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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Até onde a memória alcança


por Sheila Sacks

Judeus retornam à Alemanha. Quem se importa?


Por ocasião das festividades do ano novo judaico, em setembro último, os leitores de um dos mais influentes jornais brasileiros foram surpreendidos com uma informação aparentemente surreal, mas nem por isso fora da realidade. A matéria made in Germany da correspondente de O Globo, Graça Magalhães Ruether, intitulava o país de "o novo eldorado dos judeus" e mostrava o estupendo "florescer" da comunidade judaica na Alemanha que lotou as sinagogas de Berlim durante as cerimônias religiosas desse evento.

Palco de um dos mais cruéis e violentos genocídios em massa produzidos por um regime político, a Alemanha tem recebido de braços abertos os judeus originários principalmente da antiga União Soviética que para lá acorreram (cerca de 220 mil), a partir da queda do Muro de Berlim, em 1989.

Atualmente, a comunidade judaica acomodada na Alemanha tem se movimentando em busca de suas tradições nas 16 sinagogas existentes em Berlim e Munique. Para muitos, uma espécie de desforra sobre aqueles que há pouco mais de seis décadas quase lograram varrer do planeta seus compatriotas judeus. "O judaísmo voltou a florescer não só em Berlim, mas em toda a Alemanha", celebra a porta-voz da comunidade judaica em Berlim, Maja Zeder. Hoje, 85 cidades alemãs dispõem de sinagogas.

Jovens não querem "remoer o passado"

Em outra reportagem, dessa vez do jornalista alemão Thorsten Schmitz, Berlim é comparada a Tel Aviv pela quantidade de israelenses que tomam conta da cidade durante todo o ano. "Há cinco anos, só havia uma ligação direta entre Tel Aviv e Berlim; atualmente pode haver três voos por dia. A Lufthansa oferece quatro voos diários para a Alemanha."

Segundo o jornalista, que escreve para o jornal Südeutsche Zeitung, de Munique, a cidade é o destino preferido dos israelenses, antes mesmo de Barcelona e Praga. Quarenta e oito mil israelenses visitaram Berlim, em 2009, e dentre os turistas não europeus, os nascidos em Israel só perdem para os norte-americanos, ainda o principal contingente turístico em terra alemã.

Também cresceu a quantidade de israelenses que escolhe Berlim para residir ou para investir no seu mercado imobiliário. Entre 1999 e 2009, o número de israelenses que imigrou para a Alemanha aumentou em 50% e já existem bairros, como os de Kreuzberg e Friedrichshain, onde a presença de israelenses é considerável. O resultado é que duplicou a presença de estudantes israelenses nas universidades berlinenses.

Para os agentes de turismo de Berlim, os judeus mais jovens que visitam a cidade querem descobrir o novo rosto da capital alemã. Todos conhecem a história do Holocausto, já viram alguém com um número tatuado no antebraço e foram a Auschwitz, na Polônia, em excursão escolar, mas "não querem ficar remoendo o passado". É comum encontrar turistas israelenses no antigo campo de concentração de Sachsenhausen carregados de sacolas de compras das lojas Zara e Bikenstock. Esse campo, situado a 35 quilômetros de Berlim, foi um dos mais ativos do regime nazista e lá foram executados cerca de 50 mil prisioneiros por fuzilamento, câmaras de gás e experimentos médicos.

"Olhem para nós, nós não somos maus"

A diretora de programação do Museu Judaico de Berlim, Cilly Kugelmann, de 63 anos, avalia que o judaísmo da geração das testemunhas pertence à história. "A definição dos judeus pelo extermínio em massa está acabando", afirma. Formada em história da arte pela Universidade Hebraica de Jerusalém, Kugelmann nasceu em Frankfurt e estudou cinco anos em Israel. Apesar de reconhecer que a sociedade alemã, nesses 62 anos pós-Holocausto, desenvolveu um relacionamento com o período nazista no qual o assassinato em massa tornou-se o único paradigma, ela acha que o judaísmo não se beneficiou com o fato. Ao contrário. Em sua opinião, os seguidos e continuados alertas de representantes judaicos contra o antissemitismo, o neonazismo e o antissionismo subtraíram, em parte, uma imagem positiva do judaísmo.

Em entrevista ao portal de notícias da Alemanha Deutsche Welle, o diretor-geral do Museu Judaico de Berlim, W. Michael Blumenthal, de 84 anos, reconheceu que com a morte das testemunhas a qualidade da memória do Holocausto também vai mudar, já que a transmissão dos fatos se fará em segunda mão. Nascido na Alemanha, Blumenthal deixou o país em 1939, estudou nos Estados Unidos e chegou a secretário do Tesouro norte-americano na gestão do presidente Jimmy Carter, de 1977 a 79. Segundo ele, o Holocausto vai continuar sendo uma parte importante da história alemã, um acontecimento histórico que implica em responsabilidade. Blumenthal chama a atenção para a diferença entre culpa e responsabilidade. "As novas gerações não são culpadas pelos atos de seus antepassados, mas têm responsabilidade nacional que acredito que vai continuar sendo assumida."

A nova geração de judeus da Alemanha almeja mudar esse modelo de relacionamento. "Eu quero me libertar dessa sensação de que, quando o assunto é minha religião, as pessoas sempre pensam: `Ah, você é judia.´ E imediatamente começam a prestar atenção no que falam como se estivessem pisando em ovos", dizia a estudante de Ciências Políticas, Katharina Goos, em 2005. A jovem propunha uma maior abertura no convívio diário. "Nós podemos nos abrir para as pessoas de outras religiões e dizer: olhem para nós, nós não somos maus."

O suicídio de um apátrida

Na mesma reportagem, o jovem Daniel Iranyl explicava os seus motivos para residir na Alemanha. "Aqui é um bom lugar para se viver, mesmo que alguns discordem. Eu me vejo como um judeu europeu e acho importante que as pessoas entendam que o judaísmo não esta limitado à tristeza. Somos pessoas felizes e eu amo Berlim."

Voltando no tempo, em 1938 centenas de casas, lojas e sinagogas foram apedrejadas e incendiadas em várias cidades da Alemanha. Começava efetivamente o processo de extermínio em massa da comunidade judaica alemã naquele 9 de novembro que passou para a história como a noite das vidraças quebradas ou a Noite dos Cristais. Na época, mais de meio milhão de judeus vivia na Alemanha.

Com o fim da Segunda Grande Guerra, sobraram 15 mil judeus e nos 62 anos posteriores esse número foi se multiplicando até atingir a marca oficial de 110 mil. Quantidade respeitável de membros que, somada à onda de turismo específico, estimulou a mídia internacional, no decorrer de 2010, a enfocar a Alemanha sob um bizarro ângulo de cartão postal do Holocausto, aplicando-se ainda em propalar o tal renascimento judaico em um país salpicado de monumentos, memoriais, mausoléus e museus de lembranças e de mea culpa. Uma realidade que pouco surpreenderia o filósofo e pensador judeu Walter Benjamim (1892-1940), figura cultuada pela intelectualidade brasileira. É dele a frase-slogan : "Não há um documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie."
Em 1939, Benjamim foi destituído de sua cidadania alemã, enquanto vivia na França, e passou a ser um "estrangeiro de nacionalidade indeterminada de origem alemã". Nascido em Berlim, o autor de Teses sobre o conceito da História tentou em vão obter a cidadania francesa. Quando só restava a fuga para escapar à Gestapo, ele se viu impossibilitado de alcançar a liberdade pela falta de documentos legais. Deprimido, na noite de 25 de setembro de 1940, em um quarto de hotel na fronteira com a Espanha, cometeu suicídio ingerindo uma dose letal de morfina. Tinha 48 anos e embora somasse uma história pessoal enraizada na Alemanha e uma reconhecida bagagem literária, era um apátrida.

Uma missão quase impossível

Em 1989, o livro "Modernidade e Holocausto", de um sociólogo judeu de origem polonesa, ganhou o prestigioso prêmio Almafi, concedido pela Associação Italiana de Sociologia à melhor obra do ramo publicada na Europa. Seu autor, Zigmunt Bauman, atualmente com 85 anos, atribuía à modernidade e suas técnicas de planejamento, organização e produção, um papel decisivo na consecução do Holocausto. Observava Bauman que "o Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano". Radicado na Inglaterra desde da década de 1970, o sociólogo criticava o afrouxamento dos mecanismos de lembrança em relação ao genocídio. "A autocura da memória histórica que se processa na consciência da sociedade moderna é mais do que uma indiferença ofensiva às vítimas do Holocausto. É também um sinal de perigosa cegueira, potencialmente suicida."

"Custa-me acreditar que meu pai tenha sido deportado daqui para o campo de Sachsenhausen", afirma o israelense Amit Sonnenfeld, de 56 anos, em sua primeira visita à Alemanha, em setembro de 2010. Sua mulher Eynat acrescenta: "Berlim é completamente multicolor, e não tem nada que ver com as imagens da Alemanha que me acompanham desde a infância." Ambos, segundo a reportagem do jornal de Munique, se movimentavam esbaforidos e felizes pelas ruas de Berlim, carregados de sacolas de compras e animados com o circuito gastronômico que a cidade oferece.

Para Bauman, redimir o passado implicaria em atualizar o seu significado no tempo presente. Entretanto, a memória da história oficial é sempre percebida de forma linear, enfileirando fatos,datas e as diversas formas de poder que atuaram no contexto. No caso do Holocausto, os testemunhos dos sobreviventes acrescentaram uma segunda dimensão à história. Mas, no estágio atual – onde os campos de horror foram transformados em bem cuidados museus a céu aberto e o genocídio se recria em projetos arquitetônicos monumentais –, a globalização já aspirou e centrifugou os inevitáveis espantos e discordâncias, transformando-os em resíduos ou pó. Com os seus (aparentemente) ilimitados recursos de pasteurização sobre as sociedades midiáticas e marquetizadas, a globalização viabilizou o encontro mágico entre a mais alta tecnologia e as táticas de convencimento, tornando a busca de um sentido singular e contemporâneo ao significado do Holocausto, uma missão quase impossível.

O prognóstico de Orwell

O pensamento globalizado é uma das características do século 21 e aqueles cujas ideias possam de alguma forma desregular uma azeitada ordem midiática, construída sobre sólidas estruturas de poder, certamente terão grandes dificuldades em concretizá-las com algum êxito.

No caso específico do Holocausto, o aspecto ideológico e a sua vigorosa instrumentalização que permitiu, com sucesso, a implantação de um sistema industrial de matança dentro de uma sociedade civil informada e evoluída, caminha para ganhar ares de ficção, cercado dos cintilantes penduricalhos que a imaginação e a criatividade associadas à arte e a tecnologia do marketing são capazes de produzir. Sobrando disso tudo, talvez, em um futuro não muito distante, um shopping virtual de imagens – símbolo de uma época perdida no tempo – a ser acessado por alguns curiosos.

Essa complexa relação entre o presente, a percepção do passado e o poder, em suas formas manifestas ou subterrâneas, já tinha sido admiravelmente prenunciada pelo jornalista britânico Eric Arthur Blair (1903-1950), ferido no pescoço na Guerra Civil espanhola enquanto lutava contra o ditador Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler. Ele sabiamente prognosticou: "Quem controla o passado, controla o futuro; e quem controla o presente controla o passado". Sob o pseudônimo de George Orwell, na novela 1984, o autor, que foi correspondente da BBC de Londres na 2ª Grande Guerra, delineou um axioma que em 1949, data da publicação do livro, poderia parecer delirante. Um livro que ainda fascina milhões de pessoas e que, de acordo com a pesquisa da revista Newsweek, publicada em 2009, foi apontado como segundo melhor livro de todos os tempos, perdendo apenas para o romance "Guerra e Paz", de Leon Tolstoi.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Carisma de Lula vence eleição


por Sheila Sacks

Pelo terceiro pleito consecutivo para a escolha de quem vai governar o Brasil, a comunidade judaica aposta contra o Partido dos Trabalhadores (PT) e perde. Desde a primeira vitória do PT, em 2002, as federações israelitas e a mídia judaica online procuram dissociar a figura de Luiz Inácio Lula da Silva, líder máximo do PT, da cartilha básica de compromissos ideológicos do partido. Para isso se valem, periodicamente das declarações polidas da assessora pessoal do presidente, Clara Ant, ativista política e ex-integrante do movimento estudantil trotskista “Liberdade e Luta”, dos anos 1970.

Longe das esferas oficiais

Principal interlocutora do governo federal com a comunidade judaica, Clara Levin Ant, de 62 anos, tem a delicada função de prover de explicações plausíveis e baixar o nível da fervura todas as vezes que membros e representantes mais radicais do PT assumem posições ou adotam iniciativas mais contundentes - inclusive com a publicação de artigos na mídia - que possam, de alguma forma, repercutir negativamente sobre a comunidade de 120 mil brasileiros judeus, principalmente em relação à contenda entre Israel e seus vizinhos palestinos. Os esclarecimentos solicitados são feitos longe dos círculos oficiais e raramente ganham às páginas da grande imprensa, cabendo então aos informativos comunitários online veicularem de forma “equilibrada”, sem atiçar os ânimos, as inevitáveis justificativas. De preferência acrescidas de fotos exibindo os visitantes nos gabinetes palacianos. Uma visão que enche os olhos da comunidade judaica e reforça a impressão de que o governo esta sempre disposto a escutá-los, ainda que mantenha sua posição ideológica inalterável.

Nascida na Bolívia, filha de um imigrante judeu que se transferiu para São Paulo na década de 1950, Clara Ant formou-se arquiteta e depois optou pela política. Participou da fundação da CUT (Central Única dos Trabalhadores) – é de sua autoria o logotipo da organização -, elegendo-se deputada estadual pelo PT paulista em 1986. Acompanhando Lula desde 1998, quando o então ex-sindicalista concorreu pela terceira vez à presidência da República, Clara Ant tem sido bastante inteligente em sua blindagem à figura do presidente que apesar de não se desviar das diretrizes do partido, tanto na política interna como na externa, é visto pela comunidade judaica como um petista mais aberto e acessível. Ela poderá integrar o staff da presidente eleita Dilma Roussef para quem trabalhou ativamente na campanha, provavelmente exercendo idêntico papel de mediadora. Outras fontes apostam que a assessora poderá acompanhar o presidente Lula na criação de uma fundação voltada para ações sociais, como a de ajudar a combater a fome e a pobreza no mundo.

Vantagem de votos em Minas Gerais e Rio de Janeiro

Mas, mesmo contando com um espaço razoável nas agendas do Planalto, a comunidade judaica nesta eleição presidencial de 2010 - realizada em dois turnos, o primeiro em 3 de outubro e o segundo no dia 31 - votou no candidato da oposição representada pelo governador paulista José Serra. Maior colégio eleitoral do país, com 30 milhões de eleitores, São Paulo ficou nos meses que antecederam as eleições sob a batuta do vice-governador Alberto Goldman, judeu e ex-militante do Partido Comunista Brasileiro.

Confiante em uma vitória expressiva em seu estado, Serra e seus correligionários foram surpreendidos pelo desempenho eleitoral da candidata lulista. Sua vantagem nas urnas foi bem discreta com um placar de 54% contra 45% obtidos por Dilma. Já no segundo e terceiro maiores colégios eleitorais, Minas Gerais (15 milhões de eleitores) e Rio de Janeiro (11 milhões), Dilma alcançou 60% dos votos. Somando com as vitórias obtidas na maioria dos estados das regiões Norte e Nordeste, incluindo a Bahia (70% dos votos) e mais o Rio Grande do Sul (ambos os estados elegendo governadores petistas, Jacques Wagner – de mãe judia - e Tarso Genro – de avó judia), a indicada de Lula conquistou a posição única de se tornar a primeira mulher e ex-combatente (lutou contra a ditadura e permaneceu presa de 1970 a 1972) a se tornar presidente do Brasil.

Talvez por isso ou pela alegada simpatia do PT pelas FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), grupo gerrilheiro marxista-leninista classificado de narco-terrorista pela própria Colômbia, Estados Unidos, Canadá e União Européia, a organização tenha publicado mensagem de felicitações à Dilma, com “aplausos e reconhecimento” a sua vitória. No comunicado, eles afirmam que estão seguros de que a nova presidente do Brasil terá papel determinante “para alcançar a paz regional na irmandade dos povos do continente”.

Pela defesa da liberdade de religião e expressão

Em seu primeiro discurso, após os resultados das urnas, Dilma Roussef tratou de apaziguar os ânimos, comprometendo-se a zelar pela total liberdade de religião e de expressão. “Prefiro o barulho de uma imprensa livre ao silêncio das ditaduras” enfatizou em seu pronunciamento à nação, em 1 de novembro.

Entretanto, durante os meses que antecederam a eleição, o presidente Lula várias vezes se queixou das insistentes abordagens negativas sobre o seu governo por parte dos gigantes da mídia brasileira. Os jornais “O Globo”, “Estado de São Paulo”, “Folha de São Paulo”, “Estado de Minas”; as revista “Veja” e ‘Época”; e, principalmente, a rede Globo de rádio e TV, abriram amplos espaços para a veiculação de acusações contra assessores do governo, ligando-os às práticas de tráfico de influências e de malversação de dinheiro público. Os ataques continuados nos meios de comunicação ao seu governo e a sua candidata, apontada como inexperiente em gestão política, levaram o presidente Lula, em um comício na cidade paulista de Campinas, a comparar os veículos da imprensa a partidos políticos: “Nós vamos derrotar alguns jornais e revistas que se comportam como fossem partido político e não têm coragem de dizer que são partido político e têm candidato”, falou.

Críticas ao “Antiamericanismo primitivo”

Apesar do apoio dos grandes empresários por conta das centenas de obras nas áreas da construção civil e de infraestrutura (energia, estradas, saneamento, moradias, portos e aeroportos) que se espalham pelo país através da implantação do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), e que somente no Rio de Janeiro vêm injetando bilhões de dólares na urbanização das favelas e nas obras de modernização da cidade para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, uma outra parcela da elite empresarial brasileira tem dado mostras de sua insatisfação diante do que chamam de “antiamericanismo primitivo” praticado pelo governo comandado por Lula, incluindo aí a sua aproximação com a ditadura militar-religiosa do Irã que nega o Holocausto e com os governos de esquerda dos vizinhos Equador, Bolívia e Venezuela (os dois últimos romperam relações diplomáticas com Israel, no início de 2009, devido ao conflito em Gaza).

Em resposta às críticas dos descontentes, Lula gosta de assinalar que as pessoas ricas foram as que mais ganharam dinheiro no seu governo. O empresariado lucrou na área da construção civil, na indústria, no comércio em geral e em todas as áreas de negócios e investimentos que tiveram forte crescimento.

Em contrapartida, no rastro desse cenário econômico mais favorável, foram criados mais de 10 milhões de empregos formais e cerca de 20 milhões de pessoas saíram da linha da fome e da extrema miséria ajudadas principalmente por programas sociais como o Bolsa Família, que atende 12 milhões de famílias com a transferência direta de até 130 dólares mensais para cada uma, beneficiando um total de 46 milhões de pessoas.

Também o salário mínimo mensal cresceu mais de 50% e hoje equivale a 280 dólares, com a perspectiva de que em janeiro de 2011 chegue aos 300 dólares. O aumento nas oportunidades de emprego e a oferta de maior crédio possibilitaram a entrada de 30 milhões de pessoas na classe C. Já as classes A e B, as mais ricas, tiveram um acréscimo de 6 milhões de pessoas.

Diplomacia brasileira é o ponto de discórdia

Contudo, apesar do louvável e meritório trabalho de erradicação da miséria e inclusão social que tem favorecido milhões de brasileiros, associado às efetivas melhorias que as demais classes sociais também alcançaram no governo Lula, os judeus brasileiros, em sua maioria, sentem-se incomodados com a política externa brasileira que em anos recentes intensificou a aproximação com governos árabes totalitários que pregam a eliminação do estado de Israel. Adotando a causa palestina de um ponto de vista ideológico, a diplomacia brasileira tem ignorado o real contexto do Oriente Médio que obriga os israelenses a manter um contínuo estado de alerta e de defesa de sua integridade.

Em entrevista coletiva concedida a alguns jornalistas brasileiros que visitaram recentemente Israel, o presidente Shimon Peres afirmou que o Brasil precisa se decidir se é pró-Irã ou pró-EUA.“ É preciso fazer uma escolha”, acentuou. Ele exortou o Brasil a levar a sério as ameaças do líder iraniano Mahmoud Ahmadinejad a Israel, assim como sua pregação contra o Holocausto. Elogiando o presidente brasileiro, Peres disse que “a voz do Brasil deve ser ouvida” mas que a diplomacia brasileira deve se pautar por valores e não apenas pelo “puro poder”.

Na reportagem publicada em 10 de novembro no jornal Estado de São Paulo, Peres destacou que a convivência harmoniosa de árabes e judeus no Brasil é um exemplo para o mundo. Contou que ele e o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, ficaram impressionados ao se reunirem com o Comitê Olímpico brasileiro que prepara as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro. “Eu vi que havia judeus e árabes trabalhando junto. Então eu disse a Abbas: Se eles conseguem, porque nós não?”

Em março de 2010, um dos mais importantes jornais de Israel, o Haaretz, já havia chamado Lula de “o profeta do diálogo” por suas intermediações em busca da paz no Oriente Médio.

A mulher que vai comandar um gigante econômico

O fato é que Dilma Vana Rousseff, uma economista de 62 anos, de pai nascido na Bulgária, e o seu vice, o deputado federal Michel Elias Temer Lulia, de 69 anos, filho de um imigrante libanês, assumem a partir de 1º de janeiro as rédeas de um país que de acordo com analistas estrangeiros caminha para ser a 5ª maior potência econômica mundial. Atualmente, o Brasil é a 8ª economia do mundo, com um PIB – Produto Interno Bruto (conjunto de todos os bens e serviços produzidos no país) de U$ 1,8 trilhão, sendo superado apenas pela Itália, Reino Unido, França, Alemanha e pelos líderes Estados Unidos, China e Japão. Daí que mesmo antes de ser empossada, a recém-eleita presidente do Brasil já figura na lista das pessoas mais influentes do mundo de acordo com a revista norte-americana Forbes. Das 68 personalidades mais poderosas entre 6,8 bilhões de habitantes do planeta, Dilma ocupa a 16ª posição, à frente de políticos como o presidente da França, Nicolas Sarkozy (19ª) e a secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton (20ª).

Com o aval incondicional do presidente Lula que após oito anos governando o país ainda desfruta de uma espantosa popularidade advinda da aprovação e da avaliação positiva de seu governo por 83% da população, a nova presidente também terá a seu favor um Congresso formado, em sua maioria (3/5 dos congressistas) por deputados e senadores eleitos pelos partidos de coalizão que apoiam o governo.

Em tempo e para refletir: dos 135 milhões de brasileiros aptos a votar (o país tem 190 milhões de habitantes), 29 milhões se abstiveram de votar (21% do eleitorado) e 7 milhões anularam o voto. Oitenta e cinco mil eleitores votaram no exterior.
Na apuração final, Dilma obteve um total de 55,7 milhões de votos (56% do eleitorado) contra 43,7 milhões (44%) de Serra, ganhando por uma diferença de 12 milhões de votos.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Os órfãos da Inquisição


por Sheila Sacks

São milhares de cidadãos com sobrenomes familiares aos brasileiros: Pereira, Araújo, Almeida, Albuquerque, Bezerra, Caldeira, Cabral, Carneiro, Dias, Cardoso, Coimbra, Melo, Lopes, Salgado, Oliveira, Mendes, Saldanha, Moreno, Pinto, Costa etc. Entretanto, há 500 anos, nas terras da Península Ibérica, os antepassados desses milhões de brasileiros portavam nomes e identidades diferentes: Aboab, Cohen, Abravanel, Aruch, Obadia, Abulafia, Danon, Eskenazi, Hakim, Finzi, Gabirol, Gabbai etc. A mudança drástica ocorrida em suas raízes familiares, culturais e religiosas e a ruptura radical com um passado milenar peculiar e único, resultaram em uma inimaginável legião de órfãos de pais biológicos vivos. Afinal, o que significa um estreito lapso de cinco séculos frente à imensidão de um cenário macro formado por mais de três milênios de história e tradição?

A procura pela identidade primeira, representada pela ancestralidade original, tem mobilizado milhares de pessoas em várias partes do mundo interessadas em encontrar respostas a uma série de sentimentos reprimidos e a incontáveis dúvidas existenciais. Com o intuito de ajudar a essas pessoas especiais a encontrar as suas raízes, foi fundada em 2004 a organização SHAVEI ISRAEL (Retorno a Israel), com sede em Jerusalém. A instituição está presente em vários países, inclusive no Brasil. Seu dirigente, Michel Freund, acredita que existam 13 milhões de descendentes de judeus que ainda guardam alguma prática judaica de seus antepassados, 500 anos depois da tragédia e das fogueiras da Inquisição.

Pelo retorno de um povo: A missão mais que possível

Michael Freund, 42 anos, é um novaiorquino formado em Finanças pela Columbia University e Política Internacional pela de Princenton. Vivendo em Israel há mais de de uma década, ele também percorre meio mundo para descobrir e ajudar os “judeus perdidos” a reencontrarem a sua herança milenar. Fundador da Organização SHAVEI ISRAEL, Freund mantém contato com as várias comunidades de descendentes dos chamados “falsos cristãos” ou “bnei anussim” (filhos dos forçados – descendentes daqueles que foram convertidos à força ao catolicismo, durante a Inquisição), na Europa, América do Sul, África e Ásia.

Organizando seminários e instalando centros de estudos e de apoio para atender a todos que têm um real interesse em recuperar as suas origens, o SHAVEI ISRAEL conta com um grupo de prestigiados educadores e rabinos que realizam as conversões sempre de acordo e com a aprovação do Rabinato de Israel.

Em 2005, Freund se encontrou com pessoas de Burma, Espanha, Peru, Índia, Colômbia e Japão que tinham feito o “monumental passo de formalmente se unir ao povo judeu”. Eram biólogos, tradutores, professores e até mesmo um ex-padre católico. “Nesta época em que tantos jovens judeus abandonam as suas raízes judaicas, ver este despertar sem precedentes acontecendo sob os nossos olhos, com pessoas batendo a nossa porta, com sinceridade, suplicando para entrar, é emocionante e inspirador”, enfatiza.

Os judeus perdidos do Nordeste

No Brasil, os emissários do SHAVEI já criaram um núcleo em Recife. Historiadores acreditam que o nordeste do Brasil abriga uma das maiores concentrações de bnei anussim do mundo. Em 2008, 45 famílias que descobriram as suas raízes judaicas (30 de Pernambuco e 15 da Paraíba) estudavam as leis, os costumes religiosos, as festas, o calendário e o significado do retorno. Segundo o rabino Eliezer Sabba que ministrava o curso, os bnei anussim podem ser encontrados principalmente nos estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Também existem judeus perdidos no Ceará, sertão da Bahia e norte de Minas Gerais.

Na reportagem para o Jornal do Comércio de Recife, o rabino explicou que muitos dos chamados cristãos-novos (judeu convertido à fé cristã) fugiram de Portugal para o sertão brasileiro porque era mais fácil manter as práticas judaicas. Embora a Inquisição também tenha chegado ao Brasil, a perseguição era menor.

Sobre as diversas maneiras de se reconhecer as raízes judaicas das pessoas, as mais importantes são os sobrenomes e os hábitos familiares. Os sobrenomes estão geralmente associados a árvores, animais ou aos locais onde viviam. Por exemplo, Matos e Selva, no interior do estado, e da Costa, no litoral. Bezerra é outro nome que identifica um cristão-novo. Quanto aos costumes, o rabino disse que conversou com pessoas que não comiam carne de porco, mas não sabiam explicar o motivo. Outras tinham aprendido com a família a acender velas todas as sextas-feiras para o anjo da guarda, sem fazer vinculação com o sábado dos judeus. Outro costume mantido no interior semelhante ao ritual judaico seria a forma de enterrar os mortos, enrolados numa mortalha e direto na terra.

Da selva peruana à China pessoas regressam ao Judaísmo

Ainda na América do Sul, Freund enviou, em 2006, um rabino para uma cidade na selva amazônica peruana, a pedido da comunidade de Tarapoto, a 600 quilômetros ao norte de Lima, capital do Peru. Conhecida como a cidade dos Salmos, ela possui algumas centenas de descendentes de judeus marroquinos que conservam sobrenomes como Ben-Zaken, Ben-Shimon e Cohen.

Outro grupo que o SHAVEI tem dado assistência é aquele formado pelos descendentes da tribo perdida de Menashé (7.200 membros) que vive no noroeste da Índia, nas cidades de Mizoran e Manipur. Mil e quatrocentos deles já imigraram para Israel e outros 700 esperam fazer o mesmo. Eles se declaram descendentes dos judeus exilados da terra de Israel, pelos assírios, há 2.700 anos. Quatro dos cinco livro da Torá já foram traduzidos diretamente do hebreu para a língua local – Mizo.

Na China, os judeus da cidade de Kaifeng foram descobertos no século 17, e apesar da assimilação e da pobreza da comunidade, alguns ainda conservam a sua identidade. Também os judeus da Polônia e da Rússia, devido as guerras e ao regime comunista esconderam as suas identidades judaicas e agora participam de um movimento de retorno às suas origens.

Na Espanha e Portugal, os países mais afetados pela Inquisição, muitos desses bnei anussim conservaram a sua identidade judaica secretamente, por 500 anos, como foi o caso dos judeus de Palma de Mallorca e de Belmonte. Nesta última cidade, no norte de Portugal, 150 desses cristãos-novos que se mantiveram leais às práticas do Judaísmo já foram formalmente reconhecidos por uma Corte Rabínica de Jerusalém.

De braços abertos para os que retornam

Em 2007, fiz algumas perguntas via email ao Sr. Freund que antes de se dedicar à causa dos “judeus perdidos” trabalhou com o Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, no cargo de vice-diretor de Comunicações e Planejamento Político do Governo (1996-1998). Freund também escreve periodicamente para o jornal “Jerusalém Post” e o seu blog – Fundamentally Freund – foi escolhido entre os três melhores de Israel, em 2005, na categoria de política e negócios e de defesa dos interesses do país.

O que levou o senhor a fundar, em 2004, uma instituição como o SHAVEI ISRAEL?

- Eu decidi lançar o Shavei Israel porque percebi que o povo judeu encontrava dificuldades em ajudar mais efetivamente os descendentes dos judeus ao redor do mundo que desejassem investigar as suas origens judaicas. Em anos recentes, o fenômeno da globalização surgiu e alcançou aqueles indivíduos e comunidades que tinham uma conexão histórica com o povo judaico, e que começaram a manifestar um crescente interesse em se reconectarem à sua herança judaica. Eu acredito que é nossa responsabilidade, como judeus, adotar essas pessoas, estender-lhes a mão e dar as boas-vindas em seu retorno ao lar.

Através dos séculos, como conseqüência de uma cruel perseguição e exílio, muitos judeus foram forçados a se converterem a outras religiões ou deixar de lado a sua identidade judaica. Tomemos, por exemplo, Espanha e Portugal no século XV, quando centenas de milhares de judeus foram obrigados a se converterem ao Catolicismo contra a sua vontade. Apesar disso, muitos continuaram a seguir o Judaísmo em segredo preservando a sua identidade judaica, mesmo conscientes do grande risco que esta prática envolvia. Eles eram conhecidos como marranos ou bnei anussim, na língua hebraica, que significa “aqueles que foram forçados”. Eles mantiveram a sua identidade judaica secretamente, de geração em geração, e, atualmente, seus descendentes podem ser encontrados em toda a parte do mundo onde se fala espanhol e português, incluindo, logicamente, o Brasil, onde, talvez, esteja localizado o maior número de descendentes de judeus, possivelmente uma cifra que chega a milhões de pessoas. São exatamente estas pessoas que nós desejamos alcançar.

Contudo, eu precisaria acrescentar que o Judaísmo não é uma religião missionária e nós não somos uma organização missionária. Em vez disso, nós trabalhamos com pessoas que não apenas têm uma ligação biológica com o Judaísmo e os judeus, mas também uma natural identificação e que estejam interessadas em fortalecer esta conexão mais adiante.

Israel e o povo judeu defrontam-se com um imenso desafio demográfico. Nós somos um pequeno povo – apenas 13,5 milhões de judeus em todo o planeta! – e nossos números não crescem como seria desejável. Por conseguinte, indo ao encontro de nossos irmãos e irmãs perdidos e trazendo-os de volta para a congregação, nós poderemos nos fortalecer, tanto espiritualmente como numericamente.

Quais são as grandes vitórias do SHAVEI ?

- A instituição tem se expandido de forma extraordinária nesses anos, e nós estamos presentes, agora, em oito países ao redor do mundo, incluindo Espanha, Portugal, Brasil, Índia, Peru, Rússia, Polônia e China. Na Índia, nós temos dois centros educacionais para os “bnei Menashé”, um grupo de descendentes de uma Tribo Perdida de Israel.

Em março de 2005, o Rabino Chefe Sefaradit de Israel, Rabbi Shlomo Amar, reconheceu formalmente os bnei Menashé como descendentes de Israel, e então nós organizamos a ida de uma Corte Rabínica (Beit Din) à Índia, em setembro do mesmo ano, onde foi possível converter 200 membros da comunidade que retornaram ao Judaísmo.

Na Espanha, Portugal e Brasil, nós temos emissários atuando em Palma de Mallorca, na cidade do Porto e Recife, onde trabalham com os rabinos para a comunidade local e ao mesmo tempo realizam serviço voluntário com os bnei anussim em diversas áreas. Nós organizamos seminários e simpósios, várias vezes ao ano, e temos publicado um bom número de livros e folhetos em espanhol sobre a história judaica, sua cultura e tradições. Também em Jerusalém nós mantemos o Instituto “Machon Miriam”, de língua espanhola, para conversão e “retorno”, onde estudantes se preparam para submeter-se à conversão formal ao Judaísmo.

Nós trabalhamos, ainda, com os descendentes dos judeus da comunidade de Kaifeng, na China, com os judeus de Subbotnik, na Rússia, e com os “judeus secretos” da Polônia. Igualmente patrocinamos uma variedade de cursos profissionalizantes para os novos imigrantes que chegam a Israel, providenciando bolsas de estudo e computadores para os estudantes carentes e fornecendo ajuda de custo nos primeiros meses de sua chegada ao país. Todo o nosso trabalho é conduzido de acordo com a Lei Judaica e sob a supervisão contínua da Chefia do Rabinato de Israel.

De que forma as pessoas podem ajudar o SHAVEI ISRAEL?

- Um de nossos objetivos também é formar uma consciência entre a comunidade Judaica acerca da existência de grupos como os do bnei Menashe e do bnei anussim. As pessoas precisam entender que estes grupos não existem apenas em livros de história – eles estão bem vivos e estão clamando ao povo judeu para que os ajudem e apoiem. Pessoas interessadas em conhecer um pouco mais sobre o nosso trabalho podem visitar o nosso site http:www.shavei.org/ onde encontrarão informações em inglês, espanhol, português e catalão. Também podem enviar e-mail , no endereço spanhish@shavei.or .Todos serão muito bem-vindos. O Shavei Israel também está no facebook.

Nota: Em 2010 já emigraram para Israel 1.320 judeus da Etiópia. Da América do Sul e Central foram 1.360 judeus, sendo 330 da Argentina, 240 do Brasil, 160 do México, 140 do Peru, 120 da Venezuela e 90 do Uruguai. Ao todo escolheram residir em Israel, nos últimos doze meses, quase 18 mil judeus de várias partes do mundo, sendo 7.400 da ex-União Soviética e mais de 5 mil de países como Estados Unidos, África do Sul, França, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e outros.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A Bíblia hebraica dos Açores


por Sheila Sacks

Em 1997, os jornais do arquipélago português dos Açores divulgaram um fato inusitado: dois garotos de uma aldeia de pescadores da região haviam achado em uma gruta, por acaso, um velho pergaminho enrolado escrito em hebraico ou aramaico.

Na ocasião, quem leu a notícia e logo percebeu que se tratava de uma Torá (Velho Testamento- Pentateuco) foi o jornalista e pesquisador Inacio Steinhardt, português de nascimento e radicado em Israel. A partir de então e durante seis anos ele seguiu os passos da misteriosa Bíblia hebraica, na tentativa de desvendar e ordenar a história que acompanharia aquele documento religioso escondido em uma ilha do oceano Atlântico.

Nascido em Lisboa, em 1933, e vivendo em Israel desde 1976, Steinhardt foi correspondente de jornais portugueses e da agência de notícias Lusa. É presidente honorário da Liga de Amizade Israel – Portugal, em Tel Aviv, e Comendador da Ordem de Mérito da República Portuguesa.
O jornalista também é co-autor do livro “Ben-Rosh- Biografia do Capitão Barros Basto, o Apóstolo dos Marranos”, que conta a história de um oficial do exército português que retornou às suas origens judaicas.

A entrevista abaixo foi realizada via email em 2008:

Em que data e de que forma o senhor teve conhecimento da existência de uma Torá do século 18 no arquipélago de Açores?

- Na nossa profissão não é raro acontecer que as histórias chegam até nós e não nos largam enquanto não as contamos. Foi o que me aconteceu também desta vez.
No dia 8 de Maio de 1997 abri na Internet uma página que listava os jornais portugueses. Nesse dia o mouse parou sobre O Açoreano Oriental. Eu nunca tinha lido um jornal do arquipélago dos Açores. Não resisti e cliquei para ver como era. Logo na primeira página, em manchete, vinha a notícia sobre dois alunos da escola primária de Rabo de Peixe, uma aldeia de pescadores ao norte da Ilha de São Miguel, que, na véspera haviam achado, dentro de uma gruta, dois rolos de pergaminho, escritos com caracteres estranhos, e enrolados em volta de dois rolos de madeira. Suspeitei logo tratar-se de uma Torá (Velho Testamento).
Nos dias seguintes todos os jornais dos Açores repetiam a história, acrescentando que se tratava de um rolo só, que os pequenos tinham cortado ao meio, levando alguns fragmentos consigo, um dos quais tinha sido identificado pelo professor de Religião e Moral da sua escola como sendo hebraico ou aramaico.
A partir daí a imaginação não teve limites, atribuindo-se ao manuscrito a uma profecia papal e o local como lugar de culto secreto dos marranos (cristãos-novos, aqueles que foram convertidos à força no século XV). Um jornal americano chegou a noticiar a existência de inscrições nas paredes da gruta, nada menos do que em iídiche (idioma ainda usado por judeus, corruptela do alemão), imagine!

De que maneira a Torá chegou até lá?

- Conheço suficientemente a existência dos cripto-judeus (marranos) em Portugal para excluir a possibilidade daquela Torá lhes ter pertencido. A hipótese que me parecia mais lógica era de que a Torá seria de uma das cinco sinagogas que funcionaram nos Açores, no século XIX, dos judeus de origem marroquina que lá viveram. A minha suspeita confirmou-se.

Existia na época comunidade judaica em Açores?

- Em 1997 já não existia nenhuma comunidade judaica nos Açores. Durante o século XIX, até em torno de 1880, havia ali uma comunidade de judeus marroquinos que chegou a ter quase 250 pessoas e que vivia em diversas ilhas do arquipélago. As suas sinagogas funcionavam em casas particulares, com exceção da sinagoga Shaar Shamaim (Portas do Céu), na cidade de Ponta Delgada, na Ilha São Miguel, que tinha edifício próprio e ainda hoje lá está, embora esteja fechada há muitos anos**.
Todas as Torás dessas sinagogas foram gradualmente sendo transferidas para a sinagoga Shaare Tikvá, de Lisboa.

O senhor poderia detalhar as aventuras e as desventuras desse pergaminho?

- Bom, é uma longa história que levei seis anos para desvendar. Em poucas palavras, a Torá foi escrita nos primeiros anos de 1700, na cidade marroquina de Mogador, que hoje se chama Essaouyra, na costa atlântica de Marrocos. Um judeu de Mogador, Mimon Abohbot, comerciante, mas pessoa muito letrada em judaísmo, trouxe ao Açores duas Torás para a sinagoga que funcionava em sua casa, na cidade de Angra de Heroísmo, na Ilha Terceira, onde ele servia de rabino. Em seu testamento ele deixou escrito que, após a sua morte, e não havendo mais judeus na cidade, uma Torá deveria ser enviada para a sinagoga da cidade de Ponta Delgada (Ilha São Miguel) e a outra levada de volta para Mogador, em Marrocos. Há informações da época que confirmam que a Torá foi encaixotada para o embarque, mas, por razões que ignoro, o caixote teria ficado nos Açores. Cem anos mais tarde, numa taberna da aldeia de Porto Judeu (um nome que também tem a sua história, para contar outro dia), na Ilha Terceira, o caixote foi entregue a um jovem capitão judeu, da base aérea americana das Lajes, também na Ilha Terceira. O capitão Marvin Feldman teve receio de abrir o caixote, pensando que se tratava de um caixão contendo os ossos de alguém. Mas, quando finalmente teve coragem para abrir, encontrou a Torá. Ele mandou vir dos Estados Unidos um manto para a Torá e começou a usá-la no serviço religioso improvisado, na capela da base, para os militares judeus. Um fato curioso, que não resisto em relatar, é que nenhum dos judeus da base tinha conhecimentos para ler o texto da Torá sem os sinais diacríticos. Quem resolveu o problema foi o capelão católico, padre Don Hunter, que havia aprendido hebraico e a leitura da Bíblia no original, e que vinha todos os sábados à capela ler a Parashá (capítulo semanal) para os judeus. Em 1973, quando regressou aos Estados Unidos, o capitão Feldman (hoje coronel aposentado), deixou a Torá na base, dentro de um bonito armário de madeira (Aron HaKodesh) que mandou construir. Durante muito tempo ninguém soube na base onde se encontrava a Torá do capitão Feldman. Hoje eu sei que entre 1994 e 1997 ela esteve com uma senhora que exercia as funções de líder laico judeu. Essa senhora, antes de regressar aos Estados Unidos, teve a intenção de mandar a Torá para a sinagoga de Lisboa. Por motivos que ainda desconheço, ela a teria mandado para alguém, em Ponta Delgada, que, por sua vez, deveria embarcar a Torá para Lisboa. E foi precisamente em maio de 1997 que alguém a escondeu dentro da gruta onde foi encontrada.

Qual era o estado de conservação da Torá quando foi encontrada?

- Em perfeito estado de conservação, o que revela que não estava naquele local há muito tempo. O ar salgado do mar teria pelo menos corroído a tinta das letras e desfeito as costuras do pergaminho. A Torá encontrava-se dentro de um grande saco de plástico, como que pronta para o embarque. Identificado por especialistas da Universidade de Jerusalém como um pergaminho escrito em Marrocos nos anos de 1700, estava coberto por um manto de características ashkenazis (origem européia) e até costurado à máquina, portanto um manto que teria, quanto muito, 150 anos. Pelas fotografias, o capitão Feldman confirmou-me que era igual ao que ele mandara vir dos Estados Unidos. Esse foi o primeiro fio da meada que me serviu para desvendar o mistério: uma Torá sefaradita (de origem oriental) do século XVIII, com um manto ashkenazi moderno. Encontrava-se em perfeito estado de conservação quando os meninos a encontraram. Eles porém a destruíram, cortando-a em pedaços para vender na aldeia a pessoas que imaginavam obter grandes lucros com a antiguidade. Além disso, quando a notícia foi divulgada, eles tinham deixado o remanescente na gruta. Logo no dia seguinte alguém foi lá (talvez a mesma pessoa que a escondeu) e tirando os dois rolos remanescentes para fora, desenrolou um dos lados para tirar o eixo de madeira (ets haim) e arrancar os punhos e pontas que eram de marfim. Por alguma razão só conseguiu tirar o eixo de um lado.

Foi feita alguma restauração? Quem fez?

- O remanescente do achado foi entregue à Biblioteca e Arquivo Regional da cidade de Ponta Delgada. Depois foi enviada para o Departamento de Restauros da Biblioteca Nacional de Lisboa, onde fizeram um magnífico trabalho de restauração, com a ajuda do então rabino da Comunidade Israelita de Lisboa. Apenas ficaram vazios os lugares dos fragmentos que nunca foram devolvidos. Foi feita também uma bonita caixa-estojo, da mesma cor do manto de veludo. Agora a Torá encontra-se novamente exposta na Biblioteca de Ponta Delgada, nos Açores.

Sua pesquisa durou seis anos. Foi difícil seguir os caminhos percorridos pela Torá?

Foi necessária muita persistência e muita sorte. Seguindo o fio da meada fui encontrar, entre os meus papéis, um artigo de uma revista hebraica citando um jornal judeu de Kansas City, Estados Unidos, que se referia ao achado de Marvin Feldman. Qualquer coisa me fez guardar esse artigo (não calcula quantas toneladas de recortes tem o meu arquivo pessoal). Depois foi uma missão impossível contatar tantos Marvin Feldman nos Estados Unidos, até localizar, ao cabo de seis anos, o homem certo, na Austrália! Hoje ele vive na Flórida. Marvin foi extremamente simpático, gravando para mim o relato exato da sua parte na história. O interessante é que em 1973, ano em que o capitão encontrou a Torá em Porto Judeu, eu tinha comprado num sebo em Lisboa um sidur (livro de rezas) manuscrito pelo mesmo Mimon Abohbot, em 1874, em Angra do Heroísmo. Copiou-o manualmente na intenção de que seus netos rezassem por ele em sua memória. Esse fato despertou a minha curiosidade e investiguei a biografia desse judeu piedoso, publicada em diversas fontes. Quando ouvi a gravação do capitão Feldman e a história do caixote, lembrei-me das duas Torás de Abohbot e do seu testamento. Fui consultar essas fontes e lá estava o episódio da caixa de madeira que deveria ser embarcada para Mogador. Em abril de 2005 estive pela primeira vez nos Açores, nas ilhas de São Miguel e da Terceira, para proferir duas palestras, a convite do Governo Regional. Aí eu contei a história da Torá, que por duas vezes se recusou a abandonar os Açores. Foi então que, novamente por acaso fortuito, soube do envio da Torá, da base das Lajes para Ponta Delgada. E pude assim acrescentar nas minhas palestras que foram três vezes que a Torá se recusou a sair dos Açores. Na mesma oportunidade visitei o cemitério judaico da cidade de Angra do Heroísmo, e, perante a sepultura de Mimon Abohbot e na presença do único judeu que mora na ilha, li, no livro piedosamente manuscrito por ele, a oração pelos mortos (Hashkará) na versão sefaradita em que Mimon listou os mortos de sua família. Foi um momento muito emocionante para mim. Como vê, o quebra-cabeça ainda não está terminado. Falta ainda saber duas coisas: onde esteve o caixote durante quase 100 anos, até aparecer na taberna da aldeia de Porto Judeu? Estive no local onde fui recebido de forma calorosa pela autoridade regional e com a sua ajuda entrevistei muitas pessoas idosas, mas ninguém se lembrava do que sucedera 30 anos atrás. A outra peça da charada que ainda falta desvendar, é saber quem recebeu a Torá em Ponta Delgada e quem, e por que, a escondeu na gruta em Rabo de Peixe.

A exposição do pergaminho é aberta ao público?

Sim. Recentemente o pergaminho foi disponibilizado aos visitantes na Biblioteca e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Foi outro momento emocionante conhecer a Torá, que de alguma forma me procurou para eu escrever a sua história, e ler nela um capítulo. Mais: o Diretor Regional da Cultura afirmou-me que, se a sinagoga de Ponta Delgada for restaurada e conservada como museu judaico, sendo simultaneamente um lugar de orações para turistas judeus que visitam os Açores, e havendo segurança contra roubos no local, ele encararia a possibilidade de mandar transferir para lá a Torá de Rabo de Peixe. O pergaminho ficaria em exposição, visto que não pode ser utilizado para o culto, segundo a Halachá (lei judaica). Hoje já não existe comunidade judaica nos Açores. Apenas um judeu inglês vive na Ilha Terceira e alguns descendentes de judeus, que hoje já são católicos. Entre estes tenho o dever de destacar a obra meritória dos membros da família Bensaúde, que já não sendo judeus têm conservado, por conta própria, os cemitérios judeus ainda existentes no arquipélago e parte das obras de conservação da sinagoga.

A Torá já foi apresentada em outros locais?

Não. Aliás ela nada tem de extraordinária, além de sua história fantástica. Houve a sugestão de levá-la para Angra do Heroísmo, para estar presente quando da minha conferência, mas a ideia foi abandonada por problemas logísticos e de segurança.

Mudando de tema: em 1997 o senhor publicou um livro sobre o Capitão Barros Basto, conhecido como o Dreyfus Português (foi afastado pelo exército em 1943). Qual é a importância deste personagem na moderna história judaica-portuguesa?

Eu não concordo muito com a designação de Dreyfus Português, porque as circunstâncias foram bem diferentes. Barros Basto não foi destituído da sua patente militar. Foi sim exonerado do exército e viveu seus últimos anos ferido no mais íntimo da sua alma, e em condições econômicas muito difíceis. Não foi acusado de traição, foi castigado com o intuito de aniquilar a obra que havia iniciado. Ele começou a sua vida rejeitando, instintivamente, a religião católica em que foi educado pela mãe, e buscando a verdadeira religião com todas as forças da sua alma. Passou por várias fases até que seu avô paterno, antes de falecer, o escolheu para transmitir o grande segredo da família: eles eram descendentes dos judeus convertidos pela força, em 1497. A Obra do Resgate, que ele criou para convencer os outros "anussim" (convertidos à força) de que já havia liberdade religiosa em Portugal, foi um trabalho gigantesco que encontrou eco em todo o mundo judaico. E conseguiu construir uma imponente sinagoga na cidade do Porto. Mas foi uma obra que durou apenas enquanto durou essa liberdade religiosa, e enquanto o espírito de discordância entre os judeus não foi aproveitado pelo clero, que não via com bons olhos o regresso dos marranos ao judaísmo. Em nossos dias a sinagoga Mekor Haim, que ele construiu, voltou a ser um pólo de atração para um número crescente de bnei-anussim (descendentes dos ‘forçados’) que procuram regressar ao Judaísmo.

Existe curiosidade nas famílias portuguesas em investigar possíveis raízes de ascendência judaica?

Imensa. E não só curiosidade como grande perseverança na investigação, quase sempre tão difícil quanto serem aceitos no seio do judaísmo institucional. É um movimento que se alastra rapidamente, não só dentro de Portugal, como nas comunidades de descendentes de imigrantes portugueses em vários países. Soube que no Brasil o seu número já excede a um milhão, o que é bem possível devido às raízes históricas. Mas também nos Estados Unidos, no México, na África do Sul e em alguns países europeus. Eles estão agrupados em diversos fóruns da Internet, principalmente no "Saudades", heroicamente dirigido por Rufina Bernardette da Silva Mausembaum, em Johannesburgo, África do Sul, ela própria uma retornada.


** Localizada na Rua do Brum nº 16, a Sinagoga de Ponta Delgada (1836) – a mais antiga sinagoga portuguesa construída depois da expulsão dos judeus do país - vai ser recuperada com o apoio da Comunidade Israelita de Lisboa. O prédio encontra-se em precárias condições físicas e em 2009 abriu as portas pela primeira vez, depois de mais de 50 anos fechada, para visitas guiadas pelo historiador José de Almeida e Mello, responsável pela sinagoga e autor do livro “Sinagoga Sahar Hassamain de Ponta Delgada – História, Recuperação e Conservação".

A respeito do tema, o colega Alfredo Maia, presidente do Sindicato de Jornalistas de Portugal, escreveu um pequeno e sensível texto em seu blog “Nave dos Dias”, que reproduzimos abaixo:

Domingo, 3 de outubro de 2010

Rua do Brum, n.º 16, Ponta Delgada: o futuro da memória hebraica

Rua do Brum, n.º 16, Ponta Delgada. A casa pouco difere das demais - rés-do-chão, dois andares, fachada rebocada pintada de branco, janelas ornamentadas por faixas amarelas, a porta com faixa ocre prolongando a faixa de meio metro ao longo do alçado principal, duas varandas em ferro forjado.

No interior, uma impressionante amostra de um passado guardado na cápsula do tempo. Algures, discretamente protegido pela envolvência doméstica de uma casa de habitação, um belo salão de culto – um solene cadeiral em U voltado para as Tábuas da Lei, o armário que guardava a Tora e a cadeira (raríssima!) destinada à circuncisão; um púlpito pejado de livros vetustos e ruídos pelas térmitas e pelos ratos; nas costas, um relógio parado nas 2:15 de um dia – sabe-se lá qual – muitas décadas atrás, muito poucas mais chegarão para perfazer um século, quando emudeceram as orações no rito hebraico e o sarcófago do tempo foi envolvendo a Sinagoga de Ponta Delgada.

Abateu-se a ruína sobre a cobertura da casa e os sobrados; a vegetação invadiu a casa; salvaram-se à pressa livros sagrados e apetrechos de culto; outros pereceram na humidade inapelável e na voragem de insectos e roedores. Salvou-se a sala de culto – uma das mais belas (ou a mais?...) de Portugal e a mais antiga das sinagogas da Europa (e também em Portugal, depois da expulsão dos judeus, por D. Manuel I, fundada em 1836 e marcando o seu regresso em pleno Portugal liberal) – como se fosse quase intocável ao tempo e ao abandono (as outras, já se sabe, foram destruídas pela fúria nazi).

Há dez anos, porém, que José de Almeida Mello peleja pela recuperação da Sinagoga Sahar Hassamani, procurando dar-lhe um rumo, restituir-lhe uma dignidade. Ouvi-o ontem, com muita satisfação, falar de um futuro (próximo, pois as obras decorrem no próximo ano) através do qual poderemos perscrutar o passado para compreendermos melhor o passado: deverá ser uma biblioteca-museu da identidade hebraica – com destaque para a sala de culto e para a biblioteca que há-de ser constituída pelo fundo próprio dado à guarda da Comunidade Israelita de Lisboa e por doações de particulares, integrada numa rota que inclui os cemitérios judeus de Ponta Delgada e Angra do Heroísmo.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Obama e o 11/9


por Sheila Sacks

Passados nove anos dos atentados de 11 de setembro e dois anos do início da gestão de Barack Obama, continuam sem julgamento os cinco acusados de terem tramado o pior ataque terrorista da história dos Estados Unidos. Três mil pessoas foram mortas naquele fatídico dia de 2001 em três pontos diferentes - Nova York, Washington e Pensilvânia -, em um diabólico circuito de insanidade e horror cujas imagens ainda causam perplexidade e indignação.

Prisioneiros na base militar de Guantánamo, em Cuba, os terroristas muçulmanos da Al Qaeda, inclusive o autoproclamado mentor da catástrofe, o paquistanês Khalid Sheik Muhamad (que degolou o jornalista Daniel Pearl, um ano depois, e divulgou a execução em vídeo) ainda aguardam a definição do local (jurisdição) onde serão julgados. Uma demora que vem recebendo pesadas críticas dos principais segmentos da sociedade americana e que tem respingando sobre o presidente Obama.

Com a popularidade em baixa (somente 43% aprovam seu governo), Obama já está sendo visto por 25% dos americanos como muçulmano ao invés de cristão como afirma (seu pai, nascido no Quênia, era muçulmano). Também o seu posicionamento a favor da construção de uma mesquita a ser erguida perto do local da tragédia do 11/9 tem provocado polêmica e um grande mal-estar principalmente entre os parentes das vítimas dos ataques.

Para o professor emérito de História e Religião Islâmica da Universidade Hebraica de Jerusalém, Moshé Sharon, o importante não é o fato de que 1 em 5 norte-americanos já acredita que Obama é muçulmano. O principal na questão é saber o que os muçulmanos pensam de Obama. De que forma os seguidores do Islã veem um filho de pai muçulmano que nega publicamente seu vínculo com a religião.

Em 2009, quando Obama visitou o Egito, Sharou falou à rede de TV norte-americana CBN News (The Christian Broadcasting Network) sobre esse aspecto da biografia de Obama. Segundo Sharon, o nome Hussein que Obama carrega tem um peso histórico e religioso muito grande, porque esse nome remonta ao príncipe Hussein Ibn Ali (626-680), neto de Maomé, reverenciado como “Mártir dos Mártires”. Ele foi morto e decapitado na Batalha de Karbala e a data é uma das mais importantes do calendário islâmico, em especial para o ramo xiita.

Diferente da religião judaica que considera judeu quem é filho de mãe judia, pela lei islâmica da sharia a religião passa de pai para o filho e aquele que a abjura comete um ato de apostasia. Dessa forma, pela religião do Islã, Obama é muçulmano, ainda que negue publicamente. Outro detalhe: somente meninos muçulmanos recebem o nome Hussein.

O Ocidente e a linguagem do Islã

Autor de mais de 10 livros sobre a civilização árabe, Sharon, de 72 anos, também é especialista em inscrições antigas e profundo conhecedor da Shia, a seita xiita predominante no Irã e no Iraque. No início de 2010, a mídia mundial divulgou um importante achado arqueológico na cidade velha de Jerusalém, coordenado pelo professor Sharon: a descoberta de uma placa de mármore, entre outras antiguidades, com uma inscrição rara em língua árabe do ano 910.

Integrante do movimento Americans for a Safe Israel (AFSI), Sharon explica que "as nações erram ao aplicar o pensamento judaico-cristão às ações políticas que envolvem os países árabes. A linguagem do ocidente não impressiona e nem repercute nos países islâmicos da forma que os ocidentais ingenuamente supõem, já que o Islã tem uma linguagem própria em que acreditam e da qual jamais se afastarão.

O professor lembra que em agosto de 2005, quando da retirada de Israel da Faixa de Gaza, um dos líderes mais radicais do Hamas, posteriormente ministro palestino de Relações Exteriores e atual comandante do grupo na região, Mahmoud al-Zahar, em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, declarou que o Hamas jamais desistiria da Grande Palestina, que inclui a cidade de Jerusalém e a Cisjordânia. “Esta solução que está aí é temporária e pode durar de 5 a 10 anos. Mas, ao final, a Palestina voltará a ser muçulmana e Israel desaparecerá da face da terra.”

Em outra apresentação, desta vez à CBN News, Al-Zahar, declarou textualmente: “Nós estamos em meio a uma terceira Guerra Mundial. Eu digo isso o tempo todo. E mais: Por que o Hamas deveria abrir mão de suas armas? Para satisfazer Israel? Para satisfazer algum ser humano na terra? A resposta é não”.

Profundo conhecedor da língua e do pensamento árabes, professor Sharon vem alertando, já há alguns anos, sobre a necessidade das nações prestarem mais atenção à linguagem usada pelo Hamas (que significa fervor) e por grupos como o Hezbollah e Al Qaeda. “O que Al-Zahar quis dizer quando falou em terceira Guerra Mundial é o seguinte”, explica Sharon: “ Nós, muçulmanos, queremos restabelecer o Califado – da Índia e China à Espanha”. Isso porque os árabes ainda consideram a Espanha como território islâmico (a Península Ibérica ficou sob o domínio dos árabes por 700 anos- do séc. VIII ao XV).

Os cristãos-sionistas que acreditam no Salvador

Em outra oportunidade, Al-Zahar chamou os norte-americanos de “cristãos-sionistas” que acreditam em ilusões como a de que o Salvador retornará a Jerusalém e que os judeus devem estar lá para esperá-Lo. “Os americanos incitam o mundo contra o Hamas e outros grupos muçulmanos”, acusou o líder palestino, “e portanto não há benefício em manter um diálogo com pessoas que convivem com o Satã.” Para o professor Sharon está patente que a briga com os chamados “cristãos-sionistas” dos Estados Unidos faz parte de uma guerra maior que o Islã trava contra o sistema de vida judaico-cristã do Ocidente. “Quando Al-Zahar diz que o poder de Israel e dos americanos não é eterno e que isso pode mudar, o que ele verdadeiramente expõe é que o objetivo do Hamas é o estabelecimento de um estado palestino muçulmano em Israel e também o domínio de toda a terra pelo Islã.”

Universidade Hebraica de Jerusalém
Sharon adverte que o Ocidente está em perigo e deve enfrentar a situação de maneira séria. “Para muitos pode parecer uma piada esta história de dominar o mundo, mas para os muçulmanos são palavras de Deus. Desde os primórdios, a intenção do Islã sempre foi subjugar os povos e colocá-los sob as suas leis e regras. E hoje, este plano está a caminho e nós precisamos ter consciência do fato”. E lista alguns pontos que comprovam a sua tese:
1.Está escrito literalmente no Corão (Repetição) que “Alá enviou Maomé com a religião verdadeira para governar sobre todas as religiões”;
2. Maomé afirmou que os judeus e os cristãos falsificaram os livros da Bíblia e que todos os profetas são muçulmanos, inclusive Abraão, Isaac, Jacob, David e Moisés;
3.O Sistema Islâmico diz que é preciso lutar contra aqueles que não querem viver sob o domínio do Islã. A guerra contra os infiéis, sejam judeus ou cristãos, chama-se Jihad (esforço, empenho);
4. O Corão divide o planeta em duas Casas: uma se chama Dar al-Islam (Casa do Islã), onde o Islamismo governa, e a outra Dar al-Harb (Casa da Guerra), como é conhecido o restante do mundo. Esta Casa da Guerra será conquistada no final dos tempos e subjugada pelo Islã;
5.Para a civilização islâmica, se uma terra, no passado, foi dominada pelo Islã, ela sempre será propriedade do Islã. Daí os árabes só se referirem a Israel como território;
6.O propósito do Islã é de se constituir em uma força militar divina para impor a cultura islâmica. Cada muçulmano que entrega a sua vida na luta pela disseminação do Islã se constitui em um mártir (shaheed), não importando a maneira como essa morte possa vir a ocorrer. Ou seja, este é um conflito bélico eterno, uma guerra sem fim, entre duas civilizações: a da Bíblia versus a do Corão.

A eterna guerra das civilizações

Além de professor, Sharon foi Consultor para Assuntos Árabes do Governo de Israel, no período do Primeiro-Ministro Menachem Begin (1977-1983). Ele é incisivo ao questionar a posição de políticos ocidentais que, sem conhecerem uma palavra do idioma árabe, se arvoram em vozes e intérpretes de uma cultura que não entendem. “Esses políticos criaram uma falácia denominada fundamentalismo islâmico. Algo como um Islã bom e um Islã mau. Isso não existe. Há apenas um Islã (significa submissão), aquele dos oradores das mesquitas que vociferam horríveis sermões contra os judeus e os cristãos. Daí que o uso de nossa terminologia e vocabulário para abordar temas como democracia ou fundamentalismo equivale a falar sobre futebol usando termos de beisebol. Para falar com o Islã, você precisa usar o idioma do Islã”, acentua o historiador.

Sharon lembra ainda que nestas guerras de civilizações são muito utilizados os artifícios do tipo cessar-fogo ou acordos de paz , como instruiu Maomé (570-632) que usou desta tática em Hudaybiya (em 628). Neste local ele firmou um tratado de paz de 10 anos com a tribo Quraish que vivia na cidade de Meca. Em dois anos quebrou a promessa e marchou com 10 mil soldados sobre a cidade. Tal fato histórico, aliás, foi mencionado por Yasser Arafat, quando semanas depois do Acordo de Oslo (1994) ele se justificou em uma mesquita na África do Sul. À época, o professor Sharon lecionava na universidade de Witwarestrand, em Joanesburgo, e gravou o discurso em que Arafat pedia desculpas pela sua assinatura no documento, dizendo: “Vocês acham que eu poderia assinar algo com os judeus contrário ao que dizem as regras do Islã? Não foi assim. Eu fiz exatamente o que o profeta Maomé fez”. Para Sharon, Arafat estava simplesmente falando: “Lembrem-se da história de Hudaybiya”.

Tratados não são permanentes

O provérbio árabe - palavras não pagam impostos - define bem as características das negociações utilizadas pelos muçulmanos e que devem ser entendidas da seguinte forma: “tratados não são permanentes”. Sharon conta que aconselhou o ministro Begin a não ser o primeiro a falar sobre as propostas de Israel, em qualquer acordo ou tratado de paz com os árabes, porque eles seguem o exemplo do califa muçulmano Ali Ibn Abu Talib - primo e genro de Maomé e mártir dos xiitas - que, em uma contenda em Damasco, no século VII, fez o inimigo falar primeiro e assim conheceu os seus planos, dando a impressão de uma concordância que, mais adiante, não se concretizou.

Nem tudo é negociável

No artigo "Doormat Policy" (2010) o professor Sharon qualifica de débil a política diplomática de Israel em relação aos árabes/palestinos porque não assegura plenas condições de segurança para a população do país. "É preciso parar de dizer que tudo é negociável, quando se sabe que é inconcebível libertar terrorristas assassinos assumidos". Segundo Sharon, " se você se comporta como um capacho, considera a si mesmo um capacho, e deixa os outros o tratarem como um capacho, então você provavelmente deve ser um capacho."

A fé Bahá´í em Israel

Em conversa pelo telefone, em 2007, Moshé Sharon contou que jamais foi convidado para realizar palestras no Brasil ou em outro país da América Latina. Desde 1999 ele preside o Centro de Estudos Bahá’í, na Universidade de Jerusalém.

(Na foto, o santuário Bahá´í, em Haifa, no Monte Carmel, declarado patrimônio da humanidade pela Unesco)
Nascido em Israel, Sharon é o primeiro judeu a dirigir a área de história e desenvolvimento desta crença oriental e pacifista (originária do Irã), que possui 5 milhões de seguidores em 200 países (somente na Índia são mais de 2 milhões). No Brasil estima-se que existem 57 mil adeptos.

Lamentavelmente, os seguidores da fé Bahá`í ( cerca de 300 mil ) estão sendo perseguidos pelo regime islâmico do Irã. Desde 2008, 7 líderes bahá´is, sendo duas mulheres, estão detidos e em agosto de 2010 eles foram condenados a 20 anos de encarceramento.

Linha de frente contra o terrorismo

Repetindo o que vem dizendo em seminários acadêmicos na Europa e nos Estados Unidos, Sharon destaca que Israel está na linha de frente nesta batalha de civilizações, mas também precisa da ajuda das nações do Ocidente, porque no momento em que o radicalismo muçulmano se apropriar do controle de armas de destruição em massa – químicas, biológicas e atômicas – estas serão implacavelmente usadas.

Apesar dos alertas de Moshé Sharon projetarem um futuro inquietante para o nosso planeta, a grande mídia teima em se ater a fatos correntes sem se aprofundar no cerne da questão. Talvez pela sua condição de judeu-israelense, muitos jornalistas e intelectuais, instintivamente, façam um pré-julgamento de seus estudos.

Entretanto, alguns pesquisadores de religiões monoteístas e observadores da cultura islâmica já citam o especialista israelense como importante fonte de referência. É o caso do teólogo Samuele Bacchiocchi, doutor em História Cristã, com 15 livros publicados. Formado pela Pontifical Gregorian University, de Roma, e mestre de Teologia da Andrews University, em Michigan, Samuele introduziu os conceitos de Moshé Sharon em suas conferências e também no artigo “Reflexões sobre Terrorismo e Intolerância”. É dele a seguinte frase:
“Lamentavelmente, os repórteres que cobrem o conflito entre Israel e os palestinos/árabes não oferecem quaisquer lampejos sobre quais são as forças ideológicas em ação por trás destas guerras”.


Na foto, Albert Einstein no campus da Universidade Hebraica de Jerusalém. O cientista foi um dos fundadores da instituição, em 1925, e ministrou a sua aula inaugural.

sábado, 11 de setembro de 2010

Lula de volta ao futuro


por Sheila Sacks

Em fevereiro de 2009, mais de um ano e meio atrás, uma frase do presidente Lula na inauguração de uma obra do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em uma favela do Rio de Janeiro desencadeou na mídia uma série de comentários ácidos. A inauguração da obra – uma escola na favela de Manguinhos – foi considerada eleitoreira devido ao ar festivo e ao entusiasmo dos discursos que naturalmente fazem parte desse tipo de evento.

De lá para cá, pouca coisa mudou em termos de popularidade do presidente apesar das percepções e análises desfavoráveis de colunistas e editorialistas. Quanto às obras do PAC nas favelas (urbanização e saneamento; ampliação das vias de acesso com planos inclinados, elevadores e teleférico; e a construção de moradias, escolas, creches, quadras de esportes, praças, áreas de lazer e postos de policiamento – as UPPs), o trabalho já começa a ser visto e entendido pela população como necessário para a implementação da paz e da segurança nas cidades.
Erroneamente, muitos julgam que a finalidade última das obras é a plena erradicação do tráfico de drogas, de armas e de outros ilícitos nesses redutos pobres. Mas o que o programa visa, efetivamente, é levar a cidadania aos seus moradores, abrindo espaço para o poder do Estado e as leis constituídas serem aplicados nas comunidades.


Mal urbano que atinge as maiores cidades do mundo, o negócio das drogas deve, sim, ser enfrentado e combatido onde estiver, das favelas aos bairros das zonas sul, norte e oeste do Rio de Janeiro. Trabalhar com o objetivo de melhorar as condições gerais das favelas tem sido uma forma inteligente adotada pelo Estado no sentido de se promover a paz social, gerando um benéfico clima de satisfação e esperança naqueles que até então se sentiam ignorados pelos agentes públicos ( na foto, o Complexo esportivo da Rocinha).


Por outro lado, os moradores dos bairros adjacentes às favelas também logo irão sentir os resultados dessa política de inclusão social que fixa direitos e deveres a uma parcela da população descompromissada com certos aspectos básicos de uma sociedade. Com a instalação de serviços de coleta de lixo, água, luz, telefone, internet, tv a cabo e outras benfeitorias, serão cobradas taxas de pagamento ainda que inferiores às convencionais. Uma forma de aprendizado e de conscientização da cidadania que cria novos parâmetros de comportamento e de convivência social.

Esse e outros aspectos da vida nacional levaram o correspondente do jornal New York Times, Larry Rohter, que viveu oito anos no Brasil (1999 a 2007), a afirmar, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo (4/9/2010), do interesse crescente que o país desperta nos americanos. Autor do recém-lançado “Brazil on the Rise” (Brasil em ascenção), ele já se prepara para uma maratona de palestras sobre o nosso país em várias cidades norte-americanas. Segundo Rohter o país passou por um processo de profundas mudanças e há uma curiosidade em saber mais sobre o Brasil. “O livro visa ao futuro”, explica o jornalista para quem o presidente Lula é peça fundamental nesse cenário que irá se descortinar após as eleições de outubro, quaisquer que sejam os resultados das urnas.


Frente as inovadoras mudanças de foco que estavam ocorrendo em 2009 com as obras nas favelas, escrevi naquela ocasião o artigo “O PAC de todos nós”, publicado no site Observatório da Imprensa (23.02.2009). No texto inseri o presidente Lula na máxima de Wittgenstein: “As fronteiras de minha linguagem são as fronteiras do meu universo.” Porque tendo o Brasil e os brasileiros como o seu universo prioritário, Lula sempre esteve mais perto do futuro do que a grande maioria de seus colegas políticos ( na foto, interior da biblioteca de Manguinhos).

O PAC DE TODOS NÓS

Embalado por uma aprovação que já atinge a notável marca de 84%, segundo pesquisa do instituto mineiro Sensus divulgada no início de fevereiro de 2009, o presidente Lula parece estar caminhando para uma impensável unanimidade, em se tratando de político brasileiro. Ancorado por um carisma pessoal que, indubitavelmente, agrada e seduz uma imensa parcela da população nacional, pela sua natural facilidade de enfocar e verbalizar, com simplicidade, pontos importantes do cotidiano e do imaginário da vida das pessoas, Lula superou-se, mais uma vez, em uma inauguração no Rio de Janeiro, ao traduzir, de forma idealista e sensível, a nobre missão dos líderes e do poder público.

Com o rosto suado e em mangas de camisa, o presidente empolgou a plateia, sob um forte sol de meio-dia, composta de operários do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), de jovens atendidos por programas sociais e de moradores da área da favela de Manguinhos, na zona norte da cidade, ao condicionar a diretriz e a prioridade do trabalho da administração pública para os mais carentes e necessitados.

No mesmo dia da publicação dos índices que atestavam a sua popularidade (3/02/2009) e acompanhado pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e pelo prefeito carioca, Eduardo Paes, Lula foi categórico: "A única razão para ser prefeito, governador ou presidente é governar para os mais pobres." A frase simples e, em certo sentido, óbvia, reverberou pelas redações de jornais e foi devidamente registrada pelas editorias nos títulos e leads de dezenas de matérias publicadas no day after do acontecimento.

Os ricos e o Estado

Ainda que não primasse pelo ineditismo, a mensagem esbanjou um vibrante entusiasmo, soando simultaneamente trivial e surpreendente, face às experiências negativas correntes e recorrentes no uso do dinheiro público. Dado o pano de fundo do evento – um antigo prédio de suprimentos do exército transformado em um garboso colégio público de ensino médio com capacidade para atender 1.500 alunos e grupos de adultos para alfabetização –, as palavras do presidente singularmente transcenderam o evidente aspecto social da obra, alcançando uma dimensão algo filosófica e muito bem-vinda. Como já havia percebido o austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), um dos mais instigantes filósofos do século 20, os aspectos das coisas que mais nos sensibilizam, ou que julgamos importantes, quase sempre ficam escondidos devido à sua simplicidade e familiaridade. Daí que enfocar o comum e o notório em um linguajar popular em praça pública pode ter lá as suas conseqüências.

Primeira obra do PAC na comunidade de Manguinhos (40 mil moradores), a nova escola também provocou suspiros de prazer nos convidados e visitantes surpreendidos com o inesperado clima de montanha disseminado pelos potentes aparelhos de ar condicionado instalados nas salas de aula e laboratórios, um equipamento pouco usual em se tratando de colégio público. Chamando a atenção para o fato, Lula prosseguiu em seu discurso, defendendo esse tipo de investimento (uma escola "de primeiro mundo") como importante instrumento de combate à criminalidade nas comunidades carentes, recomendando ainda às autoridades presentes a intensificarem o foco e as ações nesse segmento da população, visto que, na sua avaliação, os ricos precisam pouco do Estado.

"Precoce ânsia político-eleitoral"

Observa-se que o conteúdo das frases presidenciais exaladas no ardor do acontecimento incorpora uma espécie de racionalidade ética das mais elogiáveis e uma intencionalidade meritória que tenderia a conduzir à apreciação positiva de todos. Entretanto, aos analistas políticos, colunistas e editorialistas curtidos no impiedoso contexto da mídia do século 21 – reflexo pragmático de um mundo confuso, desconfiado e irascível –, essas mensagens foram absorvidas de forma reversa, compondo-se em ilusórios jogos de palavras vãs e de ardilosas encenações lingüísticas.

Jornalistas conceituados e brilhantes em suas argumentações, como Merval Pereira e Miriam Leitão (O Globo), Dora Kramer (Estado de S. Paulo) e Villas-Bôas Corrêa (Jornal do Brasil), imediatamente analisaram com dureza o aparato daquele evento e de outros semelhantes ligados ao PAC, comparando as afirmações do presidente, sua confiança, otimismo e o conjunto de suas ações, a um espetáculo encenado com vistas às eleições de 2010 e, portando, eleitoreiro e desprovido de um valor genuíno.

Para Merval Pereira, "ao lado da retórica de palanque de Lula, há também os projetos de palanque que, se criam a falsa impressão de que muita coisa está sendo feita, podem acabar se revelando ineficientes para ajudar a sair da crise" ("Política de risco", em 5/2/2009). Já Miriam Leitão considerou que "o PAC não tem o tamanho que dizem, a maior parte do número é fumaça. E, no que tem de verdadeiro, ele é, em muitos casos, uma ameaça, por ser planejado e executado com uma visão retrógrada". ("Os Ilusionistas", em 5/2/2009). No artigo "Lula desconfia do esquema que armou" (7.2.2009), Villas-Bôas destaca a imagem de Lula na TV "transpirando por todos os poros, a camisa amarfanhada e com manchas de suor, cabelos desgrenhados e os exageros de indignação e da eloqüência, na safra de improvisos que assinala a retomada da campanha na hora certa ou precipitada, como a inauguração da primeira obra do PAC em Manguinhos, no Rio", passando a impressão de insegurança "de quem nunca erra e sabe tudo". E, por último, no editorial de O Globo intitulado "Mau Uso" (12/2/2009), critica-se "a precoce ânsia político-eleitoral do governo" e "o agressivo plano de marketing" em prol da "candidata oficial". "Nesse vale-tudo", alerta o jornal, "turbinam-se estatísticas do PAC, montam-se palanques em inaugurações – algumas risíveis..."

O fetiche da palavra

Embora na comunicação se pressuponha que as palavras possam ser compreendidas por todos da mesma maneira, estão aí exemplos que demonstram que o seu significado é variável e se refere menos aos objetos que representam e mais ao uso que se faz delas, como já deduzia Wittgenstein na obra Investigações Filosóficas (1953). Em face disso, o filósofo britânico George Edward Moore (1873-1958), mestre e amigo de Wittgenstein, tinha a preocupação de escrever longas introduções em vários de seus artigos, para deixar claro em que sentido não queria que fossem entendidos os principais termos usados e as principais teses defendidas em seus textos.

No caso das frases entusiastas de Lula em relação às obras do PAC, preexiste uma vivência de ações, fatos e emoções positivas experimentadas e presenciadas pelo presidente que favorecem a sua empolgação verbal. Como assinala o aforismo de Wittgenstein "as fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo". E esse universo, tratando-se do Rio de Janeiro, representa, entre outras ações, a implantação de um sistema de teleférico com 4 quilômetros de extensão, no Complexo do Alemão – um conjunto de sete favelas na zona norte – que vai mudar a vida de 95 mil pessoas. Muitas delas, idosas, doentes e deficientes, incapacitadas de chegar até o asfalto para receber atendimento médico necessário.

No morro Dona Marta, na zona sul, o chamado plano inclinado, o bondinho percorrendo cinco estações – desde o alto da comunidade até as ruas do bairro de Botafogo – já é uma realidade para os seus moradores. Uma obra que propiciou à menina Indiana, de 13 anos, portadora da síndrome de West (forma grave de epilepsia em crianças), a retomada do indispensável tratamento médico interrompido devido às difíceis condições de acesso existentes no local.

Vale, pois, o presidente comemorar com o fetiche da palavra essa e outras histórias de dificuldades (que a pobreza é pródiga em gerar) superadas pela intervenção de um poder público afinado com a realidade das grandes questões sociais. À revelia e sob a visão interpretativa de renomados cardeais da mídia.