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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Em Portugal, cidade medieval terá museu judaico

Sinais hebraicos na região datam de mais de 5 séculos

por Sheila Sacks

Catalogada como uma das doze “aldeias históricas” de Portugal, a cidade de Trancoso, no centro-norte de Portugal, surpreende os visitantes pela imponência de suas muralhas e pela beleza de seus monumentos, igrejas e castelos medievais. Foi nessas paragens que, em 1282, Isabel de Aragão, então com 12 anos (canonizada 400 anos depois como Santa Isabel), entra na Igreja de São Bartolomeu para se casar com D.Dinis, rei de Portugal, que lhe dá o povoado como dote.

Situado a uma mesma distância de Lisboa e de Madri (em torno de 350 quilômetros dessas capitais), o município de Trancoso, no distrito da Guarda, subregião da Beira Interior, abriga 11 mil moradores e um patrimônio histórico e arquitetônico que engloba um antigo bairro judeu, provavelmente estabelecido no século 15 por judeus fugitivos da Espanha, após o édito de expulsão assinado em 1492 pelos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela.

Nesse centro histórico rodeado por altas muralhas e um majestoso portão medieval – a antiga Porta d’El Rei em homenagem ao rei D.Dinis – está sendo construído pela municipalidade um museu judaico. Denominado “Centro de Interpretação Judaica Isaac Cardoso”, em memória ao médico e filósofo judeu nascido em Trancoso, em 1603, o prédio terá uma sala de exposições, espaço museológico dedicado ao passado da presença judaica na região, sala de documentação bibliográfica e um pequeno templo de orações para visitantes judeus (Beth Mayim Haim – Casa das Águas Vivas). De acordo com o presidente da Câmara Municipal de Trancoso, Julio Sarmento, está sendo investido 1,2 milhão de euros na construção do museu, com uma coparticipação comunitária de 85%.

Rabinos visitam Trancoso

Em dezembro de 2011 estiveram em Trancoso os rabinos Shlomo Riskin, presidente do “Centro para o Entendimento e Cooperação Judaico-Cristão de Israel” (Center for Jewish- Christian Understanding and Cooperation - CJCUC), e Elisha Salas, da organização “Shavei Israel” (que faz a conversão dos chamados “judeus perdidos”, aqueles descendentes dos judeus forçados a abandonar a religião), que atua em Portugal. Em visita ao local onde será implantado o museu, os religiosos mostraram-se entusiasmados com a solidariedade e o apoio do município de Trancoso e agradeceram à população, seus técnicos e os autores do projeto, arquitetos Gonçalo Byrne e José Laranjeira. “Este centro judaico dedicado a Issac Cardoso, uma destacada figura judaica portuguesa, e a sinagoga que vai comportar são uma expressão fantástica de que a memória dos perseguidos pela Inquisição e seus descendentes está viva, mais de 500 anos após a conversão forçada, a expulsão e a resistência, mesmo que em segredo, que preservou a cultura e a fé”, disse o rabino Riskin.

Júlio Sarmento adiantou que serão produzidos vários conteúdos multimídia e que haverá referências a judeus naturais e residentes em Trancoso que foram vítimas da Inquisição. A historiadora Carla Santos, que investiga a presença judaica na região, sustenta que os judeus já viviam em território português desde os primórdios da Idade Média e que essa vivência prolongou-se por um período de, pelo menos, mil anos, “balizados arqueológica e legalmente entre os anos de 482 e 1496”, data do édito de expulsão de Portugal da minoria religiosa. “Em consequência da expulsão dos judeus e mouros, alguns membros da comunidade judaica converteram-se ao cristianismo, ainda que, apenas, aparentemente. Naturalmente os mais abastados saíram do país constituindo parte da diáspora de origem sefardita”, explica.

Herança judaica

Outra estudiosa do tema, Antonieta Garcia, docente da Universidade da Beira Interior, afirma que é preciso aprofundar as investigações sobre as figuras judaicas que marcaram a região, mas cuja influência permanece desconhecida. “Por exemplo, onde houve uma forte presença judaica, o comércio teve um desenvolvimento espantoso. É o caso de Trancoso”, exemplifica. A historiadora aponta ainda como uma herança de prática religiosa e costumes judaicos, o forte significado da celebração da Páscoa. A proximidade com a Espanha é outro diferencial: “O que esta região tinha de diferente era a proximidade da fronteira. Desde que nasceu a Inquisição até o seu final, no século 19, circulavam muitos judeus neste local, entre Portugal e Espanha e por entre diferenças religiosas”, explica.

Atualmente várias excursões são realizadas tendo Trancoso e outras cidades do distrito da Guarda (antiga região da Beira Alta) como foco. Pesquisadores e turistas judeus de várias nacionalidades têm visitado essas localidades interessados em conhecer um passado medieval envolto em segredos e mistérios por força do poder do Santo Ofício que perdurou por três séculos em Portugal. A Rua da Alegria, no centro histórico de Trancoso, junto à muralha, seria uma das principais vias do antigo bairro judeu, cujos moradores, em 1496, antes do édito da expulsão, representavam a quinta parte de toda a população da cidade.

Um dos lugares mais característicos do antigo bairro é a “Casa do Gato Preto” ou a “Casa do Rabino”, que muitos acreditam ter sido uma sinagoga. O imóvel de arquitetura medieval apresenta desenhos de raízes hebraicas esculpidos na fachada principal. Investigadores interpretam como sendo as portas de Jerusalém, um pelicano ou pomba, quatro semblantes e o leão de Judá. Em um outro imóvel, descobriu-se uma mezuzá no interior da parede, artefato usado até hoje pelos judeus para santificar as suas casas. Colocado na parte superior do batente direito da porta de entrada, a mezuzá (do hebraico umbral) contém um pequeno rolo de pergaminho com duas passagens bíblicas e se constitui em uma proteção divina ao lar.

Sinais e caracteres gravados nas paredes de pedra e nos umbrais das portas da entrada das casas denominados cruciformes (cruzes de variados formatos) também revelam que aquelas habitações pertenciam aos chamados cristãos-novos, judeus que aparentemente professavam a fé cristã. Olhados com desconfiança pelos católicos tradicionais, que acreditavam que muitos desses conversos continuavam a praticar em segredo ritos judaicos, os cristãos-novos desenhavam cruzes nas portas de suas moradias com o intuito de serem poupados pela Inquisição, introduzida em Portugal em 1536.

Judeus ilustres

A cidade de Troncoso também é conhecida como o berço natal de Gonçalo Anes, o Bandarra (1500-1556), um misterioso trovador, provavelmente de ascendência judaica, que possuidor de um bom conhecimento das Escrituras, profetizou sobre o futuro do reino de Portugal. Seus versos messiânicos tiveram grande aceitação entre os cristãos-novos e serviu de inspiração e muitos escritores como Fernando Pessoa, o maior poeta português da era contemporânea. Acusado de judaísmo pela Inquisição, Bandarra – que era sapateiro de profissão – teve as suas trovas incluídas no catálogo de livros proibidos pela Igreja e foi condenado pelo tribunal do Santo Ofício a nunca mais interpretar a Bíblia e escrever sobre assuntos de teologia.

Sobre Bandarra, Fernando Pessoa escreveu: Sonhava, anônimo e disperso/ O Império por Deus mesmo visto,/Confuso como o Universo/E plebeu como Jesus Cristo./Não foi nem santo nem herói/Mas Deus sagrou com Seu sinal/ Este, cujo coração foi / Não português, mas Portugal (do livro “Mensagem” – uma coletânea de poemas sobre grandes personagens portugueses).

Já Isaac Cardoso, que dará seu nome ao Centro de Interpretação Judaica, embora nascido em Trancoso, ainda criança mudou-se com a família para a Espanha. Estudou em Salamanca e lecionou filosofia e depois medicina em Valladolid. Foi médico da corte real até que, em 1648, mudou-se para Veneza, onde assumiu publicamente a sua condição de judeu e adotou o nome de Issac (o de batismo era Fernando). De 1653 até o final de seus dias, em 1683, voltou a exercer a medicina em Verona, simultaneamente escrevendo dezenas de livros, entre eles, “Del Origen Del Mundo”, “Philosophia Libera” e “Las Excelências de los hebreus” (dedicado ao judeu português Jacob de Pinto), em que cita Bandarra como “o profeta de Trancoso”.

Encontro com Bento 16

No início de 2011, meses antes da visita a Trancoso, o rabino Shlomo Riskin se reuniu com o Papa Bento 16, no Vaticano, para falar sobre o trabalho desenvolvido pelo Centro para o Entendimento e Cooperação Judaico-Cristão (CJCUC), entidade a qual preside e que promove o diálogo teológico e de fé com os cristãos que vivem em Israel. Membro do Grão-Rabinato de Israel, o rabino Riskin disse ao Papa que tem procurado aliviar a pobreza nessa comunidade religiosa. Também está empenhado em permanecer solidário com os irmãos e irmãs cristãos em Israel e advogar por eles. “Pela primeira vez na história dos judeus, nós, como maioria, devemos tratar das minorias religiosas, e é obrigação do judaísmo aderir ao preceito bíblico que diz: Amarás o estrangeiro que vive em tua terra.” De acordo com o rabino Riskin, o Papa se mostrou satisfeito e respondeu: “Temos de trabalhar juntos”.

Uma das ações propostas pelo CJCUC foi a de criar programas para instruir os rabinos de Israel e da diáspora no diálogo entre judeus e cristãos visando melhorar a compreensão e cooperação em questões religiosas e morais. “Eu tive a oportunidade de contar isso brevemente a Sua Santidade”, disse Riskin. “Falamos das atuais oportunidades de diálogo para que os cristãos que viajam a Israel possam conhecer mais as raízes judaicas de sua fé.”

Entusiasmado com o que viu em Trancoso, o rabino Riskin considera que o museu judaico vai se constituir em uma referência não só para Portugal, mas também e sobretudo para o mundo, valorizando a tradição e o passado da presença judaica em termos culturais, sociais, históricos e patrimoniais. “Funcionará como um centro de aglutinação para judeus e cripto-judeus que retornaram ou pretendem retornar à identidade judaica, sempre numa atitude de cultura, conhecimento, estudo e fé”, reafirmou Riskin que desde 1983 dirige a comunidade de Efrat, cidade que fica entre Belém e Hebron.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O Japão não é aqui

Por Sheila Sacks
publicado no site "Observatório da Imprensa"
http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed677_o_japao_nao_e_aqui


“Jornalismo é uma questão de ênfase” (Paulo Francis)

Quatro dias antes de se completar um ano do mais grave fenômeno climático em número de vítimas que atingiu o país, o jornal O Globo,se antecipando à data, encartou um suplemento especial sobre o tema em sua edição dominical [8/1], enfatizando o imenso esforço que a população atingida pela tragédia vem fazendo para retomar a rotina. A chuva torrencial sobre a região serrana do Rio de Janeiro, que matou 918 pessoas e deixou 215 desaparecidos, ocorrida na madrugada de 12 de janeiro de 2011 nas cidades turísticas de Petrópolis, Teresópolis, Friburgo e arredores, voltou a ter destaque na mídia por conta das chuvas que desde os primeiros dias de 2012 castigam o interior do estado, desta vez em municípios próximos da divisa com Minas Gerais.

A reportagem (“A vida de Brayan”, em alusão ao menino nascido em uma maternidade de Teresópolis “enquanto o mundo desabava”) focaliza ações individuais de ajuda aos desabrigados; os mutirões que têm reunido moradores e instituições empenhados na construção de novas moradias; a recuperação da lavoura e a criação de uma cooperativa; a presença do poder público nas ações iniciais de emergência e socorro às vítimas, na transferência de verbas para a reconstrução dos acessos destruídos pelas enchentes e na ativação de programas de ajuda financeira às famílias que perderam suas casas (aluguel social), sem faltar o relato das investigações em curso, a cargo da Controladoria Geral da União (GCU), sobre possíveis irregularidades na utilização desses recursos por parte de funcionários das prefeituras, donos de construtoras e firmas de serviço.

Destruição e falência de empresas

Ainda que o encarte seja crítico em relação às ações governamentais (“Enxurrada de promessas só foi cumprida parcialmente”), houve espaço razoável na reportagem para que representantes do poder público falassem sobre o trabalho desenvolvido na região no decorrer de 2011. A insistência da mídia em minimizar as iniciativas levadas a efeito pelo governo (limpeza das áreas atingidas, remoção de barreiras, reconstrução de acessos, dragagem de rios, melhoria no sistema de alarme de cheias, mapeamento de áreas de risco geológico, instalação de sirenes e pluviômetros em áreas vulneráveis etc) porque sua abrangência e resultados não atenderam à totalidade da imensa demanda que tais tragédias costumam requerer, denota um tipo de ênfase tendencial, quase institucionalizada, por parte da maioria dos meios de comunicação.

Desta vez, o enquadramento noticioso se fixou em aspectos comparativos entre o Brasil e o Japão – país assolado, em março de 2011, por uma tríplice tragédia: terremoto, tsunami e vazamento nuclear – no que concernem à grandeza do estrago e os resultados obtidos em todo o processo de socorro às vítimas, atendimento às populações e recuperação física das localidades atingidas pelas catástrofes. Editoriais, colunistas e comentaristas de notícia repercutiram e ampliaram o enfoque das críticas, ancorados na afirmação simplista e padronizada de que “ muito pouco ou nada foi feito”, permitindo-se ainda desconsiderar os obstáculos geológicos, jurídicos e burocráticos que têm atrasado os trabalhos de reconstrução.

“Foram quatro dias de horror, nos quais os japoneses enfrentaram um terremoto, seguido de um tsunami e finalizado com explosões na usina nuclear de Fukushima Daiichi – com um saldo de cidades inteiras destruídas, 20 mil mortos ou desaparecidos, 70 mil refugiados nucleares, 800 mil casas total ou parcialmente destruídas, 400 mil pessoas deslocadas de seus lares, além de destruição de toda a infraestrutura de uma vasta área e a falência de milhares de empresas” (coluna de Ricardo Setti – Veja online de 14/12/11). O preço da reconstrução está sendo estimado pelo governo japonês em 235,8 bilhões de dólares.

A política é acalmar a população

Já na região serrana do Rio, segundo os parlamentares que integraram a CPI das chuvas na Assembleia Legislativa (Alerj), encerrada em setembro de 2011, a tempestade, além de provocar mais de mil vítimas, entre mortos e desaparecidos, afetou meio milhão de pessoas, deixando 35 mil desalojados, mais de 7 mil desabrigados, um prejuízo de 4 bilhões de reais, além da estimativa de recuperação das cidades em dois anos (“Um ano da tragédia na região serrana” – O Fluminense, em 11/1/12). Relatório da Comissão Especial de Medidas Preventivas e Saneadoras de Catástrofes Climáticas da Câmara dos Deputados revela que as tragédias naturais no estado do Rio de Janeiro foram agravadas pelo incremento da construção civil e a reocupação de áreas de risco. “Os deputados afirmam que, na serra fluminense, 85% das áreas atingidas por deslizamentos em 2011 foram desmatadas ou alteradas pela ação do homem” (“Mesmo com histórico de tragédias, Brasil não investe em prevenção” – O Globo, em 11/1/12). Um cenário, portanto, de causas e soluções diferentes daquelas propostas no Japão onde os moradores deverão retornar as suas moradias reconstruídas, excetuando aqueles que residiam nos arredores da usina nuclear de Fukushima.

Neste aspecto, aliás – o de realocamento de famílias –, o governo do Japão tem sido bastante questionado pelos habitantes das cidades próximas à usina por não estar adotando uma política séria de proteção à saúde. Protestos têm sido organizados em Tóquio contra a posição do governo de concentrar esforços em “aliviar” a preocupação pública prometendo reduzir a exposição radioativa em áreas afetadas ao invés de realizar remoções. Pesquisa realizada na região demonstrou que um terço dos cidadãos de Fukushima desejaria mudar, mas não o fazem pelos problemas e custos que isso acarretaria. Na manifestação antinuclear realizada em Tóquio para lembrar os seis meses do vazamento da usina, manifestantes exibiram faixas e cartazes que demonstravam a sua revolta: “A radioatividade não tem fronteiras” e “Do Japão ao mundo: Perdão!” (“Protestos antinucleares marcam 6 meses de crise em Fukushima” – agência EFE, em 11/9/11).

A ativista Aileen Mioko Smith, que lidera a organização não governamental Green Action Japan, critica as medidas do governo japonês: “Nossas reuniões com funcionários para pedir mais rapidez em programas de evacuação dos grupos de alto risco são respondidas com promessas de limpeza do lixo radioativo. Isto é totalmente irresponsável.” Também a representante da ONG Mães de Fukushima contra a Radiação, Ayako Ooga, mostra-se decepcionada com a posição do governo: “Não é a recuperação que imaginávamos. A política é acalmar a população, mas o que queremos são ações honestas do governo.” Para a Green Action Japan, os novos padrões adotados pelas autoridades com relação ao nível aceito de radiação não protegem a população mais vulnerável, como crianças, mulheres grávidas e idosos (“Muitos lutam para salvar a infância em Fukushima” – Inter Press Service, em 9/11/11).

US$ 30 milhões destinados à indústria baleeira

Em outra cidade, Ishinomaki, no noroeste do Japão, milhares de desabrigados passam o rigoroso inverno em casas improvisadas. Um vídeo produzido pela agência France Presse, em dezembro de 2011 (“Cidades japonesas continuam destruídas 9 meses após tsunami”), apresenta um panorama de devastação, com entulho, mato, escombros e casas arrasadas. Muitas famílias, com a chegada da neve, estão vivendo nas ruínas do que foram as suas casas. O governo admite que a reconstrução vai demorar e que ainda não há previsão de entrega de moradias permanentes. Os atingidos pela tragédia também se mostram preocupados com o fim da concessão do seguro-desemprego que termina em fevereiro de 2012. Em outra cidade, Onagawa, os desabrigados vivem em contêineres de navio, uma alternativa para os que ficaram sem teto.

Além das críticas à condução da política de realocamento e reparação de danos decorrentes do vazamento nuclear, o governo japonês também está sendo acusado de desviar 30 milhões de dólares dos fundos destinados à recuperação das áreas atingidas pelo terremoto e tsunami para subvencionar o programa anual de caça às baleias. A ONG Greenpeace denunciou que esses recursos estão sendo gastos para proteger a frota baleeira que já está no Ártico (“Japão promove caça de baleias com verba de pós-tsunami, diz ONG” – Folha de S.Paulo, em 7/12/11). As autoridades japonesas inicialmente justificaram o uso da verba como uma forma de ajudar na recuperação das comunidades costeiras que trabalham nesse tipo de atividade, depois recuaram e disseram que os recursos vieram dos impostos.

Apesar da pesca da baleia para fins comerciais ser proibida desde 1986 pela Comissão Baleeira Internacional (CBI), anualmente em torno de mil baleias são mortas pelos pesqueiros japoneses, sob protestos de países como a Austrália, Holanda e Estados Unidos e de várias organizações ambientalistas. Uma delas, a Sea Shepherd, que com seus barcos há sete anos tenta evitar as atividades da frota baleeira no oceano Antártico, lembra que a prioridade no uso de verbas é para atender os atingidos pela catástrofe. O fundador da ONG, Paul Watson, insiste nesse ponto. “De qualquer maneira, a pergunta deve ser feita: quando as pessoas estão desabrigadas por causa do desastre, por que 30 milhões de dólares são destinados à indústria baleeira para defender a sua operação de caça ilegal no Santuário Antártico das Baleias?”

Ações para reduzir riscos e mortes

Mas, voltando à região serrana, a intervenção nas áreas atingidas não ficará limitada à limpeza e desobstrução das vias, a remoção de entulhos, consertos emergenciais e a retomada dos serviços interrompidos. Isso já foi feito em grande parte das localidades. Será preciso realizar obras de razoável tecnologia de engenharia para tornar as cidades seguras do ponto de vista habitacional. O realocamento de centenas de famílias que residem em áreas de encostas e margens de rios muitas vezes esbarra na escassez de terrenos planos e seguros ofertáveis à compra pelo poder público ou mesmo passíveis de serem desapropriados para a construção de novas casas e bairros. Muitas vezes terrenos que parecem viáveis para a moradia acabam não recebendo o nada consta ambiental.

O governo do estado do Rio afirma que aplicou 49 milhões de reais em 2011 em várias frentes de trabalho na Região Serrana, principalmente as emergenciais e as voltadas para restaurar a normalidade dos acessos e serviços nas localidades. Por sua vez, a reconstrução de dezenas de pontes, grande parte delas pequenas, vão ser realizadas após estudos de viabilidade. As enxurradas mudaram as margens dos rios e a quantidade de água que passava debaixo das pontes. Setores ambientais do estado tiveram que analisar os projetos. Com o mapeamento de 170 pontos de alto risco (os temporais de janeiro de 2011 provocaram 777 deslizamentos em sete municípios da serra fluminense), o cálculo dos técnicos é de que será preciso 1 bilhão de reais para tornar as encostas seguras, além dos 147 milhões de reais que já estão sendo investidos em 30 pontos considerados prioritários. Outros 265 milhões de reais serão necessários para a realização de trabalhos de dragagem, canalização, construção de barragens e implantação de um parque fluvial (“Estado diz que precisa de mais R$ 1 bi para encostas”, O Globo, em 12/1/12). A disposição do governo também é de construir cinco mil casas para atender aqueles que perderam ou tiveram as suas moradias interditadas ou condenadas pela Defesa Civil. Atualmente, 7.372 famílias recebem ajuda do governo por meio do aluguel social no valor de R$ 500 mensais.

Em 2007, quando da primeira conferência sobre redução dos riscos de catástrofes organizada pela ONU, a crescente vulnerabilidade das cidades já preocupava. “A progressiva urbanização, conjugada com as alterações climáticas, criará novas situações de stress para os povoamentos urbanos, tornando milhões de pessoas ainda mais vulneráveis a catástrofes”, alertava o então subsecretário-geral da ONU para assuntos humanitários e coordenador de ajuda de emergência, John Holmes, chamando a atenção ainda para a necessidade de se implementar ações que pudessem evitar ou reduzir os riscos e as mortes.“Um planejamento eficaz, a elaboração de orçamentos corajosos e a aplicação de políticas que impeçam a fixação de seres humanos em zonas de perigo são indispensáveis. Temos de velar para que os hospitais, as escolas, os transportes e as redes de água consigam resistir aos riscos decorrentes de catástrofes.”

Avanço “em direção ao fim”

Em relação à região serrana, “a ocupação de Áreas de Proteção Permanente- APPs (áreas cobertas ou não por vegetação nativa, que têm como função preservar os recursos hídricos, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo de fauna e flora e proteger o solo) maximizou os impactos dos desarranjos do clima e sua variabilidade”, explica a coordenadora do Programa de Mudanças Climáticas e Resposta a Desastres da organização não-governamental Care Brasil, Leila Soraya Menezes. Ela alerta para o fato de que áreas de extremo risco de desastre estão ocupadas por comunidades inteiras, em geral comunidades em situação de extrema vulnerabilidade social. “O que aconteceu na serra fluminense mostra como a ocupação intensa de APPs protegidas pelo nosso Código Florestal, como dunas, mangues, encostas e topos de morro, beiras de rio e matas, que cumprem papel natural de redução de riscos, podem potencializar uma tragédia.” Relatório de Inspeção do Ministério do Meio Ambiente já havia revelado que as áreas mais atingidas foram justamente as APPs, onde as pessoas habitavam irregularmente áreas à beira ou muito próximas às margens dos cursos dos rios e áreas de encostas de morros com grande declividade e que esses moradores morreram atingidos por inundações e deslizamentos de terra” (“Mudanças climáticas –Sociedade de risco”, portal Ipea).

Em suma, em ambas as catástrofes houve equívocos na condução dos trabalhos a serem realizados que resultaram em omissões e erros de avaliação. A reconstrução de qualquer área submetida à fúria de um desastre natural, além de requerer custos estratosféricos, é um desafio que exige, após os primeiros dias de reação emergencial, um planejamento gerencial conjugado envolvendo várias estruturas e mecanismos governamentais simultaneamente, com propostas e ações alternativas já prevendo os possíveis cerceamentos jurídicos e ambientais que costumam interromper e atrasar os cronogramas de obras. Consciente dessa questão, a ONU promoveu em maio de 2011, em Genebra, juntamente com o Banco Mundial, a primeira conferência sobre reconstrução (World Reconstruction Conference). Presente ao encontro, a diretora do departamento de finanças, economia e desenvolvimento urbano do banco, Zoubida Allaoua, resumiu a essência dos debates: “Queremos aprender com o passado e chegar a um acordo sobre uma nova estrutura que agilize a reconstrução após uma catástrofe, aprovar normas comuns, melhorar a qualidade e aumentar a transparência.”

Metas que precisam ser implementadas com certa urgência. Neste início de ano, face aos desastres climáticos de 2011, o relógio do Juízo Final foi adiantado em um minuto, deslocando-se para 23h55m. De acordo com o Boletim dos Cientistas Atômicos, grupo que criou este mecanismo em 1947, além da disseminação das armas nucleares, o que pesou no avanço “em direção ao fim” foi a falta de empenho global no combate às mudanças climáticas que têm provocado desastres naturais de grande monta, com prejuízos bilionários e milhares de mortes, principalmente em países em desenvolvimento pouco capacitados para lidar com esses tipos de catástrofes.