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domingo, 12 de agosto de 2018

Disputa de terra no Brasil causa assassinatos


Sheila Sacks /

Nos dois últimos anos aumentou a média de assassinatos e chacinas de trabalhadores rurais e diminuiu os recursos governamentais para programas de ajuda às famílias do campo. Uma dobradinha perversa que representa um retrocesso na política agrária do país.


Reprovado por 82% da população brasileira, segundo  pesquisa do Datafolha divulgada em 10 de junho, o governo Temer não só atinge o maior índice de impopularidade das últimas três décadas para um presidente,  como também entra nas páginas da história apresentando um número recorde de assassinatos em conflitos no campo, ocorridos nos dois anos de sua gestão.

De acordo com o relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT)  “Conflitos do Campo Brasil”, divulgado em 4 de junho, desde 2003 ( quando foram registrados 73 assassinatos) não ocorriam tantas mortes por disputas de terra no país. Em 2017 foram 71 assassinatos, dez a mais em relação a 2016, quando foram registrados 61 crimes no campo. Desses assassinatos, 31 mortes ocorreram em cinco chacinas.

Também em comparação a 2016 aumentaram as tentativas de assassinatos em 63% (de 74 investidas para 120) e as ameaças de morte em 13% (de 200 para 226). A diminuição de 6,8% no número de conflitos no campo, em 2017, com 1.431 ocorrências, fez com que o índice de um assassinato por 25 conflitos, registrado em 2016, quando se sucederam 1.536 conflitos, alcançasse um assassinato por 20 conflitos.
 
Mapa de assassinatos da Global Witness
(cor mais escura assinala maior número de mortes) 
Aumenta a brutalidade 

O professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Cláudio Maia, ao analisar os dados de 2017 notificados pela CPT identificou que em dois dos massacres - o de Colniza (MT), com nove  mortos, e o de Pau D’Arco (PA), com dez mortos -  a quantidade de pessoas assassinadas só foi menor do que na emblemática chacina de Eldorado dos Carajás, ocorrida em 17 de abril de 1996, com 19 mortes. Quanto ao número de massacres, desde 1998 não se registrava, em um único ano, mais do que dois massacres.

Para Airton Pereira, autor do livro “Do Posseiro ao Sem-terra”, e José Batista Afonso, advogado da CPT, em Marabá, que acompanham os conflitos no campo, o que assusta é identificar o “grau de brutalidade e crueldade” que acompanharam os massacres. “Cadáveres degolados, carbonizados, ensanguentados, desfigurados. Exemplos que deverão ficar marcados para sempre na alma de homens, de mulheres, de jovens e crianças. Uma pedagogia do terror”, relatam.

A CPT esclarece que registra como massacre quando em um conflito, no mesmo dia, são assassinadas três ou mais pessoas. Por isso, após uma divulgação inicial, em 16 de abril, sobre os números de assassinatos em conflitos no campo, a Pastoral decidiu incluir como massacre o caso de Canutama (AM) – em que três pessoas desapareceram quando faziam um levantamento para a regularização de lotes - , aumentando para cinco o número de ocorrências em 2017. 

A Pastoral destaca que os assassinatos de trabalhadores rurais sem-terra, de indígenas, quilombolas, posseiros, pescadores, assentados, entre outros, tiveram um crescimento brusco a partir de 2015, quando ocorreram 50 mortes. São três anos consecutivos de um processo cumulativo de assassinatos que envergonham o país.  Até então,  entre 2004 e 2014, os índices anuais não ultrapassavam o limite de 39 mortes. Na década em questão, houve até uma redução do número de vítimas fatais resultante dos conflitos no campo, com o registro de 28 mortes, em 2007 e 2008, e 25 mortes em 2009.

O gráfico “Assassinatos 2003-2017”  está incluído no relatório da Pastoral que, desde 1985, acompanha, registra, denuncia e divulga publicamente as mortes e os massacres envolvendo os conflitos no campo.

Expansão das áreas de conflito

O professor e geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense (UFF), assinala que nos últimos anos houve uma expansão das áreas onde os conflitos ocorrem. Em 2008, os confrontos envolviam 6,5 milhões de hectares. Em 2016, a área aumentou para 23,6 milhões de hectares, e em 2017, atingiu 37 milhões de hectares.

Autor de vários livros sobre o tema, sendo o mais recente “Amazônia: encruzilhada civilizatória. Tensões territoriais em curso” (2017), Porto Gonçalves observa que o aumento na violência no campo se intensificou a partir de 2015, com a “ruptura política” provocada pelo processo de  impeachment de Dilma Rousseff. Foram 132 assassinatos em 2016 e 2017.

Essa “ruptura” pode ser constatada nas ações políticas que se sucedem a partir de 2016. Segundo o CPT os recursos para a obtenção de terras foram reduzidos em mais de 60%, comparados aos valores de 2015. Igualmente os valores para a ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural) foram cortados pela metade, e o programa de Aquisição de Alimentos (PAA) que recebeu R$ 439 milhões, em 2016, baixou para R$ 150 milhões, no ano passado. Para 2018, a Pastoral afirma que o governo Temer já reduziu em 35% os recursos para a agricultura familiar e suprimiu mais de 56% dos valores destinados ao programa de segurança alimentar e nutricional para as famílias do campo.

Modelo agrícola concentrado

Em contrapartida, as indústrias de agrotóxicos movimentaram cerca de R$ 30 bilhões, somente em 2017, e pelas contas da “Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida” o país deixou de arrecadar, pelo menos, R$ 1,3 bilhão, visto que muitos desses produtos estão isentos do pagamento do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e, em muitos estados, são beneficiados com uma redução de até 60% da base de cálculo do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

Líder mundial do ranking de consumo de agrotóxicos, o Brasil despende, no mínimo, US$ 1,28 em tratamento médico com intoxicações a cada 1 dólar gasto com agrotóxico. Lembrando que a exposição dos trabalhadores rurais aos agrotóxicos, ao longo do tempo, causa diversos tipos de câncer e outras doenças que vão aparecer, também, nos consumidores de alimentos contaminados.  

A advogada Naiara Bittencourt, do movimento “Terra de Direitos”, enfatiza que políticas agrícolas que induzem ao consumo de agrotóxicos configuram “um modelo agrícola concentrado, dependente e envenenado”.

Impunidade e retrocesso

Desde 1985, a Pastoral divulga anualmente, em abril (em memória ao massacre de Eldorado dos Carajás), o relatório sobre a violência na área rural brasileira. Este ano, devido aos seguidos ataques hackers à sede da Pastoral, em Goiânia, fato denunciado pela organização, o relatório final só foi apresentado no início de junho. Nos 32 anos de aferição desses dados, a Pastoral catalogou 1.904 assassinatos, sendo que desse total 220 mortes foram resultantes de 46 massacres.

O documento também ressalta o ambiente de impunidade que ajuda a fomentar a violência no campo. Em mais de três décadas, apenas 8% dos assassinatos foram julgados, com a condenação de 31 mandantes de assassinatos e 94 executores.

Ainda assim, segundo o secretário nacional da CTP, Antônio Canuto, vai ser difícil encontrar os 31 mandantes em alguma cadeia. “Todos eles estão soltos”, afirma. “É a evolução da impunidade”, reforça.

No início de 2018, ao divulgar uma prévia do balanço sobre a questão agrária em 2017, a Pastoral já havia alertado para o “sombrio ciclo de retrocessos políticos” que o país estava sofrendo. Apesar de dados parciais que apontavam para 65 assassinatos (depois contabilizados para 71), a instituição chamou a atenção para o clima de terror que vingou em 2017, com assassinatos praticados com requintes de crueldade e a escalada da prática da chacina como método de aniquilação.