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quinta-feira, 25 de março de 2010

Hitler e os bons leitores de Nietzsche

por Sheila Sacks

Se as regras não mudarem, em pouco tempo as vitrines das livrarias da Alemanha voltarão a exibir um best-seller da década de 1930 (12 milhões de livros editados até 1945), banido desde o final da 2ª Grande Guerra por força da derrocada nazista.

Previsto para entrar em domínio público em 2015, 70 anos após o suicídio de seu autor, o tresloucado e pernicioso livro Mein Kampf (Minha Luta) vai estar à solta, de volta à luz do dia em um arremedo de situação que jamais deveria se repetir se houvesse um mínimo de prudência a capitanear as ações das autoridades competentes. Afinal, ressuscitar um espectro macabro que o sentido comum já ajuizou que melhor seria permanecer socado em sua tumba é como dar de ombros a um passado medonho ou mesmo cutucar a fera com vara curta.

Por conta dessa escandalosa liberação, intelectuais germânicos já se movimentam para elaborar uma edição comentada do livro de Hitler, com um tipo de enfoque que classificam de abordagem científica, ou seja o de procurar explicações e justificativas para uma matança hedionda seletiva instituída por um estado supostamente civilizado. A provável publicação acadêmica imediatamente distinguida com a terminologia de crítica (uma espécie de palavra mágica que funciona como salvo-conduto) ganhou o aval do secretário geral do Conselho Central dos Judeus da Alemanha, Stephan Kramer, para quem é melhor colocar na praça esse arrazoado infame acrescido de análises psico-sócio-políticas à edição normal do texto.

No entanto, as duas alternativas são inquietantes e talvez o prudente seria questionar um pouco mais essa resolução administrativa que pode se constituir em uma bomba relógio ambulante pronta a explodir mais adiante. Comodidades à parte, a luz vermelha está acesa e é preciso estar atento e mobilizado para manter essa obra no limbo, tratando-a como uma exceção às normas vigentes devido ao seu excepcional caráter sórdido e nocivo. E nesse caso específico, a liberdade de expressão não deveria servir de desculpa para a circulação anarquista de apologias discriminatórias e preconceituosas que achincalhem povos e raças.

Um Nietzsche edulcorado para as multidões
No rastro dessas novidades pouco alvissareiras de um futuro próximo, a terra das fábulas e dos contos de fada dos irmãos Grimm também lançou no início de 2010 mais uma coletânea de textos que procura recriar as ideias filosóficas de Friedrich Nietzsche (1844-1900), enxergando pacifismo, tolerância, admiração aos judeus e até uma suposta guinada ao pensamento social de esquerda daquele que foi o filósofo inspirador da política sanguinária de Hitler. O organizador da obra Nietzsche-Lexikon, o alemão Cristian Niemeyer, selecionou mais de 400 artigos de uma centena de autores identificados por ele como “bons leitores” do filósofo, aqueles que na sua opinião buscam entender a sutileza das ideias de Nietzsche, “sem falseá-las com interpretações pessoais”.

Fazendo coro com outras pesquisas similares, Niemeyer exime Nietzsche de apadrinhar o nazismo e o fascismo e põe a culpa de sua má-fama à irmã do filósofo, que segundo ele se apoderou de seu acervo literário, adulterando textos, cartas, a autobiografia, enfim, zoneando seus pensamentos e sua obra.

Acometido de uma doença mental que o tirou de circulação a partir de 1889 e até a sua morte, onze anos depois, Nietzsche tornou-se conhecido e celebrado justamente por seus conceitos de supremacia de raça (super-homem), aniquilamento dos fracos, desprezo às massas e rejeição ao Estado social, à democracia, à religião. Conceitos firmados, explicados e desenvolvidos por Nietzsche muito antes de seu colapso mental e da alegada intromissão da irmã. Segundo ainda Niemeyer, uma das vantagens de se entender o filósofo é que essa compreensão “pode ajudar as pessoas a viver de uma maneira aberta num mundo sem deus”. Trocado em miúdos, a filosofia de Nietzsche funcionaria como um excitante elixir para todos que se julgam “para além do bem e do mal”, título, aliás, de um de seus livros mais ilustrativos, publicado em 1886.

Filósofo queria os judeus fora da Alemanha
No livro em questão, Nietzsche doutrinava:”Não se permita o ingresso de outros judeus na Alemanha! E que lhes sejam fechados principalmente o império do Oriente e também a Áustria, eis o que diz claramente a voz do instinto universal, da qual preciso ouvir o aviso.”

No entender do filósofo, a Alemanha no século 19 já tinha judeus em número suficiente para causar indigestão. “O alemão vai demorar muito para digerir a quantidade de judeus que atualmente está provido, como já o fizeram os italianos, os franceses, os ingleses, graças a sua digestão mais robusta.” E prosseguia, explicativo, dissertando sobre os dois tipos de moral que percebia serem bem característicos em diferentes indivíduos. Para ele existia a moral dos senhores e a moral dos escravos, sendo que essa última seria essencialmente utilitária. Nietzsche imputava aos judeus, “povo nascido da escravidão”, a iniciativa de levaram a cabo uma miraculosa inversão de valores, como a de transformar o pobre em santo e o forte em mau.

Nietzsche se insurgia contra o que ele denominava de “virtudes passivas” (humildade, resignação, prudência, paciência, segurança) e acusava os judeus pelo que chamava de “insurreição dos escravos” no campo da moralidade. Em oposição à moral dos fortes (a dos senhores nobres e aristocratas), o Judaísmo havia criado, por um ato de vingança espiritual, uma moral servil, de culpabilidade, ressentimento e pecado. Um “antimundo” para justificar o sofrimento dos fracos, doentes e oprimidos.

Dizia Nietzsche que “a religião tem a inestimável vantagem de tornar os homens vulgares satisfeitos da sua própria posição, proporcionar-lhes paz ao coração, enobrecer a sua obediência, confortá-los e contribuir para transfigurar a sua monótona existência”. E concluía que “o que pode ser desfrutado em comum, é sempre coisa de baixo valor”.

Ideias delirantes e degeneração psicológica
Para o cofundador do movimento sionista, o húngaro Max Nordau (1849-1923), a originalidade de Nietzsche consistia na inversão tola e pueril da maneira racional de pensar. Em sua obra “Degeneração” ( Entartung), publicada em 1892, o médico, escritor, jornalista e amigo de Theodor Herzl dedica um capítulo ao filósofo alemão, afirmando que seu escritos exibem uma série de ideias delirantes provenientes de ilusões da razão e de processos orgânicos patológicos, comparáveis aos manuscritos dos doentes mentais que os psiquiatras devem ler, não por prazer, mas para prescreverem a internação do autor em um hospício.

Segundo Nordau, que exerceu a psiquiatria em Paris, degenerados psicológicos combinam relativismo moral com egoísmo, carecendo de sentido moral para distinguir o bem do mal e não apresentando sentido de indignação diante do sofrimento das pessoas.

Outro respeitado escritor, filósofo, matemático e pacifista, o inglês Bertrand Russel (1872-1970), também questionava a sanidade de Nietsche, classificando os seus escritos de “meras fantasias de poder de um homem doente”. Prêmio Nobel de Literatura em 1950, Russel justificou essa aversão no épico História da Filosofia Ocidental: “Eu não aprecio Nietzsche porque os homens a quem ele admira são os conquistadores, cuja glória está na habilidade de motivar os homens a matar.”

Nesse sentido Hitler foi um aluno aplicado de Nietzsche que fazia troça do sofrimento alheio. Em um de seus aforismos afirmou que “é preciso ter grande força de imaginação para poder sentir compaixão”. Quanto aos grandes vilões da história, estão todos alforriados na visão de Nietzsche porque não se deve julgar o passado. “A injustiça da escravidão, a crueldade na sujeição de pessoas e povos não devem ser medidas pelos nossos critérios(...) Do mesmo modo a Inquisição tinha as suas razões.”

Hitler distribuía livros de Nietzsche para os soldados
Idolatrado pelo líder nazista, que se considerava a própria encarnação do super-homem (Übermench) do livro “Assim falou Zaratustra” (escrito entre 1883 e 1885), Nietzsche também era oferecido como leitura educativa aos soldados alemães. O veterano jornalista alemão Peter Scholl-Latour, de 86 anos, conta que os militares nazistas liam Zaratustra nas frentes de batalha para se sentirem mais motivados. Imbuídos da ideia de que eram seres superiores, posicionados muito além da moral vulgar das multidões, da gente comum, dos inferiores e débeis, julgavam-se senhores do mundo, uma nova raça de gigantes que imporia a sua vontade de poder sobre uma massa impotente e submissa.

Situação semelhante já ocorrera na Primeira Grande Guerra (1914-1918) e de acordo com outro grande admirador de Nietzsche e membro oficial do partido nazista, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), “na Alemanha ou se era contra ou a favor de Nietzsche”. Aliás, esse envolvimento declarado de Heidegger com o nazismo ( escrevia discursos para Hitler e colaborou para a expulsão de professores judeus da Universidade de Freiburg, em 1933 ) motivou o filósofo francês Emmanuel Faye, 54anos, a propor a remoção das obras de Heidegger das bibliotecas de filosofia. Em seu livro Heidegger, l'introduction du nazisme dans la philosophie (2005), Faye afirma que a obra do alemão está seriamente comprometida com a doutrina nazista.

Fotos mostram culto do ditador nazista a Nietzsche

A admiração de Hitler por Nietzsche também foi destacada pelo jornalista e escritor norte-americano William Shirer (1904-1993) em sua majestosa obra Ascenção e Queda do III Reich: “ Frequentemente Hitler visitava o museu de Nietzsche em Weimar e demonstrava publicamente a sua veneração ao filósofo posando para fotos em que aparece fitando com admiração a imagem daquele que considerava um grande homem."

Em seu livro “Hitler as nobody knows him”, publicado em 1933 (meio milhão de exemplares vendidos até 1938) o fotógrafo pessoal de Hitler, o alemão Heinrich Hoffman, incluiu uma foto do ditador ao lado da escultura de Nietzsche com a seguinte legenda: “O führer em frente ao busto do filósofo alemão, cujas ideias fomentaram dois grandes movimentos populares: o Nacional Socialismo na Alemanha e o Fascismo na Itália.” Falecido em 1957, Hoffman detinha os direitos autorais sobre os retratos oficiais de Hitler usados em selos postais e escritórios do governo e foi em sua loja de material fotográfico que o líder nazista conheceu Eva Braun, ajudante de Hoffman. Amante de Hitler por quatorze anos, eles casaram-se algumas horas antes do suicídio de ambos, em 30 de abril de 1945.
Judaísmo é o oposto de tudo que Nietzsche propagou
Recentemente o rabino-chefe da comunidade judaica britânica, Sir Jonathan Sacks, de 62 anos, foi bastante incisivo em sua condenação aos conceitos do filósofo alemão.” Particularmente considero Nietzsche uma total antítese dos valores judaicos. Eu não vejo relevância no fato de que vez ou outra ele encontre coisas agradáveis para dizer sobre os judeus. Um homem que expressou desprezo pela compaixão e pela ajuda ao próximo; pela bondade, tolerância, perseverança, humildade e amizade, mostrou isso sim, o tempo todo, o que o Judaísmo não é.”

Liderando desde 1990 as Congregações Hebraicas Unidas da Commonwealth e autor de duas dezenas de livros de temática judaica traduzidos em vários idiomas (Teremos Netos Judeus?, A Dignidade da Diferença, Uma Letra da Torá), o rabino Sacks – alçado à categoria de lord em 2009 - radicaliza em se tratando de Nietzsche. “Li seus escritos para saber que o Judaísmo é oposição nessa batalha, agora e para sempre."

Citando a odisséia do Êxodo, o religioso lembra que há 33 séculos o Judaísmo se mostrou como uma voz revolucionária ao enfrentar o poder supremo do faraó para resgatar os indefesos. “As religiões do mundo antigo eram justificativas do status quo. Explicavam por que os ricos e poderosos tinham de ser ricos e poderosos. O Judaísmo mudou essa concepção. A liberdade começa quando partilhamos nosso pão com os outros. Em Pessach lemos: Este é o pão da aflição que nossos ancestrais comeram no Egito. Deixe que todos os famintos venham e comam.”