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quinta-feira, 26 de junho de 2025

América Latina: Assassinatos ao vivo de influenciadores é desafio para redes sociais

/  Sheila Sacks /

Em meio à análise do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as responsabilidades das redes sociais, os recentes assassinatos ao vivo de influenciadores digitais em países da América Latina, ocorridos em maio e junho, chamaram à atenção do jornal espanhol El Pais, que reportou o fato em sua edição on-line (23/6), destacando que as mortes ocorreram durante transmissões na rede TikTok.

Os três influenciadores eram jovens, um homem e duas mulheres, com milhares de seguidores, residindo na Venezuela, México e Colômbia, respectivamente. As circunstâncias das execuções, em transmissões ao vivo, indicam uma espécie de recado afrontoso dos criminosos aos seguidores das redes sociais e, principalmente, à sociedade em geral.

Ou seja, ninguém está a salvo, literalmente, de ser morto fazendo uma Live. Relativizar a situação considerando-a como fatalidade, vingança pessoal, homicídio ou feminicídio, dentro de um contexto de normalidade, é fechar os olhos para um fenômeno aterrador. Igualmente tachar o ocorrido como “ossos do ofício” de quem se propõe a ser influenciador, é a surrada saída fácil de  culpabilizar a vítima e limitar as investigações.

Terroristas também assassinavam ao vivo

Certamente, as redes sociais e as sociedades estão diante de um difícil desafio porque os assassinatos envolvem um tipo de criminalidade exibicionista e ultrajante em seus métodos selvagens. Só para lembrar que matar ao vivo utilizando um meio digital não é novidade. O grupo terrorista Al-Qaeda, de Bin Laden, já praticava esse crime no início do século 21, com alegações ideológicas e religiosas. 

Foi assim com relação ao jornalista americano Daniel Pearl (38 anos), do Wall Street Journal, sequestrado no Paquistão onde estava a trabalho, decapitado ao vivo em transmissão pela Internet e TV, em 2002. E, dois anos depois, em idêntico procedimento, com o técnico de comunicações Nicholas Berg, de 26 anos, também americano trabalhando no Iraque, que foi decapitado em vídeo assistido por milhões de pessoas em todo o mundo. Ambos eram judeus e, portanto, o recado dos terroristas foi duplo, abrangendo à população dos Estados Unidos e às comunidades judaicas.

Influenciadores agora são as vítimas

Com 76 mil seguidores, Gabriel Jesús Sarmiento Rodríguez gravou seu próprio assassinato quando homens armados invadiram sua casa em Aragua, na Venezuela e o mataram a tiros (Hombres armados asesinan a un ‘tiktoker’ venezolano durante una transmisión).

 Na gravação, segundo o jornal, “os gritos de uma mulher clamando por socorro podem ser ouvidos enquanto Sarmiento pede ajuda aos oficiais do Sebin (Serviço de Inteligência da Venezuela), repetindo várias vezes o endereço de sua casa”. Com 25 anos, ele denunciava nas redes sociais autoridades públicas, policiais e integrantes de gangues por corrupção e extorsão.

No México, a influenciadora Valeria Márquez, de 23 anos, com 100 mil seguidores, foi assassinada momentos antes de relatar em vídeo que iria receber uma entrega. Modelo e dona de um salão de beleza em Jalisco, ela foi morta a tiros pelo suposto entregador em seu local de trabalho. Suas postagens incluíam fotos usando roupas luxuosas ou no interior de iates e restaurantes. Segundo informação de uma amiga, Valeria sempre recebia presentes enviados ao salão e naquele dia, antes de ser baleada, lhe foi entregue uma sacola de uma rede de cafeterias e um bicho de pelúcia.

Também assassinada a tiros em frente a sua casa ao receber uma caixa de chocolates de um falso entregador, a influenciadora e modelo colombiana María José Estupiñán, conhecida como Mona, tinha 22 anos e mais de 55 mil seguidores. Ela residia na cidade de Cúcuta, no norte da Colômbia, e o crime ocorreu dois dias depois da morte da mexicana. Uma câmera de vídeo capturou o assassino correndo após o ataque e a voz desesperada da mãe da vítima ao vê-la caída no chão.

As execuções estão sendo investigadas pelas polícias locais como homicídio, no caso de Gabriel Jesús, e feminicídio em relação à Valéria e María José, já que ambas tinham contenciosos com seus ex-parceiros.

Influenciadores ou criadores de conteúdo?

No Brasil, influenciadores digitais já denunciaram perseguição, ameaças de morte e ataques de ódio. Em uma reportagem de 2024, a plataforma UOL divulgou que a estimativa é que existam 10 milhões de influenciadores no país. A saturação do mercado, com mais influenciadores do que marcas para promover, vem mudando o perfil desses profissionais. Agora muitos se denominam criadores de conteúdo e isso significa, muitas vezes, o envolvimento em “campanhas publicitárias que incentivam serviços ilegais ou controversos, como produtos inexistentes, esquemas de pirâmide ou apostas online”, observa a matéria do UOL.

Acerca da responsabilidade civil dos influenciadores digitais pela sua capacidade de indicar produtos e serviços de consumo, exercer grande poder de persuasão e promover mudanças comportamentais entre seus seguidores, especialistas em Direito consideram que para salvaguardar tais relações devem ser considerados aspectos legais do Código Civil; do Código de Defesa do Consumidor (influenciador como fornecedor de produto ou serviço); da legislação do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), e do Marco Civil da Internet, estabelecido pela Lei nº 12.965/2014.

Um negócio de bilhões

De acordo com o relatório de referência Influencer Marketing Benchmark Report 2025, divulgado em abril pela plataforma Influencer Marketing Hub, no ano passado o marketing de influência impulsionou as mídias sociais a se tornaram o maior canal de publicidade do mundo, ultrapassando a busca paga. Em 2025, a perspectiva é de que o setor deva atingir US$ 32,55 bilhões em tamanho de mercado global, uma taxa de crescimento anual de mais de 30%, a partir de 2014, quando o tamanho do mercado do marketing de influência era estimado em US$ 1,4 bilhão.

O relatório também registra que a transmissão ao vivo surge como a principal estratégia de conteúdo e que o Brasil garante 15,8% de participação como líder global em influenciadores do Instagram.

  

terça-feira, 3 de junho de 2025

Papa Leão XIV quer fortalecer o diálogo inter-religioso e envia carta a rabinos

/  Sheila Sacks  /

Em carta ao rabino americano Noam Marans, datada de 8 de maio, dia de sua eleição como pontífice, o papa Leão XIV expressou sua intenção de fortalecer os laços da Igreja Católica com a comunidade judaica.

Marans é diretor de Assuntos Inter-religiosos do Comitê Judaico Americano (AJC, na sigla em inglês) e esteve com o novo papa no Vaticano, em 19 de maio, um dia depois de sua posse.

Na mensagem, o papa escreveu: “Confiando na assistência do Todo-Poderoso, comprometo-me a continuar e fortalecer o diálogo e a cooperação da Igreja com o povo judeu no espírito da declaração do Concílio Vaticano II Nostra Aetate”.

Igual mensagem o novo papa enviou para ao rabino-chefe de Roma, Ricardo Di Segni, comunicando sua eleição como novo pontífice e se comprometendo a fortalecer os laços entre as duas religiões, citando também a declaração conciliar Nostra Aetate.

Promulgada em 28 de outubro de 1965, sob o pontificado do papa Paulo VI, Nostra Aetate é um documento oficial que reformulou inteiramente o relacionamento da Igreja com a religião judaica. Otimista, Marans considerou um bom presságio para a relação entre católicos e judeus a eleição de um papa nascido nos Estados Unidos. Ele lembrou que o sucesso das relações católico-judaicas pós Nostra Aetate “é demonstrado mais claramente nos Estados Unidos do que em qualquer outro lugar”.

Em uma mesa redonda com jornalistas, ele falou da importância e do significado da iniciativa do papa que demonstrou uma atitude positiva quanto a essa questão logo no início de seu papado, “e não três anos depois, o que seria outra coisa”, segundo a sua opinião. O rabino informou ainda que recebeu uma carta personalizada do papa convidando-o para a missa de posse papal.

As informações foram divulgadas pelo site católico em inglês Crux (22/5/2025), sediado no Colorado, especializada em notícias sobre o Vaticano e a Igreja Católica.

Roma judaica

O tema também teve destaque no site Angelus, da comunidade católica de Los Angeles, que já a partir do título “Papa promete diálogo fortalecido com os judeus” reforça a disposição do papa Leão XIV para o diálogo com as lideranças judaicas (em 13/5/2025).

A matéria foca, essencialmente, na comunidade judaica de Roma e revela que o Leão XIV enviou uma mensagem pessoal ao rabino-chefe de Roma, Ricardo Di Segni, comunicando sua eleição como novo pontífice e se comprometendo a fortalecer os laços entre as duas religiões. Di Segni esteve presente no Vaticano na inauguração do pontificado, em 18 de maio, e disse que “acolheu com satisfação e gratidão as palavras que lhe foram dirigidas pelo novo papa.”

A comunidade judaica de Roma é a mais antiga do mundo ocidental, remontando ao século II, antes da Era Comum. Cerca de 27.300 mil judeus vivem na Itália, a maioria (15 mil) em Roma, de acordo com União da Comunidade Judaica Italiana (UCEI, na sigla em italiano).

A reportagem também lembra que em 2010, quando o Papa Bento XVI visitou a sinagoga de Roma, a equipe do Museu Judaico da cidade apresentou uma exposição de painéis decorativos feitos por artistas judeus dos séculos 17 e 18 que marcavam a inauguração dos pontificados dos papas Clemente XII, Clemente XIII, Clemente XIV e Pio VI.

Raízes espirituais

Em Israel, o jornal Jerusalem Post, em sua plataforma on-line, publicou um artigo assinado pelo embaixador Ilan Mor (24.5/2025), enaltecendo a vontade do novo papa de estreitar as relações com os judeus. Comentando a carta de Leão XIV ao rabino americano Mars, o embaixador escreve: “Esta carta inscreve-se na tradição de um ponto de virada histórico iniciado com a Nostra Aetate. Neste documento histórico, a Igreja Católica rejeitou explicitamente, pela primeira vez, a doutrina da culpa coletiva judaica pela crucificação de Jesus. Também enfatizou as profundas raízes espirituais do cristianismo no judaísmo e apelou ao diálogo respeitoso, tornando-se um divisor de águas na relação entre as duas religiões.”

Para o embaixador, o documento papal de 1965 não foi uma reavaliação apenas teológica, mas também uma resposta moral ao Holocausto e à necessidade de confrontar a culpa histórica, preparando o cenário para décadas de reaproximação.

O texto ressalta o estabelecimento de relações diplomáticas entre o Vaticano e Israel em 1993, a visita histórica do Papa João Paulo II a Israel, em 2000, e as visitas subsequentes de seus sucessores que aprofundaram esse relacionamento. Também cita outro trecho da carta do papa.  “Nestes tempos desafiadores, nós, como comunidades de fé, somos especialmente chamados a construir pontes em vez de erguer muros. Nossa herança compartilhada nos obriga ao respeito mútuo e ao diálogo sincero.”

Mor, que foi embaixador de Israel na Hungria e na Croácia, disse que o novo papa já anunciou a criação de uma comissão conjunta para desenvolver medidas concretas contra o aumento global do antissemitismo. Nos festejos de sua posse se encontrou com o presidente Isaac Herzog que o convidou para visitar Israel.

De acordo com o embaixador, tendo nascido e criado nos Estados Unidos, “uma sociedade onde a diversidade religiosa é uma realidade”, o novo papa entende o diálogo inter-religioso não como uma exceção, mas como a norma. “Essa perspectiva pode ajudar a aprofundar o intercâmbio judaico-católico em um mundo cada vez mais polarizado – não como um exercício teológico abstrato, mas como uma missão compartilhada no combate ao antissemitismo, ao racismo e à intolerância religiosa.”

Filho de sobreviventes do Holocausto, Mor, de 70 anos, transcreve as palavras de Leão XIV, sublinhando que “de Roma, um sinal foi enviado, não apenas ao mundo judaico, mas a todos os que acreditam no poder do diálogo, quando há vontade e compreensão”. Diz o papa: “A dignidade humana é indivisível. Quem denigre uma pessoa por causa de sua religião, origem ou crenças viola princípios fundamentais que são sagrados tanto para cristãos quanto para judeus.”

Comunidades unidas

Presente no primeiro encontro do novo papa com representantes de outras religiões, realizado no Vaticano (19/5), o rabino Mark Dratch, presidente do Comitê Judaico Internacional para Consultas Inter-religiosas (IJCIC, na sigla em inglês), se mostrou confiante no pontificado de Leão XIV. A plataforma Vaticano News, portal oficial de notícias da Santa Sé, reportou a audiência e as palavras do rabino. “Estamos ansiosos para desenvolver nosso relacionamento com o Papa Leão e fortalecer os laços entre as comunidades judaicas e católicas, não apenas no nível da liderança, mas também entre os fiéis de nossas congregações, para que as pessoas em nossas comunidades se conheçam e se apreciem mutuamente”, falou Dratch.

O religioso lembrou ainda que “desde a Nostra Aetate, a relação entre o mundo católico e o judaico evoluiu positivamente em várias direções, em termos de fraternidade, respeito e compreensão mútua”.

Por fim, mostra-se promissor, além de solidário e fraterno, o discurso de Leão XIV na celebração inaugural do meu ministério como Bispo de Roma, ao se dirigir aos representantes de outras igrejas e de outras religiões, conforme transcrição divulgada pelo Vaticano. O novo papa dirigiu uma saudação especial a quem chamou “de nossos irmãos e irmãs judeus”. Disse o papa: “Devido às raízes judaicas do cristianismo, todos os cristãos têm uma relação especial com o judaísmo. A Declaração conciliar Nostra Aetate sublinha a grandeza do patrimônio espiritual partilhado por cristãos e judeus, encorajando o conhecimento e a estima recíprocos. O diálogo teológico entre cristãos e judeus, que é sempre importante, eu tomo-o muito a peito. Mesmo nestes tempos difíceis, marcados por conflitos e incompreensões, é necessário prosseguir com coragem este nosso precioso diálogo.”

terça-feira, 20 de maio de 2025

Envelhecimento das populações impacta economias que ainda têm de lidar com desastres climáticos e guerras

 /  Sheila Sacks  /

 ... e os seus dias serão cento e vinte anos (Gênesis 6:3)

 Em recente artigo no jornal britânico The Guardian, o economista e professor da London Business School, Andrew John Scott, alerta que as economias das nações devem estar preparadas para a mudança demográfica que já está ocorrendo no mundo.

 Autor do livro "The Longevity Imperative: Building a Better Society for Healthier, Longer Lives" (O Imperativo da Longevidade: Construindo uma Sociedade Melhor para Vidas Mais Longas e Saudáveis), publicado em 2024, Scott afirma que os sistemas de saúde, educação e, principalmente, de trabalho precisam ser revistos diante desse novo cenário. Em dezembro de 2020, a Assembleia Geral das Nações Unidas já havia declarado o período de 2021 a 2030 como a Década do Envelhecimento Saudável, com destaque para quatro iniciativas: mudar a forma de ver o idoso; capacitar e integrar; prover serviços de saúde integrados; e promover cuidados de longa duração.

 O Fundo Monetário Internacional (FMI) já fez um alerta de que o avanço da idade média das populações representa um desafio direto ao crescimento global e à estabilidade fiscal de muitos países. Em seu mais recente relatório “Panorama Econômico Mundial” (World Economic Outlook - WEO), divulgado em abril, a instituição considerou o momento atual crítico, apontando para uma desaceleração do crescimento global.

Segundo o Fundo, as políticas precisam ser calibradas para reduzir os desequilíbrios internos e externos, com a criação de reservas financeiras que promovam o envelhecimento saudável. Projeções indicam que o envelhecimento pode reduzir a taxa de crescimento global em até 0,6% ao ano, pressionando os sistemas previdenciários. Um impacto nos gastos públicos que se somadas às guerras e crises climáticas poucas economias irão suportar.

 Um exemplo é a Ucrânia em guerra que precisará de investimentos aproximados de 486 bilhões de dólares na próxima década para a recuperação e reconstrução do país, assim estima o FMI.  Nos Estados Unidos, os desastres climáticos causam prejuízos de 150 bilhões de dólares, em média, anualmente. No Brasil, as inundações do Rio Grande do Sul, no ano passado, custaram aos cofres públicos  112 bilhões de reais, conforme dados do governo federal.

 Faixa de cem anos cresce

De acordo com a ONU, a faixa etária que mais cresce atualmente é justamente a que abrange as pessoas de 100 anos.  “Em 1950, estimava-se que havia 14 mil pessoas centenárias, enquanto hoje são quase 750 mil, com projeção de quase 4 milhões até 2054”, escreve o economista inglês, também autor do best-seller “The 100-Year Life” (2021), com mais de 1 milhão de exemplares publicados em 15 idiomas. Por sua vez, órgãos especializados como The American Academy of Actuaries, nos Estados Unidos, e Office for National Statistics, na Inglaterra, afirmam que 1 em cada 6 americanos irão viver até os 100 anos, e que a maioria dos bebês ingleses vão passar dos 90 anos.

 Scott observa que “o número de anos que provavelmente viveremos aumentou mais do que o número de anos que provavelmente permaneceremos saudáveis”, e balancear essa equação é fundamental para uma existência longa e proveitosa. Para isso, em princípio, é necessário seguir as receitas de bom senso já conhecidas pela maioria das pessoas, mas nem sempre levadas a sério, como boa alimentação e sono, mais exercícios e respeitar as recomendações médicas.

 Mas, a autodisciplina não é tudo. Na avaliação de Scott, “felizmente, envelhecer bem está se tornando uma indústria, e podemos esperar apoio do progresso tecnológico e científico e de mudanças nas políticas governamentais”. Se em séculos anteriores doenças como a peste, varíola e cólera, por exemplo, matavam as pessoas ainda jovens, agora, a principal causa das doenças e mortes está relacionada ao envelhecimento.

 Diante desse cenário que se avizinha, governos precisam se preparar para os anos extras que as pessoas vão acumular. Um desafio que já pauta as agendas de administradores, empresas e serviços públicos responsáveis em atender as demandas dessa parcela da população. E uma das preocupações mais visíveis e discutidas se concentra no pagamento de aposentadorias e pensões para os trabalhadores  diante da perspectiva concreta de maior longevidade.

 Então, viver mais pode exigir trabalhar mais para manter o mesmo padrão de qualidade de vida. Scott acredita que somente aumentar a idade da aposentadoria, como muitos países estão procedendo, não resolveria o problema. “Precisamos de mudanças que nos ajudem a trabalhar por mais tempo, e não apenas nos obriguem a fazê-lo”, considera.

 Ele acredita que é preciso criar uma estrutura de trabalho mais flexível, com mudanças e transições de carreira mais frequentes  no sentido de que a ocupação vai prolongar nossa vida profissional e não sobrecarregá-la. O objetivo seria oferecer um tempo para requalificar e melhorar a saúde, cuidar da família, alternando entre trabalho em tempo integral, meio período ou, simplesmente, sem jornada.

 Para isso é preciso ter em mente a “compreensão da biologia do envelhecimento”, que são os processos que diminuem lentamente os componentes físicos do nosso corpo. “Desacelerar esses processos reduziria substancialmente a diferença entre a expectativa de vida saudável e a expectativa de vida”, reforça. Mesmo assim, mudanças amplas nos esperam no futuro em relação aos sistemas de saúde, porque atualmente o foco é intervir quando uma doença já está em um estágio de afetar negativamente nossa vida.

 Ciência na vanguarda

Com a ascensão da Inteligência Artificial (IA) e do big data (processo de análise e interpretação de um grande volume de dados), a gerociência  estará mais presente e atuante na identificação e prevenção de doenças, rastreando suas genéticas e acelerando na inovação dos medicamentos.

 Hoje, chegar aos 115 anos é um feito que entra no livro dos recordes. A britânica Ethel Caterham, nascida em 1909, ao completar essa idade em 2025, e após a morte da freira brasileira Inah Canabarro Lucas, em 30 de abril, aos 116 anos, recebeu o título da pessoa mais velha do mundo pela Gerontology Research Group, organização que pesquisa para Guinness World Records. Ela atribui sua longevidade a maneira como encara as situações. “Com calma, nos altos e baixos, e fazer o que gosta”.  

 Mas, somente uma atitude serena e positiva diante da vida não é garantia de longevidade. Em março de 2024, a então mulher mais velha do mundo, Maria Branyas Morera, ao comemorar seus 117 anos, disse que “a sorte e a boa genética” a tinham levado a esse patamar de idade. Alguns meses depois de ela falecer, cientistas divulgaram que realmente a genética ajudou em sua longevidade.

 Um estudo do microbioma e do DNA de Branyas, conduzido ainda em vida, determinou que “os genes que ela herdou permitiram que as suas células se sentissem e se comportassem como se fossem 17 anos mais jovens”. Também foi pesquisado que, no seu caso, as bactérias presentes no intestino e que são fundamentais para a boa saúde correspondiam as de uma criança. “Os microrganismos são essenciais para determinar não apenas a composição metabólica do nosso corpo, mas também a inflamação, a permeabilidade intestinal, a cognição e a saúde óssea e muscular", explicam os cientistas no estudo realizado. Foi observado também que Branyas ingeria yogurte três vezes ao dia.

 Políticas inclusivas

 Um dos países que mais têm investido em ambientes favoráveis aos idosos é o Japão, que tem a maior população centenária do mundo. Somam 95.119 pessoas, de acordo com o censo do país divulgado em outubro de 2024, um aumento de 2.980 em relação ao ano anterior, a maioria composta de mulheres (83%).  

 A política a favor do idoso,  informa a plataforma Nipon.com, teve início no século passado, em 1963, com a promulgação da Lei de Bem-Estar Social para Idosos. Na época, havia 153 japoneses centenários. Esse número ultrapassou mil, em 1981, e chegou a 10 mil em 1998, e desde então vem aumentando continuadamente.

 Em dezembro do ano passado a BNN Blomberg divulgou que as maiores corretoras de valores do Japão estavam aumentando os salários e benefícios para os trabalhadores que atingiam a idade da aposentadoria, com intuito de reter as pessoas capacitadas. Se, em anos passados, funcionários com mais de 60 anos enfrentavam uma queda acentuada no salário ao serem readmitidos, além de serem relocados para funções menos importantes, agora a situação melhorou. A reportagem citava bancos e instituições financeiras japonesas que estavam promovendo ou planejavam implementar vantagens salariais de até 40%, ampliando benefícios sociais com foco nos funcionários de mais de 60 anos.

 Na Inglaterra, pessoas que trabalharam mais de 30 anos em escritórios fechados prosseguiam ativas, mas de outra maneira. Reportagem mostrou que atualmente exercem atividades de guardas florestais em parque públicos, agentes comunitários em programas sociais ao ar livre, recepcionistas em fazendas recebendo colegiais  e gestores de zoológicos, entre outras atividades. Todos se declarando mais felizes em seus novos empregos (The Guardian, 18/5/2025).

 Sem reserva financeira

 No Brasil, uma série de reportagens da Gazeta do Povo, de Curitiba, sobre o envelhecimento populacional no país, revelou o despreparo da sociedade  quando se trata de matéria financeira.  A baixa capacidade de poupança (14,5% do PIB no fim de 2024) e de investimentos financeiros (apenas 37% dos brasileiros afirmaram que realizaram aplicações financeiras), segundo o IBGE, é agravada pela apuração de que 82% das pessoas não aposentadas ainda não iniciaram uma reserva financeira para a velhice. Se, em 2023, a intenção de poupar para a velhice era de 58% dos entrevistados, em 2024, o percentual baixou para 53%.

 Lembrando que em duas décadas a proporção da população de idosos no Brasil duplicou, saltando de 8,7% para 15,6% e que a estimativa do IBGE é que atinja 38% (pessoas acima dos 60 anos) em 2070.

 Para piorar, reportagem recente na mídia revelou que mais de 70 milhões de brasileiros, o equivalente a 42% de pessoas adultas no país, estão inadimplentes (Veja Negócios, em 18/5/2025).

 Aposentadoria baixa

 Informação divulgada pelo próprio INSS mostra que 70% dos pagamentos previdenciários feitos pelo instituto são de até um salário-mínimo (R$ 1.831), totalizando 28,5 milhões de pessoas. Valor muito aquém do necessário para uma sobrevivência digna. Os que ganham acima do mínimo somam 12,2 milhões e o teto previdenciário só atinge 10,6 mil (R$ 8.157,41). No total, o INSS paga 40,7 milhões de benefícios previdenciários e assistenciais.

 Outro registro preocupante diz respeito à produtividade no trabalho. Dados do FGV Ibre apontam que entre 1981 e 2024 o aumento da produtividade foi de 0,5% ao ano, e que nos últimos cinco anos foi ainda menor (0,3%).

 Prosseguindo nesse ritmo, o país terá de fazer malabarismos para continuar a pagar aposentadorias e prover o SUS de recursos, garantem os especialistas. Em 2024, as despesas com a previdência somaram  R$ 938,5 bilhões, quase 30 bilhões a mais do que foi planejado. Para 2025, o governo já projeta um déficit de R$ 328 bilhões.  

 Nos Estados Unidos, em 2024, a despesa previdenciária que beneficia 68 milhões de pessoas atingiu a cifra de 1.52 trilhão de dólares, 22,4% do orçamento federal. Dados da União Europeia de 2023 atestam que os gastos com proteção social chegaram a 3.309 bilhões de euros, variando de 8,1% a 25% do PIB (produto interno bruto) dos países que compõem o bloco.

 Já a despesa total da previdência brasileira está em 14,5% do PIB, incluindo INSS (8%), programas sociais e pagamento de servidores públicos e militares. A percentagem, de acordo com analistas, equivalente a de países que têm uma população idosa três vezes maior, como a França, Portugal e Grécia.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Comunidade católica de Jerusalém terá um representante no conclave que vai escolher o papa

/ Sheila Sacks /


Nomeado cardeal  pelo papa Francisco, em 30 de setembro de 2023, o italiano Pierbattista Pizzaballa é o Patriarca Latino de Jerusalém, desde 2020, e completou exatos 60 anos em 21 de abril, data do falecimento do papa.

Sua nomeação para cardeal aconteceu uma semana antes do ataque do Hamas, na fronteira sul de Israel, que provocou mais de 1.200 mortos e o sequestro de 251 pessoas. Em 17 de outubro, depois de convocar um dia de oração e jejum pela paz na Terra Santa , o cardeal Pierbattista se ofereceu  em troca da libertação das crianças israelenses reféns do grupo terrorista.

De acordo com o portal Vaticano News (16.10.2023), o cardeal, em entrevista on-line com jornalistas, “não hesitou em declarar que está pronto para se oferecer pessoalmente em troca das crianças que estão atualmente nas mãos do Hamas. − Se isso puder trazer liberdade, trazer essas crianças de volta para casa, não há problema. De minha parte, disponibilidade absoluta".

Em outra entrevista ao mesmo portal, alguns meses antes de se tornar cardeal, diante de algumas ações de intimidação praticadas pela ala mais extremista do judaísmo que questiona a presença de cristãos em locais que consideram de um Israel bíblico, Pierbattista ressaltou a posição do presidente Isaac Herzog. “O presidente do Estado de Israel é muito ativo e falou muito claramente, publicamente, contra isso.” Também isentou a sociedade do país por esse tipo de evento.A grande maioria da população judaica israelense, mesmo a religiosa, não tem nada a ver com isso. Nos últimos meses, também vimos muitos rabinos escreverem e falarem publicamente contra esses fenômenos.”

Em resposta a uma suposta “perseguição” que poderia estar ocorrendo aos cristãos na Terra Santa, foi incisivo. “Não. Quando falamos de perseguição, penso no que o autodenominado Estado Islâmico (EI) fez na Síria e no Iraque. Não estamos nessa situação. Há problemas, com certeza, mas não estamos sendo perseguidos.”

Manifestando esperança em um futuro mais tranquilo, Pierbattista assim se expressou. “Sempre há motivos para ter esperança, porque essas situações também criaram reações fortes, muitas vezes muito mais fortes na sociedade israelense, até mesmo religiosas, mais frequentemente do que entre os cristãos, e acredito que essa consciência de um problema na sociedade israelense dará frutos com o tempo.”

Currículo


Nascido na pequena cidade Cologno al Serio , na região de Lombardia, norte da Itália, Pierbattista  entrou para a Ordem dos Frades Menores ( franciscanos) aos 19 anos. Em 1990, recebe o título de bacharel em Teologia pelo Studio Teológico S. Antonio, em Bolonha, e é ordenado sacerdote no mesmo ano, em 15 de setembro, aos 25 anos. Logo em seguida parte para Jerusalém onde em 1993 obtém  a licenciatura em Teologia com especialização bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum.

Estuda as línguas hebraica e semítica na Universidade Hebraica  de Jerusalém e depois leciona  hebraico bíblico na Faculdade Franciscana de Ciências Bíblicas e Arqueologia, em Jerusalém. Foi responsável pela tradução do Missal Romano e de textos litúrgicos para o hebraico, que fala fluentemente, além do árabe e do inglês.  

Em 1999, torna-se  primeiro assistente geral do auxiliar do Patriarca Latino de Jerusalém, com sede na Basílica do Santo Sepulcro, e, em seguida, vigário paroquial para a comunidade católica de língua hebraica. Posteriormente, é nomeado superior do Convento dei Santi Simeone e Anna, também em Jerusalém.

Em 2004, é eleito para o cargo de Custódio da Terra Santa e Guardião do Monte Sião, sendo confirmado por 12 anos consecutivos, até 2016, quando é indicado para Administrador Apostólico do Patriarcado de Jerusalém dos Latinos, e consagrado Arcebispo e Pró-Grão-Prior da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém. Em 24 de outubro de 2020 o papa Francisco o nomeia oficialmente Patriarca Latino de Jerusalém, após 40 anos da função ser ocupada por prelados árabes.

Em julho de 2023, por ocasião do anúncio do papa sobre o cardinalício na Terra Santa,  Pierbattista Pizzaballa interpreta a nomeação como um "sinal de atenção da Igreja de Roma para com a Igreja Mãe, a Igreja de Jerusalém ".

Comunidade

Vivem atualmente em Israel 180,3 mil  cristãos, sendo 79% de árabes israelenses residentes no norte, principalmente nas cidades de Haifa e Nazaré. Os cristãos não árabes estão em Tel Aviv e Jaffa.  Em Jerusalém são  13 mil. O número de igrejas católicas é de 103. Os dados foram publicados pelo Escritório Central de Estatísticas de Israel, em dezembro de 2024, e reportados pelo site Christian Media Center (14.01.2025).

Um ano após o ataque do Hamas, reportagem do Vaticano News (7/10/2024) divulgou a reunião anual das comunidades católicas de língua hebraica de Israel orando pela paz no Mosteiro de "Nossa Senhora da Arca da Aliança", em Kiryat Ye'arim. Em entrevista ao portal, o padre Piotr Żelazko, vigário patriarcal de São Tiago, que cuida das comunidades eclesiais em Israel, lembrou que  o sofrimento não tem nacionalidade. “É muito difícil aqui em Israel. Rezamos pelas vítimas desta violência sem precedentes que vimos em 7 de outubro do ano passado e lembramos quanta violência sofremos."

 A matéria cita o ano novo judaico, o Rosh Hashaná, celebrado naquele mês, e destaca as “conexões com as raízes hebraicas” das comunidades católicas no país. “As comunidades católicas de língua hebraica que vivem em Israel são únicas na sua profunda ligação com a cultura e a língua hebraica, que une católicos de diversas origens na encruzilhada do cristianismo e do judaísmo. Eles celebram a sua fé cristã em hebraico na profunda ligação entre o cristianismo e o judaísmo”, conclui o artigo assinado pelo padre Paweł Rytel-Andrianik, professor na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma, e colaborador da Rádio Vaticano e do portal Vaticano News, ambos órgãos informativos oficiais da Santa Sé.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Um sentido para a vida – Revisitando Viktor Frankl

Hoje aos homens é concedido confrontar-se com realidades que antes confrontavam somente no leito de morte (Ernst Bloch, filósofo)

/ Sheila Sacks /


Em 2023, um livro escrito em 1946, traduzido em 52 idiomas, best-seller mundial, ganhou uma tradução especial em português voltada para jovens leitores. Trata-se da obra “Em busca de Sentido – Um psicólogo no campo de concentração”, do médico e professor de Psiquiatria na Universidade de Viena, Viktor Frankl (1905-1997).

Com elementos que beiram ao gênero de literatura de autoajuda, pela ênfase à psicologia virtuosa da vontade pessoal e da força do espírito para superar as adversidades, o livro de Frankl traz a mensagem de que ao indivíduo cabe procurar um sentido e uma missão na vida. Uma visão que caminha em rumo diverso a de seu ilustre conterrâneo Sigmund Freud (1856-1939), com quem manteve correspondência e conheceu pessoalmente.

 Em uma conferência em Viena, Frankl reconheceu o fato e se justificou: “É verdade que Freud escreveu que ‘no momento em que alguém pergunta sobre o sentido ou o valor da existência, está doente’, mas eu penso que é nesse momento que a pessoa manifesta sua humanidade. É um empreendimento humano o interrogar sobre um sentido para a vida, e cabe perguntar se tal sentido é alcançável ou não.”

 Quase oitenta anos depois do lançamento da obra, que também enfatiza o valor e o sentido do sacrifício em qualquer situação, as teses de Frankl e Freud estranhamente se interagem. Isso porque em uma época na qual o sentido da vida para uma fatia da humanidade se centraliza em matar ou se imolar em sacrifício às causas associadas ao radicalismo religioso e político, a presunção de Freud torna-se cabível principalmente em relação às pessoas que aderem ao terror. A procura de uma razão para viver não é uma condicionante à busca do bem e se manifesta, de um modo geral, a partir de um desajuste pessoal que, mais adiante Frankl classificaria de “vazio existencial”.

 Mas, apesar das concepções de Frankl não entusiasmarem Freud nem tampouco a outro gigante da psicologia com quem manteve contato, o também austríaco Alfred Adler (1870-1937, que defendia a ideia de que o indivíduo é motivado mais pelas expectativas do futuro do que por suas experiências do passado), sua obra de estreia e as demais que se seguiram (escreveu 39 livros) receberam elogios e palavras de incentivo de líderes religiosos do porte do Papa Paulo VI, que o convidou para um encontro no Vaticano, em 1970. Seus livros também foram traduzidos para o árabe e o persa, sendo editados no Egito, Irã e Turquia, de populações muçulmanas.

Livro do século

 Em 1991, uma pesquisa realizada entre os leitores dos Estados Unidos apontou os 10 livros que mais influenciaram e fizeram a diferença em suas vidas. No topo da lista não houve surpresa: a Bíblia continuava liderando com facilidade (fato que se repete até os dias de hoje nos EUA). A consulta, conduzida pela prestigiosa instituição norte-americana “Library of Congress” - a maior biblioteca do mundo com um acervo de mais de 35 milhões de livros e outros impressos -, em parceria com o Clube do Livro, também consagrou o livro escrito por Frankl (‘Man’s Search for Meaning’, na edição em inglês).

 Uma escolha que se repetiu anos mais tarde, em 2000, no Japão, com os leitores do Yomiuru Shimbun, de Tóquio, o jornal de maior tiragem diária do mundo (10 milhões de exemplares), que listaram o livro de Frankl como um dos 10 mais importantes do século 20.

O autor tinha sobrevivido a três longos e sofridos anos em quatro campos de concentração, acompanhado de um caderno de anotações que serviu de base para descrever a sua terrível experiência e a de outros companheiros sob a ótica de um psicólogo. Publicado pela primeira vez em Viena, o livro de pouco mais de cem páginas, escrito em nove dias, trazia uma mensagem estimulante já a partir do título: “Trotzdem ja zum Leben sagen” (Diga sim à vida, de qualquer maneira, tradução livre do alemão). Espantoso para quem acabara de perder seus entes queridos de modo tão bárbaro: o pai, no campo de Theresienstadt (República Tcheca); a mãe e o irmão caçula, em Auschwitz (Polônia); e a esposa grávida, em Bergen-Belsen (Alemanha).

 Ao longo da narrativa, Frankl detalha situações inimagináveis de desumanidade e de degradação física, experimentadas por prisioneiros de todas as idades, inclusive crianças, no campo de Auschwitz, e analisa que todo ser humano submetido àquelas condições em pouco tempo irá apresentar um estado de espírito anormal o que não deixaria de ser uma reação psicológica “normal”. E lembra a frase do poeta e filósofo Gatthold Ephraim Lessing (1729-1781), mestre do Iluminismo: “Quem não perde a cabeça com certas coisas é porque não tem cabeça para perder.”

Frankl recorre a pensamentos de filósofos, poetas e escritores nas suas descrições dos cotidianos quadros sórdidos e terrificantes que compunham o dia a dia daquele exército deplorável de condenados. A sublimação do sofrimento é lembrada na afirmação do russo Dostoievsky (1821-1881) que dizia temer apenas uma coisa na vida: não ser digno de seu próprio tormento. Daí a importância das denominadas “alegrias miseráveis” que inoculavam um valioso fôlego espiritual nos prisioneiros despojados de todos os seus pontos de equilíbrio. “Nós éramos gratos ao destino quando ele nos poupava de sustos. Já ficávamos contentes quando à noite podíamos catar os piolhos do corpo antes de nos deitar.” Uma felicidade no sentido negativo de Schpenhauer (filósofo alemão do século 19) ou uma isenção de sofrimento em sentido muito relativo, segundo Frankl.

 Arte, política e religião

 Usada pelos prisioneiros como uma valiosa tábua de salvação contra a apatia, o desânimo e a loucura, a arte nos campos de concentração está presente nas narrativas da maioria dos livros, documentários e filmes sobre o tema, compondo, juntamente com o material salvo da hecatombe, um considerável legado cultural, se o termo é aplicável em relação à tragédia do Holocausto. Sessões de música, poesia, teatro e até de humor aconteciam com o beneplácito da guarda nazista adestrada contra possíveis focos de rebeliões. Os sentimentos de inconformismo ou revolta, canalizados para um escoadouro fictício de sonhos e fantasias, mantinham os prisioneiros sob controle, proporcionando uma sensação de bem estar, ainda que fugaz e ilusória. Valia “tudo para esquecer”, atesta Frankl.

Outras áreas de interesse que movimentavam o cotidiano dos campos eram a política e a religião. ”Em primeiro lugar, a política, o que não é de surpreender e, em segunda posição a religião, o que não deixa de ser notável”, conta. “Todos aqui discutem política quase sem parar, mesmo que se trate de ouvir sequiosamente os boatos infiltrados e passá-los adiante. Quanto à religião, o impressionante eram os cultos improvisados nos cantos de algum barracão ou num vagão de gado, escuro e fechado, no qual éramos trazidos de volta após o trabalho, cansados, famintos e passando frio em trapos molhados.” Médico psiquiatra, Frankl afirma que se manteve fora de privilégios. “Não é sem orgulho que digo não ter sido mais que um prisioneiro comum. Nada fui senão o simples nº 119104.”

Junto aos pais

Em sua autobiografia, publicada em 1995, Frankl relata como teve a oportunidade de escapar ao regime nazista: “Eu esperei alguns anos até obter o visto de imigração para os Estados Unidos. Finalmente, um pouco antes do ataque a Pearl Habor (07.12.1941), fui convidado a ir à embaixada para pegar o meu visto. Aí então, eu hesitei, pois como poderia deixar meus pais para trás? Eu já imaginava qual seria o destino deles: deportação para um campo de concentração. Poderia eu dizer adeus e deixá-los entregues a própria sorte? O visto era pessoal, exclusivo para a minha pessoa”. 

 À época, Frankl tinha 36 anos e era diretor do setor de Neurologia do Hospital Rothschild, tendo trabalhado antes, por quatro anos, no Hospital Geral de Viena, no tratamento de pacientes com tendências ao suicídio. Ele conta que quando chegou em casa naquele dia, encontrou o pai, em lágrimas: “Os nazistas atearam fogo na sinagoga”, disse-me, mostrando um pedaço de mármore que ele conseguira salvar. Na peça estava gravada, em dourado, uma única letra hebraica, justamente a letra inicial do quarto Mandamento: Honra teu pai e tua mãe. Diante disso, Frankl telefonou para a embaixada americana e cancelou o visto. “Talvez a decisão que eu tomei já estivesse comigo há muito tempo, e na realidade somente escutei o eco da voz de minha consciência”, afirmou.

Ponto de vista

O jornalista e escritor norte-americano Matthew Scully, mais conhecido pela sua função de speechwriter (redator de discursos) do ex-presidente George W. Bush, observa que Frankl publicou “Em Busca de Sentido” um ano antes do surgimento de “O Diário de Anne Frank” (1947). Ambos os livros ganharam o mundo, mas os autores tiveram destinos distintos. “No caso de Frankl, a sorte o conduziu para uma direção diferente. Depois da perda da esposa no Holocausto, ele casou-se novamente, escreveu dezenas de obras, criou um método de psicoterapia, construiu um instituto em Viena que leva o seu nome, deu palestras ao redor do mundo, e permaneceu vivo para ver o seu livro ser traduzido para dezenas de idiomas.” 

No encontro que teve com Frankl, em Viena, em abril de 1995, o jornalista falou de sua surpresa pelo livro não ser, pelo menos, o segundo mais lido na biblioteca do Museu do Holocausto, em Washington, onde “O Diário de Anne Frank” ainda reina absoluto (35 milhões de cópias em 67 idiomas). Frankl atribuiu o fato ao tom conciliatório que sempre adotou em suas mensagens e que desagradava a muitos: “Em todo o meu livro Em Busca de Sentido você não vai encontrar a palavra ‘judeu’. Eu não acentuei a minha condição de judeu e nem de ter sofrido como um judeu”, afirmou.

Na entrevista, publicada pela revista americana First Things, Frankl fez questão de igualar a sua dor à de qualquer outro ser humano submetido a uma situação de horror. “Sou 100% contra a tese de culpa coletiva”, enfatizou. “Parto do fundamento de que a culpa, a priori, é individual.” Reforçando essa posição, Frankl já havia dito, em outra ocasião, que mesmo nos estreitos limites de um campo de concentração, ele somente encontrara dois gêneros de pessoas: as decentes e as sem decência. “Nenhuma sociedade está imune aos dois, portanto, havia no campo guardas decentes e prisioneiros, sem decência, notadamente os capos (prisioneiros que dispunham de prerrogativas especiais) que insultavam e torturavam os seus próprios companheiros em troca de vantagens pessoais.”

 Escondendo o inimigo

O antropólogo Richard A.Shweder, escritor, professor e presidente do Comitê de Desenvolvimento Humano da Universidade de Chicago, destaca o fato de que Frank surpreendeu o mundo ao afirmar que o espírito humano encontrava maneiras de alcançar a dignidade mesmo na lama de Auschwitz. “Ele argumentava que um prisioneiro tornava-se digno ou não a partir de uma decisão própria interior, e não somente em consequência das condições do campo.” Para Frankl, ninguém melhora ou evolui enxergando-se como vítima. Cada pessoa é capaz de se sobrepor a situações degradantes, “já que a saúde mental está relacionada com as decisões e não com as condições”.

Um fato ilustra esse ponto de vista. Quando os aliados libertaram os campos de concentração, duas prisioneiras judias sobreviventes do Holocausto esconderam um oficial da SS (Schutzstaffel, a tropa nazista de Hitler) de nome Hoffman, e só concordaram em entregá-lo às autoridades com a condição de que ele não fosse maltratado. Frankl foi testemunha no julgamento e durante algum tempo manteve correspondência com o oficial tentando confortá-lo, já que o homem vivia atormentado por sua participação na barbárie nazista.

Conselhos para se manter vivo

Frankl também lembra em seu livro uma das primeiras recomendações que, recém-chegado a Auschwitz, recebeu de um prisioneiro veterano: “Não tenha medo! Não se amedronte com as seleções! Mas uma coisa eu peço para você... faça a barba diariamente, mesmo que tenha de usar um fragmento de espelho... mesmo que tenha que dar o seu último pedaço de pão para isso. Você ficará com uma aparência mais jovial e o ato de se barbear dará a sua face mais rubor. Se quiser sobreviver, só existe um jeito: Mostre-se saudável para o trabalho.”

Já nos momentos de intensa frustração, recorda Frankl, o artifício era orientar os seus pensamentos para as coisas mais triviais, como por exemplo achar um pedaço de arame para substituir o cadarço podre de um sapato. Ele também se forçava a pensar acerca do futuro, após a libertação. Anos depois, nas diversas universidades onde lecionou – entre elas a de Harvard – Frankl sempre enfatizava aos seus alunos que cada pessoa deve ir ao encontro de sua missão. “O homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido da vida. Por isso é preciso trabalhar por algo além de si mesmo.”

Indicado ao Nobel da Paz

Vitor Frankl foi professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Medicina de Viena até 1990, quando se aposentou aos 85 anos (ele também praticava o alpinismo e tirou o seu brevê de piloto de aeroplano aos 67 anos). Doutor em Filosofia, Frankl recebeu o título de “Doutor Honoris Causa” em 29 universidades de todo o mundo, entre elas, as federais do Rio Grande do Sul (1984) e de Brasília (1988).

Membro honorário da Academia Austríaca de Ciências e Cidadão Honorário de Viena, Frankl proferiu palestras em mais de 200 faculdades nas principais cidades do mundo e foi considerado pelo “American Journal of Psychiatry”, o mais importante pensador desde Sigmund Freud e Alfred Adler. A Logoterapia ou Análise Existencial - método psicológico criado por ele - é conhecida como “A Terceira Escola Vienense de Psicoterapia” (a primeira é a Psicanálise Freudiana e a segunda é a Psicologia Individual de Adler). Em 1985 recebeu “The Oskar Pfister Prize”, prêmio máximo da “American Society of Psychiatry”, e teve seu nome proposto para o Nobel da Paz pela “The Milton H. Erickson Foudation”, entre outras entidades.

Lembrando a visita que fez a Frankl em um hospital de Viena, poucos meses antes de seu falecimento, ocorrido em 2 de setembro de 1997, o escritor e doutor em psicologia Jeffrey K.Zeig - idealizador do ciclo de seminários internacionais “Evolution of Psychotherapy Conferences”, que teve em Frankl um dos seus participantes mais ilustres - buscou uma frase do romancista e filósofo francês Albert Camus, na sua obra póstuma “O primeiro homem”, para definir a personalidade de seu mestre: “Existem pessoas que justificam o mundo, que ajudam os outros somente com a sua presença.” A citação veio a propósito da insistência de Frankl em manter uma linha de telefone aberta para atender pessoas de tendências suicidas, mesmo doente e hospitalizado. Até o final de seus dias, Frankl recebia em média mais de 20 cartas diárias de pessoas que se diziam salvas após a leitura de seu livro.