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sábado, 8 de maio de 2021

The Spirit e outros personagens de Will Eisner

/  Cartunista introduziu temas judaicos nas histórias em quadrinhos  /

Sheila Sacks  /

Anualmente, no mês de março, os aficionados de histórias em quadrinhos comemoram uma data muito especial: o nascimento de um dos mais importantes cartunistas de todos os tempos, autor do justiceiro mascarado "The Spirit", herói das HQs dos anos 1940.

Nova-iorquino do Brooklyn, o genial Will Eisner nasceu em 6 de março de 1917 e deu vida ao investigador da polícia Denny Colt e a imaginária "Central City", transportados de maneira magistral para as telas dos cinemas, em 2008, pelo também desenhista e cineasta Frank Miller.


Inovação nas HQs

Com sua arte e força criativas, Eisner tinha pouco mais de vinte anos quando embarcou nessa extraordinária aventura onde o talento de desenhista e a imaginação literária se uniram para moldar um dos personagens mais instigantes das HQs.

Transitando pela lendária Central City, a cidade dos sonhos, desilusões, dramas, crimes e situações bizarras, o estranho policial surge das trevas da morte para combater o mal e não dar trégua aos bandidos.

Em um universo noir de jogos de sombras, ângulos insólitos e planos incomuns, Denny Colt, julgado morto, renasce em sua fúria e revolta. De terno, gravata, chapéu, luvas e máscara, ele se transforma em "The Spirit", o mocinho diferente, contraditório, sem superpoderes, roído pelas dúvidas e cingido pelo imponderável.

À parte as histórias policiais nada convencionais, "The Spirit" revolucionou os comics utilizando-se de inventivos recursos narrativos, de enquadramentos inesperados de imagens e lançando mão de primeiros planos para destacar um detalhe.

Essa nova linguagem gráfica com perspectivas cênicas de cunho cinematográfico introduzida por Eisner angariou um exército de 5 milhões de ávidos leitores semanais, somente nos Estados Unidos.

As tirinhas, iniciadas em 1940, foram publicadas até 1952, mas seus enredos e ilustrações, utilizando narrativas paralelas e desenhos expressionistas, romperam com as técnicas tradicionais, marcando um novo capítulo no desenvolvimento da arte do cartoon.

Considerado por especialistas do gênero o mestre das histórias em quadrinhos de todos os tempos, William Erwin Eisner era filho de imigrantes judeus muito pobres, e quando criança trabalhava vendendo jornais nas ruas para completar a renda familiar. Foi esse o seu primeiro contato com as histórias em quadrinhos, cujas ilustrações o encantavam e com as quais desenvolveu um profundo amor pelo desenho gráfico.

Já aos oito anos resolveu se dedicar ao desenho, apesar da oposição da mãe. Além do herói Spirit, Eisner também foi o criador de "Sheena, a Rainha da Selva", que virou série de TV (1955) e filme (1984).

Personagens judeus de Nova York

Mas, apesar do enorme sucesso obtido com a série "The Spirit", Will Eisner resolve dar uma guinada em sua vida e em sua arte, surpreendendo fãs e seguidores.

Depois de realizar trabalhos de propaganda e de publicidade, e também trabalhar na adaptação para as HQs de obras clássicas, como "Don Quixote" e "Moby Dick", ele edita, em 1978, uma publicação ilustrada, com temas sérios e para leitores adultos, classificada pelo próprio autor de "graphic novel" (histórias longas, impressas em papel especial e publicadas em formato de álbum).

A novidade provoca uma reviravolta no mundo dos comics. O trabalho “Contrato Com Deus e Outras Histórias” mostra a vida de pessoas comuns e fala dos dramas do dia a dia de sua Nova York natal.

Sem limitação de páginas, com temática e desenho livres de qualquer formatação, os romances gráficos se tornam populares e conquistam seguidores entusiastas. As aventuras protagonizadas por heróis são deixadas para trás e os habitantes anônimos da Big Apple – muitos deles imigrantes e judeus como os pais de Eisner – assumem os papéis principais no pincel do artista.

Combinando ficção com histórias reais, Eisner cria relatos intensos e dramáticos, com destaque para a temática judaica.

Os anos passados nos bairros do Brooklyn e do Bronx são retratados em uma série de trabalhos que incluem “O Sonhador”, “O Edifício” e “No Coração da Tempestade”. Este último mostra a sua infância e adolescência.

Segundo Eisner, a linha central dessa graphic novel é o racismo. “O livro se inicia no trem, quando sou convocado para a guerra. Pela janela visualizo cenas que me lembram as histórias pelas quais eu passei, dentre elas minha primeira experiência com o racismo.”

Em 1983, para comemorar os 15 anos da publicação de “Contrato com Deus”, é lançada uma edição especial da obra, em ídiche (língua falada por muitos judeus europeus, assemelhada ao alemão e escrita com caracteres hebraicos).

No Brasil, o universo de Eisner ganha a cena teatral, com as peças “New York”, apresentada em Curitiba (1990), “Pessoas Invisíveis”, produzida no Rio de Janeiro (2002) e “Avenida Dropsie”, exibida em São Paulo (2005). Ainda no Brasil, a produtora Marisa Furtado realiza um documentário sobre Eisner (1999), o primeiro sobre a carreira do artista.

Preconceito e Antissemitismo


Suas duas últimas obras, “Fagin,o Judeu” e “The Plot” (O Complô) abordam temas espinhosos. A primeira é uma revisão histórica de uma figura mal retratada por Charles Dickens, em seu livro "Oliver Twist". A visão estereotipada do personagem serviu para disseminar o preconceito entre os leitores do autor inglês e Eisner apresenta a sua visão sobre o assunto.

A segunda trata da verdadeira origem de um documento forjado por autoridades russas, em 1903, conhecido como “Os Protocolos dos Sábios de Sião”.

A farsa foi descoberta em 1921 e revelou que o texto dos Protocolos foi extraído de uma sátira política francesa escrita por Maurice Joly, em 1864, intitulada “O Diálogo no Inferno”. O texto descrevia uma fictícia discussão de Maquiavel e Montesquieu para um plano de conquista por Napoleão III, cujo nome foi substituído por “os judeus”.

“The Plot” foi lançado nos Estados Unidos em maio de 2005, alguns meses depois do falecimento de Eisner.  O escritor italiano Umberto Eco escreveu  o prefácio. No Brasil, a editora paulista Companhia das Letras publicou, em novembro de 2006, a versão brasileira da obra.

Em entrevista ao “New York Times”, em 2004, Eisner falou do trabalho: “Acabo de concluir e estou editando uma novela gráfica de caráter polêmico. Trata-se da verdadeira história da origem de uma das maiores e mais infames fraudes do mundo, "os Protocolos de Sião”.

Justificando seu interesse pelo tema, Eisner contou que buscou no passado uma forma de enfocar o antissemitismo que continua sendo uma questão atual. “Eu estava na Internet e descobri uma página promovendo 'os Protocolos' para leitores do Oriente Médio. Fiquei chocado em descobrir que muita gente ainda acredita que a história é real e fiquei perturbado quando vi a quantidade de sites que divulgam essas mentiras para os muçulmanos. Concluí que algo precisava ser feito.”

Leonardo da Vinci dos Quadrinhos

Will Eisner tinha 87 anos quando faleceu em 3 de janeiro de 2005. Pioneiro dos comics de adultos e criador do termo “arte sequencial” que deu novo status ao gênero, ele deixou seguidores respeitados, como o autor e desenhista Frank Miller, que dirigiu os filmes “Batman, o Cavaleiro das Trevas” e “Sin City”, e Alan Moore, criador de Watchmen, levado às telas em 2009.

Considerado o Leonardo da Vinci dos quadrinhos pela revista “Civilization”, editada pelo Congresso americano, o artista emprestou o seu nome para o mais importante prêmio de quadrinhos do mundo – o Eisner Award .

No ano de sua morte, o jornal “The Washington Post”, ao descrever a trajetória do cartunista, sublinhou que Eisner fez da luta contra a intolerância uma forma de arte.

Aqui no Brasil, Maurício de Souza, criador dos personagens Mônica e Cebolinha, também lamentou a perda de Eisner, que esteve várias vezes no Brasil : “Foi como se eu tivesse perdido outro pai. Ele era o meu ídolo, o meu guru”, afirmou.

A genialidade da arte de Eisner – que jamais excluiu a sua identidade judaica no decorrer da vida profissional e que não a manteve restrita às fronteiras tribais dos fãs dos comics - também foi devidamente reconhecida pela prestigiada “Nacional Foundation for Jewish Culture”, instituição americana fundada em 1960 para promover e preservar a cultura judaica.

Em 2002, a entidade outorgou ao artista o prêmio máximo pelo conjunto de sua obra.