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quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

De engenharia, trabalho e gente

/  Sheila Sacks / 



Poucos lembram, talvez porque a grande mídia não deu atenção ou repercussão ao fato. Pesquisando no Google, apenas algumas páginas específicas reportam o evento. No entanto, há mais de uma década, em dezembro de 2008, o Brasil sediou o maior encontro da engenharia mundial, a WEC 2008 (World Engineers Convention), que pela primeira vez tinha como base o continente americano. Isso por conta principalmente das obras do PAC -  o Programa de Aceleração do Crescimento, instituído em 2007 - que realizou, em um período de cinco anos, mais de 40 mil obras nas áreas da construção civil e infraestrutura em todo o território nacional. Foi o terceiro congresso da entidade, promovido anteriormente na Alemanha e na China. 

À época, a convenção reuniu, em Brasília, mais de 5 mil profissionais da construção civil de 39 países, empresários e autoridades públicas ligados ao setor. Sob o tema “Engenharia: Inovações com Responsabilidade Social”, os debates foram norteados pelas discussões sobre meio ambiente, mudanças climáticas e engenharia sustentável, com ramificações envolvendo a responsabilidade social, a ética, a inclusão e a inovação sem degradação ambiental.

Na Declaração de Brasília, emitida ao final do encontro, os participantes enfatizaram o papel da engenharia como motor da inovação tecnológica e sua vital importância no desenvolvimento humano, social e econômico sustentável. Uma engenharia voltada para o cidadão, no sentido de tornar as cidades mais justas e interativas e menos excludentes. Uma missão a quem cabe, de forma prioritária, à engenharia pública em seus projetos e execução de moradias populares, infraestrutura, urbanização e saneamento, construção e conservação de unidades públicas de ensino, saúde, segurança, cultura e lazer, entre outros exemplos de serviços voltados para o bem estar das sociedades.

 Mundo sustentável

Ocorrendo a cada quatro anos, a última edição da WEC, na Austrália, em 2019, manteve seu foco na sustentabilidade e na responsabilidade social (cidades sustentáveis), incorporando ao tema -  “Projetando um mundo sustentável: os próximos 100 anos” - as preocupações com as mudanças climáticas e os desafios na gestão de tecnologia de energias renováveis, objetivos alinhados com a agenda global da ONU para o desenvolvimento sustentável da década 2020-2030 (17 Goals to Transform Our World).

Segundo esse organismo mundial, até 2030 cerca de 60% da população do planeta (5 bilhões) estará vivendo nas cidades. Nesse quadro que se visualiza, uma das 17 metas a serem atingidas diz respeito ao desenvolvimento de cidades sustentáveis, inclusivas e seguras, com uma infraestrutura adequada em relação a itens fundamentais como coleta de lixo e redes de água, esgoto, energia, transporte etc. Hoje, as cidades ocupam apenas 3% das terras de nosso globo terrestre, porém são responsáveis por 60 a 80% do consumo de energia e 75% das emissões de carbono. São 3,5 bilhões de citadinos, sendo que mais de 820 milhões morando em favelas e locais insalubres. 

Em 2023, a 7ª edição da WEC será na cidade de Praga, na República Tcheca, com o tema "Engenharia para a Vida", uma abordagem sobre os desafios da tecnologia para o desenvolvimento sustentável da civilização.

 Gerenciando obras e expectativas




 Responsável pelo emprego direto de 2,4 milhões de brasileiros, em 2021, a Construção Civil, entendida em sua forma tradicional, costumeiramente atrai abordagens tecnológicas associadas às inovações e ao aperfeiçoamento de itens técnicos tendo em vista a própria natureza científica e matemática do serviço e a formação específica e especializada de seus profissionais. No campo do trabalho aplicado, a prioridade está centrada na escolha dos materiais, equipamentos e maquinário a serem utilizados nas edificações e que devem, virtuosamente, se conjugarem com a qualidade e a funcionalidade desejáveis, adequando-se ainda a uma planilha de custos e prazos previamente calculada. A meta final é a entrega da obra de acordo com o planejamento e a expectativa iniciais, fatores que se preservados até o concluir dos serviços vão garantir o sucesso da empreitada em termos técnicos e contratuais.

Diferentemente ao que ocorre nos projetos endereçados à área privada, focados preferencialmente na responsabilidade técnica do gestor, as obras no setor público incorporam a variante do compromisso socioeconômico da cidadania, um valor já percebido e cobrado pelas comunidades envolvidas. Se em tempos passados o responsável por uma obra de edificação pública tinha como única preocupação cumprir minimamente os requisitos técnicos e burocráticos que acompanham esse tipo de trabalho, alijando-se de qualquer ação participativa que pudesse ser interpretada como um comprometimento sociopolítico, hoje essa visão de gestor público está superada face à percepção de que atender bem o propósito coletivo é atribuição básica de uma empresa que gerencia obras com recursos governamentais.

Novos padrões

Essa mudança de ótica nas instituições públicas tem ocorrido sob a égide dos núcleos governamentais que atuam nas diversas esferas do poder público - federal, estadual e municipal – promovendo as boas práticas de gestão e  introduzindo modelos contemporâneos de administração que insiram conceitos, normas, condutas e valores  voltados à promoção social das populações.  É um novo paradigma de gestão organizacional, pautado no ícone da contínua aprendizagem e aprimoramento, que estimula a incorporação de padrões de cooperação, participação, confiança e de solidariedade.

Especialistas em gestão como Noel Tichy, 75 anos,  professor de comportamento organizacional da Universidade de Michigan (EUA) e autor de mais de 30 livros sobre o tema, considera de profunda importância motivar os funcionários com uma visão empolgante do trabalho que realizam. Exemplo desse modelo é relatado por Brian Dumaine, antigo editor da revista norte-americana “Fortune”, no artigo “Por que nós trabalhamos?”. Jornalista premiado e autor de artigos sobre liderança e investimentos, ele se vale de uma parábola para reafirmar a importância da noção de “missão” no cotidiano das tarefas. Citando três tipos de operários que executam o mesmo tipo de serviço – talhar uma pedra com um martelo e um cinzel – Dumaine conta que o primeiro se sente frustrado e irritado porque considera aviltante o trabalho que faz. O segundo, ao explicar que talha a pedra para um prédio, não parece nem zangado nem satisfeito. Já o terceiro cantarola feliz e, enquanto esculpe a pedra, responde com orgulho que está construindo uma catedral.

 Visão compartilhada

Dessa forma, a tradicional noção de capacitação técnica não seria o valor preponderante a atuar na condução do trabalho em uma empresa. O engenheiro aeroespacial Peter Senge, Ph.D. em administração organizacional pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA) e autor do best-seller “A Quinta Disciplina”, aponta o engajamento do profissional “em relação aos princípios, às diretrizes e ao futuro que a empresa pretende criar e alcançar”, como um fator decisivo na evolução sustentável e competitiva da organização. A essa disciplina apreendida pelo grupo funcional ele chama de “visão compartilhada”, que seria acrescida do raciocínio sistêmico (a quinta disciplina), indispensável na consecução dos objetivos traçados.

Em uma entrevista à revista norte-americana “HSM Management”, no final da década de 1990, Senge questiona alguns mitos corporativos como a excelência de programas de treinamento e a importância da tecnologia de informação. Para ele é preciso pensar no tipo de aprendizado que a tecnologia proporciona, já que uma pessoa pode até receber mais informações graças à tecnologia, mas se não possuir as capacidades necessárias para aproveitá-las, de nada adiantará, visto que a informação não cria aprendizado. ”Esse é um enorme mal-entendido que afeta muitas pessoas. A informação só pode nos ajudar a aprender alguma coisa que já entendemos.” Quanto aos programas de treinamento, Senge considera que poucos profissionais aprendem as coisas que são realmente importantes nesses programas. “O aprendizado ocorre no dia a dia, ao longo do tempo, e sempre acontece quando as pessoas estão às voltas com questões essenciais ou se vêm diante de desafios.“

 Responsabilidade social




Desde os anos 1970, o tema da responsabilidade social das empresas, em relação às comunidades onde estão inseridas, tem sido foco de debates e de uma extensa literatura. Nota-se que a filosofia desse conceito é abrangente, englobando problemas sociais, econômicos e ambientais como pobreza, desemprego, segurança no trabalho, poluição e desmatamento, além de aspectos legais e jurídicos referentes a desapropriações e remoção de moradores, para citar alguns. Porém, o entendimento mais comum do termo é aquele que traduz a responsabilidade empresarial como um comportamento socialmente responsável, do ponto de vista ético, praticado pelas organizações em suas atividades-fim.

Conhecidos teóricos da administração, como o filósofo e economista de origem austríaca Peter Drucker (1909-2005) e o americano Robert M. Grant, consultor e autor do livro “Análise da Estratégia Contemporânea”, traduzido em mais de 12 idiomas, destacam a necessidade de uma gestão de empresas voltada para a evolução da sociedade moderna, já que as empresas são importantes e influentes agentes sociais, e seus gestores são percebidos como lideranças pelas comunidades onde atuam.

Na obra “O Líder do Futuro” os autores Hesselbein, Goldsmith e Beckard enfocam o lado humanístico na condução empresarial. Para eles, o propósito de uma administração organizacional deve ser o de tornar eficazes os pontos fortes das pessoas e irrelevantes as suas fraquezas. O livro datado de 1996 advoga que as posturas serão mais úteis do que as habilidades e que as futuras lideranças vão flexibilizar as hierarquias, construindo um sistema de trabalho mais fluido: “O maior capital das empresas serão as pessoas que as compõem. Conseguir o comprometimento delas e colher o fruto de suas mentes criadoras deverá ser o grande desafio do século 21”.

 Carisma e oportunidades

Esse novo conceito de liderança se afasta do primitivo modelo de liderança carismática, onde não havia espaço para a argumentação ou contestação. Um tipo de comando criticado pelo próprio Drucker, o cultuado guru “inventor da gestão”, que aos 95 anos, em sua última entrevista à imprensa norte-americana (reproduzida pela revista “Exame” em fevereiro de 2006, sob o título “Liderança é Conversa Fiada”) questiona a fixação dos gestores executivos pela formação de líderes: “É um erro afirmar que as escolas de negócios formam líderes. Sua tarefa consiste em formar medíocres competentes para que realizem um trabalho competente Permita-me dizer com toda a sinceridade: não acredito em líderes. Toda essa conversa sobre líderes é uma bobagem muito perigosa. É tudo conversa fiada. Entristece-me constatar que, encerrado o século 20, com líderes como Hitler, Stálin e Mao, as pessoas ainda estejam em busca de quem as comande, apesar de todo esse mau exemplo. Acho que tivemos carisma demais nos últimos 100 anos."

Autor de dezenas de livros sobre práticas de administração de empresas, Drucker sempre acreditou que os bons resultados obtidos em uma gestão não advêm das soluções de problemas e sim de se saber explorar as novas oportunidades que se apresentam. Também alertava para a interpretação confusa dos gestores sobre os termos “eficácia – fazer a coisa certa – e eficiência – fazer certo as coisas”. Segundo o teórico “é difícil achar algo tão inútil quanto fazer com grande eficiência algo que simplesmente não deveria ser feito”. Mas mesmo assim, assinalava Druker, as ferramentas utilizadas - sobretudo conceitos contábeis e dados - estavam todas voltadas à eficiência. “O que precisamos é de um jeito de identificar áreas de eficácia (de possíveis resultados relevantes) e de um método para nos concentrarmos nelas”, recomendava.

 Aprender e desaprender

Em 1930, na obra “O Mal-Estar na Civilização”, o fundador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), já especificava as três grandes forças causadoras da infelicidade no ser humano: o próprio corpo “condenado à decadência e à dissolução”; o mundo exterior “repressivo” e “ameaçador”; e os relacionamentos com os outros, essa última correspondendo a frustração mais difícil de se lidar e adequadamente rotulada de “a fonte social do sofrimento”.  Reconhecendo-se a importância das relações pessoais no contexto das organizações, torna-se um desafio para qualquer gestor desenvolver um clima de harmonia, integração e satisfação em sua comunidade funcional, face à diversidade dos “modelos mentais” inerentes a cada indivíduo.

No livro “A Força dos Modelos Mentais” (2005) os consultores norte-americanos Yoram Wind e Colin Crook explicam que esses processos cerebrais e emocionais - frutos de influências familiares, escolares, culturais e religiosas que se somam às experiências e vivências na fase adulta - moldam todos os aspectos da vida de uma pessoa e muitas vezes, no âmbito profissional, eles não acompanham ou não correspondem à realidade do momento, dificultando e limitando a evolução de uma carreira que poderia ser promissora. Caberia, pois, aos profissionais se reestruturarem, desfazendo-se de antigos referenciais e adaptando-se aos novos conceitos de competência e padrões de comportamento sinalizados pela empresa. “Daí a importância de aprender, desaprender e reaprender para construir nossos conhecimentos sob novos paradigmas”, desafiam Wind e Crook.

 Satisfação e identidade

 Mas, para Freud a insatisfação humana é um fato imutável porque “nascemos com um programa inviável que é atender aos nossos instintos, mas o mundo não o permite”. Ou seja, o homem, faça o que fizer, estará condenado a conviver com a frustração na vida privada e profissional. Logo, gerenciar atividades e serviços da mais alta complexidade e tecnologia empresarial como grandes obras de engenharia também é administrar expectativas pessoais que não devem ser desconsideradas ou minimizadas pelos gestores.

Em uma pesquisa na cidade de Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA), na década de 1950, quando a localidade ainda era um grande pólo siderúrgico e o maior produtor de aço do mundo, o professor e psicólogo Frederick Herzberg, falecido em 2000, realizou entrevistas com 200 engenheiros e contadores de onze indústrias da região para descobrir os fatores que geravam satisfação e insatisfação no ambiente de trabalho. Percebeu que elementos relacionados com o conteúdo do trabalho (motivação), tais como o desenvolvimento do potencial intelectual, a possibilidade de crescimento profissional e a autorrealização, eram fortes indutores para a criação de um clima de satisfação entre os funcionários. Por outro lado constatou que o contexto físico e as condições de trabalho e de remuneração, mesmo apresentando ótimos padrões, não aumentavam o grau de satisfação entre os empregados, apesar de funcionarem como barreiras de contenção contra a insatisfação.

Esse estudo, compilado no livro “A Motivação para o Trabalho” (1959), serviu de base para outras centenas de observações e análises sobre modelos e teorias de administração produzidas ao longo do tempo que têm ajudado a redefinir o conceito de trabalho empresarial nas organizações públicas e privadas. Hoje, as empresas já incorporam às suas atividades econômicas e tecnológicas valores como o capital intelectual, o talento e a inovação, ferramentas insuperáveis na produção de ações que objetivem resultados promissores nos ambientes internos e externos em que atuam.

 Identidade e ação



Com essa opção pela gestão social, que se traduz por um gerenciamento mais participativo e solidário, focado no diálogo, no desenvolvimento das pessoas e no interesse público das comunidades, as empresas vão se aproximando, pouco a pouco e de forma extraordinária, da filosofia política de Hannah Arendt (1906-1975) – uma das mais cultuadas pensadoras do século 20 –, algo impensável há alguns anos. Isso porque para Arendt, autora de “A Condição Humana” (1958), a suposição de que a identidade de uma pessoa transcenda, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir, seria um elemento indispensável da dignidade humana. Juntamente com a assombrosa capacidade de agir do ser humano, da qual, segundo a filósofa, “se pode esperar o inesperado e o infinitamente improvável, independentemente da produção de coisas, porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo”.

 



domingo, 26 de setembro de 2021

O mistério do Círculo de Gigantes

/ Sheila Sacks /


Por ocasião da celebração dos 73 anos da fundação do estado de Israel, em abril último, a editora da plataforma de notícias online ISRAEL21c, Nicky Blackburn, listou 73 curiosidades acerca do país como uma homenagem à diversidade e também à singularidade desse pequeno grande mundo encravado no Oriente Médio.

Dentre os tópicos citados, a jornalista chama a atenção para um monumento pré-histórico descoberto na década de 1960, conhecido  como Gilgal Refaim - círculo de gigantes, na tradução do hebraico, uma referência ao povo que, segundo fontes bíblicas, se distinguia por sua enorme estatura e viveu naquela região (reino de Bashan/Basã - Devarim/Deuteronômio).

Um ano antes, o mesmo site já havia classificado Gilgal Refaim como um dos 10 maiores  mistérios da Terra Santa, e indagava: Quem construiu o Stonehenge israelense?, em alusão ao complexo pré-histórico megalítico do Reino Unido, um dos mais visitados do mundo.  

Situado no norte de Israel, na região de Golã/Golan, a estrutura é formada por gigantescos círculos concêntricos de mais de 42 mil toneladas de pedra basalto, cuja construção, segundo arqueólogos, beira há 5 mil anos. Autor de uma tese de doutorado sobre o local, o arqueólogo Michael Freikman, da Universidade Hebraica de Jerusalém, calcula que a estrutura exigiu milhares de dias de trabalho. “Talvez até um milhão”, arrisca. Segundo ele, a construção pode ter levado cerca de 25 anos para ficar pronta, isso se 100 pessoas estivessem trabalhando. “Um esforço tremendo e terrivelmente caro”, avalia o especialista.

O também arqueólogo Uri Berger, pesquisador de tumbas megalíticas, diz que o local é enigmático, "com fragmentos de informações",  e que cada estudioso tem uma versão sobre a sua edificação e finalidade. E muitos deles, talvez envolvidos com a grandiosidade da estrutura, buscam nas escavações,  documentos antigos e interpretações bíblicas, os vestígios de um legado espiritual secreto. 

A civilização oculta


Várias décadas após o suiço Erich von Däniken surpreender milhões de pessoas com a teoria de que as divindades reverenciadas pela humanidade seriam seres extraterrestres - de uma civilização adiantada que visitou o planeta terra em tempos pré-históricos ('Eram os deuses astronautas', livro publicado em 1968) -, uma outra tese não menos polêmica sobre o tema tem sido defendida por dois pesquisadores ingleses. De acordo com Philip Gardiner, escritor, roterista e diretor de documentários, e seu parceiro Gary Osborn, os deuses não seriam alienígenas, mas humanos e de origem terrena, oriundos de uma civilização misteriosa e avançada que sobreviveu aos dilúvios e outros cataclismos.

Na obra “O Priorado Secreto” (2006), os autores, que já publicaram uma dezena de livros sobre sociedades ocultas e profecias, escrevem: “Talvez seja difícil de acreditar, mas evidências consistentes sugerem que conhecimentos técnicos avançados circulavam entre nós muito antes das datas convencionais atribuídas à pré-história humana e que uma cultura desconhecida havia codificado indícios reconstituíveis desses conhecimentos.” 

Uma das evidências físicas citadas pelos ingleses se refere ao Círculo de pedras de Refaim (círculo dos gigantes) - Gilgal Refaim, em hebraico, e Rujm el-Hiri ( monte de pedras do gato selvagem), em árabe -  que os autores consideram um dos maiores mistérios de Israel. Situado na região das colinas de Golã, a 16 quilômetros a leste do mar da Galileia, o complexo foi erguido sobre uma planície, cujas reais dimensões só podem ser vistas do alto. Uma caverna, no centro da estrutura, talvez funcionasse como câmara mortuária.

O monumento  de pedra, que arqueólogos calculam possa ter sido erguido há mais de 5 mil anos, passou despercebido por séculos e só foi detectado através de uma pesquisa aérea. As imagens foram liberadas por Israel em 1968 após a “guerra dos seis dias” (1967).

Gardiner e Osborn defendem que edificações colossais como as pirâmides do Egito, o complexo monolítico Stonehenge, no sul da Inglaterra, as esculturas gigantes de pedra na Ilha de Páscoa (província do Chile), entre outras, foram erguidas sob a inspiração dessa civilização, originalmente formada por gigantes (a Bíblia também menciona povos gigantes – os nefilim, refaim e enacim - no Gênesis, Números e Josué) que, à parte as suas obras arquitetônicas instigantes deixaram um legado de conhecimento espiritual codificado em mitos, símbolos, lendas e fábulas. Histórias e “contos de fadas” passados oralmente de geração em geração, em grande parte por pessoas simples que não tinham consciência dos segredos contidos nas narrativas.

Conhecimento avançado


Para os pesquisadores, tanto a humanidade atual como as primeiras civilizações tradicionais que conhecemos jamais possuíram uma compreensão plena e acabada desse antigo sistema de conhecimento. As informações foram passadas através do tempo de forma fragmentada, sendo mal interpretadas e mal conceituadas. Gardiner e Osborn afirmam que essa misteriosa “ordem sacerdotal” teria civilizado a humanidade, talvez após uma catástrofe global. “Com o tempo, devido ao seu conhecimento científico, sabedoria espiritual e suposta capacidade extrassensorial, os povos menos desenvolvidos que conviviam pacificamente com esses seres mais avançados começaram a considerá-los deuses”. A base dessa argumentação vem da constatação da presença do mesmo sistema fundamental de crenças nas várias religiões existentes em todos os quadrantes do mundo, embora cada uma delas use denominações próprias, práticas e rituais diferentes.

A fonte desse sistema de crenças estaria nos antigos cultos solares e na experiência da “iluminação”. Segundo os autores, o padrão cíclico da natureza, a experiência renovadora do sol e os seus movimentos estão intrinsecamente vinculados ao efeito iluminador do “despertar” interior, do “renascer” e da experiência da “iluminação”. Eles citam a figura bíblica de Sansão, cujo nome deriva do hebraico shemesh (sol) que é idêntico a shamash, o deus sol dos sumérios. Quando Sansão tem seus cabelos cortados por uma mulher e perde a sua força descomunal, observa-se a simbologia do sol presente na narrativa porque sua cabeleira representa o poder irradiador dos raios de sol.

Outro exemplo mencionado diz respeito ao maior profeta e libertador do povo de Israel, Moshé Rabenu ou Moisés, autor dos cinco primeiros livros (Pentateuco) da Bíblia hebraica (Torá) que contêm os fundamentos legais, morais e éticos do judaísmo. Gardiner e Osborn escrevem que em Êxodo 34, a citação é de que Moisés desceu do Monte Sinai com seu rosto “emitindo raios luminosos”. Os autores ressaltam que o profeta cresceu no palácio do faraó como um príncipe egípcio e provavelmente foi iniciado na tradição, simbologia e astrologia egípcias do culto ao sol, às estrelas e aos padrões cíclicos da natureza. Entretanto, em Devarim (Palavras), também chamado de Deuteronômio, o quinto livro de Moisés, é feita uma advertência para que os hebreus não se envolvam com esses cultos: “Levantando teus olhos ao céu e vendo o sol, a lua, as estrelas e todo o exército do céu, não te deixes seduzir para adorá-los e servi-los! (4:19).

Adiantando-se no tempo, os autores chegam até os essênios. Seita judaica que existiu nos últimos séculos antes da Era Comum, seus integrantes viviam em Qumrã, no deserto da Judeia, perto do Mar Morto. De acordo com os documentos escondidos em cavernas e descobertos a partir de 1947 (Manuscritos do Mar Morto), essa comunidade se autodenominava “Filhos da Luz” e o “governador” era chamado de “coroa”, uma alusão à sua condição de “ser iluminado”. Os pesquisadores acentuam que a superação da morte também tinha no sol a sua inspiração. “Os movimentos do sol produziram lendas sobre o lugar para onde o deus sol vai e por que volta e serviram para encobrir ideias sobre como nós mesmos poderíamos, supostamente, reencarnar ou receber uma nova vida.”

O despertar do “eu interior”


O fenômeno universal do culto ao Sol, segundo os autores, estaria intrinsecamente vinculado - em todas as crenças - ao efeito iluminador do “despertar” interior ou à experiência da “iluminação”. Para o homem primitivo, o sol físico vivificador também representava o “sol interior” que se alcança no instante da “iluminação”. Essa experiência espiritual e mística obtida através da meditação e de jejuns em que o indivíduo transporta a sua consciência humana limitada a alturas transcendentais - onde a mente é revitalizada e inundada com novas informações e conhecimentos - é na verdade o despertar para a verdadeira natureza da realidade. A pessoa adquire uma percepção mais intensa de si mesma e do cosmos, e este seria o verdadeiro significado por trás do culto ao sol.

Para a dupla de ingleses, esse sistema de crenças que abrange as antigas ideias da árvore do mundo (a árvore da Vida, na Cabalá), a reencarnação, o renascimento, o culto do céu - com tudo o que o envolve como o sol, a lua, as estrelas e os astros - , com nomes que de alguma forma significam “brilhar” ou “ser brilhante”, também migrou para a Europa, talvez levado pelas tribos do norte de Israel deportadas pelos assírios, no início do primeiro milênio antes da Era Comum (as chamadas tribos perdidas). Pela tradição, os sacerdotes da Europa celta (formada por diversas etnias que povoaram o oeste do continente a partir do segundo milênio antes da Era Comum) eram chamados druidas (significando “o saber do carvalho”). Eles praticavam a adivinhação, a astrologia e o culto à árvore. Em suas narrativas é creditado a Hu Gadarn Hyscion (filho de Isaac), um hebreu egípcio, a fundação do terceiro templo no círculo de pedras gigantes de Stonehenge.

Mais evidências


No livro “As digitais dos deuses” (Fingerprints of the Gods, publicado em 1995), o jornalista e pesquisador nascido na Escócia, Graham Hancock, igualmente defende a tese da existência de uma civilização adiantada, anterior a pré-história convencional da humanidade. Ele se utiliza de um documento datado de 1513 - o mapa-múndi Piri Reis – desenhado pelo almirante do mesmo nome, em Constantinopla. O mapa mostra a costa ocidental da África, a costa oriental da América do Sul e a costa norte da Antártida, esta última região desconhecida até 1818, 300 anos depois de Piri Reis ter desenhado o mapa.

Outro mistério diz respeito à indicação de ausência de gelo em parte do território antártico conhecido como a Terra da Rainha Maud (área da Antártida oriental reclamada pela Noruega), uma prova geológica que confirma que o mapa se baseou em um documento original de pelo menos 4 mil anos antes da Era Comum quando a costa estava livre de gelo. “Em outras palavras, o verdadeiro enigma desse mapa de 1513 não está tanto no fato de ter incluído um continente que só foi descoberto em 1818, mas em mostrar parte da linha costeira desse mesmo continente em condições de ausência de gelo que terminaram há 6 mil anos e que desde então não se repetiram”, enfatiza Hancock. Ele conta que o almirante deixou uma série de notas escritas no mapa, admitindo que seu papel foi de compilar e copiar desenhos de cartógrafos que retroagiam a épocas anteriores à pré-história.

Ainda acerca do mapa de Piri Reis, o escritor e professor universitário norte-americano graduado em Harvard, Charles Hapgood (1904-1982), especializado em antropologia e história da ciência, argumentava que alguns mapas básicos antigos usados pelo almirante seriam fundamentados em fontes de uma época ainda mais recuada da antiguidade. Empenhado na formulação da teoria do deslocamento da crosta terrestre, considerada por Albert Einstein “fascinante”, Hapgood dizia  que a terra foi extensamente mapeada por uma civilização até então desconhecida e ainda não descoberta, dotada de alto grau de progresso tecnológico, que existiu há mais de 4 mil anos antes da Era Comum.

Catástrofes extinguiram civilizações



Propondo a teoria de que o eixo de rotação da terra mudou pelo menos três vezes nos últimos 100 mil anos, por força de deslocamentos da crosta terrestre provocados pelo degelo das calotas polares, Hapgood considerava que tais rupturas globais podem ter dado origem a cataclismos e provocado a extinção de civilizações desconhecidas e avançadas como a da Antártida, destruída por uma mudança catastrófica. Para validar a tese, estudo das carcaças de mamutes congelados encontrados na Sibéria mostrou que esses animais extintos há 10 mil anos tinham em suas bocas um tipo de capim proveniente de climas quentes, apesar de tais animais terem sido descobertos em terras geladas.  

Seguindo a mesma linha de investigação, pesquisadores da Universidade de Glasgow, no Reino Unido, revelaram a presença de palmeiras no território da atual Antártida, descobertas através de perfurações no gelo que trouxeram à tona o pólen de palmeiras e de outras árvores de climas quentes como os baobás oriundos das estepes africanas. Segundo os estudiosos, há 53 milhões de anos o clima desse continente era semelhante ao sul do Brasil, com invernos em torno de 10ºC e verões com temperatura de 25º C. Desde 1953, o professor Hapgood  já sustentava que grandes regiões da Antártida permaneceram livres do gelo até 4 mil anos antes da Era Comum, lembrando que pelo consenso acadêmico as primeiras civilizações se desenvolveram no crescente fértil do Oriente Médio por volta de 3 mil anos antes da Era Comum.

A partir dessa perspectiva, o autor de “As digitais dos deuses” observa que alguns dos mitos mais impressionantes e duradouros que a humanidade herdou dos tempos antigos dizem respeito a uma pavorosa catástrofe global. " De onde vêm esses mitos?", pergunta Hancock. "Por que, embora procedam de culturas diferentes, seus temas são parecidos? E se são realmente memórias, por que não existem registros históricos das catástrofes históricas que parecem aludir?" 

São indagações que se inserem nas narrativas do dilúvio bíblico e que também são encontradas na tradição de outros povos, como no livro sagrado dos maias (Popol Vuh). “Em todo o mundo são conhecidas mais de 500 lendas que falam do dilúvio" prossegue Hancock, "e em uma pesquisa de 86 delas em continentes diferentes, um pesquisador especializado, Dr. Richard Andree, concluiu que 62 eram inteiramente independentes da versão hebraica.”

Pistas falsas

Já o historiador e arqueólogo francês Robert Charroux (1909-1978) vai mais longe nas suas considerações sobre essas civilizações desconhecidas, afirmando que antepassados superiores construíram naves siderais, viajaram no cosmos e conheceram a energia atômica. Em seu livro “A história desconhecida dos homens desde há cem mil anos” (1963), o autor defende que os poucos sobreviventes dessa humanidade superior “legaram aos seus descendentes uma grandiosa mensagem, advertindo-os porém das consequências das suas próprias descobertas”. Dessa forma, no decorrer dos séculos “centros de contraverdade têm ocultado este conhecimento, mantido embora por sociedades de iniciados”, afirma o francês.

Para Gardiner e Osborn existe uma espécie de “sacerdócio secreto” advindo dessa civilização desconhecida que desenvolveu um método de grande eficácia para chegar ao êxtase espiritual. Herdeiro e guardião do conhecimento da “iluminação interior” e das correntes místicas, esse priorado revela vestígios semelhantes nas grandes religiões e nas várias doutrinas esotéricas. “Platão foi um iniciado nesses mistérios. Ele diz que foi posto numa pirâmide durante três dias, morreu simbolicamente, renasceu e então conheceu os segredos dos mistérios”, escrevem os autores de “O Priorado Secreto”.

O esplendor da Cabalá

É interessante observar que a obra central da corrente mística do judaísmo, a Cabalá (‘tradição’, em hebraico), se denomina Sefer HaZohar ou o “Livro do Esplendor”, uma referência à luz e à iluminação. Atribuído ao rabi Shimón Bar Yochai (Rashbi), que viveu no século 2 da Era Comum, o Zohar também é chamado de “Chochmat ha-Emet” (a sabedoria da verdade). Até ser verbalizado, esse conhecimento advindo da Torá era transmitido oralmente pelos primeiros cabalistas denominados “nistarim” (os ocultos). 

O rabino Chaim David Zukerwar (1956-2009), em seu livro “As 3 dimensões da Cabalá: Essência, Infinito e Alma”, escreve: “A fonte da Luz é a causa e origem de toda a criação. Por essa razão a denominação empregada pela Cabalá para designar a energia de vidas é Or – luz, em hebraico.” Paradoxalmente, os sábios também afirmam que a luz que foi feita no primeiro dia da Criação ( E D’us disse “Que haja luz, e houve luz”) foi “oculta aos justos no mundo vindouro”. A explicação dada pelo Zohar indica que as palavras hebraicas “Or” (luz) e “Raz” (segredo) são numericamente equivalentes, isto é, que estão relacionadas uma com a outra. Isso significaria que a luz original do início dos tempos só retornará em seu esplendor original com a evolução espiritual e o compromisso do homem com o bem, em um tempo porvir.

A bênção do sol


Das muitas tradições judaicas, a bênção do sol praticada ao longo das gerações apresenta uma característica única: o seu ritual somente se dá a cada 28 anos, quando o sol, de acordo com os sábios, retorna à posição exata onde estava no momento de sua criação. Diz o Bereshit: “E fez D’us os dois luzeiros grandes: o luzeiro maior para governar o dia; e o luzeiro menor para governar a noite... E foi noite e foi manhã, dia quarto.” Para celebrar esse mandamento (mitzvá), as pessoas se reúnem ao ar livre e é recitada uma benção especial – Bircat Hachamá (benção do sol) - precedida e seguida de salmos e preces. Sempre ocorrendo em uma manhã de quarta-feira – o dia da semana no qual D’us colocou em órbita o sol, a lua e todos os corpos celestes - o último encontro se deu em 8 de abril de 2009 (ano judaico de 5769), quando mais uma vez foi recitada a prece que lembra os milagres divinos: “Bendito és Tu, Senhor nosso D’us, que reencena as obras da Criação.” (Baruch Ata Adonai, Eloheinu Melech HaOlam Ossê Maassê Bereshit).

Mas, apesar das explicações rabínicas sobre a benção do Sol – que tem o intuito de louvar a Criação Divina -, pesquisadores como Gardiner e Osborn insistem em enxergar vestígios desse ritual ancorados a uma tradição desconhecida anterior a dos hebreus. O arqueólogo e historiador Zecharia Sitchin (1920-2010), estudioso dos idiomas antigos orientais, expõe em seu livro “O código cósmico” (2003), a familiaridade dos antigos hebreus com as constelações do zodíaco, iniciada com Terach, pai de Abrãao (Avraham) em Ur, na Suméria (atual Iraque). Ele faz uma correspondência entre os 12 signos zodiacais com os 12 filhos de Ismael (“Dele nascerão dozes chefes; E sua nação será grande” - Gênesis 17:20), os 12 filhos de Jacob (“E o número dos filhos de Jacob foram doze” – Gênesis 35), e as 12 tribos que povoaram a Terra Prometida, após o Êxodo, uma constância que, em sua opinião, “preserva a  exigência-santidade do Doze celeste”.

Sitchin, que viveu em Israel e nos Estados Unidos, revela que a expressão hebraica “mazal-tov”, pronunciada nas festividades e entendida pela maioria como “boa sorte”, significa literalmente “uma boa e favorável constelação zodiacal”. Segundo o arqueólogo o termo deriva do acadiano (a mãe das línguas semitas), em que manzalu significa “estação” – a estação zodiacal na qual o sol “estacionava” no dia do casamento ou nascimento. Ele também assegura que a monumental e enigmática estrutura de círculos de pedra na planície das colinas de Golã, o Gilgal Refaim, foi um observatório astronômico construído por uma civilização desconhecida, 7 mil anos antes da Era Comum.

Teoria que o arqueólogo israelense Uri Berger afirma ser plausível ao observar que já foi identificado que nos dias mais curtos e mais longos do ano ( solstícios de junho e dezembro) o nascer do sol se alinha com a abertura das rochas basálticas do monumento. 

domingo, 5 de setembro de 2021

“Querido mundo...escolho amar você”

/  Sheila Sacks  /


Em 2015, às vésperas de Rosh Hashaná e Yom Kipur ( o ano novo judaico e o Dia do Perdão) , o rabino Harold Kushner , então com 80 anos, publicou o livro Nine Essential Things I’ve Learned About Life (Nove Coisas Essenciais que Aprendi sobre a Vida, em tradução livre do inglês). Dentre as “ coisas” que o líder religioso destaca,temos  “D’us não é um homem que vive no céu”; “perdoar é um favor que você faz a si mesmo”; “para se sentir melhor consigo mesmo, encontre alguém para ajudar “; “Religião é o que você faz, não o que você acredita”.

Autor do best-seller “Quando Coisas Ruins acontecem às pessoas Boas”, lançado em 1981,  com mais de 4 milhões de exemplares vendidos, Kushner publicou mais de uma dúzia de livros que trazem conforto e alento a milhões de leitores que enfrentam momentos difíceis em suas vidas.

Sua carta ao mundo -  “Querido mundo...escolho amar você”  - incluída ao final das nove coisas que aprendi sobre a vida, foi republicada pela revista canadense  Zommer  e nela o líder religioso nascido no Brooklyn explica que amar o mundo torna mais fácil ter esperança no amanhã.

O tesouro da fé



Então, face à sofrida inquietude humana em um mundo impositivo nas suas prioridades, talvez mereça acrescentar à expressiva lista de Kushner, nesse limiar de 5782 do calendário judaico (setembro de 2021 da Era Comum), mais um pequeno-grande item,  a fé como um tesouro inegociável. Isso porque cabe a fé nos manter de pé frente às circunstâncias ininteligíveis  que nos desafiam e assombram.

Preservar e cuidar desse tesouro ofertado por aqueles que vieram antes de nós e honrar a história e a tradição que o acompanham, já torna a vida mais bela, sábia e generosa.  Vá, por si mesmo,“Lech (vá)  Lechá (para dentro de você)”, disse D’us para Avraham (Abrãao), na idade de 75 anos (Bereshit), Gênesis 12:1-17:27.  E assim foi , de geração a geração, até os dias de hoje.

A carta de Kushner                                                                                                    

Querido mundo


Já passamos por muita coisa juntos nas últimas oito décadas, você e eu - casamentos, nascimentos, mortes, realizações e decepção, guerra e paz, tempos bons e tempos difíceis ... Houve dias em que você se tornou maior.  Houve dias em que você parecia tão dolorosamente belo que mal pude acreditar que você era meu, e dias em que você partiu meu coração e me levou às lágrimas.

Mas com tudo isso, escolho amar você. Eu te amo, quer você mereça ou não (e como se mede isso?). Amo você em parte porque você é o único mundo que tenho. Eu te amo porque gosto de quem sou melhor quando faço. Mas principalmente, eu te amo porque te amar torna mais fácil para mim ser grato por hoje e ter esperança no amanhã. O amor faz isso.

Fielmente seu,
Harold Kushner

Relembrando: Pessoas boas versus coisas ruins



Existem livros que transcendem o tempo. Talvez porque falem de temas universais presentes em nosso cotidiano. Foi o que fez o rabino norte-americano Harold Kushner ao escrever, na década de 1980, a obra “Quando Coisas Ruins acontecem às pessoas Boas”.

Traumatizado com a morte do filho de 14 anos que sofria de uma doença genética incurável, Kushner repassou para o papel toda a sua experiência de dor e sofrimento, e também a sua inabalável fé no Criador. Como rabino de uma pequena congregação, em Massachusetts (EUA), ele pôde observar que as pessoas atingidas por uma tragédia geralmente mostravam-se revoltadas e terrivelmente abaladas em sua crença religiosa.

Citando a figura bíblica de Jô, homem íntegro que vê os filhos morrerem, os negócios falirem e a doença atacar o seu corpo, Kushner dá o seguinte recado: mesmo nas adversidades, não ceda à tentação de abandonar a fé em Deus. Entretanto, essa tragédia pessoal faz o rabino repensar tudo o que ensinava sobre Deus e os caminhos de Deus.

A visão do tapete



No livro acompanhamos os inúmeros casos verídicos de adultos bons, decentes e fiéis em suas crenças, e de crianças alegres e inocentes, os quais, em um momento de suas vidas, são atingidos por um infortúnio ou mesmo pela tragédia.

Kushner observa que muitas dessas pessoas e as que estão ao seu redor têm a ideia de que possíveis tropeços e desmandos possam ser as causas de suas desgraças. Isso é, que Deus dá a cada um o que cada um merece. Uma culpa que geralmente se mistura à revolta e a inevitável questão: “Que razões poderia ter Deus para fazer o que fez, já que não sou pior do que o meu vizinho?”.

O rabino lembra que no livro “O Oitavo Dia” (1967), o escritor norte-americano Thornton Wilder (1897-1975) dá uma visão interessante dos desígnios de Deus. A história descreve um homem bom cuja vida é arruinada pela má sorte e hostilidade. Ele e sua família sofrem, embora sejam inocentes. E não existe final feliz. O que Wilder apresenta, destaca Kushner, se assemelha à imagem de um lindo tapete. Olhando do lado direito, é um trabalho de arte, muito bem tecido, reunindo fios de diferentes tamanhos e cores para formar um desenho inspirado. Mas, virando o tapete pelo avesso, percebe-se uma confusão de fios, uns curtos outros compridos, alguns cortados, outros amarrados.

Logo, seria dessa forma que veríamos o mundo, do nosso ponto de vista, ou seja, olhando o tapete de baixo, enxergando o seu avesso. E dessa maneira, os padrões de recompensa e punição poderiam parecer arbitrários e sem lógica porque não temos a capacidade de compreensão e o entendimento divino. Kushner assinala em seu livro que nem sempre há uma razão para os males que nos afligem: “Será que somos capazes de aceitar a ideia que há fatos que surgem sem qualquer razão, de que no universo existem circunstâncias fortuitas?”.

Muita gente não se conforma com o conceito de casualidade e procura nexo e sentido em tudo que lhes ocorrem. Outras enxergam a mão de Deus atrás de tudo o que acontece. Mas suponhamos, escreve o rabino, que Deus não tenha terminado toda a sua obra no sexto dia, de acordo com a metáfora bíblica da Criação, e o processo de colocar ordem no caos ainda esteja em andamento.

Pela vida



Sobreviventes do Holocausto também são bons exemplos quando se aborda os desígnios de Deus. No livro “Por Aqueles que eu amo”, Martin Gray, que sobreviveu ao Gueto de Varsóvia e ao Holocausto, conta que depois da guerra se casou e constituiu uma família feliz. Entretanto, um incêndio em sua casa no sul da França matou a esposa e seus filhos. Ainda que arrasado com a tragédia, Gray preferiu não ir atrás de possíveis culpados e aplicar os seus recursos em um movimento para proteger as florestas de incêndios. A vida, explicou o sobrevivente, tem que ser vivida por alguma coisa, não contra alguma coisa.

Kushner também cita o trecho de um livro escrito por um sobrevivente de Auschwitz ( A Fé e a Dúvida dos Sobreviventes do Holocausto, de Brenner) sobre a vontade de Deus e a matança de milhares de inocentes nos campos de concentração nazista. Afirma o sobrevivente: “Nunca me ocorreu questionar o que Deus fez ou deixou de fazer, enquanto eu fui um habitante de Auschwitz... Eu não fiquei menos ou mais religioso com o que os nazistas nos faziam... Nunca me ocorreu associar a calamidade que estávamos experimentando a Deus, censurá-Lo, deixar de crer, porque Ele não vinha em nosso socorro. Devemos a Deus nossas vidas, pelos poucos ou muitos anos que vivemos, e temos a obrigação de cultuá-Lo e fazer o que Ele nos ordena. Para isso estamos na terra – a serviço de Deus, para cumprir a Sua vontade.”

No mais, o rabino Harold Kushner, nascido em 1935, escreveu vários livros de sucesso (Quando Tudo não é o Bastante; Quando as Crianças perguntam sobre Deus) e foi considerado pela organização católica norte-americana “The Christophers” uma das 50 pessoas que na última metade do século 20 tornaram o mundo melhor.

Atualmente, com 86 anos, ele diz perceber que as pessoas olham para trás e julgam que deixaram de fazer muitas coisas. “A diferença entre uma pessoa que tem uma velhice feliz e uma pessoa que tem uma velhice infeliz não é o quão  bem-sucedidas elas foram, mas o quanto as coisas em que falharam continuam a perturbá-las.”  E dá um conselho: ”Se você não for capaz de silenciar aquela vozinha de decepção, você nunca será feliz."  

  

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Direitos Humanos: Israel vota contra a China no Conselho da ONU

  / Sheila Sacks  / 



Apesar do forte comércio bilateral entre os dois países, que em 2020 cresceu 20% e atingiu 17,5 bilhões de dólares, Israel seguiu os Estados Unidos em seu voto no Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC, na sigla em inglês), em junho último, que condenou a China por abusos contra muçulmanos que vivem na Região Autônoma Uigur de Xinjiang, no noroeste do país.

A região, anexada pela China em 1949,  abriga os uigures, de origem turcomana, maior grupo étnico local que professa o islamismo. De acordo com o Departamento de Estado dos EUA, acredita-se que até dois milhões de uigures e outras minorias muçulmanas foram colocados em uma ampla rede de centros de detenção em toda a região. Ex-prisioneiros relatam que foram sujeitos à doutrinação, tortura e até esterilização.

Recentemente, em 9 de julho, milhares de uigures exilados se reuniram em várias capitais para protestar contra a manutenção desses campos, as prisões arbitrárias, a repressão e perseguições violentas, a internação em massa e o desaparecimento de cidadãos civis.  Eles também lembraram o conflito ocorrido há doze anos, em Xinjiang, que resultou em centenas de mortos e feridos.

Em Londres, além de clamar por justiça e pela ajuda das nações ocidentais, a manifestação foi liderada por Rahima Mahmut, diretora do Congresso Mundial Uigur, e Sheldon Storne,  conselheiro da mesma organização que luta pelos direitos humanos e  pela liberdade religiosa em Xinjiang ( ou Turquestão Oriental para os uigures).

Storne é um médico judeu britânico de 65 anos que dirige a campanha STOPUYGHURGENOCIDE, em Londres. A mobilização também está ativa nos Estados Unidos e por ocasião da semana de Pessach ( a Páscoa judaica), em  30 de março, a organização Jewish World Watch (JWW) promoveu um Seder ( cerimônia religiosa) em prol do povo uigur. A JWW tem como foco denunciar e advogar contra o genocídio e atrocidades em massa nas áreas de conflito da China, Sudão, Congo, Síria e Birmânia.

Crime de genocídio



Relatório  independente divulgado em março pela ONG Newlines Institute for Strategy and Policy, sediada em Washington, também  faz graves acusações à China e afirma que “ o governo chinês tem a responsabilidade de estado por um genocídio em curso contra os uigures em violação à Convenção da ONU para a Prevenção e a Repressão do Crime do Genocídio “.  

De acordo com a plataforma digital da rede de notícias americana CNN (9/3/2021), o documento contou com a participação de uma equipe de 50 especialistas em direitos humanos que analisou milhares de depoimentos de testemunhas oculares de exilados uigures e documentos oficiais do governo chinês.

A assessora jurídica do Raoul Wallenberg Center for Human Rights, Yonah Diamond, que também contribuiu com o relatório, alerta para o real entendimento sobre o que é genocídio. Ela explica que não é preciso ter provas de assassinato em massa ou extermínio físico de um povo, sendo suficiente ter evidências claras e convincentes de que há uma intenção deliberada de destruir um grupo tal como ele é. A ONG, sediada em Montreal,  leva o nome do diplomata sueco que salvou do genocídio nazista cerca de 100 mil judeus na Hungria.

Instituída pela Assembleia Geral da ONU, em 9 de dezembro de 1948, a convenção destaca em seu artigo 2,  como crime de genocídio,  a intenção deliberada, por parte do Estado,  de eliminar grupos étnicos, religiosos, nacionais ou raciais. Por sua vez, a China nega as acusações de violação de direitos humanos e afirma “que os centros são necessários para prevenir o extremismo religioso e o terrorismo”. Intitulados por Pequim de “centros de treinamento vocacional”, esses campos são descritos pelo governo como locais de reeducação, visando a  desradicalização em massa e com ensino obrigatório de mandarim.

Desde 2014, mais de 1.400 centros foram instalados em Xinjiang, onde segundo relatos de ex-presos uigures os detidos são submetidos à tortura psicológica, lavagem cerebral e cultural, agressões sexuais, privação de comida por longos períodos e confinamento solitário.  Em documentos oficiais pesquisados, o relatório aponta que os uigures e outras minorias muçulmanas são chamados de “ervas daninhas” e “tumores”.

Essa política estatal se consolidou a partir de um ataque extremista praticado por separatistas uigures, em 2014. Naquela ocasião, o presidente chinês Xi Jinping visitou a região e, segundo documentos revelados pelo jornal New York Times, determinou às autoridades locais que combatessem o radicalismo “sem misericórdia”. A região faz fronteira com o Paquistão e o Afeganistão e autoridades chinesas alegam que os uigures têm ligações com a Al-Qaeda.  

A reportagem da CNN informa ainda que “no penúltimo dia na presidência dos Estados Unidos, em 19 de janeiro, o governo de Donald Trump declarou que o governo chinês estava cometendo genocídio em Xinjiang. Um mês depois, os parlamentos da Holanda e do Canadá aprovaram moções apontando o crime, apesar da oposição de seus líderes”.

Relatos brutais



Majoritariamente muçulmanos, os uigures chegam a 11 milhões em Xinjiang, região vizinha ao Cazaquistão, berço das etnias cazaques. A rede britânica de notícias BBC News ouviu o relato de mulheres uigures que foram presas e passaram meses detidas nos chamados campos de “reeducação”.

Já no início da reportagem, um aviso incomum aos leitores: Alerta: você pode considerar perturbadores alguns dos detalhes desta reportagem.”  Isso porque são narradas histórias brutais de estupros, choques elétricos, ingestão  acentuada de remédios, tortura, confissões forçadas e esterilização massiva.  As ex-detentas,  que atualmente residem em outros países, também revelam que tiveram seus cabelos cortados e eram obrigadas a cantar canções patrióticas e assistir programas  doutrinários da TV estatal (‘Uigures em campos de reeducação na China relatam estupros sistemáticos’, em 5/2/2021).

Uma das presas, Tursunay Ziawudun, ficou nove meses detida e depois de libertada fugiu para os Estados Unidos. Ela conta que devidos aos abusos sexuais muitas mulheres se tornam alcoólatras e têm problemas mentais. "Dizem que as pessoas são libertadas, mas na minha opinião todos os que deixam os campos estão acabados”, afirma. Devido à sucessão de estupros, Ziawudun teve que retirar o útero.

Outros tipos de violência contra os uigures também têm sido denunciados por estudiosos e ativistas na mídia ocidental. O sociólogo italiano Massimo Introvigne, autor de um livro sobre as perseguições religiosas na China (‘Il libro nero della persecuzione religiosa in Cina’), de 2019, denuncia que cópias do Alcorão têm sido confiscadas e queimadas pela polícia em Xinjiang. Para fugir da ação dos agentes policiais, livros de rezas são enterrados  ou mesmo colocados nos rios pela vítimas, embrulhados em plástico, na tentativa de evitar que sejam profanados 

Fundador do Centro de Estudos sobre Novas Religiões (CESNUR, na sigla em inglês), Introvigne lembra que em dezembro do ano passado (2020) entrou em vigor um novo regulamento que limita com rigor a peregrinação anual dos muçulmanos à Meca, com o estabelecimento de cotas e a avaliação investigativa dos proponentes à peregrinação. O documento editado pela “Administração Estatal de Assuntos Religiosos “ impõe um controle mais rígido às viagens. Peregrinações “não oficiais”, sem o aval do governo chinês, são consideradas atitudes criminosas e severamente punidas.

Investimentos em Israel



A plataforma de notícias japonesa Nikkei Asia, especializada em assuntos sobre o continente asiático, chama a atenção para o fato de que os EUA e a China serem os maiores parceiros comerciais de Israel e que ambos são vitais para a prosperidade do país.

Em uma análise publicada no início de julho, a mídia destaca que “os EUA são insubstituíveis para Israel em termos de ajuda militar, compartilhamento de inteligência e inovação.  Por outros lado, “as empresas chinesas estão envolvidas em vários projetos importantes de infraestrutura em Israel, e a China apresenta um mercado em crescimento e uma fonte de investimento para empresas israelenses de tecnologia.”

No início deste ano, o Grupo Portuário Internacional de Xangai (Shanghai International Port Group) começou a administrar o novo porto de Haifa por um período de 25 anos. A concessão a uma empresa chinesa de um dos principais portos do país tem preocupado as autoridades americanas, principalmente porque é no porto de Haifa onde está localizada a base naval militar mais importante de Israel e onde também são feitos exercícios e simulações navais em parceria com os Estados Unidos. Pelo acordo entre Israel e China, serão investidos 2 bilhões de dólares em infraestrutura e modernização do porto.

 À parte os negócios, o Nikkei Asia enfoca igualmente a posição da China durante o conflito armado entre Israel e o Hamas, em maio, destacando que Pequim mostrou  “um invulgar apoio ao grupo islâmico que controla Gaza, condenando duramente as ações de Israel, redigindo declarações ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e criticando repetidamente o apoio dos EUA a Israel”.

Para o analista do Instituto de Estratégia e Segurança de Jerusalém, (JISS, na sigla em inglês)  Tuvia Gering, neste caso especial, “a China não só levou o Conselho de Segurança da ONU  a realizar três reuniões contra Israel, mas deu rédea solta à mídia afiliada, diplomatas e membros do Partido Comunista para atacar Israel com comentários antissemitas e antissionistas”.

Em entrevista ao Jewish News Syndicate (JNS), site israelense de notícias, Gering não poupou críticas ao país. “A China tem falhado constantemente em ter empatia por Israel,  em reconhecer suas preocupações com a segurança e com o fato de que  Israel é um país ameaçado por organizações terroristas cínicas e assassinas, armadas pelo Irã.”

No final do ano passado, o embaixador israelense nos Estados Unidos e na ONU, Gilad Erdan, já tinha enviado um aviso à China sobre esse posicionamento agressivo e  solicitado ao seu homólogo chinês para que parasse de apoiar resoluções contra Israel, caso contrário haveria retaliações.

Acordo China-Irã

Em outra manobra estratégica para ampliar a sua influência no Oriente Médio, a China anunciou, em março último, um acordo bilateral de 25 anos com o Irã  envolvendo cerca de 400 bilhões de dólares de investimentos, não só em energia, transporte e agricultura, mas também em inteligência, assuntos militares e treinamento.

Especialista em relações China-Oriente Médio e  pesquisador do centro de assuntos políticos  e estratégicos Begin-Sadat Center for Strategic Studies, ligado à Universidade Bar-Ilan,  Roie Yellinek avalia que a política externa chinesa é bem "versátil" em suas abordagens nas áreas política e comercial. “A China sabe como travar uma luta com os EUA e conduzir em paralelo um comércio no valor de centenas de bilhões de dólares. Sabe como combater os uigures muçulmanos em seu território e salvaguardar laços estreitos com os países muçulmanos”, afirma.

Yellinek aponta que embora a China se oponha ao programa de armas iraniano, não está ajudando a impedir o Irã de desenvolvê-lo. Por sua vez, o Irã usa o poderio e a cooperação chinesa para neutralizar a pressão dos Estados Unidos. De acordo com o estudioso israelense, “os chineses entendem que o governo Biden não é o governo Trump e que podem ser mais agressivos”.

Já para o ex-chefe da Divisão estratégica do IDF (Israel Defense Forces), general Assaf Orion, o acordo de cooperação militar-tecnológico e de inteligência entre a China e o Irã está em oposição aos objetivos de Israel. “Pequim é um importante parceiro econômico de Israel, mas está cooperando com uma potência regional que é a principal e mais grave ameaça externa ao estado e à população israelense”, alerta o militar.