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sábado, 11 de setembro de 2010

Lula de volta ao futuro


por Sheila Sacks

Em fevereiro de 2009, mais de um ano e meio atrás, uma frase do presidente Lula na inauguração de uma obra do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em uma favela do Rio de Janeiro desencadeou na mídia uma série de comentários ácidos. A inauguração da obra – uma escola na favela de Manguinhos – foi considerada eleitoreira devido ao ar festivo e ao entusiasmo dos discursos que naturalmente fazem parte desse tipo de evento.

De lá para cá, pouca coisa mudou em termos de popularidade do presidente apesar das percepções e análises desfavoráveis de colunistas e editorialistas. Quanto às obras do PAC nas favelas (urbanização e saneamento; ampliação das vias de acesso com planos inclinados, elevadores e teleférico; e a construção de moradias, escolas, creches, quadras de esportes, praças, áreas de lazer e postos de policiamento – as UPPs), o trabalho já começa a ser visto e entendido pela população como necessário para a implementação da paz e da segurança nas cidades.
Erroneamente, muitos julgam que a finalidade última das obras é a plena erradicação do tráfico de drogas, de armas e de outros ilícitos nesses redutos pobres. Mas o que o programa visa, efetivamente, é levar a cidadania aos seus moradores, abrindo espaço para o poder do Estado e as leis constituídas serem aplicados nas comunidades.


Mal urbano que atinge as maiores cidades do mundo, o negócio das drogas deve, sim, ser enfrentado e combatido onde estiver, das favelas aos bairros das zonas sul, norte e oeste do Rio de Janeiro. Trabalhar com o objetivo de melhorar as condições gerais das favelas tem sido uma forma inteligente adotada pelo Estado no sentido de se promover a paz social, gerando um benéfico clima de satisfação e esperança naqueles que até então se sentiam ignorados pelos agentes públicos ( na foto, o Complexo esportivo da Rocinha).


Por outro lado, os moradores dos bairros adjacentes às favelas também logo irão sentir os resultados dessa política de inclusão social que fixa direitos e deveres a uma parcela da população descompromissada com certos aspectos básicos de uma sociedade. Com a instalação de serviços de coleta de lixo, água, luz, telefone, internet, tv a cabo e outras benfeitorias, serão cobradas taxas de pagamento ainda que inferiores às convencionais. Uma forma de aprendizado e de conscientização da cidadania que cria novos parâmetros de comportamento e de convivência social.

Esse e outros aspectos da vida nacional levaram o correspondente do jornal New York Times, Larry Rohter, que viveu oito anos no Brasil (1999 a 2007), a afirmar, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo (4/9/2010), do interesse crescente que o país desperta nos americanos. Autor do recém-lançado “Brazil on the Rise” (Brasil em ascenção), ele já se prepara para uma maratona de palestras sobre o nosso país em várias cidades norte-americanas. Segundo Rohter o país passou por um processo de profundas mudanças e há uma curiosidade em saber mais sobre o Brasil. “O livro visa ao futuro”, explica o jornalista para quem o presidente Lula é peça fundamental nesse cenário que irá se descortinar após as eleições de outubro, quaisquer que sejam os resultados das urnas.


Frente as inovadoras mudanças de foco que estavam ocorrendo em 2009 com as obras nas favelas, escrevi naquela ocasião o artigo “O PAC de todos nós”, publicado no site Observatório da Imprensa (23.02.2009). No texto inseri o presidente Lula na máxima de Wittgenstein: “As fronteiras de minha linguagem são as fronteiras do meu universo.” Porque tendo o Brasil e os brasileiros como o seu universo prioritário, Lula sempre esteve mais perto do futuro do que a grande maioria de seus colegas políticos ( na foto, interior da biblioteca de Manguinhos).

O PAC DE TODOS NÓS

Embalado por uma aprovação que já atinge a notável marca de 84%, segundo pesquisa do instituto mineiro Sensus divulgada no início de fevereiro de 2009, o presidente Lula parece estar caminhando para uma impensável unanimidade, em se tratando de político brasileiro. Ancorado por um carisma pessoal que, indubitavelmente, agrada e seduz uma imensa parcela da população nacional, pela sua natural facilidade de enfocar e verbalizar, com simplicidade, pontos importantes do cotidiano e do imaginário da vida das pessoas, Lula superou-se, mais uma vez, em uma inauguração no Rio de Janeiro, ao traduzir, de forma idealista e sensível, a nobre missão dos líderes e do poder público.

Com o rosto suado e em mangas de camisa, o presidente empolgou a plateia, sob um forte sol de meio-dia, composta de operários do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), de jovens atendidos por programas sociais e de moradores da área da favela de Manguinhos, na zona norte da cidade, ao condicionar a diretriz e a prioridade do trabalho da administração pública para os mais carentes e necessitados.

No mesmo dia da publicação dos índices que atestavam a sua popularidade (3/02/2009) e acompanhado pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e pelo prefeito carioca, Eduardo Paes, Lula foi categórico: "A única razão para ser prefeito, governador ou presidente é governar para os mais pobres." A frase simples e, em certo sentido, óbvia, reverberou pelas redações de jornais e foi devidamente registrada pelas editorias nos títulos e leads de dezenas de matérias publicadas no day after do acontecimento.

Os ricos e o Estado

Ainda que não primasse pelo ineditismo, a mensagem esbanjou um vibrante entusiasmo, soando simultaneamente trivial e surpreendente, face às experiências negativas correntes e recorrentes no uso do dinheiro público. Dado o pano de fundo do evento – um antigo prédio de suprimentos do exército transformado em um garboso colégio público de ensino médio com capacidade para atender 1.500 alunos e grupos de adultos para alfabetização –, as palavras do presidente singularmente transcenderam o evidente aspecto social da obra, alcançando uma dimensão algo filosófica e muito bem-vinda. Como já havia percebido o austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), um dos mais instigantes filósofos do século 20, os aspectos das coisas que mais nos sensibilizam, ou que julgamos importantes, quase sempre ficam escondidos devido à sua simplicidade e familiaridade. Daí que enfocar o comum e o notório em um linguajar popular em praça pública pode ter lá as suas conseqüências.

Primeira obra do PAC na comunidade de Manguinhos (40 mil moradores), a nova escola também provocou suspiros de prazer nos convidados e visitantes surpreendidos com o inesperado clima de montanha disseminado pelos potentes aparelhos de ar condicionado instalados nas salas de aula e laboratórios, um equipamento pouco usual em se tratando de colégio público. Chamando a atenção para o fato, Lula prosseguiu em seu discurso, defendendo esse tipo de investimento (uma escola "de primeiro mundo") como importante instrumento de combate à criminalidade nas comunidades carentes, recomendando ainda às autoridades presentes a intensificarem o foco e as ações nesse segmento da população, visto que, na sua avaliação, os ricos precisam pouco do Estado.

"Precoce ânsia político-eleitoral"

Observa-se que o conteúdo das frases presidenciais exaladas no ardor do acontecimento incorpora uma espécie de racionalidade ética das mais elogiáveis e uma intencionalidade meritória que tenderia a conduzir à apreciação positiva de todos. Entretanto, aos analistas políticos, colunistas e editorialistas curtidos no impiedoso contexto da mídia do século 21 – reflexo pragmático de um mundo confuso, desconfiado e irascível –, essas mensagens foram absorvidas de forma reversa, compondo-se em ilusórios jogos de palavras vãs e de ardilosas encenações lingüísticas.

Jornalistas conceituados e brilhantes em suas argumentações, como Merval Pereira e Miriam Leitão (O Globo), Dora Kramer (Estado de S. Paulo) e Villas-Bôas Corrêa (Jornal do Brasil), imediatamente analisaram com dureza o aparato daquele evento e de outros semelhantes ligados ao PAC, comparando as afirmações do presidente, sua confiança, otimismo e o conjunto de suas ações, a um espetáculo encenado com vistas às eleições de 2010 e, portando, eleitoreiro e desprovido de um valor genuíno.

Para Merval Pereira, "ao lado da retórica de palanque de Lula, há também os projetos de palanque que, se criam a falsa impressão de que muita coisa está sendo feita, podem acabar se revelando ineficientes para ajudar a sair da crise" ("Política de risco", em 5/2/2009). Já Miriam Leitão considerou que "o PAC não tem o tamanho que dizem, a maior parte do número é fumaça. E, no que tem de verdadeiro, ele é, em muitos casos, uma ameaça, por ser planejado e executado com uma visão retrógrada". ("Os Ilusionistas", em 5/2/2009). No artigo "Lula desconfia do esquema que armou" (7.2.2009), Villas-Bôas destaca a imagem de Lula na TV "transpirando por todos os poros, a camisa amarfanhada e com manchas de suor, cabelos desgrenhados e os exageros de indignação e da eloqüência, na safra de improvisos que assinala a retomada da campanha na hora certa ou precipitada, como a inauguração da primeira obra do PAC em Manguinhos, no Rio", passando a impressão de insegurança "de quem nunca erra e sabe tudo". E, por último, no editorial de O Globo intitulado "Mau Uso" (12/2/2009), critica-se "a precoce ânsia político-eleitoral do governo" e "o agressivo plano de marketing" em prol da "candidata oficial". "Nesse vale-tudo", alerta o jornal, "turbinam-se estatísticas do PAC, montam-se palanques em inaugurações – algumas risíveis..."

O fetiche da palavra

Embora na comunicação se pressuponha que as palavras possam ser compreendidas por todos da mesma maneira, estão aí exemplos que demonstram que o seu significado é variável e se refere menos aos objetos que representam e mais ao uso que se faz delas, como já deduzia Wittgenstein na obra Investigações Filosóficas (1953). Em face disso, o filósofo britânico George Edward Moore (1873-1958), mestre e amigo de Wittgenstein, tinha a preocupação de escrever longas introduções em vários de seus artigos, para deixar claro em que sentido não queria que fossem entendidos os principais termos usados e as principais teses defendidas em seus textos.

No caso das frases entusiastas de Lula em relação às obras do PAC, preexiste uma vivência de ações, fatos e emoções positivas experimentadas e presenciadas pelo presidente que favorecem a sua empolgação verbal. Como assinala o aforismo de Wittgenstein "as fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo". E esse universo, tratando-se do Rio de Janeiro, representa, entre outras ações, a implantação de um sistema de teleférico com 4 quilômetros de extensão, no Complexo do Alemão – um conjunto de sete favelas na zona norte – que vai mudar a vida de 95 mil pessoas. Muitas delas, idosas, doentes e deficientes, incapacitadas de chegar até o asfalto para receber atendimento médico necessário.

No morro Dona Marta, na zona sul, o chamado plano inclinado, o bondinho percorrendo cinco estações – desde o alto da comunidade até as ruas do bairro de Botafogo – já é uma realidade para os seus moradores. Uma obra que propiciou à menina Indiana, de 13 anos, portadora da síndrome de West (forma grave de epilepsia em crianças), a retomada do indispensável tratamento médico interrompido devido às difíceis condições de acesso existentes no local.

Vale, pois, o presidente comemorar com o fetiche da palavra essa e outras histórias de dificuldades (que a pobreza é pródiga em gerar) superadas pela intervenção de um poder público afinado com a realidade das grandes questões sociais. À revelia e sob a visão interpretativa de renomados cardeais da mídia.