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terça-feira, 1 de novembro de 2011

Troca de prisioneiros: quando um é muito


por Sheila Sacks
publicado no "Observatório da Imprensa"
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_troca_de_prisioneiros__quando_um_e_muito


“Não posso escolher como me sinto, mas posso escolher o que fazer a respeito.” (William Shakespeare)

Em maio deste ano, por ocasião das homenagens às vítimas holandesas da II Grande Guerra, pediu-se aos moradores de Amsterdã para sinalizarem com cartazes as casas onde residiam os judeus que foram deportados para os campos de concentração nazistas. Para isso, os atuais proprietários dessas casas receberam um cartaz com o seguinte texto: “Esta é uma das 21.662 casas em que viveram judeus antes de serem mortos durante a Segunda Guerra Mundial.”

Com o apoio do Arquivo Nacional da Holanda, procurou-se dar uma conotação mais emotiva e educativa ao evento, lembrando às gerações futuras os acontecimentos trágicos ocorridos há pouco mais de 70 anos. Em um artigo para a Radio Nederland Internacional (RNW), a jornalista Myrtille van Bommel constatou a boa receptividade dos moradores à ideia e lembrou que, em 1941, viviam cerca de 80 mil judeus em Amsterdã – 10% do total da população da cidade. “A maioria dos judeus de Amsterdã, 61.700 homens, mulheres e crianças, não sobreviveu à guerra. Morreram em campos de extermínio” (“Amsterdã sinaliza casas de judeus deportados”, em 2/5/2011).

Por outro lado, também como parte da programação em homenagem às vítimas, o canal NCRV da televisão pública holandesa exibiu um documentário sobre os chamados “soldados negros” (Zwarte Soldaten), oficiais holandeses da Gestapo ligados ao extinto partido pró-germânico NSB (Netherlands Socialistic Union) que atuaram nas forças de repressão durante a ocupação alemã. Dias antes, dada a expectativa gerada pela veiculação da fita, a imprensa holandesa adiantou alguns extratos do filme que, ao contrário do que seria o esperado, mostrou que “as feridas da II Guerra Mundial seguem abertas na Holanda”. No documentário, os seis entrevistados – o mais novo, com 85 anos – não demonstravam nenhum sinal de arrependimento ou remorso em relação à matança dos judeus e se negaram a pedir perdão a seus compatriotas por terem colaborado com os ocupantes nazistas.

“Ausência de arrependimento”

Na reportagem publicada pelo jornal espanhol El Mundo (“Ex SS holandeses hablan en público: “Hitler hizo lo correcto!”, em 27/4/2011), o diretor do documentário, Joost Seelen, apontou a idade avançada dos entrevistados como justificativa para as “surpreendentes” declarações dos antigos membros das SS holandesas, colhidas em 2009 através de depoimentos individuais que duraram até três horas. “Eles nada tinham a perder, conscientes que estavam que lhes restavam poucos anos de vida”, ponderou o diretor. Contando originalmente com o testemunho de oito participantes, dois deles vieram a falecer antes da exibição do filme.

Em seus depoimentos, os entrevistados defenderam Hitler e a estratégia da “solução final” dos campos de extermínio. “Eles se ocuparam de manter a pureza da raça e não sinto nenhum remorso até os dias de hoje”, afirmou Kris Kol, um dos antigos SS. “Hitler conseguiu fazer uma boa limpeza”, reforçou o seu colega Klaas Overmars, recentemente falecido. Segundo a reportagem, o que sobressaiu nos polêmicos testemunhos foi um indisfarçável “ódio aos judeus”, expresso de forma direta e sem rodeios. “Hitler fez o correto,” reafirmou Kol, demonstrando orgulho de seu passado.

Cinco meses depois da exibição do documentário holandês, quando da troca do soldado israelense Gilad Shalit por 447 prisioneiros palestinos condenados por terrorismo (de um total de 1027 a serem libertados), novamente a questão da “ausência de arrependimento” veio à tona no artigo da jornalista Frimet Roth, que teve a filha de 15 anos morta em agosto de 2001 no ataque à pizzaria Sbarro, em Jerusalém. Publicada pelo jornal israelense Haaretz (16/10), a matéria apelava ao primeiro ministro Benjamim Netanyahu para que não libertasse a jordaniana Ahlam Tamimi, envolvida no ataque, face à frieza demonstrada pela terrorista todas às vezes que fora instada a falar sobre o ocorrido. Tamimi, então com 20 anos, foi a encarregada pelo Hamas da missão de transportar, de Ramalah, na Cisjordânia, até Jerusalém, os 10 quilos de dinamite usados pelo homem-bomba que explodiu a pizzaria matando 15 pessoas e ferindo mais de 100.

Ações de Israel influenciam antissemitismo

Em um vídeo apresentado pelo canal 2 de notícias da TV israelense, Tamimi reafirmou o que já havia dito em 2006 sobre a sua participação no ataque. Respondendo ao repórter da emissora, ela disse que não se sentia mal ou com pena das vítimas e se houvesse uma nova oportunidade ela faria novamente. “Não me arrependo do que fiz. Por que tenho que me arrepender? Não fiz nada de errado”, disse. Condenada a 16 prisões perpétuas, Tamimi foi libertada em 18 de outubro pelo governo israelense e retornou a Jordânia. Em Amã, em entrevista à rede de TV Al Jazira, ela expressou lealdade ao braço militar do Hamas: “Deus tem escolhido seus soldados nesta terra, e eles são os soldados das brigadas de Al-Qassam (braço armado do grupo que controla a Faixa de Gaza)”, declarou à rede. Tamimi também revelou, em uma das entrevistas, que a escolha de Jerusalém para alvo do ataque levou em conta o grande número de judeus ortodoxos residentes na cidade, os quais são considerados pelo Hamas os seus principais inimigos pela ferrenha posição de defesa do território bíblico de Israel.

A declaração em si não traz nenhuma novidade mas intensifica o inquietante quadro político instalado, há décadas, no Oriente Médio, a partir da visível ascensão da sharia (leis islâmicas) e dos partidos islâmicos nos futuros governos dos países árabes sacudidos por rebeliões populares. A correspondente de O Globo, Graça Magalhães-Ruether, destacando a vitória dos islamistas na Tunísia, berço da chamada Primavera Árabe, chama a atenção para dois outros países, a Líbia e o Egito, ambos a caminho da islamização. “Na Líbia, o Conselho Nacional de Transição (CNT) já informou que a sharia (lei islâmica) será a fonte de inspiração legal do novo governo e no Egito a Irmandade Muçulmana desponta como força de peso no cenário pós-HosniMubarak.” Para o cientista político tunisiano Hammadi el-Aouni, da Universidade livre de Berlim, “há risco de se sair de uma ditadura para entrar em outra, a islâmica” (“Entre a sharia e a democracia”, 26/10/2011).

Em recente pesquisa sobre antissemitismo realizada pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) e divulgada pela Delegação das Associações Israelitas da Argentina (Daia), 25% dos argentinos consultados creditaram as ocorrências de violência contra judeus na diáspora a um sentimento anti-Israel. Mas a esmagadora maioria, cerca de 75% dos entrevistados, respondeu que o sentimento antijudaico (antissemitismo) ainda é o principal motor das manifestações contra os judeus que vivem fora do Oriente Médio. O sociólogo argentino Patrício Brodsky lembra que, em 2009, uma pesquisa semelhante realizada na Europa pela Anti-Defamation League - ADL (Liga Antidifamação) mostrou que uma percentagem maior de europeus, cerca de 39%, via correspondência entre os atos contra os judeus e o sentimento anti-Israel, sendo que 17% admitiam que medidas políticas adotadas pelo estado de Israel influenciavam sua opinião sobre os judeus. Outro dado importante dessa pesquisa analisado por Brodsky é a visão da atual crise mundial e a percepção de possíveis culpados. Segundo 48% dos argentinos entrevistados, os judeus têm algum grau de responsabilidade nesse quadro econômico, percentagem superior aos 31% dos europeus que em 2009 tinham a mesma opinião. A Argentina tem a maior comunidade judaica da América Latina, com 300 mil membros.

Caminho certo

A pesquisa também abordou o Holocausto, um tema presente e recorrente nas consultas que incluem o antissemitismo na sua forma mais disseminada na diáspora: a de se constituir em um dispositivo sutil de preconceito e de embutir um mecanismo reticente de exclusão social. Ainda que o genocídio judaico seja uma das mais infames tragédias levadas a efeito pela mente humana conjugada com o poder do Estado – um marco aterrador na história do século 20 –, 49% dos argentinos e 44% dos europeus concordaram com a seguinte frase: “Os judeus falam demasiado sobre o que lhes aconteceu no Holocausto” (“El antisemitismo en Argentina”, publicado no site de notícias Aurora, em 18.10.2011).

Diante de situações controversas e de pesquisas que demonstram que o antissemitismo persiste, entende-se a preocupação dos líderes israelenses de preservar uma única vida, a do soldado Shalit, a despeito do desespero dos pais e parentes das vítimas dos ataques terroristas, inconformados com a decisão do governo de libertar mais de mil condenados por assassinatos. Sobre os pretensos dividendos políticos ganhos por Netanyahu nessa negociação com o Hamas, o inverso parece ser o mais lógico: mesmo sendo Israel uma das poucas democracias da região e o genocídio praticado pelo regime nazista apresentar uma inquestionável relevância histórica, o sentimento antijudaico não tem dado mostras de arrefecer.

E em tempo de desafios, com um planeta alcançando o incrível patamar de 7 bilhões de habitantes, o Estado de Israel e as comunidades judaicas instaladas em dezenas de países, que somam pouco mais de 13 milhões de pessoas, se rejubilaram pelo retorno do soldado israelense ao convívio de seus familiares. Para a maioria dos judeus, aplicou-se a máxima do Talmud (comentários e explicações das leis judaicas) que diz: “Quem salva uma vida é como se salvasse o mundo inteiro.” Para os 300 ex-prisioneiros palestinos que retornaram a Gaza, a jordaniana Ahlam Tamimi e a multidão que gritava “queremos um novo Shalit”, a troca estabeleceu a certeza de que o Hamas está no caminho certo, “sugerindo que o resultado prático da captura do soldado israelense pode incentivar a repetição da iniciativa para obter a liberdade de mais prisioneiros” (“Shalit tem feriado judaico em casa”, Correio Braziliense, 20/10/2011).