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domingo, 30 de março de 2014

Palavras que enganam

Por Sheila Sacks

 “Eis que há muito tempo fala-se sobre a terra e os três quartos do que se diz passam despercebidos” (Maurice Merleau-Ponty, filósofo)

 Em 2013, um ciclo de conferências reuniu pensadores brasileiros e franceses em torno de uma proposta de análise dos vários aspectos e particularidades que envolvem o silêncio – assumido, deliberado e, em certa medida, transgressor -, frente à tagarelice exacerbada do mundo contemporâneo. Isso porque a modernidade vem impondo uma aceleração forçada ao tempo e com isso uma consequente prosa contumaz, superficial, eivada de obviedades e enganos.

Essa hiperatividade da linguagem “prosaica”, que no entendimento do francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) “limita-se a tocar, por signos convencionais, significações já instaladas na cultura” (A Prosa do Mundo/1963) tem sido estimulada até por conta do fenômeno da “tirania da visibilidade” (sou visto, logo existo), uma marca das sociedades globalizadas assentadas nas redes virtuais, no consumo dirigido, na descartabilidade e no efêmero. Hoje, praticar o silêncio tornou-se “out”.

Memórias-padrão

Mesmo assim, ainda que os ambientes de clonagens linguísticas e pensamentos triviais se multipliquem, o silêncio continua sendo um mecanismo de resistência ao alcance de qualquer pessoa e um item fundamental à maturação e à reflexão, duas coordenadas que balizam o tempo da razão, da criação e da arte. No filme “Oblivion” (2013), o diretor e autor da HQ (história em quadrinhos) que inspirou a película, Joseph Kosinski, 39 anos, realiza um exercício futurista e apresenta um mundo pós-guerra nuclear onde clones com memórias idênticas são induzidos a acreditar em supostas verdades que se comprovam posteriormente falsas.

Uma drástica antevisão do porvir que tem a sua correspondência no mundo atual, com os seres humanos cada vez mais tendendo às memórias coletivas uniformes oriundas das massivas mensagens dos chamados “dispositivos midiáticos”, compreendendo o termo dispositivo como qualquer mecanismo que seja capaz de governar a vida, conforme enunciado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, 67 anos, no livrete “O que é um dispositivo” (2006).

De mártires e heróis

Nessa maré de mesmice, a garimpagem de quem por dever de ofício segue o rastro da notícia se dá no pormenor, nas entrelinhas e no não dito. As conexões se formam na aparente linguagem coloquial, distraída e inconsequente – as tais palavras ditas ao léu? - que muitas vezes perversamente encobre uma verdade ou a mentira com manobras diversionistas.

Crianças do gueto de Theresienstdt. Das 15 mil somente
um pouco mais de cem foram encontradas
Um bom exemplo é o personagem do documentário “O Último dos Injustos” (Le Dernier des Injustes), do francês Claude Lanzmann, 88 anos, filme bastante festejado pelos críticos quando de sua pré-estreia no Festival de Cannes (maio de 2013) e um dos indicados para o César 2014 ( ocorrido em fevereiro), o maior prêmio do cinema francês. Figura central do filme de Lanzmann, o ex-rabino de Viena Benjamim Murmelstein (1905-1989), à época das filmagens, em 1975, com 70 anos, conversa com o cineasta, então com 50 anos, em uma rua de Roma, nas cenas finais do documentário.

Presidindo o conselho judaico do gueto de Theresienstdt (Terezin, em tcheco, a 80 quilômetros de Praga), na Tchecoslováquia, de fins de 1944 a meados de 1945, o entrevistado tinha entre as suas funções a de se reportar periodicamente ao planejador daquele suposto “gueto modelo” – uma farsa inominável -, o tenente-coronel das forças nazistas e responsável pela logística de extermínio de milhões de judeus, Adolf Eichmann (1906-1962). Lanzmann guardou por mais de quarenta anos a entrevista, omitindo-a do documentário “Shoah”, exibido em 1985, alegando que na ocasião o contexto era outro.

No bate-papo em questão, em determinado momento Mumelstein cita uma frase do prêmio Nobel de Literatura, Isaac Bashevis Singer (1902-1991): “Fomos todos mártires, mas nem todos os mártires foram santos”, diz ele no flagrante intuito de corroborar, para a posteridade, o seu polêmico comportamento durante a Shoah e de lambuja replicar a citação que, da forma como é apresentada, suscitaria dúvidas quanto à conduta daqueles que, como ele, sobreviveram aos campos da morte.

O gueto de Theresienstdt funcionou de 1941 a 1945 e aproximadamente 140 mil judeus europeus passaram por esse campo de transição, sendo que cerca de 97 mil foram deportados e mortos em Auschwitz e Treblinka. Quinze mil crianças também viviam no gueto e somente um pouco mais de cem foram encontradas. Segundo o historiador e filósofo Gershom Scholem (1897-1982) os sobreviventes de Theresienstdt consideravam Mumelstein um traidor que merecia ser enforcado.

A escolha de cada um

Em contraponto a esse colóquio romano entre o intelectual e o rabino registre-se uma outra conversa, desta vez reunindo dois policiais, individualistas e sem apego às regras, no interior de uma carro em movimento no estado americano da Virgínia. Inserida no capítulo final da primeira temporada da série de TV “True Detective” (uma criação do roteirista Nic Pizzolatto), a cena foi acompanhada por mais de 3,5 milhões de espectadores em uma única noite do último março.

Rememorando o passado e os fatos que impactaram negativamente as suas vidas pessoais e profissionais ao longo de mais de duas décadas de parceria na polícia, o detetive Rust Cohle, personagem de Matthew McConaughey, é incisivo na sua afirmação ao colega Marty (Woody Harrelson) acerca das responsabilidades e consequencias das ações de ambos. Ele diz de forma peremptória ao companheiro: “Todos têm uma escolha, Marty. Todos têm uma escolha.”

Enfim, o personagem central do “Último dos Injustos” teve sim uma escolha e a exerceu. Mas, diferente do detetive Cohle - que não procurou se justificar ou se poupar-, Mumelstein usou da arrogância para fundamentar a sua defesa. E nesse caso, melhor seria optar pelo pudor do silêncio já que “as palavras sabem de nós aquilo que ignoramos delas”, como diria o poeta René Char (1907-1988), figura chave da moderna literatura francesa e herói da resistência armada contra os nazistas.


quinta-feira, 6 de março de 2014

Espionagem e castigo: o caso Pollard

Por Sheila Sacks


“Eis o que é o justo: o proporcional; e o injusto é o que viola a proporção.” (Aristóteles em “Ética a Nicômaco”, século 4 antes da Era Comum)

No final de 2013, a revelação de que a NSA (sigla em inglês da Agência de Segurança Nacional dos EUA), em cooperação com os serviços de inteligência britânicos, espionou e-mails de políticos israelenses e do então premiê Ehud Olmert e do ministro de Defesa Ehurd Barak, principalmente em 2008 e 2009, levou a mídia israelense nesse início de 2014 a lembrar mais uma vez do caso Pollard, um tema sensível a Israel e Estados Unidos.

Jonathan Pollard foi um ex-funcionário da marinha americana que vazou documentos sigilosos para Israel sobre as atividades de espionagem dos Estados Unidos no mundo árabe. Preso em 1985 e condenado à prisão perpétua em 1987, Pollard cumpre a pena em uma penitenciária federal na Carolina do Norte. 

Pedidos a Obama

Diante da notícia da espionagem americana, o ministro da Inteligência de Israel, Yuval Steinitz se apressou a lembrar que desde a prisão de Pollard os dois países evitam se espionarem mutuamente. Em entrevista ao Canal 2 da televisão israelense, ele admitiu que, além dos estados árabes, também há “países amigos” que os espionam. “Nós não espionamos o presidente dos Estados Unidos. Firmamos compromissos a esse respeito e estamos cumprindo.”

Por sua vez, o primeiro ministro israelense Benjamim Netanyahu, dias depois de a espionagem americana vir à tona, recebeu em seu gabinete a mulher de Pollard e reiterou os esforços realizados por Israel para obter a libertação de seu marido. Na mesma semana, o parlamento israelense (Knesset) aprovou o envio de um pedido oficial ao presidente Obama para soltar Pollard, que desde 1998 tem dupla cidadania. No documento, os parlamentares invocam razões humanitárias para o indulto e as precárias condições de saúde apresentadas pelo prisioneiro. Com 59 anos, Pollard foi operado de urgência há dois anos por complicações na vesícula e rins.

Nos Estados Unidos, uma carta a favor da libertação de Pollard também foi enviada a Obama antes do último Natal pelo ex-embaixador americano nas Nações Unidas na administração Clinton, o democrata Bill Richardson. Governador do estado do Novo México até 2011 e aliado do presidente, Richardson já foi indicado várias vezes ao Nobel da Paz por seus esforços em prol da libertação de soldados americanos reféns ou prisioneiros na Coréia do Norte, Iraque, Cuba e Sudão.

No pedido de clemência, o político assinala que já se manifestaram publicamente a favor da libertação de Pollard autoridades que acompanharam o caso na época como o ex-secretário de Estado do governo Reagan (1981-1989), o republicano George Shultz; o ex-conselheiro de Segurança Nacional Robert McFarlane que atuou de 1983 a 1985; e William Webster, o chefe do FBI no momento da prisão de Pollard e que também dirigiu a CIA, de 1987 a 1991 (governos Reagan e Bush).

Na carta Richardson aponta a atuação do então  secretário de Defesa Caspar Weinberger (falecido em 2006) como decisiva para Pollard ser sentenciado à prisão perpétua, apesar do acordo judicial em que o governo se comprometeu a não buscar essa alternativa.

Punição “três vezes” maior

Outra figura importante à época, Lawrence J. Korb, que exerceu o cargo de  vice-secretário de Defesa (1981-1985) e é autor de duas dezenas de livros sobre temas militares e de segurança, observou que Pollard  está preso “três vezes mais tempo do que qualquer um que já tenha fornecido informações  sigilosas a um país amigo ou neutro”. Em visita a Israel, em março do ano passado, Korb assinalou mais uma vez que a punição a Pollard é desproporcional: “Ele infringiu a lei e precisava pagar o preço, mas a falta de proporção na sua punição vai contra os valores em que eu acredito como americano.” 

Ainda em 2013, o veterano comentarista político de rádio e TV, Cal Thomas,  em artigo veiculado em várias mídias, defendeu a comutação da pena de Pollard face “ao escândalo da espionagem americana revelada pelo WikiLeaks”. E citou o memorando confidencial enviado pela então secretária de Estado do governo Bush, Condoleezza Rice (2005-2009), instruindo a embaixada dos EUA em Tel Aviv a espionar Israel. O documento foi publicado pelo jornal britânico “The Guardian” em 2010.

Tomas também listou algumas personalidades públicas que apoiam Pollard, entre elas o ex-procurador-geral  da Justiça, o republicano  Michael Mukasey que atuou no governo Bush de 2007 a 2009, e o ex-deputado Robert Wexler, democrata pelo estado da Flórida, de 1997 a 2010. Este último, em carta enviada ao presidente Obama enfatizou que Pollard “é o único cidadão americano  condenado a  mais de 14 anos por esse tipo de delito.

Reprovado pela CIA

Nascido no Texas, Pollard é oriundo de uma família judaica e seu pai, Dr.Morris, falecido em 2011, foi um microbiologista conceituado, professor emérito de ciências biológicas da Universidade Notre Dame (Indiana), uma das mais prestigiadas universidades católicas dos Estados Unidos. Formado em ciência política pela Universidade de Stanford, na Califórnia, Pollard tentou um emprego na CIA, a central de inteligência americana, em 1977, mas foi reprovado no teste de polígrafo, instrumento que registra inúmeros fenômenos fisiológicos como pressão arterial e movimentos respiratórios, usado geralmente como detector de mentiras. Dois anos depois, ele foi contratado pela Marinha para trabalhar na área de inteligência, analisando dados e elaborando relatórios.

Em meados de 1984, já no serviço de análise e investigação naval, mas especificamente no ATAC (Anti-Terrorist Alert Center), Pollard observa que dados importantes para a segurança de Israel não estavam sendo repassados conforme acordo de cooperação estratégica e militar assinado em 1981 pelo secretário de Defesa Gasper Weinberger e o ministro israelense Ariel Sharon. Pelo tratado ou Memorando de Entendimento (MOU – Memorandum of Undestanding), ratificado em 1983, os dois países se propunham a estabelecer um quadro de consulta e cooperação para melhorar a segurança nacional de ambas as nações e para lidar com as ameaças no Oriente Médio, incluindo exercícios militares conjuntos, atividades de preparação de defesa e acesso às instalações de manutenção. 

Encontro com israelenses


Por intermédio de um amigo, Pollard entra em contato com um militar israelense em Nova York, o coronel da força aérea Aviem Sella, responsável pelo ataque à usina nuclear iraquiana de Osirak, em 1981. Pollard está convencido de que Israel não estava tendo acesso a informações importantes para se defender de prováveis atos terroristas porque os EUA não desejavam arruinar suas relações com os países árabes produtores de petróleo.

Ele repete esse argumento a Sella que o apresenta ao coronel Yosef Yagur, ex-consultor técnico do Consulado de Israel naquela cidade e agente do Lekem (Bureau of Scientific Relations, em inglês), um setor de inteligência científica e técnica israelense, ligado ao ministério da Defesa, que funcionou até 1986. É o que conta o jornalista e escritor Gordon Thomas no best-seller “Gideon's Spies: The Secret History of the Mossad” (1998), que na versão em espanhol se chamou “Mossad: la historia secreta”. Traduzido em mais de uma dezena de idiomas, a obra é baseada em pesquisas e entrevistas realizadas em Israel com ex-agentes, jornalistas e pesquisadores.

G.Thomas revela que em novembro de 1984 Pollard foi a Paris com sua primeira esposa Anne para ser apresentado pessoalmente ao chefe do Lekem, o lendário Rafael ‘Rafi’ Eitan que em 1960 comandou a captura do carrasco nazista Adolf Eichmann na Argentina. Por um quarto de século atuando como diretor adjunto de operações do Mossad e assessor pessoal do falecido Ariel Sharon quando este foi ministro da Defesa (1981-1983), Rafi sabia que o chefe do Mossad à época, Nanhum Admoni, reclamava que os EUA não estavam se comportando como “um amigo nas horas boas e más”. Isso porque obtivera informações de que altas autoridades do governo americano mantinham encontros com líderes árabes ligado a Yasser Arafat para discutir a melhor maneira de pressionar Israel para que flexibilizasse sua posição frente às exigências palestinas.

Recusado pelo Mossad

Nos próximos meses e até ser preso, em 21 de novembro de 1985, em frente à embaixada israelense em Washington, onde tentara se refugiar, G. Thomas afirma que Pollard enviou às suas fontes dados valiosos para a segurança de Israel, como detalhes sobre a localização e entrega de mísseis e armas russas para a Síria, e mapas e fotografias de satélites dos arsenais de armas militares e químicas dos sírios, iraquianos e iranianos. Mas, diante da prisão do analista pelo FBI, Sella e Yagur embarcam em um avião da El Al rumo a Israel.

Em 4 de março de 1987, Pollard é condenado à prisão perpétua e sua mulher recebe uma sentença de cinco anos. Sella é indiciado à revelia por um júri federal em Washington que também identifica como conspiradores Rafi Eitan, Yosef Yagur e Irit Erb, ex-secretário da embaixada israelense. Em Israel, o governo institui uma comissão de inquérito, afasta Rafi e Sella de seus cargos e encerra os serviços do bureau.

Em tempo: dois anos antes de Pollard manter contato com Rafi, o ex-analista já tinha se oferecido para atuar para o Mossad, o serviço secreto israelense, que o recusou por considerá-lo “instável”. Segundo G.Thomas, um agente do Mossad em Nova York classificou Pollard de “um homem solitário, com uma visão deformada de Israel”.

Momento difícil

Em Israel, os simpatizantes de Pollard têm acusado Rafi de não ter se empenhado pela libertação de seu informante, o que é contestado pelo israelense: “Estou dedicando meus últimos anos para libertar Pollard. Escrevi uma carta ao presidente Obama pedindo desculpas e o encorajando a soltar Pollard”, revela.

Em 2012, na entrevista ao jornal israelense “Yediot Aharonot”, Rafi contou que entregou provas incriminatórias para os americanos atendendo pedido de Shimon Peres, primeiro-ministro na época. ”Havia um entendimento que após 10 anos a pena de prisão perpétua seria comutada. Entretanto, os EUA negaram o acordo. O governo de Israel tomou a decisão e eu cooperei com os americanos depondo contra o meu informante. Não foi um momento fácil”, admitiu.

Pondo mais lenha na fogueira, Ester Pollard (com quem o prisioneiro se casou em 1993) foi a público dizer que em uma reunião com Rafi e outras pessoas, o ex-espião chegou a comentar que a única coisa que lamentava nesse episódio é não ter “concluído o trabalho” antes de deixar os EUA. Segundo Ester, quando foi perguntado a Rafi o significado de suas palavras, ele respondeu: “Se eu estivesse na embaixada israelense no dia em que Pollard buscou asilo, eu teria colocado uma bala na sua cabeça e não haveria nenhum caso Pollard”, teria dito.

Interessante assinalar que o ex-espião, depois do affair Pollard, voltou-se para a política e elegeu-se deputado, sendo posteriormente nomeado ministro da Previdência de Israel (“pensioners affairs”). Ele visitou Cuba e esteve presente na inauguração de uma “Menorá” (candelabro de sete braços) em uma praça de Havana, ao lado de Fidel Castro (2006). “Persona non grata” ao FBI, Rafi, hoje com 87 anos, esteve várias vezes na ilha de Fidel, como sócio de uma empresa de agronegócios israelense e onde também adquiriu terras, ganhando medalha do governo cubano pelos investimentos realizados na área de agricultura.


Violação do acordo

Casado pela segunda vez com uma professora de Toronto, Pollard tem na mulher Ester uma ponta de lança na luta por sua libertação. Em 1996 ele obteve a cidadania israelense e em dezembro de 1997 autoridades de Israel o visitaram pela primeira vez em sua cela na Carolina do Norte.

Convertido ao judaísmo ortodoxo, Pollard tem recebido o apoio de lideranças religiosas e organizações judaicas que a partir da década de 1990 têm solicitado às autoridades americanas uma reavaliação do caso. Os grupos alegam que Pollard se considerou culpado em junho de 1986 e fez um acordo judicial com o Ministério Público, ignorado pelo juiz federal que o condenou a uma pena máxima por pressão do então secretário de Defesa Caspar Weinberger. Destacam ainda que Pollard sempre negou ter fornecido aos israelenses informações capazes de comprometer os interesses nacionais dos EUA ou que fossem prejudiciais ao país, e que apesar de sua cooperação com a Justiça americana recebeu uma sentença mais dura do que a imposta àqueles que espionam para países inimigos.

Mas o real motivo do agravamento de sua sentença, segundo documentos da CIA liberados em 2012 pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington, estaria no conteúdo de uma entrevista dada por Pollard ao jornalista Wolf Blitzer, âncora da rede de TV CNN e um dos profissionais mais conhecidos da imprensa americana. A matéria publicada no “Jerusalem Post” teve grande repercussão na mídia americana. Do interior de sua cela, Pollard falou sobre os motivos que o levaram a espionar para Israel e o teor das informações transmitidas que abarcavam fotografias da sede da OLP na Tunísia à capacidade bélica de países árabes como a Líbia de Kadhafi.

A entrevista divulgada três meses antes do veredicto provocou irritação nos promotores do caso que consideraram a reportagem, realizada sem a aprovação prévia do Departamento de Justiça, uma violação aos termos do acordo judicial assinado pelo acusado. No julgamento, a promotoria denunciou Pollard por divulgar dados sigilosos na mídia comprometendo fontes e métodos da comunidade de inteligência. O que foi contestado pelos advogados de defesa ao afirmaram que o governo tinha conhecimento da solicitação do jornalista e autorizou a entrevista.

Espionagem mútua

Semanas depois da condenação de Pollard, um novo artigo de Blitzer é publicado no “Jerusalem Post”, também envolvendo Pollard. O pivô é o senador Dave Durenberger, republicano do estado de Minnesota (1978-1995) que presidiu o Comitê de Inteligência da Casa (SSCI – Senate Select Committee on Intelligence). Na reportagem, Durenberger afirma que antes de Pollard espionar para Israel, a CIA recrutou, em 1982, um oficial do exército israelense para espionar contra Israel. Shimon Peres, à época ministro das Relações Exteriores e Yizhak Rabin (1922-1995), ministro da Defesa, negaram as acusações e a CIA também se recusou a comentar a matéria.

A respeito dessas espionagens mútuas, o comentarista político Daniel Pipes, no artigo “Espião versus Espião, América versus Israel”, veiculado no “National Review Online” (7.8.2012), enumera uma série de exemplos de espionagem praticada por ambos os lados e menciona o caso de um ex-oficial da inteligência militar israelense que espionou para a CIA. Trata-se de Yosef Amit que durante muitos anos enviou informações aos americanos sobre o movimento de tropas e a política em relação ao Líbano e aos palestinos até a sua detenção em 1986.

Destaca também as palavras do embaixador de Israel em Washington, Itamar Rabinovich, que atuou entre 1993 a 1996. Segundo o diplomata, o governo americano na época decifrou o código israelense utilizado nas comunicações internas. “Com certeza os americanos grampeavam as linhas telefônicas normais da embaixada. Às vezes eu ia a Israel entregar as informações oralmente.”

Yitzhak Rabin chegou a comentar que Israel descobriu cinco espiões americanos atuando no país entre o final de 1970 e o início de 1980 e que para evitar conflitos com seu aliado optou por expulsá-los ao invés de iniciar um processo que os levariam à prisão.  De acordo com Pipes, “a espionagem é recíproca. Faz parte da rotina, é sabida e implicitamente aceita por ambos”. E conclui: “Visto que esses aliados têm muito em comum, de valores morais a inimigos ideológicos e frequentemente trabalham em conjunto, também não é lá tão preocupante essa espionagem mútua.”

Campanhas a favor de Pollard

Em 1998, o Congresso Mundial Judaico (WJC - World Jewish Congress), que representa as comunidades e organizações judaicas em mais de 100 países, fez um apelo para que os judeus americanos quebrassem o silêncio que há mais de uma década envolvia o caso Pollard. “A acusação de dupla lealdade provavelmente jamais irá desaparecer”, admitiu em memorando a organização, assinalando que o episódio sempre será uma arma política atraente para atacar Israel. No documento, o WJC invoca uma reavaliação do caso e adverte para o perigo de recrutar judeus da diáspora para operações de inteligência e de segurança. “Hoje Israel deve usar de cautela e o caso Pollard pode ser visto como um divisor de águas nas relações de Israel com os Estados Unidos e os judeus americanos (“The Pollard Case: A Reassessment” – janeiro de 1998).

Quatro anos depois, em 2002, Benjamim Netanyahu que ocupava o cargo de ministro de Negócios Estrangeiros visitou Pollard no presídio da Carolina do Norte. Desde 1998, Israel já havia reconhecido o ex-analista como um de seus informantes. Na ocasião, Netanyahu garantiu ao preso que o governo de Israel estava empenhado em sua libertação, respondendo ao questionamento de Pollard sobre o pouco interesse de Ariel Sharon, então primeiro-ministro, em abordar o assunto nos encontros com o presidente americano George W. Bush.

Mas, o fato é que o governo de Israel sempre se empenhou pela libertação de Pollard. Na gestão anterior de Bill Clinton (1993-2001) havia uma grande expectativa de que o presidente americano finalmente indultasse Pollard no apagar das luzes de seu segundo mandato, o que não aconteceu.
Conta-se que durante os preparativos para o acordo entre Israel e a Autoridade Palestina de Yasser Arafat em Wye Plantation, no estado americano de Maryland (1998), o presidente Clinton prometeu a Netanyahu, então primeiro-ministro, que soltaria Pollard. O acordo entre as partes intermediado pelos EUA previa a gradual retirada militar israelense da Cisjordânia e a libertação de 750 presos palestinos. Segundo o próprio Netanyahu, Clinton deu para trás no último minuto, alegando que o diretor da CIA, George Tenet, havia advertido de que a liberação de Pollard desmoralizaria a área de inteligência americana.


Tempo “suficiente”

Dez anos depois do encontro de Netanyahu com Pollard, o ex-diretor da CIA, James Woolsey, se posicionou publicamente a favor da liberdade de Pollard, considerando ”suficiente” o tempo de prisão do condenado. Chefiando a agência de inteligência de 1993 a 1995, Woolsey escreveu uma carta para o “The Wall Street Jounal”, em 2012, explicando sua posição à época que comandava a CIA, quando foi contra um pedido de clemência que favorecesse o ex-analista. “Isso porque ele ainda não tinha completado 10 anos de detenção”, justificou. E fundamentou a sua mudança de posição: “O que eu diria que mudou? A passagem do tempo. Há mais de um quarto de século que ele está preso.”

Woolsey lembrou que apenas dois espiões dos 50 condenados por espionagem a favor da China e da Rússia estão cumprindo prisão perpétua nos EUA: Aldrich Ames e Robert Hanssen, ex-agentes da CIA e do FBI, respectivamente. O primeiro preso em 1994 e o segundo em 2001 (depois de vazar documentos por mais de 20 anos para a União Soviética) causaram danos devastadores aos órgãos de inteligência americanos e particularmente à rede de agentes que atuava para os EUA nos países do Leste Europeu.

Outros espiões, como Randy Jeffries e Sharon Scranage detidos em 1985 (“o ano dos espiões”, dada a quantidade de espiões presos pelo governo americano), foram condenados a três e dois anos, cada um. O primeiro tinha trabalhado no FBI e foi acusado de fornecer documentos secretos à União Soviética. Sharon era funcionária da CIA e espionou para o governo de Gana. Também Robert Kim, um funcionário do setor de Inteligência da Marinha, foi acusado em 1996 de espionar para a Coreia do Sul, país aliado dos EUA, vazando documentos sobre a política americana em relação à Coreia do Norte. Sua pena foi de nove anos, das quais ele cumpriu sete.

E tem o caso do espião Steven Lalas, preso em 1993 por espionar para a Grécia. Funcionário do Departamento de Estado americano, ele passou informações sobre as avaliações dos EUA em relação à antiga República da Iugoslávia; sobre a política americana para os Balcãs e a estratégia turca no Mar Egeu e Chipre. Também repassou nomes e cargos do pessoal da CIA que trabalhava no exterior. Foi condenado a 14 anos de prisão, findos os quais emigrou para a Grécia.

Vozes discordantes

No livro “Territory of lies” (Território das mentiras, em tradução literal, publicado em 1989), Wolf Blitzer escreve que os EUA não compartilham com Israel (ou vice-versa) informações que podem comprometer o que os profissionais de inteligência chamam de “fontes e métodos”. Por exemplo, fontes da CIA são mantidas em segredo porque a organização de coleta de informações ficaria prejudicada se descobertas. Fontes americanas em estados árabes amigáveis como Egito, Arábia Saudita e Jordânia também não são reveladas para Israel.

A respeito do livro de Blitzer, que conta a história de Pollard de forma favorável ao acusado, o jornalista investigativo Robert I. Friedman - também de origem judaica e precocemente falecido em 2002, aos 51 anos – criticou duramente o enfoque pró-Pollard apresentado na obra. Escrevendo para uma das revistas mais influentes dos EUA, “The New York Review of Books”, Friedman enfatizou que, de acordo com o Ministério Público Federal, Pollard “roubou” informações que nada tinham a ver com as legítimas necessidades de segurança de Israel: um livro de sistemas de comunicação altamente confidencial para interceptar os códigos de outros governos; documentos técnicos sobre projetos especiais da Agencia de Segurança Nacional (NSA) para proteção e salvaguarda das comunicações militares e da inteligência dos EUA; e informações sobre movimentos de navios americanos no Mediterrâneo.

Friedman, que teve a cabeça colocada a prêmio pela máfia russa, em razão de seu livro “Red Mafiya” (2002) que desvenda os bastidores das atividades criminosas dos mafiosos russos nos EUA, analisa que a informação repassada a Israel é um tipo de conhecimento que até mesmo aliados próximos não compartilham. “O custo para o contribuinte dos EUA dos danos causados por Pollard foi estimado por autoridades americanas entre 3 e 4 bilhões de dólares”, assinalou.

Dois outros respeitados jornalistas americanos de ascendência judaica igualmente se posicionaram contra a libertação de Pollard: o editor-chefe da revista de opinião “The New Republic”, Martin Peretz, de 72 anos, e o subeditor e editor responsável pela página de opinião internacional do “The Wall Street Journal“, Bret Stephens, 40 anos. Em artigo publicado em março de 2012, Peretz critica políticos israelenses e judeus americanos que incomodam o presidente Obama pedindo clemência para Pollard. “O presidente não deve ser pressionado para que liberte um espião somente para provar, mais uma vez, que ele é um aliado e um amigo compreensivo. Pollard não é um herói de Israel, seja o que for que seus admiradores possam dizer.”

Ganhador do prêmio Pulitzer de 2013 como o melhor comentarista político, Bret Stephens é mais incisivo em seus comentários no artigo “Não libertem Jonathan Pollard” (em tradução livre), publicado em 18.03.2013. “O que é desigual na sentença de Pollard não é que sua pena foi muito dura”, escreve. “É que as sentenças de espiões como Aldrich Ames, Robert Hanssen e Robert Kim foram muito brandas.”

Em sua opinião, os EUA precisam castigar exemplarmente os traidores dos segredos nacionais. “Isso vale especialmente para aqueles que espionam em nome de países aliados ou que imaginam que o fazem pelo interesse da humanidade como Bradley Manning” (o principal informante do site WikiLeaks de Julian Assange que foi condenado a 35 anos de prisão por vazamento de documentos e telegramas diplomáticos secretos). Stephens tem um programa semanal de política no canal Fox News e foi o jornalista mais jovem a assumir a chefia do “Jerusalem Post” (2002 a 2004), antes de completar 30 anos.

“Eu acuso”


Lembrando as palavras do romancista francês Emile Zola (que há 115 anos escreveu o histórico libelo “J’accuse” no jornal “L’Aurore” a favor do capitão Alfred Dreyfus, de ascendência judaica, vítima de um complô e condenado injustamente por traição), o jornalista italiano Giulio Meotti publicou em 2011 um artigo no “Jerusalem Post” acusando a esquerda israelense e os intelectuais judeus da diáspora de abandonarem Pollard. De família católica, Meotti é colunista do jornal italiano “Il Foglio” e autor do livro “A new Shoah” (‘Um novo Holocausto – a história não contada das vítimas israelenses do terrorismo’), escrito originalmente em italiano e traduzido para o inglês em 2010.

O jornalista destaca em seu artigo que as informações de Pollard ajudaram Israel a se preparar para os ataques de mísseis iraquianos durante a Guerra do Golfo (1990-1991), quando três foguetes Scud de Saddam Hussein atingiram Tel Aviv e não houve vítimas. Por intermédio de Pollard, o governo de Israel não somente conheceu as intenções belicosas do ditador iraquiano, assinala Meotti, como também ficou sabendo da grande quantidade de armas químicas e não-convencionais armazenadas pelo governo de Bashar al-Assad, da Síria. Segundo ele, Netanyahu é o único político de primeira grandeza do cenário político israelense a estar se empenhando verdadeiramente para libertar Pollard.

Meotti passou quatro anos em Israel realizando pesquisas e entrevistas com as famílias atingidas por ataques terroristas. “Dia após dia, são centenas de ataques agressivos e devastadores nos ônibus, cafés, kibbutzim, restaurantes e templos religiosos executados por radicais muçulmanos”, enfatiza o jornalista. Por isso sua discordância em relação à posição radical adotada por muitos judeus americanos que consideram Pollard “um fanático” (Robert Friedman - “The Washington Post”), “uma víbora” (Martin Peretz – “New Republic”) e “uma aberração” (rabino e ativista social Arthur Hertzberg, falecido em 2006).

Negativas à libertação

Em anos recentes, agências de notícias têm periodicamente divulgado informações sobre pedidos do governo israelense aos EUA para que soltem Pollard em troca de possíveis concessões como a libertação de prisioneiros palestinos ou a interrupção dos assentamentos judeus na Cisjordânia. Mas, as negativas do governo americano se sucedem. Em abril de 2012, a Casa Branca rejeitou oficialmente a possibilidade de libertar Pollard em resposta a um pedido formulado pelo presidente israelense Shimon Peres. “Nossa posição não mudou neste assunto”, afirmou o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional do gabinete de política externa de Obama, Tommy Vietor.

Para piorar a situação, um ex-conselheiro de segurança nacional do FBI, M.E. Bowman publicou um artigo no “New York Times”, em 14 de janeiro de 2014 (‘Não confie neste espião’) lançando a suspeita de que as informações transmitidas por Pollard podem ter sido negociadas pelo governo israelense com a União Soviética para liberar a saída dos judeus da Cortina de Ferro para Israel. A denúncia caberia ao ex-diretor da CIA, William J. Casey, que em 2001 a revelou ao veterano jornalista investigativo Seymour Hersh, ganhador do prêmio Pulitzer e autor de livros sobre geopolítica e assuntos militares.

Uma insinuação grave que torna ainda mais difícil a luta pela liberdade de Pollard, hospitalizado e submetido a uma cirurgia de emergência, nos primeiros dias de março, segundo informou a sua esposa Ester.

Fontes:
“Jonathan Pollard: The 'Spy' Still Out in the Cold” – Chicago Tribune, em 11.11.2013;
“Rafi Eitan says US told Israel that Pollard would only serve 10 years” - The Jerusalem Post, em 11.11.2013;
“Just a farmer in Cuba” – Haaretz, em 3.7.2006;
“CIA: Pollard's life sentence due to ‘Post’ interview” - Jerusalem Post, em 17.12.2012;
“The Secret Agent” - The New York Review of Books, em 26.10.1989;
“CIA: Pollard's life sentence due to ‘Post’ interview” - Jerusalem Post, em 17.12.2012;
“CIA Recruitment of Israeli as Spy Told by Durenberger”- Washington Post, em 21.03.1987;
“Spy versus Spy, América versus Israel” -  National Review Online, em  7.8.2012;
“J’accuse on Pollard” – Jerusalem Post, em 22.06.2011;
“Don’t Trust This Spy” – New York Times, em 14.01.2014