linha cinza

linha cinza

sábado, 16 de janeiro de 2016

Obra de Viktor Frankl vai para as telas do cinema

Por Sheila Sacks

“Hoje aos homens é concedido confrontar-se com realidades que antes confrontavam somente no leito de morte” (Ernst Bloch, filósofo alemão)

publicado no site Observatório da Imprensa

Provavelmente em 2016 mais uma história ambientada em um campo de concentração estará nas telas dos cinemas. Produtores de Hollywood adquiriram os direitos de filmagem do livro “Em Busca de Sentido - Um psicólogo no campo de concentração”, do psiquiatra e filósofo austríaco Viktor Frankl (1905-1997), publicado em 1946, e que após ser traduzido para o inglês, em 1959, se tornou um best-seller mundial (no Brasil, a obra já está na 37ª edição). O roteirista Adam Gibgot, que fará a adaptação da história para o cinema, adiantou que a abordagem do tema seguirá a linha amena da película italiana “A vida é bela” – sobre um pai e seu filho menor que são conduzidos a um campo de concentração -, Oscar de melhor filme estrangeiro em 1999.

Com elementos que beiram ao gênero de literatura de autoajuda, pela ênfase à psicologia virtuosa da vontade pessoal e da força do espírito para superar as adversidades, o livro de Frankl traz a mensagem de que ao indivíduo cabe procurar um sentido e uma missão na vida. Uma visão que caminha em rumo diverso a de seu ilustre conterrâneo Sigmund Freud (1856-1939), com quem manteve correspondência e conheceu pessoalmente. Em uma conferência em Viena, o filósofo reconheceu o fato e se justificou: “É verdade que Freud escreveu que ‘no momento em que alguém pergunta sobre o sentido ou o valor da existência, está doente’; mas eu penso que é nesse momento que a pessoa manifesta sua humanidade. É um empreendimento humano o interrogar sobre um sentido para a vida, e cabe perguntar se tal sentido é alcançável ou não.”

Setenta anos depois do lançamento da obra, que também enfatiza o valor e o sentido do sacrifício em qualquer situação, as teses de Frankl e Freud estranhamente se interagem. Isso porque em uma época na qual o sentido da vida para uma fatia da humanidade se centraliza em matar e se imolar em sacrifício às causas associadas ao radicalismo religioso e político, a presunção de Freud torna-se cabível principalmente em relação aos jovens que aderem ao terror. A procura de uma razão para viver não é uma condicionante à busca do bem e se manifesta, de um modo geral, a partir de um desajuste pessoal que, mais adiante Frankl classificaria de “vazio existencial”.

Mas, apesar das concepções de Frankl não entusiasmarem Freud nem tampouco a outro gigante da psicologia com quem manteve contato, o também austríaco Alfred Adler (1870-1937), sua obra de estreia e as demais que se seguiram (escreveu 39 livros) receberam elogios e palavras de incentivo de líderes religiosos do porte do Papa Paulo VI, que o convidou para um encontro no Vaticano, em 1970, e do Rebe Menachem Mendel Schneerson, do movimento ortodoxo Chabad. Seus livros também foram traduzidos para o árabe e o persa, sendo editados no Egito, Irã e Turquia, de populações muçulmanas.

Livro do século

Em 1991, uma pesquisa realizada entre os leitores dos Estados Unidos apontou os 10 livros que mais influenciaram e fizeram a diferença em suas vidas. No topo da lista não houve surpresa: a Bíblia continuava liderando com facilidade (fato que se repete até os dias de hoje nos EUA). A consulta, conduzida pela prestigiosa instituição norte-americana “Library of Congress” - a maior biblioteca do mundo com um acervo atual de mais de 35 milhões de livros e outros impressos -, em parceria com o Clube do Livro, também consagrou um texto escrito por um médico judeu vienense, intitulado “Man’s Search for Meaning” (Em Busca de Sentido, na edição brasileira). Uma escolha que se repetiu anos mais tarde, em 2000, no Japão, com os leitores do “Yomiuru Shimbun”, de Tóquio, o jornal de maior tiragem diária do mundo (10 milhões de exemplares), que listaram o livro de Frankl como um dos 10 mais importantes do século 20.

O autor tinha sobrevivido a três longos e sofridos anos em campos de concentração, acompanhado de um caderno de anotações que serviu de base para descrever a sua terrível experiência e a de outros companheiros sob a ótica de um psicólogo. Publicado pela primeira vez em Viena, o livro de pouco mais de cem páginas, escrito em nove dias, trazia uma mensagem estimulante já a partir do título: “Trotzdem ja zum Leben sagen” (Diga sim à vida, de qualquer maneira, trad. livre do alemão). Espantoso para quem acabara de perder seus entes queridos de modo tão bárbaro: o pai, no campo de Theresienstadt (República Tcheca); a mãe e o irmão caçula, em Auschwitz (Polônia); e a esposa grávida, em Bergen-Belsen (Alemanha).

Ao longo da narrativa, Frankl detalha situações inimagináveis de desumanidade e de degradação física experimentadas por prisioneiros de todas as idades, inclusive crianças, no campo de Auschwitz, e analisa que todo ser humano submetido àquelas condições em pouco tempo irá apresentar um estado de espírito anormal o que não deixaria de ser uma reação psicológica “normal”. E lembra a frase do poeta e filósofo Gatthold Ephraim Lessing (1729-1781), mestre do Iluminismo: “Quem não perde a cabeça com certas coisas é porque não tem cabeça para perder.”

Frankl recorre a pensamentos de filósofos, poetas e escritores nas suas descrições dos cotidianos quadros sórdidos e terrificantes que compunham o dia a dia daquele exército deplorável de condenados. A sublimação do sofrimento é lembrada na afirmação do russo Dostoievsky (1821-1881) que dizia temer apenas uma coisa na vida: não ser digno de seu próprio tormento. Daí a importância das chamadas “miseráveis alegrias” que inoculavam um valioso fôlego espiritual nos prisioneiros despojados de todos os seus pontos de equilíbrio. “Nós éramos gratos ao destino quando ele nos poupava de sustos. Já ficávamos contentes quando à noite podíamos catar os piolhos do corpo antes de nos deitar.” Uma felicidade no sentido negativo de Schpenhauer (filósofo alemão do século 19) ou uma isenção de sofrimento em sentido muito relativo, segundo Frankl.

Arte, política e religião

Usada pelos prisioneiros como uma valiosa tábua de salvação contra a apatia, o desânimo e a loucura, a arte nos campos de concentração está presente nas narrativas da maioria dos livros, documentários e filmes sobre o tema, compondo, juntamente com o material salvo da hecatombe, um considerável legado cultural, se o termo é aplicável, da tragédia do holocausto. Sessões de música, poesia, teatro e até de humor aconteciam com o beneplácito da guarda nazista adestrada contra possíveis focos de rebeliões. Os sentimentos de inconformismo ou revolta, canalizados para um escoadouro fictício de sonhos e fantasias, mantinham os prisioneiros sob controle, proporcionando uma sensação de bem estar, ainda que fugaz e ilusória. Valia “tudo para esquecer”, atesta Frankl.

Outras áreas de interesse que movimentavam o cotidiano dos campos eram a política e a religião. ”Em primeiro lugar, a política, o que não é de surpreender e, em segundo, a religião, o que não deixa de ser notável”, conta. “Todos aqui discutem política quase sem parar, mesmo que se trate de ouvir sequiosamente os boatos infiltrados e passá-los adiante. Quanto à religião, o impressionante eram os cultos improvisados no canto de algum barracão ou num vagão de gado, escuro e fechado, no qual éramos trazidos de volta após o trabalho, cansados, famintos e passando frio em trapos molhados.” Médico psiquiatra, Frankl afirma que se manteve fora de privilégios. “Não é sem orgulho que digo não ter sido mais que um prisioneiro ‘comum’. Nada fui senão o simples nº 119104.”

 Junto aos pais

Em sua autobiografia, publicada em 1995, Frankl relata como teve a oportunidade de escapar ao regime nazista: “Eu esperei alguns anos até obter o visto de imigração para os Estados Unidos. Finalmente, um pouco antes do ataque a Pearl Habor (7/12/1941), fui convidado a ir à embaixada para pegar o meu visto. Aí então, eu hesitei, pois como poderia deixar meus pais para trás? Eu já imaginava qual seria o destino deles: deportação para um campo de concentração. Poderia eu dizer adeus e deixá-los entregues a própria sorte? O visto era pessoal, exclusivo para a minha pessoa”. 

À época, Frankl tinha 36 anos e era diretor do setor de Neurologia do Hospital Rothschild, tendo trabalhado antes, por quatro anos, no Hospital Geral de Viena, no tratamento de pacientes com tendências ao suicídio. Ele conta que quando chegou em casa naquele dia, encontrou o pai, em lágrimas: “Os nazistas atearam fogo na sinagoga”, disse-me, mostrando um pedaço de mármore que ele conseguira salvar. Na peça estava gravada, em dourado, uma única letra hebraica, justamente a letra inicial do quarto Mandamento: Honra teu pai e tua mãe. Diante disso, Frankl telefonou para a embaixada americana e cancelou o visto. “Talvez a decisão que eu tomei já estivesse comigo há muito tempo, e na realidade somente escutei o eco da voz de minha consciência”, afirmou.

Ponto de vista

O jornalista e escritor norte-americano Matthew Scully, mais conhecido pela sua função de speechwriter (redator de discursos) do ex-presidente George W. Bush, observa que Frankl publicou “Em Busca de Sentido” um ano antes do surgimento de “O Diário de Anne Frank” (1947). Ambos os livros ganharam o mundo, mas os autores tiveram destinos distintos. “No caso de Frankl, a sorte o conduziu para uma direção diferente. Depois da perda da esposa no Holocausto (Shoá – catástrofe - em hebraico), ele casou-se novamente, escreveu outros 32 livros, criou um método de psicoterapia, construiu um instituto em Viena que leva o seu nome, deu palestras ao redor do mundo, e permaneceu vivo para ver o seu livro ser traduzido para 45 idiomas.” Em 2007, a obra já havia atingido a cifra de 12 milhões de exemplares vendidos.

No encontro que teve com Frankl, em Viena, em abril de 1995, o jornalista falou de sua surpresa pelo livro não ser, pelo menos, o segundo mais lido na biblioteca do Museu do Holocausto, em Washington, onde “O Diário de Anne Frank” ainda reina absoluto (35 milhões de cópias em 67 idiomas). Frankl atribuiu o fato ao tom conciliatório que sempre adotou em suas mensagens e que desagradava a muitos: “Em todo o meu livro ‘Em Busca de Sentido’ você não vai encontrar a palavra ‘judeu’. Eu não acentuei a minha condição de judeu e nem de ter sofrido como um judeu”, afirmou.

Na entrevista, publicada pela revista americana “First Things”, Frankl fez questão de igualar a sua dor à de qualquer outro ser humano submetido a uma situação de horror. “Sou 100% contra a tese de culpa coletiva”, enfatizou. “Parto do fundamento de que a culpa, a priori, é individual.” Reforçando essa posição, Frankl já havia dito, em outra ocasião, que mesmo nos estreitos limites de um campo de concentração, ele somente encontrara dois gêneros de pessoas: as decentes e as sem decência. “Nenhuma sociedade está imune aos dois, portanto, havia no campo guardas decentes e prisioneiros, sem decência, notadamente os capos (prisioneiros que dispunham de prerrogativas especiais) que insultavam e torturavam os seus próprios companheiros em troca de vantagens pessoais.”

Escondendo o inimigo

O antropólogo Richard A.Shweder, escritor, professor e presidente do Comitê de Desenvolvimento Humano da Universidade de Chicago, destaca o fato de que Frank surpreendeu o mundo ao afirmar que o espírito humano encontrava maneiras de alcançar a dignidade mesmo na lama de Auschwitz. “Ele argumentava que um prisioneiro tornava-se digno ou não a partir de uma decisão própria interior, e não somente em consequência das condições do campo.” Para Frankl, ninguém melhora ou evolui enxergando-se como vítima. Cada pessoa é capaz de se sobrepor a situações degradantes, “já que a saúde mental está relacionada com as decisões e não com as condições”.

Um fato ilustra esse ponto de vista. Quando os aliados libertaram os campos de concentração, duas prisioneiras judias sobreviventes do Holocausto esconderam um oficial da SS (Schutzstaffel, a tropa nazista de Hitler) de nome Hoffman, e só concordaram em entregá-lo às autoridades com a condição de que ele não fosse maltratado. Frankl foi testemunha em seu julgamento e, durante algum tempo, manteve correspondência com o oficial tentando confortá-lo, já que o homem vivia atormentado por sua participação na barbárie nazista.

Conselhos para se manter vivo

Frank também lembra em seu livro uma das primeiras recomendações que, recém-chegado a Auschwitz, recebeu de um prisioneiro veterano: “Não tenha medo! Não se amedronte com as seleções! Mas uma coisa eu peço para você... faça a barba diariamente, mesmo que tenha de usar um fragmento de espelho... mesmo que tenha que dar o seu último pedaço de pão para isso. Você ficará com uma aparência mais jovial e o ato de se barbear dará a sua face mais rubor. Se quiser sobreviver, só existe um jeito: Mostre-se saudável para o trabalho.”

Já nos momentos de intensa frustração, recorda Frankl, o artifício era orientar os seus pensamentos para as coisas mais triviais, como por exemplo achar um pedaço de arame para substituir o cadarço podre de um sapato. Ele também se forçava a pensar acerca de seu futuro, após a libertação. Anos depois, nas diversas universidades onde lecionou – entre elas a de Harvard – Frankl sempre enfatizava aos seus alunos que cada pessoa deve ir ao encontro de sua missão. “O homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido da vida. Por isso é preciso trabalhar por algo além de si mesmo.”

Indicado ao Nobel da Paz

Vitor Frankl foi professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Medicina de Viena até 1990, quando se aposentou aos 85 anos (ele também praticava o alpinismo e tirou o seu brevê de piloto de aeroplano aos 67 anos). Doutor em Filosofia, Frankl recebeu o título de “Doutor Honoris Causa” em 29 universidades de todo o mundo, entre elas, as federais do Rio Grande do Sul (1984) e de Brasília (1988).

Membro honorário da Academia Austríaca de Ciências e Cidadão Honorário de Viena, Frankl proferiu palestras em mais de 200 faculdades nas principais cidades do mundo e foi considerado pelo “American Journal of Psychiatry”, o mais importante pensador desde Sigmund Freud e Alfred Adler. A Logoterapia ou Análise Existencial - método psicológico criado por ele - é conhecida como “A Terceira Escola Vienense de Psicoterapia” (a primeira é a Psicanálise Freudiana e a segunda é a Psicologia Individual de Adler). Em 1985 recebeu o “Oscar Pfister Prize”, prêmio máximo da “American Society of Psychiatry”, e teve seu nome proposto para o Nobel da Paz pela “The Milton H. Erickson Foudation”, entre outras entidades.

Lembrando a visita que fez a Frankl em um hospital de Viena, poucos meses antes de seu falecimento, ocorrido em setembro de 1997, o escritor e doutor em psicologia Jeffrey K.Zeig - idealizador do ciclo de seminários internacionais “Evolution of Psychotherapy Conferences”, que teve em Frankl um dos seus participantes mais ilustres - buscou uma frase do romancista e filósofo francês Albert Camus, na sua obra póstuma “O primeiro homem”, para definir a personalidade de seu mestre: “Existem pessoas que justificam o mundo, que ajudam os outros somente com a sua presença.” A citação veio a propósito da insistência de Frankl em manter uma linha de telefone aberta para atender pessoas de tendências suicidas, ainda que estivesse doente e hospitalizado. Até o final de seus dias, Frankl recebia em média mais de 20 cartas diárias de pessoas que se diziam salvas após a leitura de seu livro.