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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O médico e o livro: lembrando Moacyr Scliar



por Sheila Sacks

“Às vezes, o meu lado médico estranha o meu lado escritor...” (Moacyr Scliar)

Um dos mais importantes escritores brasileiros de origem judaica, Moacyr Scliar faleceu no ano passado, em 27 de fevereiro, para tristeza de milhares de leitores que o admiravam. Paralelamente aos seus escritos, Scliar manteve-se fiel a sua profissão de médico, atuando na área da saúde pública como médico sanitarista e exercendo o magistério como professor universitário na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.

Em 2007, repercutindo as pesquisas do Ibope realizadas em anos anteriores que indicavam o alto grau de credibilidade da classe médica entre os brasileiros, entrevistei o escritor e médico gaúcho, então com 70 anos e irradiando vitalidade. Ele não se mostrou surpreso com o resultado que apontava um índice de confiabilidade de 81% para a categoria dos médicos, à frente de instituições como as Forças Armadas, a Igreja Católica, jornais e TV (em 2011, esse índice ficou em 76%). Para o escritor, um componente influente nessa avaliação estaria relacionado com a própria imagem da profissão médica que arrola qualidades altruístas admiradas e reconhecidas pela população, como a dedicação e o sacrifício pessoal.

Livros sobre Oswaldo Cruz e Noel Nutels

Autor de mais de 70 obras, várias delas premiadas no Brasil e no exterior, Moacyr Scliar (1937-2011) iniciou-se na literatura em 1962, com o livro “Histórias de um Médico em Formação”. Em 2005 lançou “O Olhar Médico: crônicas de medicina e saúde”, que também enfocava a área médica, reunindo 55 crônicas publicadas no jornal gaúcho Zero Hora. Com obras traduzidas em 12 idiomas e eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 2003, o “imortal” Scliar também escreveu sobre as vidas dos médicos sanitaristas Oswaldo Cruz (Sonhos Tropicais) e Noel Nutels (A Majestade do Xingu), este último um indigenista judeu que realizou trabalho pioneiro com os índios da Amazônia, nas décadas de 1940 e 1950.

Filho de imigrantes russos, Scliar formou-se pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (fez curso de pós-graduação em Medicina em Israel, em 1970) e atuou como professor visitante na Brown University (Rhode Island) e na Universidade do Texas (Austin), nos Estados Unidos. Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública (Rio de Janeiro), sua tese de doutorado, apresentada em 1999 sob o título “Da Bíblia à Psicanálise: saúde, doença e medicina na cultura judaica”, obteve nota máxima, com louvor. Em um trecho do trabalho, Scliar destaca que entre 1899, data da introdução do Prêmio Nobel de Medicina, até 1989, foram laureados trinta e nove médicos judeus.

Em Porto Alegre, sua idade natal, Scliar coordenou o Programa de Educação em Saúde na Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, trabalhou na Fundação Nacional de Saúde e foi consultor do Ministério da Saúde. Também chefiou o Departamento de Saúde Coletiva da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre.

Entre os 100 melhores livros

Em 2007 publicou “O Texto ou a Vida”, uma coletânea de crônicas, contos, trechos de romances, ensaios e comentários do autor sobre o processo criativo de cada um deles. Vale lembrar que a sua obra "O Centauro no Jardim", publicada em 1980, foi selecionada entre os 100 melhores livros de temática judaica dos últimos 200 anos de acordo com o National Ydish Book Center, dos Estados Unidos. Scliar assim resumiu o tema do livro: “É a história de uma criatura com dupla identidade, assim como os filhos de imigrantes judeus. O ambiente familiar e da escola israelita é diferente do ambiente universitário e do trabalho. Ter várias identidades não é problema nenhum, ao menos que a pessoa tenha alguma dificuldade emocional para lidar com essas identidades. O meu personagem, o centauro, tinha. E é por isso que deu um romance”. Figura da mitologia grega, o centauro é um ser metade homem, metade cavalo.

Abaixo, Moacyr Scliar responde as nossas perguntas:

Qual é a sua leitura sobre o resultado da pesquisa do Ibope, em 2005, que apontou a categoria dos médicos como a instituição de maior credibilidade do país?
MS- Um resultado mais ou menos esperado. Em outras pesquisas os médicos também estavam nos primeiros lugares. Isto corresponde à imagem da profissão, que envolve desprendimento, dedicação e até sacrifício pessoal, mas corresponde também à experiência pessoal de cada um. Não há ninguém que não seja grato a, pelo menos, um médico.

Muitos médicos são também filósofos, escritores, artistas, políticos e até presidentes da República como foi Juscelino Kubitschek. A que o senhor atribui essa dualidade presente na carreira de tantos médicos?
MS- Ao lado humanista da profissão. Ser médico é interessar-se pela condição humana, em geral na doença, mas também na vida cotidiana. Este interesse, junto com a disposição especial que a pessoa eventualmente tenha, acaba se estendendo a outras áreas.

Na sua tese de doutorado o senhor relata a enorme quantidade de médicos judeus na Espanha e Portugal, à época da Inquisição. A fuga desses profissionais para o Brasil permite afirmar que os primeiros médicos do país foram judeus?
MS- Certamente. Muitos historiadores médicos em nosso país apontam para este fato. Depois da Inquisição, outros períodos de perseguições provocaram a fuga de médicos judeus para o Brasil.

O trabalho desses doutores de alguma forma contribuiu para a evolução da medicina brasileira?
MS- De novo, a resposta é afirmativa. Para ficarmos num único exemplo, podemos citar o Hospital Albert Einstein (São Paulo), que é um verdadeiro centro de referência.

A percentagem de médicos judeus no Brasil e no mundo é extraordinariamente alta em comparação com a proporção de judeus na população em geral. A religião ou a tradição judaica é um fator de peso nesta escolha?
MS- Sim. Saúde e doença são mencionadas abundantemente no Tanach e no Talmud. Na Antiguidade, o médico era basicamente alguém que dava conselhos, e isto de novo está dentro da tradição do Judaísmo, que sempre respeitou a figura do "chacham", do sábio. Mas havia também um motivo prático e penoso. A medicina é uma profissão "portátil", resulta de um conhecimento que está na cabeça do médico e em sua habilidade. Para um grupo humano que não raro era expulso de países, isto era uma coisa importante, tanto mais que a medicina dava status. Não foram poucos os judeus que trabalharam como médicos de reis, de sultões e de nobres. Maimônides, que atendia o sultão Saladino, é um exemplo.

Nota: Tanach (os 24 livros que compõem o chamado Antigo Testamento); Talmud (Leis judaicas e Comentários); Maimônides (médico e filósofo nascido na Espanha, no século XII).

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Dia do Holocausto à moda da casa

por Sheila Sacks

"A segunda coisa melhor do que saber aproveitar uma oportunidade é saber deixá-la passar." (Benjamim Disareli, político inglês)
Publicado no site Observatório da Imprensa
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed681_dia_do_holocausto_a_moda_da_casa


Instituído pela ONU em 2005, o Dia Internacional do Holocausto tem sido celebrado anualmente na maioria dos países que contam com comunidades judaicas. A data escolhida, 27 de janeiro, lembra o dia da libertação do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, em 1945, pelas tropas soviéticas, na Segunda Guerra Mundial (em Israel, a cerimônia ocorre em data diversa e de acordo com o calendário hebraico. Em 2012 será em 19 de abril). No Brasil, a homenagem às vítimas do genocídio nazista – que culminou com o extermínio de um terço da população judaica à época (6 milhões, sendo 1,5 milhão de crianças) e de milhares de negros, ciganos, maçons, homossexuais, deficientes físicos, comunistas, socialistas, dissidentes políticos e outros grupos minoritários considerados inferiores e descartáveis pela Alemanha de Hitler – tem sido prestigiada por governadores, ministros e principalmente pelo gabinete da Presidência da República, nas figuras do ex-presidente Lula e da presidente Dilma Rousseff.

Em 2012, o evento mudou de data e endereço, deslocando-se de São Paulo e Porto Alegre para a Bahia em razão da agenda da presidente Dilma, que visitava o estado no dia 30 de janeiro para dar início às obras do Complexo de Camaçari, incluídas no PAC 2 (Programa de Aceleração do Crescimento). Horas depois, a presidente viajaria com o governador da Bahia, Jacques Wagner, para Cuba e Haiti. No dia anterior, um domingo (29/1), foi então realizada a cerimônia no Fórum Ruy Barbosa, em Salvador, que ganhou uma inabitual visibilidade na mídia nacional (geralmente discreta em relação a esse tipo de evento), em razão do teor do discurso da presidente e da própria presença do governador petista, de ascendência judaica.

Estado palestino é lembrado

Fadada a ser mais uma cerimônia de recordação, entre tantas que se celebram em várias partes do mundo, a homenagem atraiu o interesse da mídia por um detalhe fora do contexto que funcionou como uma senha mágica tão a gosto dos repórteres de plantão. Ainda na noite de domingo, a fala presidencial já repercutia na maioria dos noticiosos da internet, e na manhã de segunda-feira os jornais destacavam, nos títulos, o pronunciamento que, lamentavelmente, atropelou as mais comezinhas normas de delicadeza que todo convidado deve ter com seu anfitrião.

Utilizando-se da oportunidade oferecida pela cerimônia aberta ao público e diante da comunidade judaica presente que patrocinava o evento, a presidente Dilma, de posse do discurso preparado por sua assessoria, reafirmou a posição brasileira de defesa de um estado palestino que, curiosamente, desejou que fosse “democrático e não segregador”. Sabendo-se que o Itamaraty advoga, desde dezembro de 2010, o reconhecimento de um estado palestino com fronteiras de antes da Guerra dos Seis Dias (1967), postura ratificada pela presidente brasileira na abertura dos trabalhos da ONU, em setembro de 2011, lamenta-se que seus assessores tenham inserido esse item no texto da homenagem, de forma superficial e atemporal, visto que as negociações de paz acerca dos chamados territórios ocupados é um dos mais sensíveis temas enfrentados pelo governo de Israel, em sua política externa e interna (até o conflito, a população israelense estava subjugada a graves fatores de vulnerabilidade e insegurança).

Recados presidenciais

Mas, se o palanque não foi o mais adequado, a tática para atrair manchetes se revelou positiva. Vejamos os títulos das matérias publicadas nos dias 29 e 30 de janeiro: “Na Bahia, Dilma defende estado palestino” (O Estado de S.Paulo); “Na Bahia, Dilma defende criação do estado palestino” (O Globo); “Em evento sobre Holocausto, Dilma defende estado palestino (Jornal do Brasil e Terra Notícias); “Na Bahia, Dilma volta a defender criação do estado palestino” (UOL notícias). Também a agência espanhola de notícias, EFE, distribuiu a matéria sobre o evento de forma semelhante: ”Holocausto commemoración: Rousseff destaca la necesidad de un Estado palestino para la paz em Oriente Medio”. “Al acto vários representantes de la comunidad judia en Brasil y representantes diplomáticos israelíes, así como el gobernador del estado de Bahía, del que Salvador es capital, Jacques Wagner.” O site de notícias israelense de língua espanhola Aurora veiculou no seu link sobre América Latina, em 30.01.2012: “Brasil: Es necessário um Estado palestino para la paz em O. Medio”. “Gobierno considera ‘imprescindible’ la creación de un Estado palestino para lograr la paz en Oriente Medio durante en un acto de homenaje a las víctimas del Holocausto.”

Acredita-se que o Dia de memória das vítimas do Holocausto foi criado para lembrar, de alguma forma, as atrocidades que os homens e seus regimes políticos são capazes de praticar sob a égide de um poder discriminador, prepotente e sem limites. O uso da data, em Salvador, com o intuito de produzir mensagens políticas ideológicas, sub-reptícias e extemporâneas à homenagem, se mostrou um equívoco do ponto de vista de atender à finalidade do evento, ainda que satisfizesse alguns assessores palacianos que sentindo-se em casa, pelo fato da Bahia ter um governador petista, puseram a presidente Dilma para apadrinhar o Estado palestino em meio à cerimônia aos mortos do regime nazista. Uma manobra que deve ter levado os convidados a engolirem em seco, mas que, no final das contas, rendeu uma boa pauta de fim de semana para a mídia, sempre atenta e disposta a repercutir recados presidenciais que possam resultar em observações críticas ou polêmicas. Só que desta vez, se alguém se sentiu ofendido ou desconfortável com o rumo imposto à solenidade, estranhamente calou-se e permaneceu em silêncio.