados em praças públicas e principalmente leis restritivas como as que impediam os judeus de adquirirem terrenos ou casas. Mas, muitos se voltaram para o comércio marítimo, investindo em navios e importando lã e especiarias do Oriente. Outros se tornaram exímios artesãos, conceituados médicos e intérpretes, dado o seu conhecimento de línguas. Porém um expressivo contingente de marranos se deslocou para a região vizinha que corresponde a atual Bósnia-Herzegovina predominantemente muçulmana.

Ainda nesse período, em 1667, ocorre um terremoto de graves proporções que atinge Dubrovnik, destruindo grande parte de seus prédios e vitimando 5 mil moradores, dentre eles muitos judeus. A sinagoga atingida pela catástrofe também precisou ser restaurada. Cem anos depois, 218 judeus viviam na cidade que tinha uma população de 6 mil habitantes.

A partir da conquista de Napoleão e nos próximos sete anos em que Dubrovnik esteve sob o governo francês, os judeus alcançam a igualdade jurídica, com a anulação das medidas restritivas impostas pela administração anterior. Porém em 1815, quando a cidade passa a pertencer ao Império Austro-Húngaro, novas sanções são impostas aos judeus de Dubrovnik. Passados 50 anos, as sanções já estão suspensas e os judeus são autorizados a comprar imóveis, a exercerem uma gama variada de profissões e a usufruírem plenos direitos jurídicos. Em 1830 a sinagoga de Dubrovnik conta com 260 filiados.

Judeus croatas morrem em campos de concentração

Antigo gueto judeu
Na 2ª Grande Guerra Dubrovnik cai nas mãos do exército italiano fascista. Em abril de 1941 a Croácia estabelece um estado independente pró-nazista que abrange as regiões onde hoje ficam as repúblicas da Bósnia e parte da Sérvia. Quarenta mil judeus viviam nesse conglomerado, restando nove mil após a guerra (perto de 3 mil foram enviados para o campo de Auschwitz). Os judeus de Dubrovnik, em torno de 87, procuram refúgio nas ilhas do arquipélago Elafiti, no mar Adriático, a uma hora de barco da cidade. Ao final do conflito, 28 deles morrem no Holocausto e a maioria dos que sobrevivem imigra para Israel, Estados Unidos e América do Sul.

Atualmente contam-se cerca de menos de 50 judeus em Dubrovnik e em torno de 1.700 em toda a Croácia, a grande totalidade residindo na capital Zagreb. No início da década de 1940 somavam 25 mil. Com a invasão nazista e a instalação do governo fascista na Croácia, a comunidade judaica existente foi dizimada e dentre os que sobreviveram ao Holocausto – cerca de 5 mil - muitos renunciaram a sua cidadania para se estabelecerem em Israel, a partir de 1948, quando a terra milenar se torna um estado soberano.

Sinagoga é atingida por foguetes

Durante a guerra dos croatas contra os sérvios (1991/1992) pela independência da Croácia da antiga Iugoslávia, Dubrovnik foi cercada e a sinagoga teve suas janelas e telhados destruídos pela ação de foguetes e granadas. O prédio também sofreu abalo em sua estrutura e parte do acervo histórico foi então levado para os Estados Unidos. Em 1998, após decisão judicial, as peças são devolvidas. Uma Torá originária da Península Ibérica e um tapete árabe ofertado pela rainha Isabel da Espanha a seu médico judeu, ambos do século 13, são os objetos considerados mais valiosos. 

Em 2003, o então presidente de Israel Moshe Katsav em visita à Croácia conhece a sinagoga, cuja recuperação só se concluiu em 1997. Desde então, com o incentivo do governo croata, o intercâmbio turístico entre Israel e Dubrovnik foi incrementado com voos semanais fretados nas temporadas de verão. 
A partir de 2011 o turismo israelense à Croacia aumentou, contabilizando 35 mil turistas anuais, e em 2017 esse número chegou a mais de 55 mil visitantes  vindos de Israel. 

Um fato que merece menção no histórico da restauração da sinagoga é o empenho solidário de um casal católico no processo. Em 1996, Otto e Jeanne Reusch após visitarem o templo resolvem se engajar nos esforços de coletar doações para a fundação instituída em 1992, em Washington, com o intuito de reconstruir a sinagoga, a “Rebuild Dubrovnik Foundation”. Em pouco tempo arrecadam 35 mil dólares e um ano depois retornam a Dubrovnik e participam da reinauguração da sinagoga.

Depois da guerra

A Kehilat (congregação) de Dubrovnik foi liderada pelo rabino Baruch Salamon até maio de 1943 quando o religioso foi enviado a um campo de concentração e depois executado. A guarda da casa de orações ficou então com a família Tolentino que diante da ofensiva nazista escondeu entre amigos croatas os objetos religiosos e de cerimonial da sinagoga que depois da guerra foram devolvidos à sinagoga.

Em 1992, novo contratempo: os rolos da Torá, os ornamentos de prata e cobre e outros objetos valiosos da sinagoga são despachados para os EUA por conta da guerra na Croácia. Na época líder da comunidade judaica, Michael Papo considerou mais seguro liberar o acervo sagrado para bem longe do conflito com receio de sua destruição ou de uma possível falta de cuidado, por parte dos judeus de Dubrovnik, na sua preservação. Em 1998, vivendo em Nova York, Papo defendeu a iniciativa afirmando que os casamentos fora da tradição judaica tinham devastado o pouco de religiosidade que havia restado na comunidade, "a tal ponto que o seu sucessor não seria um judeu conforme prescreve a lei judaica - Halachá". .Entretanto, a Suprema Corte do estado de Nova York neste mesmo ano determinou o retorno dos pergaminhos a Dubrovnik, entendendo que até as pequenas comunidades judaicas merecem conservar os seus tesouros religiosos.

Uma questão que divide opiniões, já que muitas organizações judaicas temem o desaparecimento desses objetos ou sua exposição em ambientes profanos face à progressiva marcha de assimilação dessas comunidades. Por outro lado, estudiosos de história e documentação, principalmente os que se dedicam ao registro das comunidades judaicas da Idade Média na Europa central e oriental, argumentam que a transferência dos objetos religiosos para os EUA e Israel contribuem para a total extinção dessas comunidades, afastando-as de seu passado e negando-lhes um possível futuro.

“Sinagoga sem judeus”



A esse respeito, as denominadas “sinagogas sem judeus” podem se inserir, sob uma perspectiva mais ampla, na classificação de “monumentos emblemáticos",  ou seja, aquelas construções que à parte a sua arquitetura física e o ambiente muitas vezes adverso representam momentos determinantes da história humana e dos quais são exemplos notórios os antigos campos de extermínios nazistas como o de Auschwitz. 

O escritor cristão esloveno Boris Pahor, de 107 anos, o mais velho sobrevivente do Holocausto, observa que a preservação desses lugares tem a valia de “dar continuidade à presença dos mortos no mundo dos vivos”. Mas, em seu livro “Necrópole”, o autor, que vive na Itália,  também externa sua preocupação quanto aos sentimentos e as imagens que possam surgir nas mentes dos turistas que seguem o guia em suas explicações. Isso porque Pahor, a partir de uma visita a um dos campos de concentração onde foi prisioneiro dos nazistas, notou a falta de “familiaridade” e talvez até de consciência do grau de degradação e de infâmia a que foram submetidos, sem piedade, milhões de seres humanos.

Uma observação válida aplicável a todos os “monumentos” exaustivamente visitados por legiões de turistas, como no caso da pequena sinagoga de Dubrovnik. Entretanto, mantê-la aberta aos turistas - mesmo sem a presença cotidiana de judeus e dos rituais diários judaicos  - garante a sua sobrevida e areja os seus aposentos. E mais: inspira momentos mágicos de reflexão e um retorno à ancestralidade, numa espécie de conexão suprarreal para além do mundo físico e limitado. Experiências e instantes atemporais percebidos em vários desses “monumentos” judaicos que desafiam as regras das dimensões universais, reinventando uma memória cósmica onde o passado e os mortos se fazem presentes acalentando a nem sempre fácil jornada dos viventes na terra.


Fontes :
Steve Rodan: “Dubrovnik’s question: Does a synagogue need Jews?” (JweeKly.com /1998)
Rivka e Ban-Zion Dorfman: “Synagogues Without Jews” (Philadelphia: Jewish Publication Society/2000)
United States Comission for The Preservation of America’s Heritage Abroad: “Jews Heritage sites in Croatia-Preliminary Report” /2005)
Arthur Wolak: “A visit do Jewish Dubrovnik” (The Jerusalem Post/ 2008)
David Pessoa Carneiro: “Memórias da Guerra” (O Globo/2013)
Community in Croacia -  The World Jewish Congress (2020)