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segunda-feira, 14 de junho de 2021

Covid-19 na mira da CIA

/  Sheila Sacks  /

Armas biológicas letais de alcance global, os vírus, bactérias e toxinas manipulados em laboratórios preocupam as grandes potências. O medo é que novos agentes mortais fabricados artificialmente caiam em mãos de grupos terroristas. E mais de um ano após o início da pandemia, crescem as suspeitas de que o vírus da Covid-19 foi criado em laboratório.

Diante da desconfiança externada por especialistas e também sentida na opinião pública americana, o presidente Joe Biden deu prazo de 90 dias para que órgãos da Inteligência do país, como a CIA,  investiguem a origem do vírus: se foi criado em um laboratório na China ou evoluiu naturalmente de um animal hospedeiro para o ser humano.

A decisão inédita da Casa Branca foi anunciada em 26 de maio último e visa dar uma resposta ao país, caracterizar as responsabilidades  e atender os muitos apelos de renomados cientistas para novas investigações. Dentre eles, a imunologista de universidade de Yale, Akiko Iwasaki, que liderou a pesquisa sobre a resposta do sistema imunológico ao Sars-CoV-2, causador da Covid-19.

Para o pesquisador israelense Shaul Shay, do Instituto Internacional de Contraterrorismo (ICT, na sigla em inglês) e ex-chefe adjunto do Conselho de Segurança Nacional de Israel, a pandemia da Covid-19 serve como uma lição objetiva dos riscos letais das armas biológicas e também como alerta para possíveis ameaças de bioterrorismo.

Drones mortais

Por sua vez, a especialista em contraterrorismo, Trace Walder, autora do livro “The Unexpected Spy” ( A Imprevisível Espiã, em tradução livre), vai mais adiante  ao afirmar que a maior ameaça que os EUA e Israel podem enfrentar são os enxames de drones armados com venenos químicos lançados pelo Irã, Estado Islâmico e outros grupos terroristas.

Agente da CIA e do FBI por muitos anos, seu verdadeiro nome é Tracy Schandler. De origem judaica, ela foi recrutada em 1998, quando ainda era estudante universitária. Coube a Tracy atuar nas principais investigações e captura de terroristas a partir do ataque de 11/9/2001, quando os EUA intensificaram a busca por terroristas.

Em seu trabalho como oficial de contraterrorismo  frustrou uma sucessão de ataques químicos planejados em vários cantos do mundo. Rastreou e interrogou terroristas,  reunindo informações que ajudaram órgãos de segurança de países aliados a monitorar pessoas suspeitas de integrar grupos extremistas. Participou da busca e captura de Osama bin Laden e de outros membros da Al-Qaeda.

Em entrevista ao jornal The Jerusalem Post, Tracy Walder lembrou que grupos terroristas, como o Estado Islâmico que atua na Síria, já se utilizam de armas químicas em seus ataques a populações civis, obtidas em países como o Irã e a Coreia do Norte. Ela revela que desde os primórdios dos anos 2000, o fundador do Estado Islâmico e líder da Al Qaeda no Iraque, Abu Musab al Zarqawi (morto em 2006), estava interessado em adquirir armas químicas e biológicas como antraz e ricina. Ainda de acordo com Tracy Walder, a aplicação desses produtos, na atualidade, é muito fácil de ser feita tendo acesso a um drone. Em 2018, relatório da ONU também alertava que a Coreia do Norte, desde 2012,  envia suprimentos para o regime sírio de Bashar al-Assad  potencialmente usados na produção de armas químicas.

Em janeiro do ano passado, ao assumir a liderança do Estado Islâmico (ISIS, na sigla em Inglês - Islamic State of Iraq and Syria), Abu Ibrahim al-Hashimi al-Quraishi  enviou uma mensagem gravada a seus militantes convocando –os a usarem armas químicas contra Israel e os judeus, onde eles estiverem.


Possível origem artificial

A polêmica em relação à origem da Covid-19 também esquentou no mês passado (maio/2021) com as declarações de dois pesquisadores, um britânico e outro norueguês, que afirmam ter provas da origem artificial do novo coronavírus e que ele foi criado no laboratório de Wuhan, na China.

O professor Angus Dalgleish ,da St Georges Hospital Medical School da Universidade de Londres, e  Birger Sorensen, virologista e presidente da farmacêutica Immunor, dizem que cientistas chineses , tendo como base o coronavírus do morcego, acrescentaram um novo espinho, tornando-o mais contagioso e mortal. Eles analisaram os experimentos dos chineses no laboratório de Wuhan entre 2002 e 2019 e chegaram a conclusão de que foram desenvolvidos mecanismos para a criação do Sars-Cov-2.

A prova de sua origem, segundo os estudiosos, estaria na sequência de quatro aminoácidos encontrados no espinho do coronavírus, uma situação “extremamente pouco provável”. Quando o vírus é de origem natural, afirmam, três sequências de aminoácidos já é raro. 

Na avaliação de Dalgleish  e Sorensen, os cientistas chineses tentaram criar um vírus mais contagioso para que se reproduzisse mais rápido em células humanas e assim estudar melhor o impacto potencial do coronavírus nos humanos. 

Armas biológicas

Observa-se que a pandemia trouxe à tona um tema perturbador que se revela como um aviso dramático para os  riscos das chamadas armas biológicas, que não distinguem religiões, ideologias e fronteiras. O uso e a manipulação de agentes biológicos, como o vírus da varíola e da febre amarela, as bactérias Bacillus anthracis (antraz), Brucellae, Yersinia pestis (peste bubônica) e ricina, citando alguns, já se constituem numa ameaça real por um longo tempo.

Antes mesmo da 2ª Guerra Mundial, exércitos aliados e as forças alemãs e japonesas realizaram pesquisas com o intuito de desenvolver armas biológicas. Acidentes como o ocorrido na cidade russa de Sverdlovsk, em 1979, quando houve a dispersão acidental de  uma quantidade de Bacillus anthracis, na forma inalatória, de um centro de pesquisas militar soviético, comprovam as experiências com substâncias mortais. O acidente causou 68 mortes.

No livro “Biohazard – A verdadeira história do maior programa secreto de armas biológicas do mundo”, publicado no Reino Unido, em 1999, o russo Kanatjan Alibekov, também conhecido como Kenneth Alibek, médico, microbiologista e ex-diretor-adjunto do programa de armas biológicas da antiga União Soviética, demonstra que o país estava preparado para lançar um ataque biológico com o vírus da varíola sobre os Estados Unidos, no caso de uma guerra nuclear.

Em 2001, depois do ataque de 11/9, traços da bactéria antraz foram encontrados em cartas endereçadas à Casa Branca em uma agência postal. Dois carteiros morreram. À época, o presidente George W.Bush acusou a Al Qaeda pela correspondência contaminada.

Mais recentemente, em 2013, o serviço secreto americano interceptou cartas contendo ricina enviadas ao então presidente Barak Obama e a políticos do país. A ricina, extraída da mamona, é uma substância tóxica de alto risco para os seres vivos, podendo ser letal.

Vale dizer que agentes biológicos - diferentemente dos químicos que tendem a afetar somente quem está na região do ataque – têm a capacidade de atravessar fronteiras e se irradiarem por vastas regiões. Especialistas assinalam que a produção de armas biológicas não necessita de grande aparato nem sofisticadas instalações, podendo ser facilmente oculta, transportada e disseminada. Uma facilidade que se estende à aquisição de insumos e ao acesso à biotecnologia, ferramentas básicas para se construir uma arma biológica de destruição em massa, por um custo bem mais baixo do que uma bomba atômica, por exemplo, com resultados semelhantes.


Armas químicas

Em 1995, a seita apocalíptica japonesa Aum Shinri Kyo matou 12 pessoas e feriu outras 50, em um atentado no metrô de Tóquio, usando o gás sarin. Na guerra civil na Síria há evidências de que tem sido usado o gás sarin nas populações pelo governo sírio. O Centro de Estudos para Não Proliferação James Martin (CNS, na sigla em inglês), que pesquisa e combate a disseminação de armas de destruição em massa (weapon of mass destruction – WMD) já denunciou a Síria como detentora de um dos maiores arsenais de armas químicas do mundo. A instituição americana afirma que o exército sírio possui diferentes tipos de agentes químicos, além do sarin, como o gás mostarda, gás cloro e o agente neurológico VX, um gás tóxico asfixiante.

No caso de grupos terroristas, tais como Estado Islâmico, com base no Iraque e atuando na província do Sinai, Al Qaeda (Iêmen e Somália), Hezbollah (Líbano e Síria) e o Hamas (Faixa de Gaza), a posse de armas químicas ou biológicas é sempre um motivo de preocupação, notadamente para o governo israelense.

Nas mãos do Hezbollah

A posse de armas químicas pelo Hezbollah foi aventada, ainda em 2018, pelo ex-general sírio Zuhair al-Saqit em entrevista ao jornal israelense Maariv. O militar foi o responsável pelo desenvolvimento científico de armas químicas no país, mas em 2013 abandonou o exército e a Síria. Ele disse que o regime de Assad transferiu para o Hezbollah (que atua ao lado das forças sírias na guerra civil que já causou a morte de quase meio milhão de pessoas) grande parte dos estoques dessas substâncias letais com o intuito de burlar órgãos internacionais de inspeção. Uma dessas armas é o gás cloro, um agente asfixiante cujo histórico se reporta à 1ª Guerra Mundial e que foi usado pelo governo de Assad contra civis nas cidades de Saraqeb, Duoma e Latamneh, segundo relatório de 2018 da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPCW, na sigla em inglês).

Na entrevista em questão, o ex-general também conta que cientistas, técnicos e militares iranianos estavam desenvolvendo, no território sírio, mísseis com ogivas químicas de alcance entre 5 e 35 quilômetros. E confirmou a cooperação síria com a Coreia do Norte, afirmando que na qualidade de oficial graduado do exército acompanhou oficiais norte-coreanos nas visitas às várias unidades para consultoria sobre o uso de armas químicas.

Em relação ao Irã, relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), divulgado em março de 2020 denuncia que aquele país triplicou a quantidade de urânio enriquecido – um elemento químico radioativo -  em três meses, atingindo 1,1 tonelada em estoque (é preciso 1,6 tonelada de urânio de baixo enriquecimento para chegar à capacidade de produzir uma arma nuclear). Justamente no período em que o foco das autoridades e dos chefes das nações haviam se voltado para o enfrentamento de uma pandemia desconhecida.


Perigo à vista

Em 2017, na Conferência de Segurança de Munique, evento que se realiza anualmente nesta cidade alemã com a participação de líderes mundiais, o magnata e filantropo Bill Gates, fundador da Microsoft, surpreendeu a plateia ao afirmar que “a próxima epidemia poderá se originar na tela do computador de um terrorista que pretenda usar a engenharia genética para criar uma versão sintética do vírus da varíola ou uma cepa supercontagiosa e mortal da gripe”. Uma previsão assustadora para o futuro da humanidade, que já convive com a insegurança das mudanças climáticas e catástrofes naturais. Agora acrescida pelo sobressalto de possíveis surtos pandêmicos oriundos de experiências científicas nem sempre controláveis.

No caso da Covid-19, o supervírus surgiu na província chinesa de Wuhan que abriga laboratórios de alta tecnologia como o Instituto de Virologia Wuhan (WIV), fundado em 1956, que faz pesquisas nas áreas de microbiologia, biotecnologia e virologia. A instituição trabalha no isolamento de vírus de insetos e na produção de inseticidas virais. Segundo o site do laboratório, um de seus principais campos de pesquisa é o estudo patogênico de doenças infecciosas emergentes, com destaques para o coronavírus da síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars-Covid) e o vírus da influenza aviária.

O vírus foi identificado em novembro de 2019 e no mês seguinte houve a primeira manifestação da doença na província. Antes de ser demitido, em janeiro de 2020,  o prefeito de Whuan admitiu que mais de 5 milhões de pessoas puderam deixar a cidade antes que as restrições de viagem fossem decretadas.Porém, o mais grave é que as autoridades chinesas ocultaram as notícias e os detalhes do surto de vírus por dois meses, favorecendo à transmissão global da doença.

É importante lembrar que o médico chinês  Li Wenliang, de 34 anos, morreu em consequência do vírus, no início de fevereiro do ano passado, dois meses depois de alertar as autoridades  de Wuhan sobre o surgimento da pneumonia viral. Na ocasião (dezembro/20219) , ele foi convocado pela polícia local que o acusou de propagar boatos e assustar a população. Duas semanas depois de ser decretada a quarenta em Whan, ainda em fevereiro, a epidemia já tinha infectado mais de 31 mil pessoas, com 636 mortes.

A respeito, o rabino Abraham Cooper, diretor de ação social global do Centro Simon Wiesenthal, afasta qualquer relação da pandemia com algum tipo de provação ou de manifestação do Divino, como alguns místicos evocaram no início do surto.  Para ele, ninguém pode culpar D’us, quando o assunto é a Covid-19.

“São pessoas que nos trouxeram para esse desastre do coronavírus”, diz. “E não precisamos procurar os céus para encontrar a verdade neste caso”, prossegue. No artigo para The Media Line, mídia digital voltada para assuntos sobre o Oriente Médio, o rabino novaiorquino, de 71 anos, que assina a matéria juntamente com o reverendo Johnnie Moore, é enfático ao proclamar, já no título: “Não culpe D’us, culpem Pequim e Teerã.”

Cooper e Moore – um líder evangélico de 38 anos, dos mais influentes do país, comissário da Comissão de Liberdade Religiosa Internacional dos Estados Unidos  (USCIRF, na sigla em inglês) - acusam o governo chinês de se armar de suprimentos médicos, importando milhões de máscaras cirúrgicas e respiradores, grande parte da reserva mundial, antes de o mundo ter consciência da extensão da doença. Igualmente denunciam o Irã, que permitiu que os peregrinos continuassem a viajar para a cidade sagrada de Qom, quando o vírus já estava sendo disseminado, contaminando outras nações do Golfo Pérsico.

Os dois líderes religiosos conclamam para que a China admita e assuma a sua responsabilidade nas fases que antecederam a pandemia, e culpam o Irã pela saída da ONG Médicos Sem Fronteiras do país e de perseguir e matar membros da seita Bah’ai por sua ligação espiritual com Israel. Ambos, Cooper e Moore, trabalham na promoção do diálogo inter-religioso em todo mundo, principalmente nos países do Oriente e da Ásia.

De acordo com a BBC News, até 30 de março do ano passado, quando o vírus já era uma calamidade que se alastrava pelo mundo, a companhia aérea iraniana Mahan Air manteve seus aviões operando normalmente em suas rotas para cidades da China,  e realizando viagens e voos adicionais para Beirute, Damasco, Bagdá, Abu Dhabi (Emirados Árabes),  Sanaa (Iêmen) e Najaf e Karbala (Iraque).

A rede britânica de notícias apurou que a companhia aérea mentiu quando alegou que seus voos eram humanitários. Foram centenas de voos no período, possivelmente transportando passageiros com coronavírus, inclusive pousando em Barcelona, Istambul, Dubai e Kuala Lampur (Malásia).

A Mahan Air teve seus voos proibidos na Alemanha e França em 2019. Desde 2011 a companhia não opera nos Estados Unidos ( em contrapartida, iniciou voos diretos de Teerã a Caracas, na Venezuela, desde 2019 ) devido a sua ligação com a Guarda Revolucionária do Irã (IRGC, na sigla em inglês), uma unidade do exército iraniano que dá suporte financeiro, técnico e logístico ao Hezbollah, no Líbano, e a outros grupos islâmicos terroristas, a saber: o Hamas, a milícia Jihad Islâmica que atua na faixa de Gaza e na Cisjordânia, os rebeldes houthis, no Iêmen, e as milícias xiitas no Iraque, Síria e Afeganistão. Com mais de 150 mil funcionários ativos, essas ações no exterior são operacionalizadas pela temida Força Quds, uma unidade especial da IRGC.


Disseminação e silêncio

Frente à flagrante desconsideração com a vida humana e a propagação de desinformação e ocultação de dados por parte de Pequim e Teerã, o rabino Cooper e o reverendo Moore reforçam a opinião de que esses dois regimes ditatoriais ajudaram a transformar a Covid-19 em uma tragédia global.  Eles também criticam a postura de silêncio do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), o etíope Tedros Adhanom - que esperou até 11 de março para caracterizar a Covid-19 como pandemia -  e do secretário-geral das Nações Unidas (ONU), o português Antônio Guterres, que pediu às nações que suspendessem as sanções ao Irã por motivos humanitários.

Parece inevitável, então, que o mundo terá que conviver com a letalidade do novo coronavírus por um longo período. De acordo com o epidemiologista Michael Osterholm, autor do livro “Inimigo Mortífero: Nossa Guerra contra Germes Assassinos“ (em tradução livre), publicado em 2017, a Covid-19 é tão infecciosa quanto a gripe de 1918 (conhecida como gripe espanhola) que matou 50 milhões de pessoas e infectou cerca de 500 milhões, um terço da população mundial na época. Aquela pandemia foi causada pelo vírus H1N1, com genes de origem aviária.

Na sua avaliação, veiculada em fevereiro deste ano pelo canal de notícias CNN, a pandemia “está prestes a  piorar de forma sem precedentes ",  com o aumento de casos associados a variantes das cepas. Uma situação que ele compara a um “ furação de categoria 5 ou superior”. O cientista lista quatro componentes que podem levar a esse desastre: mutações virais; atrasos na vacinação; relaxamento na prevenção; e possibilidade de reinfecção. Osterholm é membro do Conselho Consultivo da Covid-19 do presidente Biden

Ainda no início da pandemia, o especialista previu que o vírus iria se mostrar ativo em todo o mundo, indo e vindo, em ondas.  “Devemos lembrar que a atual pandemia é causada por um coronavírus e não um vírus da gripe como foi o caso em 1918. A história dirá se os dois agem da mesma maneira em termos de epidemiologia das doenças”, explica.

Fundador do Centro de Pesquisa e Política de Doenças Infecciosas da Universidade de Minnesota, Osterholm insiste no continuado uso de máscaras (bem vedada),  o distanciamento social e a limitação de espaços que favoreçam aglomerações para evitar possíveis reinfecções não bem documentadas. Segundo ele, ainda que apareçam remédios eficazes, a transmissão do vírus continuaria, já que os medicamentos apenas diminuiriam o impacto da pandemia em número de casos graves e mortes.

Mesmo que se lavem as mãos com sabão várias vezes ao dia e que o ambiente esteja descontaminado, tal fato não impede que o vírus possa infectar as pessoas, garante Osterholm. Isso porque o vírus pode estar no ar que compartilhamos e respiramos com pessoas infectadas, daí a importância do uso de máscaras. Quanto mais vezes a pessoa ir para espaços públicos, onde haja aglomeração, maior a possibilidade de trocar um pouco de ar com alguém que tem o vírus e não sabe.


Nova vacinação

Os governos dos Estados Unidos, União Europeia  e Reino Unidos  já se preparam para aplicar milhões de vacinas de reforço em suas populações ainda este ano, no início do próximo inverno (dezembro a março, no hemisfério norte). O Reino Unido já comprou 60 milhões de doses de vacinas e deve antecipar a vacinação a partir do outono (setembro a dezembro). Os EUA têm um excedente de 300 milhões de vacinas em estoque e a União Europeia assinou contrato para receber 1,8 bilhão de vacinas até 2023.

Registrando que pouca mais de três meses após a detecção do vírus, já havia mais de 4 milhões de pessoas infectadas e perto de 300 mil mortes. No presente mês (junho/2021), as mortes já chegam perto de 4 milhões, com mais de 175 milhões de infectados, mesmo com a introdução de várias vacinas para combater a pandemia.

Na Indonésia, 350 médicos e profissionais da Saúde contraíram a Covid-19 depois de vacinados, e dezenas foram hospitalizados. A notícia foi divulgada pela Agência Reuters há poucos dias.

Logo, a perspectiva de uma mudança substantiva em curto período no cenário de incertezas e dificuldades que se descortina para as nações e populações do planeta, se configura mais como peça publicitária do que uma expectativa real.  Osterholm, inclusive, lança mão de uma frase de  Wilson Churchill, primeiro-ministro britânico durante a 2ª Guerra Mundial, para definir a atualidade:  “Este não é o fim, nem sequer o começo do fim, mas, talvez, o fim do começo”.

A frase do estadista inglês foi dita em discurso proferido no centenário prédio da Mansion House, de Londres, em 1942, logo após os britânicos expulsarem as tropas alemãs do general Rommel do Norte da África. Para muitos era a certeza da vitória. Mas, por certo, passaram-se mais de três anos até que a Alemanha nazista, enfim, se rendesse, em 08 de maio de 1945, encerrando uma trágica era de horror e mortes que marcou, de forma definitiva, a história contemporânea.

 

quarta-feira, 26 de maio de 2021

A identidade oculta de Cristóvão Colombo ou a história não oficial do descobridor do novo mundo

 / Sheila Sacks /

A pequena Vila de Cuba, situada na região de Alentejo, no sul de Portugal, pode guardar um segredo que ainda permanece submerso e parece estar longe de ser desvendado. Em meio a muita polêmica e até pesquisas de DNA de possíveis descendentes, passados mais de 500 anos da morte de Cristóvão Colombo, o mistério de sua origem continua. Para inúmeros historiadores portugueses, este pacato povoado de pouco mais de 3 mil habitantes, a 200 quilômetros de Lisboa, é o verdadeiro berço natal do descobridor das Américas.

O engenheiro Carlos Calado, presidente do Núcleo dos Amigos da Cuba (NAC) e da Associação Cristóvan Colon (ACC), defende a tese de que o navegante que ficou conhecido na história pelo nome de Colombo, era na realidade o português Salvador Fernandes Zarco, natural da Vila de Cuba – povoado cujas origens remontam ao século 13 - e que usava o pseudônimo de Cristóvão Colon. Essa certeza é tamanha que a Câmara Municipal local já registrou o navegador no seu panteão de notáveis e inaugurou, em 28 de outubro de 2006, o primeiro monumento em território português homenageando o grande almirante.

A estátua de bronze pesando mais de uma tonelada e com 2 metros e meio de altura foi instalada na praça principal, em frente ao Palácio da Justiça. Com a concordância de inúmeros historiadores portugueses que há anos se dedicam às pesquisas sobre Colombo dito e consagrado como genovês pela história oficial. A data confere com a descoberta da ilha de Cuba, em 1492, depois de sua chegada às Antilhas. Assim não seria por mero acaso o fato das primeiras ilhas em continente americano serem batizadas por Colombo de San Salvador (o verdadeiro nome do descobridor) e Cuba, sua terra natal.

Uma história não oficial

Dois anos antes da inauguração do monumento, atendendo ao convite do centro cultural da cidade, uma dupla de ilustres pesquisadores visitou a pequena Vila de Cuba, que abriu seu único teatro para um sarau muito especial. Lá estavam o médico e historiador português radicado nos Estados Unidos, dr. Manuel Luciano da Silva (fundador da Federação Luso-Americana e membro da Sociedade de Geografia de Lisboa), e o pesquisador Mascarenhas Barreto, autor do best seller "Cristóvão Colombo, Agente Secreto do Rei Dom João I" (1988). Eles apresentaram um resumo de seus trabalhos sobre o que é hoje popularmente noticiado como o Enigma Colombo. Em comum, a convicção da origem luso-judaica do descobridor do continente americano.

De acordo com Mascarenhas Barreto, Colombo trabalhava secretamente a favor do rei de Portugal, D.João II, quando foi a Castela no intuito de convencer a rainha da Espanha, Isabel, a financiar a sua expedição rumo às Índias, seguindo na direção do oeste ou pelo lado ocidental do Atlântico. O plano do soberano português era afastar os espanhóis das caravelas portuguesas e das rotas descobertas por Portugal que procuravam alcançar a Ásia através do Atlântico, pelo litoral africano. Tempos depois, já no reinado de D. Manuel I, essa alternativa se mostrou vitoriosa com Vasco da Gama que em 1498 alcançou o porto indiano de Calecute, estabelecendo pela primeira vez o caminho marítimo para as Índias.

Autor de “Columbus was 100% Portuguese” (1987), escrito originalmente em inglês e traduzido para a língua portuguesa somente 20 anos depois, o historiador Manuel da Silva conta que quando realizou a sua pesquisa na Biblioteca do Vaticano, em Roma, encontrou documentos relacionados com a descoberta da América em que aparece o nome de Colombo grafado em português antigo: Cristofõm Colon. “Devemos esclarecer”, alerta o pesquisador, “que o navegador fabricou o nome de Cristóvão Colon porque o seu nome verdadeiro era Salvador Fernandes Zarco".

A família Zarco

Mas, nacionalidades à parte, de onde viria o sobrenome Zarco, indaga o historiador, para responder em seguida: “Da mãe, Isabel Gonçalves Zarco, filha do navegador João Gonçalves Zarco, descobridor da Ilha da Madeira (1418), judeu sefaradita (originário da Península Ibérica), nascido na cidade de Tomar, onde ainda existe a sinagoga d’Arco ou do Zarco.”

Fruto de um amor proibido, já que o pai de Colombo era o Infante D. Fernando, Duque de Beja, irmão do rei D. Afonso V, Isabel Zarco foi dar à luz na Vila de Cuba (Colba, em português antigo e que significa ‘torre’), uma aldeia que ficava a 18 quilômetros ao norte do distrito de Beja. Alguns anos depois, Colombo foi levado pela mãe para a Ilha da Madeira, onde esta se casou com um nobre português. Quanto a Colombo, sua primeira esposa, Filipa Moniz de Perestrelo, filha do governador da ilha, também era de ascendência sefaradita.

Abrindo um pequeno parêntese, observamos que cinco séculos depois desse intrincado enredo familiar, onde se misturam nobres e os chamados cristãos-novos (judeus convertidos à força pela Inquisição), um outro Zarco, igualmente judeu e português, surge em cena, agora como o personagem do festejado livro “O Último Cabalista de Lisboa”(1996). 

O autor Richard Zimler, judeu norte-americano naturalizado português e radicado na cidade do Porto, revive os horrores de uma Lisboa de 1506 – data da morte de Colombo – assolada pela peste e pelo terrível pogrom (palavra russa para designar um ataque violento a pessoas, casas e lojas) que levou centenas de judeus às fogueiras. No centro da trama, o jovem Berequias Zarco, a cujo manuscrito datado de 1507 Zimler teve acesso quando de sua estadia em Istambul. Anos depois, Zymler retoma a saga da família Zarco nos livros “Meia-Noite ou o Princípio do Mundo” (2003), contando a história de John Zarco Stewart, e “Goa ou o Guardião da Aurora” (2005), onde o protagonista é Tiago Zarco.

Uma outra observação diz respeito à cidade de Tomar (no centro do país, a 140 quilômetros ao norte de Lisboa), onde nasceu o avô materno de Colombo, João Gonçalves Zarco. Conhecida como a Cidade dos Templários - porque as suas terras foram doadas à Ordem do Templo em 1159, que ali ergueram a sua sede - , especulações não faltam sobre o possível envolvimento de familiares de Colombo com os seguidores da Ordem e a participação de seus integrantes nos Descobrimentos. Em uma das cartas enviadas por Colombo à rainha Isabel, ele demonstra essa visão templária e profética ao anunciar que através das explorações marítimas seria possível libertar a cidade santa de Jerusalém do domínio do Islã, restaurar o Templo de Salomão e combater os muçulmanos na África e no Oriente.

Vale lembrar, que o templários foram o braço armado da Igreja e a conquista de Jerusalém pelos Cruzados ocorreu em 1099 e se estendeu até 1187. Em 1312, a Ordem dos Templários foi extinta pela mesma Igreja que a criou, com a alegação de que seus integrantes se afastaram dos dogmas do catolicismo. Perseguidos e levados à fogueira, os cavaleiros templários se dissolveram, muitos deles sendo absorvidos por ordens religiosas secretas. Na época de Colombo, Jerusalém estava sob o domínio árabe e assim permaneceu até 1917, quando passou para o mandato britânico.

Um detalhe que também aguça a curiosidade dos pesquisadores é a assinatura criptografada adotada por Colombo. Mascarenhas Barreto chegou a estudar por mais de 10 anos a Cabalá hebraica (tradição mística do Judaísmo) no intuito de decifrá-la.

Curiosamente, um descendente da família Zarco se fez presente na solenidade de inauguração do monumento a Colombo, na Vila de Cuba, alegando ser parente do navegador. Residindo em Lisboa, Henrique Zarco, acompanhado da esposa e filha, revelou que Cristóvão Colon era neto de seu 20° avô, João Gonçalves. “Somos parentes do lado da família de minha mãe”, afirmou. Ao jornal português Correio da Manhã, que reportou o evento, Zarco conclamou Portugal a lutar por esta verdade e mudar o curso da história.

Letras hebraicas

Mas, voltando às pesquisas do dr. Manuel da Silva, outro fato importante sobre a origem de Colombo apontado pelo historiador está contido nas 12 últimas cartas que o navegador escreveu para o filho Diogo Colon, em 1504. No alto das páginas, as duas letras iniciais da frase hebraica Baruch Hashem (B”H), Bendito seja D'us, não deixam dúvidas quanto a sua ascendência judaica. A descoberta foi feita por Simon Wiesenthal, em 1973, assinala dr. Silva. 

Conhecido como o caçador de nazistas pela sua busca incansável pelos genocidas remanescentes do III Reich, Wiesenthal também chama a atenção em seu livro “A missão secreta de Cristóvão Colombo: Velas da Esperança” sobre a data da partida da frota para as Índias: 03 de agosto. Na véspera expirava o prazo de expulsão dos judeus do território espanhol , segundo o decreto dos reis Fernando e Isabel. E, coincidentemente, Colombo exigiu que a tripulação estivesse a bordo antes da meia-noite do fatídico 02 de agosto de 1492. Entre os convocados estavam 40 “genoveses”, uma expressão que designava os judeus clandestinos que se refugiaram na Península Ibérica, um século antes, após sofrerem perseguições em Gênova.

Todas essas revelações surgidas nos últimos anos em decorrência de exaustivas investigações históricas têm provocado controvérsias apaixonadas e estimulado a aparição de textos considerados fantasiosos, apesar de muitos deles serem fruto de um profundo trabalho de pesquisa. 

No livro “Cólon, El Almirante sin Rostro” (2005), o escritor espanhol Mariano Fernandez Urresti reafirma que Colombo ainda é um perfeito enigma histórico. “Não se conhece o lugar onde ele nasceu, nem tampouco o lugar em que foi enterrado. Em 2003, quando uma equipe de pesquisadores abriu a sua suposta tumba na Catedral de Sevilha para realizar estudos de DNA dos restos mortais que deveriam estar lá, deparou-se com apenas 20% de um cadáver. Onde estaria o restante de seus ossos?” pergunta Urresti. Para Manuel Silva os restos mortais de Colombo podem estar em Santo Domingo, na República Dominicana, a ilha do Caribe citada no testamento de Colombo. Já o italiano Gianni Granzotto, autor de “Cristobal Colon”, assegura que os restos mortais de Colombo jamais saíram da Espanha. Estão no Convento de São Francisco, em Valadolid.

Mais indícios judaicos

Ainda em 2005, uma nova versão da vida do navegador, misturando ficção e história, foi apresentada pelo jornalista José Rodrigues dos Santos, da Rádio Televisão Portuguesa (RTP). O romance "Codex 632" segue a receita vitoriosa do "Código da Vinci", onde uma mensagem codificada é o ponto de partida para um enredo de mistério e aventura em cenários de cidades emblemáticas como Gênova, Sevilha, Tomar, Jerusalém e Rio de Janeiro. Baseado nas teorias que dão conta de que Colombo era judeu e tinha sangue nobre português, o livro sai em busca da verdadeira identidade e da real missão de Cristóvão Colombo, que o autor define como “os mais bem guardados segredos dos Descobrimentos”.

Outros indícios da origem luso-judaica de Colombo são as tábuas de declinação do sol, escritas em hebraico, utilizadas por Colombo na travessia do Atlântico. A relíquia, de autoria do matemático judeu Abraão Zacuto, pode ser vista no Museu Judaico de Nova Iorque e foi dada a Colombo pelo rei D.João II.

Igreja conhecia a origem de Colombo

O pesquisador dr. Manuel da Silva lembra que em dezembro de 1999, no último “Te Deum” solene na Basílica de São Pedro, no limiar do novo século, o Papa João Paulo II revelou que a descoberta da América foi para ele o principal acontecimento dos últimos mil anos, porque abriu uma nova era para a história da humanidade. Porém, estranhamente, o Papa não mencionou o nome do descobridor daquilo que considerou “o acontecimento que marcou o milênio”. Um evento que está registrado em quatro Bulas Papais editadas pelo Papa Alexandre VI, em 1493, sendo que em duas delas destacando o nome do navegador, conforme é possível conferir na Biblioteca do Vaticano.

Este relacionamento nebuloso entre a Igreja Católica e Colombo resultou em mais uma polêmica, desta vez empurrada pela declaração bombástica do doutor em Ciências Náuticas e capitão do Comando Marítimo da província espanhola de Torrevieja, Oscar Villar Serrano. Autor de inúmeros livros sobre navegação, clima e geografia, Villar Serrano publicou, em 2005, uma obra intitulada "Cristóbal Colón: el secreto mejor guardado", onde assegura que a Igreja não canonizou Colombo (o processo de beatificação foi proposto em 1866) por saber que ele era judeu.

Por ocasião do lançamento do livro, Villar assegurou que o mistério que envolve a origem de Colombo se deve basicamente à sua filiação judaica que ele procurou ocultar na busca de apoio dos reis católicos da Espanha ao seu empreendimento. Isso embora seus principais patrocinadores fossem judeus, desde o banqueiro da Coroa de Aragão, Luis Santángel, até a própria tripulação, majoritariamente judaica. Em entrevista à agência espanhola EFE, o autor cita as cartas de Colombo ao seu filho Fernando, onde o navegador recomenda comportamentos diferenciados, em público e na intimidade do lar (onde diz textualmente que entre nós, temos que conservar os nossos costumes). Villar também destacou que o irmão de Colombo morreu na fogueira em Valência (1493), justamente por ter ascendência judaica.

Novo mundo

Na América do Sul, em  2004, a centenária estátua de Colombo, instalada em uma das principais praças de Caracas, foi depredada e arrastada pelas ruas da capital venezuelana por partidários do então presidente Hugo Chávez. Manifestantes justificaram a depredação como sendo um protesto contra o colonialismo e a imposição histórica de uma farsa chamada Colombo. Outros monumentos que homenageavam Colombo e os descobrimentos também foram varridos do território venezuelano em anos posteriores.

 O fato é que as continuadas investigações históricas sobre o destemido navegante têm projetado um perfil surpreendente e diverso daquele disseminado pela história oficial, o que parece incomodar alguns grupos sociais e políticos e acirra preconceitos. Assim, o descobridor do novo mundo teria nascido Salvador Gonçalves Zarco, natural de Portugal, judeu sefaradita, nobre e templário.

Mas, apesar de todas as incertezas que cercam a identidade do grande almirante e a missão dos Descobrimentos, Colombo parece ter tentado enviar uma mensagem pessoal para a posteridade. Um ano antes de morrer, ele escreve “O Livro das Profecias”, um manuscrito que só foi dado a conhecer em 1984. Escondido até então na Biblioteca da Catedral de Sevilha, o documento foi apresentado com 14 páginas arrancadas. As profecias (que muitos julgam versar sobre o resgate de Jerusalém do controle muçulmano) sumiram com as páginas desaparecidas, permanecendo, porém, textos copiados do Velho Testamento, como os Salmos de David e as palavras de Isaías.

sábado, 8 de maio de 2021

The Spirit e outros personagens de Will Eisner

 / Sheila Sacks  /


Em março, os aficionados de histórias em quadrinhos comemoram uma data muito especial: o nascimento de um dos mais importantes cartunistas de todos os tempos, autor do justiceiro mascarado "The Spirit", herói das HQs dos anos 1940.

Nova-iorquino do Brooklyn, o genial Will Eisner nasceu em 6 de março de 1917 e deu vida ao investigador da polícia Denny Colt e a imaginária Central City, transportados de maneira magistral para as telas dos cinemas, em 2008, pelo também desenhista e cineasta Frank Miller.

O prêmio Will Eisner Comic Industry, realizado na primeira semana de março, em San Diego, na Califórnia, é considerado o Oscar dos quadrinhos e o maior evento do gênero no país. 

Inovação nas HQs

Com sua arte e força criativas, Eisner tinha pouco mais de vinte anos quando embarcou nessa extraordinária aventura onde o talento de desenhista e a imaginação literária se uniram para moldar um dos personagens mais instigantes das HQs.

Transitando pela lendária Central City, a cidade dos sonhos, desilusões, dramas, crimes e situações bizarras, o estranho policial surge das trevas da morte para combater o mal e não dar trégua aos bandidos.

Em um universo noir de jogos de sombras, ângulos insólitos e planos incomuns, Denny Colt, julgado morto, renasce em sua fúria e revolta. De terno, gravata, chapéu, luvas e máscara, ele se transforma em "The Spirit", o mocinho diferente, contraditório, sem superpoderes, roído pelas dúvidas e cingido pelo imponderável.


À parte as histórias policiais nada convencionais, "The Spirit" revolucionou os comics utilizando-se de inventivos recursos narrativos, de enquadramentos inesperados de imagens e lançando mão de primeiros planos para destacar um detalhe.

Essa nova linguagem gráfica com perspectivas cênicas de cunho cinematográfico introduzida por Eisner angariou um exército de 5 milhões de ávidos leitores semanais, somente nos Estados Unidos.

As tirinhas, iniciadas em 1940, foram publicadas até 1952, mas seus enredos e ilustrações, utilizando narrativas paralelas e desenhos expressionistas, romperam com as técnicas tradicionais, marcando um novo capítulo no desenvolvimento da arte do cartoon.

Considerado por especialistas do gênero o mestre das histórias em quadrinhos de todos os tempos, William Erwin Eisner era filho de imigrantes judeus muito pobres, e quando criança trabalhava vendendo jornais nas ruas para completar a renda familiar. Foi esse o seu primeiro contato com as histórias em quadrinhos, cujas ilustrações o encantavam e com as quais desenvolveu um profundo amor pelo desenho gráfico.

Já aos oito anos resolveu se dedicar ao desenho, apesar da oposição da mãe. Além do herói Spirit, Eisner também foi o criador de "Sheena, a Rainha da Selva", que virou série de TV (1955) e filme (1984).

Personagens de Nova York

Mas, apesar do enorme sucesso obtido com a série "The Spirit", Will Eisner resolve dar uma guinada em sua vida e em sua arte, surpreendendo fãs e seguidores.

Depois de realizar trabalhos de propaganda e de publicidade, e também trabalhar na adaptação para as HQs de obras clássicas, como "Don Quixote" e "Moby Dick", ele edita, em 1978, uma publicação ilustrada, com temas sérios e para leitores adultos, classificada pelo próprio autor de "graphic novel" (histórias longas, impressas em papel especial e publicadas em formato de álbum).

A novidade provoca uma reviravolta no mundo dos comics. O trabalho “Contrato Com Deus e Outras Histórias” mostra a vida de pessoas comuns e fala dos dramas do dia a dia de sua Nova York natal.

Sem limitação de páginas, com temática e desenho livres de qualquer formatação, os romances gráficos se tornam populares e conquistam seguidores entusiastas. As aventuras protagonizadas por heróis são deixadas para trás e os habitantes anônimos da Big Apple – muitos deles imigrantes e judeus como os pais de Eisner – assumem os papéis principais no pincel do artista.

Combinando ficção com histórias reais, Eisner cria relatos intensos e dramáticos, com destaque para a temática judaica.

Os anos passados nos bairros do Brooklyn e do Bronx são retratados em uma série de trabalhos que incluem “O Sonhador”, “O Edifício” e “No Coração da Tempestade”. Este último mostra a sua infância e adolescência.

Segundo Eisner, a linha central dessa graphic novel é o racismo. “O livro se inicia no trem, quando sou convocado para a guerra. Pela janela visualizo cenas que me lembram as histórias pelas quais eu passei, dentre elas minha primeira experiência com o racismo.”

Em 1983, para comemorar os 15 anos da publicação de “Contrato com Deus”, é lançada uma edição especial da obra, em ídiche (língua falada por muitos judeus europeus, assemelhada ao alemão e escrita com caracteres hebraicos).

No Brasil, o universo de Eisner ganha a cena teatral, com as peças “New York”, apresentada em Curitiba (1990), “Pessoas Invisíveis”, produzida no Rio de Janeiro (2002) e “Avenida Dropsie”, exibida em São Paulo (2005). Ainda no Brasil, a produtora Marisa Furtado realiza um documentário sobre Eisner (1999), o primeiro sobre a carreira do artista.

Preconceito e Antissemitismo

Suas duas últimas obras, “Fagin,o Judeu” e “The Plot” (O Complô) abordam temas espinhosos. A primeira é uma revisão histórica de uma figura mal retratada por Charles Dickens, em seu livro "Oliver Twist". A visão estereotipada do personagem serviu para disseminar o preconceito entre os leitores do autor inglês e Eisner apresenta a sua visão sobre o assunto.

A segunda trata da verdadeira origem de um documento forjado por autoridades russas, em 1903, conhecido como “Os Protocolos dos Sábios de Sião”.

A farsa foi descoberta em 1921 e revelou que o texto dos Protocolos foi extraído de uma sátira política francesa escrita por Maurice Joly, em 1864, intitulada “O Diálogo no Inferno”. O texto descrevia uma fictícia discussão de Maquiavel e Montesquieu para um plano de conquista por Napoleão III, cujo nome foi substituído por “os judeus”.

“The Plot” foi lançado nos Estados Unidos em maio de 2005, alguns meses depois do falecimento de Eisner.  O escritor italiano Umberto Eco escreveu  o prefácio. No Brasil, a editora paulista Companhia das Letras publicou, em novembro de 2006, a versão brasileira da obra.

Em entrevista ao “New York Times”, em 2004, Eisner falou do trabalho: “Acabo de concluir e estou editando uma novela gráfica de caráter polêmico. Trata-se da verdadeira história da origem de uma das maiores e mais infames fraudes do mundo, "os Protocolos de Sião”.

Justificando seu interesse pelo tema, Eisner contou que buscou no passado uma forma de enfocar o antissemitismo que continua sendo uma questão atual. “Eu estava na Internet e descobri uma página promovendo 'os Protocolos' para leitores do Oriente Médio. Fiquei chocado em descobrir que muita gente ainda acredita que a história é real e fiquei perturbado quando vi a quantidade de sites que divulgam essas mentiras para os muçulmanos. Concluí que algo precisava ser feito.”

Leonardo da Vinci dos Quadrinhos

Will Eisner tinha 87 anos quando faleceu em 3 de janeiro de 2005. Pioneiro dos comics de adultos e criador do termo “arte sequencial” que deu novo status ao gênero, ele deixou seguidores respeitados, como o autor e desenhista Frank Miller, que dirigiu os filmes “Batman, o Cavaleiro das Trevas” e “Sin City”, e Alan Moore, criador de Watchmen, levado às telas em 2009.

Considerado o Leonardo da Vinci dos quadrinhos pela revista “Civilization”, editada pelo Congresso americano, o artista emprestou o seu nome para o mais importante prêmio de quadrinhos do mundo – o Eisner Award .

No ano de sua morte, o jornal “The Washington Post”, ao descrever a trajetória do cartunista, sublinhou que Eisner fez da luta contra a intolerância uma forma de arte.

Aqui no Brasil, Maurício de Souza, criador dos personagens Mônica e Cebolinha, também lamentou a perda de Eisner, que esteve várias vezes no Brasil : “Foi como se eu tivesse perdido outro pai. Ele era o meu ídolo, o meu guru”, afirmou.

A genialidade da arte de Eisner – que jamais excluiu a sua identidade judaica no decorrer da vida profissional e que não a manteve restrita às fronteiras tribais dos fãs dos comics - também foi devidamente reconhecida pela prestigiada “Nacional Foundation for Jewish Culture”, instituição americana fundada em 1960 para promover e preservar a cultura judaica.

Em 2002, a entidade outorgou ao artista o prêmio máximo pelo conjunto de sua obra.



quinta-feira, 29 de abril de 2021

Judeus no Irã: vidas em segredo


/ Com menos de 10 mil pessoas, a comunidade judaica naquele país vive apartada de temas atuais e históricos dos judeus da Diáspora como o estado de Israel e o holocausto /

Sheila Sacks /

Dois depoimentos pessoais ajudam a desvendar com um pouco mais de nitidez o ambíguo comportamento da comunidade judaica no Irã, país muçulmano de maioria xiita, com uma população aproximada de 82 milhões de habitantes. Os textos foram postados na Internet nas proximidades da celebração de Purim, que em 2021 ocorreu em 25/26 de fevereiro. A festa de Purim (da palavra hebraica pur, que significa sorteio) comemora a salvação dos judeus da Pérsia pela ação da rainha Ester, há 450 antes da Era Comum (AEC).

De nacionalidades diferentes, os autores vivem hoje nos Estados Unidos e no Canadá, e apesar das perspectivas e focos diferentes em suas abordagens, ambos mantêm em comum a observação crítica acerca do comportamento social dos judeus iranianos, bastante arredio, desconfiado e distante das preocupações e do ativismo coletivo das comunidades judaicas de outros países.

Purim entre quatro paredes

Nascida na antiga cidade de Shiraz, no sudoeste do Irã, Aylin Sedigh emigrou para os Estado Unidos aos doze anos, no final da década de 1990. Ela mantém um blog na plataforma de notícias The Times of Israel onde escreve basicamente sobre suas lembranças de infância naquele país e o cotidiano dos judeus originários de países muçulmanos, os chamados “mizrahim” (orientais).


Relembrando Purim, Sedigh conta que durante a festividade sua família tinha o cuidado de manter as janelas fechadas para que os sons e a visão da celebração não alcançassem os ouvidos e olhares curiosos dos vizinhos. Aos dez anos, visitou o mausoléu que abriga os túmulos da rainha Ester e de seu primo Mordechai, na cidade de Hamadan (ou Hamedan, antiga Shushan, citada no relato da ‘Meguilá Ester’). À época, o mausoléu já tinha sido reformado, visto que até a década de 1970 as tumbas ficavam escondidas em um local de difícil acesso, em meio a becos estreitos e tortuosos (a reforma foi feita pelo monarca Xá Reza Pahlavi, deposto em1979, para a celebração dos 2.500 anos da monarquia iraniana. Durante a obra foi encontrado um rolo da Torá, de 300 anos).

De acordo com Sedigh, o cemitério judeu de Hamadan foi durante séculos o local de peregrinação mais importante para os judeus iranianos,  e histórias sobre os milagres da rainha Ester eram ouvidas por toda a parte. Até muçulmanos, cristãos e mulheres da seita bahá’í visitavam o túmulo, orando à rainha por milagres na concepção de filhos, afirma a autora.

Durante o período escolar, ela assinala que procurava não chamar a atenção para a sua pessoa e sua crença, e que o uso em público  por todas as meninas do véu cobrindo a cabeça a ajudava se manter despercebida.

- Guardei minhas crenças para mim mesmo enquanto estava na escola. A cobertura tradicional para a cabeça era um requisito para todas as mulheres em público e os homens não usavam seus yarmulkes (solidéu ou kipá, em hebraico) nas ruas.

Ritual das seis velas

Outra lembrança dos seus tempos no Irã diz respeito a uma cerimônia anual na primavera quando o pai reunia a família e acendia seis velas, pedindo um minuto de silêncio, em memória dos judeus que morreram. Um ritual sem perguntas e sem explicações, segundo Sedigh. “Morei no Irã até os 12 anos e nunca ouvi falar de Holocausto”, confessa. “Fui saber sobre o Holocausto quando já residia nos Estados Unidos, ao assistir o filme ‘A Lista de Schindler’, de Spielberg”.


Mas, Sedigh também conta que observava o pai, todas as noites, mexendo no rádio para escolher a melhor frequência para escutar as notícias transmitidas por Israel na língua farsi (idioma persa). “No Irã dos clérigos muçulmanos (aiatolás), essa era a única maneira de obter notícias autênticas, diferentes das versões transmitidas pela rede de TV iraniana”, explica.

Ainda que guarde boas recordações de férias de verão desfrutadas em família nas areias e águas cristalinas do Mar Cáspio, a rotina não era fácil. “Crescendo no Irã, na década de 1980, a existência cotidiana era repleta de medo, ansiedade e incerteza. Havia ameaças de guerra mortal com o vizinho Iraque e escassez de alimentos, água e eletricidade”, relembra. “Mesmo na praia existia o risco de um carro da patrulha aparecer e aqueles que não estivessem vestidos conforme a lei islâmica serem punidos.”

Ambiente hostil

A iraniana Sedigh confessa que tem sentimentos confusos em relação ao país em que nasceu e lembra que milhares de judeus mizrahi foram forçados a abandonar seus lares “na escuridão da noite”, fugindo de um ambiente hostil e de risco, deixando tudo que possuíam para trás.

-Deixei o Irã no final de 1990.  É um país repleto de belezas naturais, com uma cultura maravilhosa e uma comida deliciosa. Mas também é um país que, após a revolução islâmica de 1979, mostrou um total desprezo para seus cidadãos judeus e para o estado de Israel.

Ainda assim, Sedigh admite que a cultura iraniana teve uma grande influência em seu desenvolvimento moral e social. Ela diz que a modéstia, a honra e a reputação ( ‘aberu’, na língua persa), é o bem mais valioso de uma garota persa, um princípio fundamental na tradição iraniana. “Mesmo depois que minha família emigrou para os Estados Unidos, fui criada em uma casa tradicional persa moldada pelo aberu. Isso criou uma cultura de respeito e nos ensinou a honrar nossos idosos.”

Mas, o grande exemplo e a mais importante heroína para as mulheres mizrahi, de acordo com Sedigh, é a rainha Ester, vista como uma judia persa forte e assertiva que certamente superou muitas barreiras. “A história de Purim se passa em Shushan, uma antiga cidade do Irã. Como tantos feriados judaicos, Purim é a celebração da sobrevivência dos judeus e, neste caso, foi uma judia, a rainha Ester, que salvou o povo judeu, graças ao seu ágil raciocínio e planos bem traçados”, assinala. Ela lembra que Esther foi instada por Mordechai a esconder sua identidade judia e se casar com um homem não judeu,  “algo que seria considerado tabu entre a comunidade judaica”.

- Dentro dos limites de uma cultura muito tradicional em que as mulheres eram encorajadas a ficar em segundo plano, a rainha Ester saiu das normas culturais com as quais foi criada para salvar seu povo,conclui.

Viagem ao Irã

Vivendo no Canadá, o americano Dan Brotman é atualmente diretor executivo da Federação Judaica da cidade de Windsor, em Ontário. Em artigo publicado no site do jornal South African Jewish Report (25/2), ele conta sua visita ao Irã, ocorrida há dois anos, quando trabalhava em organizações judaicas na África do Sul. Brotman passou dez dias viajando pelo país em uma excursão de turismo e assinala que até a Revolução Islâmica viviam no Irã cerca de 100 mil judeus.

Apesar da agenda lotada de passeios a pontos turísticos e históricos, como por exemplo, a visita ao túmulo do rei Ciro, o grande, que libertou os judeus do cativeiro babilônico em 538 AEC, ele conseguiu que o guia muçulmano o ajudasse a encontrar o endereço de uma sinagoga. Era uma sexta-feira e Brotman estava na cidade de Isfahan, a 340 quilômetros de Teerã. “Ao pôr do sol, eu e Mohammad caminhamos pelas ruas em busca do edifício onde estaria instalada a sinagoga Mullah Jacob”, relata. Coincidentemente, ao pedirem informações a um garoto que passava na rua, o menino respondeu que estava indo para a sinagoga. “Sigam-me, estou indo para lá, agora, para rezar”, disse.


Brotman chegou à sinagoga e deixou os sapatos na entrada, seguindo o costume local. “Fui inicialmente recebido com olhares de poucos amigos, já que os estrangeiros devem obter permissão oficial do governo antes de visitar qualquer instituição judaica.” Ele encontrou um jovem que falava inglês e ambos conversaram sobre a situação dos judeus no Irã. Brotman também percebeu que a grande estrela de Davi que ficava do lado de fora da sinagoga, símbolo do judaísmo e do estado de Israel, estava coberta.

Autorização para visitas

Devido a sua insistência e a colaboração do guia, a empresa de turismo conseguiu obter a autorização para que Brotman pudesse visitar instituições judaicas, durante um dia, após o término da excursão. “Levei meu passaporte para os escritórios da Comunidade Judaica de Teerã, a organização oficial que representa os judeus iranianos. O administrador do escritório me entregou uma carta de apresentação em persa que eu deveria levar a cada instituição judaica que visitasse naquele dia.”

De posse do documento, Brotman iniciou seu roteiro. Inicialmente conversou com o presidente da comunidade judaica, que julgou muito reservado.  Conheceu um dos quatro restaurantes kasher da capital –  que não tinha identificação e nem mezuzá no umbral da porta -  e foi à sinagoga Abrishami, a maior do Irã, localizada na Rua Felestin (Palestina). Nesta rua ficava a embaixada de Israel e com o rompimento das relações diplomáticas o prédio foi entregue à Organização para a Libertação da Palestina e a via foi rebatizada. A rua Palestina também abriga um monumento  em homenagem à Intifada ( agitação, em árabe) como são conhecidos os movimentos  dos palestinos contra Israel.


Ao final do dia, antes de seu retorno à África do Sul, Brotman se encontrou com um membro da comunidade judaica, Arash Abaie, professor de cultura judaica em uma universidade de estudos das religiões, a “University of Religions and Denominations”, situada na cidade de Qom, a 140 quilômetros da capital. Brotman convidou o professor para falar sobre a coexistência judaica - muçulmana no Irã, a história persa-judaica e os locais de peregrinação judaica no Irã. Semanas depois, com o apoio dos centros judaicos de Joanesburgo e da Cidade do Cabo, Abaie foi à África do Sul para as palestras.

Sabendo que a tragédia do Holocausto não é ensinada nas escolas iranianas e é uma espécie de tema proibido para os judeus iranianos devido à posição negacionista dos aiatolás, Brotman levou Abaie para visitar o Centro do Holocausto e Genocídio  de Joanesburgo e  encontrar sobreviventes dessa hecatombe.


Ao final do artigo, Brotman classifica de “memorável” a viagem ao Irã porque, segundo ele, permitiu conhecer e interagir com uma comunidade isolada do resto do mundo judaico. E se declara disposto a empreender uma segunda viagem, desta vez para conhecer Hamadan, onde estão as tumbas da rainha Ester e Mordechai, e Shush, onde fica a tumba de Daniel, o profeta judeu que saiu ileso da cova dos leões.

Ataque à tumba de Ester

Em maio do ano passado (2020), foi noticiado  pela própria agência estatal de notícias do Irã, a IRNA, que houve uma tentativa de arrombamento da tumba de Ester e Mordechai. Depois, a mídia judaica confirmou que tentaram atear fogo no túmulo, mas os danos foram pequenos.  Meses antes, a milícia estudantil Basij, da cidade de Hamedan, ameaçou destruir o local e construir o “consulado da “Palestina”, em reação às sanções econômicas do governo Donald Trump, que em 2018  se retirou do acordo nuclear com o Irã e intensificou as medidas restritivas contra o país.


O movimento Basij é uma milícia paramilitar formada por jovens iranianos, criada em 1979 pelo aiatolá Ruhollah Khomeini,  e que recebe ordens da Guarda Revolucionária.  Somam 100 mil combatentes oficiais e mais de 10 milhões de voluntários. É considerada uma organização terrorista pelos Estados Unidos. Vale dizer que a religião judaica é considerada um religião legal no Irã e, portanto, em teoria, o governo tem o dever de proteger as propriedades judaicas. Diferente da seita persa Bahá’í, por exemplo, fundada em 1844, uma fé não reconhecida pelas autoridades iranianas.  Com o templo-sede localizado na cidade israelense de Haifa, seus 300 mil adeptos residentes no Irã são perseguidos e acusados de infiéis, sendo que muitos líderes já foram condenados e executados.

A tentativa de incêndio ocorreu em 14 de maio, no 72º aniversário da criação do estado de Israel. Em 2008, o governo iraniano havia declarado a tumba como patrimônio histórico, mas a proteção governamental foi retirada em razão de distúrbios e protestos de estudantes contra Israel. O túmulo da rainha Ester foi mencionado pela primeira vez por um viajante medieval judeu, Benjamim de Tudela, em 1100. Acredita-se que o mausoléu foi construído em 1600.

Cartilha de ódio

Ainda em fevereiro deste ano, duas semanas antes da Festa de Purim e quando se completaram 42 anos da Revolução Islâmica, a Liga Antidifamação (ADL, na sigla em inglês) publicou um estudo abrangente sobre a  continuada difusão do antissemitismo, da intolerância e da violência no currículo escolar iraniano em mais de quatro décadas.  Um dos exemplos específicos é o que instrui os alunos a gritar “Morte a Israel” nas salas de aula. Os livros oficiais ensinam ainda que os judeus sempre conspiraram contra o Islã e que a nação israelense deve ser eliminada.

Os alunos também são incitados, através dos livros didáticos do currículo oficial, a glorificar o terrorismo com a doutrinação sistemática do ódio e de mensagens xenófobas e extremistas.  Eles aprendem que as sanções lideradas pelos Estados Unidos contra o Irã fazem parte de um ”plano satânico” para eliminar as crenças religiosas dos muçulmanos e que seus cientistas nucleares são uma benção para a grande jihad (guerra santa).

De acordo com David Weinberg, diretor de assuntos internacionais da ADL e autor do relatório, os livros escolares iranianos foram atualizados no ano passado, com a inclusão de uma teoria conspiratória contra a mídia ocidental que estaria exagerando os efeitos da Covid-19 para esvaziar as cerimônias de comemoração de mais um aniversário da Revolução Islâmica, que atrai milhões de iranianos.

Somando-se às mentiras da cartilha do ódio, o governo iraniano patrocinou em 2020 mais um concurso internacional de charges para promover a negação do Holocausto, com a apresentação de mais de 800 cartuns disseminando a intolerância, o preconceito e o antissemitismo. Desenhos que reforçam estereótipos, falsas narrativas, demonizam líderes ocidentais e o estado de Israel, glorificam a violência e o terrorismo.

Weinberg chama a atenção para mais essa enxurrada de provocações que precisam ser enfrentadas de forma adequada pelas nações democráticas.

A ADL é uma organização judaica americana de alcance mundial, fundada em 1913, com sede em Nova York, voltada para o monitoramento e combate às ações de intolerância, preconceito, discriminação ou ódio em qualquer lugar do planeta. Sua missão é denunciar essas ações e garantir justiça para todos aqueles que se sintam prejudicados.

Acusações de espionagem

Instalada em 11 de fevereiro de 1979, a Revolução Islâmica transformou a monarquia persa pró-Ocidente na República Islâmica do Irã, uma teocracia comandada pelos aiatolás.  Três meses depois, o presidente da Associação Judaica do Irã, Habib Elghanian, foi executado por um pelotão de fuzilamento, sob a acusação de ser um “espião sionista”. Empresário bem sucedido, todos os seus bens foram confiscados pelo novo regime.  A sinagoga Abrishami, já citada, inaugurada em 1965, teve o terreno doado por Elghanian.


Em 1999, outros 13 membros da comunidade judaica de Shiraz também foram acusados de espionagem a favor de Israel e dos Estados Unidos, entre eles, um rabino, professores, comerciantes e até um jovem de 16 anos. Condenados a longas penas de prisão, eles foram soltos, gradativamente,  após uma campanha internacional a favor de sua libertação. Destino diverso do  empresário Ruhollah Kadkhodah Zadeh, que foi enforcado pelas autoridades após ser acusado de ajudar os judeus iranianos a emigrar.

Tais fatos somados a perseguições e atos de antissemitismo ocasionaram a fuga de 90% dos judeus iranianos do país, deixando para trás bens estimados em 1 bilhão de dólares, patrimônio privado inteiramente confiscado pelo regime dos aiatolás.

Recentemente, o jornal The Jerusalem Post revelou que judeus iranianos que visitam parentes em Israel podem ser presos quando de seu retorno. Isso porque o Irã considera tal fato uma ofensa criminal. Em 2020, o parlamento daquele país intensificou ações legais contra judeus iranianos que visitam ou mantêm contatos com Israel. Segundo a reportagem (24.03.2021),  já são três judeus presos por esse motivo identificados por organizações de direitos humanos , sendo que um deles, de 65anos, foi solto temporariamente. Em janeiro último, uma mulher de 50 anos, também foi libertada, após permanecer presa por um período não revelado, devido a uma viagem a Israel.

Estada vigiada

Em 2016, uma jornalista sueca de ascendência judaica, Annika Hernroth-Rothtein,  passou 20 dias no Irã e conversou com vários judeus da comunidade local. Especializada em temas do Oriente Médio, a jornalista foi acompanhada em toda a sua estadia por um tradutor muçulmano, funcionário do governo. Até no jantar festivo de Shabat , ele esteve presente ao seu lado como convidado da família judaica.

Rotthein faz algumas observações interessantes nos artigos que escreveu sobre a viagem. Ela destaca que pela constituição iraniana, no seu parágrafo 13,  os judeus são livres para realizar os ritos e cerimônias religiosas “dentro dos limites da lei”, ou seja, estão regidos pela lei islâmica. E cita a insultuosa  lei da herança que estabelece que todos os bens da família serão herdados pelo judeu que se converter ao Islã.

Por ser uma religião reconhecida pelo governo, a comunidade judaica tem um representante no parlamento iraniano. No seu encontro com o então representante da comunidade judaica, Yoram Haroonian, este fez, de imediato, um discurso sobre as milenares raízes judaicas na Pérsia, razão pela qual, segundo ele, tornaria a vida judaica no Irã diferente de qualquer outra na Diáspora.


Haroonian lembrou que são mais de 2.700 anos de vivência conjunta, desde a conquista da Babilônia pelo rei persa Ciro.   “Os judeus do Irã são leais ao regime e, na verdade, fomos os primeiros a ser voluntários na guerra contra o Iraque”, ressalta. “Somos judeus iranianos e isso significa que somos iranianos em primeiro lugar e somos também leais, em primeiro lugar, a esse país, enquanto permanecemos fiéis à Torá.”

No Shabat, conversando reservadamente com a mãe de Haroonian, a jornalista quis saber se os judeus iranianos têm permissão para visitar Israel ou mesmo fazer aliá (emigrar). Ela explicou que quando algum judeu deixa o país, mesmo temporariamente, ele precisa dar como garantia todos os seus bens e geralmente somente um visto é concedido por família. Dessa forma, raramente alguém se aventura em viajar para Israel porque o preço é muito alto para quem fica no país.

O resultado é que o Irã tem o maior número de agunot  do  mundo , revela outra convidada do Shabat (o termo agunot se refere às mulheres judias separadas de seus maridos, mas sem permissão para o divórcio ). No caso do Irã, são homens que deixam  a esposa e a família para fugir da opressão de um regime teocrático que tem como fonte de legislação a Sharia (lei islâmica). Uma lei, por exemplo, que proíbe e pune com a morte o relacionamento amoroso entre pessoas de religiões diferentes.  

Ano passado, Rothtein publicou o livro “Exílio : Retratos dos judeus da Diáspora”, fruto de suas viagens ao Irã, Tunísia, Marrocos, Cuba, Colômbia,Sibéria, Finlândia e Uzbequistão.

Liberdade para rezar

Ampliando o leque de  informações sobre essa pequena e intrigante comunidade, vale reportar uma reportagem publicada em 2018 pelo jornal americano USA Today, um dos mais lidos  dos Estados Unidos. Na ocasião, o presidente do Comitê Judaico de Teerã, Homayoun Sameyah Najafabadi, perguntado sobre as ocupações mais comuns, disse que a maioria dos judeus no Irã são lojistas, embora existam médicos, como ele próprio, engenheiros, professores e outras profissões (os judeus são proibidos de seguir a carreira militar ou serem juízes).  O rabino Nejat Golshirazi, por sua vez, saudou o ambiente social em que vivem: “Temos todas as instalações de que precisamos para nossos rituais e podemos dizer nossas orações com muita liberdade. Nunca temos problemas”, assegura. “A maioria muçulmana no Irã nos aceita”, completa Najafabadi.

Em 2015, o presidente Hassan Rouhani atendendo  a um antigo  pleito da comunidade  reconheceu o sábado judaico (shabat) como feriado para os judeus,  permitindo que fiquem em casa e as crianças não frequentam a escola.  Porém, os judeus não têm permissão para serem diretores de escolas judaicas que são dirigidas por muçulmanos.  


A mesma reportagem apresenta o depoimento  de um judeu iraniano  que deixou o país em 1987, ainda adolescente, e que dá aulas sobre política iraniana em um centro escolar na cidade der Hertzlia, no norte de Tel Aviv.  Meir Javedanfar revela que em 2007, o Comitê Judaico de Teerã recusou uma oferta do governo israelense de ajudar cada família remanescente no Irã em 60 mil dólares para sair do país. E quanto à importância dos judeus na sociedade iraniana, ele avalia que " o governo dos aiatolás não está muito preocupado com seus judeus, desde que eles não se envolvam na política e não digam nada de positivo sobre Israel".