linha cinza

linha cinza

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A Bíblia hebraica dos Açores


por Sheila Sacks

Em 1997, os jornais do arquipélago português dos Açores divulgaram um fato inusitado: dois garotos de uma aldeia de pescadores da região haviam achado em uma gruta, por acaso, um velho pergaminho enrolado escrito em hebraico ou aramaico.

Na ocasião, quem leu a notícia e logo percebeu que se tratava de uma Torá (Velho Testamento- Pentateuco) foi o jornalista e pesquisador Inacio Steinhardt, português de nascimento e radicado em Israel. A partir de então e durante seis anos ele seguiu os passos da misteriosa Bíblia hebraica, na tentativa de desvendar e ordenar a história que acompanharia aquele documento religioso escondido em uma ilha do oceano Atlântico.

Nascido em Lisboa, em 1933, e vivendo em Israel desde 1976, Steinhardt foi correspondente de jornais portugueses e da agência de notícias Lusa. É presidente honorário da Liga de Amizade Israel – Portugal, em Tel Aviv, e Comendador da Ordem de Mérito da República Portuguesa.
O jornalista também é co-autor do livro “Ben-Rosh- Biografia do Capitão Barros Basto, o Apóstolo dos Marranos”, que conta a história de um oficial do exército português que retornou às suas origens judaicas.

A entrevista abaixo foi realizada via email em 2008:

Em que data e de que forma o senhor teve conhecimento da existência de uma Torá do século 18 no arquipélago de Açores?

- Na nossa profissão não é raro acontecer que as histórias chegam até nós e não nos largam enquanto não as contamos. Foi o que me aconteceu também desta vez.
No dia 8 de Maio de 1997 abri na Internet uma página que listava os jornais portugueses. Nesse dia o mouse parou sobre O Açoreano Oriental. Eu nunca tinha lido um jornal do arquipélago dos Açores. Não resisti e cliquei para ver como era. Logo na primeira página, em manchete, vinha a notícia sobre dois alunos da escola primária de Rabo de Peixe, uma aldeia de pescadores ao norte da Ilha de São Miguel, que, na véspera haviam achado, dentro de uma gruta, dois rolos de pergaminho, escritos com caracteres estranhos, e enrolados em volta de dois rolos de madeira. Suspeitei logo tratar-se de uma Torá (Velho Testamento).
Nos dias seguintes todos os jornais dos Açores repetiam a história, acrescentando que se tratava de um rolo só, que os pequenos tinham cortado ao meio, levando alguns fragmentos consigo, um dos quais tinha sido identificado pelo professor de Religião e Moral da sua escola como sendo hebraico ou aramaico.
A partir daí a imaginação não teve limites, atribuindo-se ao manuscrito a uma profecia papal e o local como lugar de culto secreto dos marranos (cristãos-novos, aqueles que foram convertidos à força no século XV). Um jornal americano chegou a noticiar a existência de inscrições nas paredes da gruta, nada menos do que em iídiche (idioma ainda usado por judeus, corruptela do alemão), imagine!

De que maneira a Torá chegou até lá?

- Conheço suficientemente a existência dos cripto-judeus (marranos) em Portugal para excluir a possibilidade daquela Torá lhes ter pertencido. A hipótese que me parecia mais lógica era de que a Torá seria de uma das cinco sinagogas que funcionaram nos Açores, no século XIX, dos judeus de origem marroquina que lá viveram. A minha suspeita confirmou-se.

Existia na época comunidade judaica em Açores?

- Em 1997 já não existia nenhuma comunidade judaica nos Açores. Durante o século XIX, até em torno de 1880, havia ali uma comunidade de judeus marroquinos que chegou a ter quase 250 pessoas e que vivia em diversas ilhas do arquipélago. As suas sinagogas funcionavam em casas particulares, com exceção da sinagoga Shaar Shamaim (Portas do Céu), na cidade de Ponta Delgada, na Ilha São Miguel, que tinha edifício próprio e ainda hoje lá está, embora esteja fechada há muitos anos**.
Todas as Torás dessas sinagogas foram gradualmente sendo transferidas para a sinagoga Shaare Tikvá, de Lisboa.

O senhor poderia detalhar as aventuras e as desventuras desse pergaminho?

- Bom, é uma longa história que levei seis anos para desvendar. Em poucas palavras, a Torá foi escrita nos primeiros anos de 1700, na cidade marroquina de Mogador, que hoje se chama Essaouyra, na costa atlântica de Marrocos. Um judeu de Mogador, Mimon Abohbot, comerciante, mas pessoa muito letrada em judaísmo, trouxe ao Açores duas Torás para a sinagoga que funcionava em sua casa, na cidade de Angra de Heroísmo, na Ilha Terceira, onde ele servia de rabino. Em seu testamento ele deixou escrito que, após a sua morte, e não havendo mais judeus na cidade, uma Torá deveria ser enviada para a sinagoga da cidade de Ponta Delgada (Ilha São Miguel) e a outra levada de volta para Mogador, em Marrocos. Há informações da época que confirmam que a Torá foi encaixotada para o embarque, mas, por razões que ignoro, o caixote teria ficado nos Açores. Cem anos mais tarde, numa taberna da aldeia de Porto Judeu (um nome que também tem a sua história, para contar outro dia), na Ilha Terceira, o caixote foi entregue a um jovem capitão judeu, da base aérea americana das Lajes, também na Ilha Terceira. O capitão Marvin Feldman teve receio de abrir o caixote, pensando que se tratava de um caixão contendo os ossos de alguém. Mas, quando finalmente teve coragem para abrir, encontrou a Torá. Ele mandou vir dos Estados Unidos um manto para a Torá e começou a usá-la no serviço religioso improvisado, na capela da base, para os militares judeus. Um fato curioso, que não resisto em relatar, é que nenhum dos judeus da base tinha conhecimentos para ler o texto da Torá sem os sinais diacríticos. Quem resolveu o problema foi o capelão católico, padre Don Hunter, que havia aprendido hebraico e a leitura da Bíblia no original, e que vinha todos os sábados à capela ler a Parashá (capítulo semanal) para os judeus. Em 1973, quando regressou aos Estados Unidos, o capitão Feldman (hoje coronel aposentado), deixou a Torá na base, dentro de um bonito armário de madeira (Aron HaKodesh) que mandou construir. Durante muito tempo ninguém soube na base onde se encontrava a Torá do capitão Feldman. Hoje eu sei que entre 1994 e 1997 ela esteve com uma senhora que exercia as funções de líder laico judeu. Essa senhora, antes de regressar aos Estados Unidos, teve a intenção de mandar a Torá para a sinagoga de Lisboa. Por motivos que ainda desconheço, ela a teria mandado para alguém, em Ponta Delgada, que, por sua vez, deveria embarcar a Torá para Lisboa. E foi precisamente em maio de 1997 que alguém a escondeu dentro da gruta onde foi encontrada.

Qual era o estado de conservação da Torá quando foi encontrada?

- Em perfeito estado de conservação, o que revela que não estava naquele local há muito tempo. O ar salgado do mar teria pelo menos corroído a tinta das letras e desfeito as costuras do pergaminho. A Torá encontrava-se dentro de um grande saco de plástico, como que pronta para o embarque. Identificado por especialistas da Universidade de Jerusalém como um pergaminho escrito em Marrocos nos anos de 1700, estava coberto por um manto de características ashkenazis (origem européia) e até costurado à máquina, portanto um manto que teria, quanto muito, 150 anos. Pelas fotografias, o capitão Feldman confirmou-me que era igual ao que ele mandara vir dos Estados Unidos. Esse foi o primeiro fio da meada que me serviu para desvendar o mistério: uma Torá sefaradita (de origem oriental) do século XVIII, com um manto ashkenazi moderno. Encontrava-se em perfeito estado de conservação quando os meninos a encontraram. Eles porém a destruíram, cortando-a em pedaços para vender na aldeia a pessoas que imaginavam obter grandes lucros com a antiguidade. Além disso, quando a notícia foi divulgada, eles tinham deixado o remanescente na gruta. Logo no dia seguinte alguém foi lá (talvez a mesma pessoa que a escondeu) e tirando os dois rolos remanescentes para fora, desenrolou um dos lados para tirar o eixo de madeira (ets haim) e arrancar os punhos e pontas que eram de marfim. Por alguma razão só conseguiu tirar o eixo de um lado.

Foi feita alguma restauração? Quem fez?

- O remanescente do achado foi entregue à Biblioteca e Arquivo Regional da cidade de Ponta Delgada. Depois foi enviada para o Departamento de Restauros da Biblioteca Nacional de Lisboa, onde fizeram um magnífico trabalho de restauração, com a ajuda do então rabino da Comunidade Israelita de Lisboa. Apenas ficaram vazios os lugares dos fragmentos que nunca foram devolvidos. Foi feita também uma bonita caixa-estojo, da mesma cor do manto de veludo. Agora a Torá encontra-se novamente exposta na Biblioteca de Ponta Delgada, nos Açores.

Sua pesquisa durou seis anos. Foi difícil seguir os caminhos percorridos pela Torá?

Foi necessária muita persistência e muita sorte. Seguindo o fio da meada fui encontrar, entre os meus papéis, um artigo de uma revista hebraica citando um jornal judeu de Kansas City, Estados Unidos, que se referia ao achado de Marvin Feldman. Qualquer coisa me fez guardar esse artigo (não calcula quantas toneladas de recortes tem o meu arquivo pessoal). Depois foi uma missão impossível contatar tantos Marvin Feldman nos Estados Unidos, até localizar, ao cabo de seis anos, o homem certo, na Austrália! Hoje ele vive na Flórida. Marvin foi extremamente simpático, gravando para mim o relato exato da sua parte na história. O interessante é que em 1973, ano em que o capitão encontrou a Torá em Porto Judeu, eu tinha comprado num sebo em Lisboa um sidur (livro de rezas) manuscrito pelo mesmo Mimon Abohbot, em 1874, em Angra do Heroísmo. Copiou-o manualmente na intenção de que seus netos rezassem por ele em sua memória. Esse fato despertou a minha curiosidade e investiguei a biografia desse judeu piedoso, publicada em diversas fontes. Quando ouvi a gravação do capitão Feldman e a história do caixote, lembrei-me das duas Torás de Abohbot e do seu testamento. Fui consultar essas fontes e lá estava o episódio da caixa de madeira que deveria ser embarcada para Mogador. Em abril de 2005 estive pela primeira vez nos Açores, nas ilhas de São Miguel e da Terceira, para proferir duas palestras, a convite do Governo Regional. Aí eu contei a história da Torá, que por duas vezes se recusou a abandonar os Açores. Foi então que, novamente por acaso fortuito, soube do envio da Torá, da base das Lajes para Ponta Delgada. E pude assim acrescentar nas minhas palestras que foram três vezes que a Torá se recusou a sair dos Açores. Na mesma oportunidade visitei o cemitério judaico da cidade de Angra do Heroísmo, e, perante a sepultura de Mimon Abohbot e na presença do único judeu que mora na ilha, li, no livro piedosamente manuscrito por ele, a oração pelos mortos (Hashkará) na versão sefaradita em que Mimon listou os mortos de sua família. Foi um momento muito emocionante para mim. Como vê, o quebra-cabeça ainda não está terminado. Falta ainda saber duas coisas: onde esteve o caixote durante quase 100 anos, até aparecer na taberna da aldeia de Porto Judeu? Estive no local onde fui recebido de forma calorosa pela autoridade regional e com a sua ajuda entrevistei muitas pessoas idosas, mas ninguém se lembrava do que sucedera 30 anos atrás. A outra peça da charada que ainda falta desvendar, é saber quem recebeu a Torá em Ponta Delgada e quem, e por que, a escondeu na gruta em Rabo de Peixe.

A exposição do pergaminho é aberta ao público?

Sim. Recentemente o pergaminho foi disponibilizado aos visitantes na Biblioteca e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Foi outro momento emocionante conhecer a Torá, que de alguma forma me procurou para eu escrever a sua história, e ler nela um capítulo. Mais: o Diretor Regional da Cultura afirmou-me que, se a sinagoga de Ponta Delgada for restaurada e conservada como museu judaico, sendo simultaneamente um lugar de orações para turistas judeus que visitam os Açores, e havendo segurança contra roubos no local, ele encararia a possibilidade de mandar transferir para lá a Torá de Rabo de Peixe. O pergaminho ficaria em exposição, visto que não pode ser utilizado para o culto, segundo a Halachá (lei judaica). Hoje já não existe comunidade judaica nos Açores. Apenas um judeu inglês vive na Ilha Terceira e alguns descendentes de judeus, que hoje já são católicos. Entre estes tenho o dever de destacar a obra meritória dos membros da família Bensaúde, que já não sendo judeus têm conservado, por conta própria, os cemitérios judeus ainda existentes no arquipélago e parte das obras de conservação da sinagoga.

A Torá já foi apresentada em outros locais?

Não. Aliás ela nada tem de extraordinária, além de sua história fantástica. Houve a sugestão de levá-la para Angra do Heroísmo, para estar presente quando da minha conferência, mas a ideia foi abandonada por problemas logísticos e de segurança.

Mudando de tema: em 1997 o senhor publicou um livro sobre o Capitão Barros Basto, conhecido como o Dreyfus Português (foi afastado pelo exército em 1943). Qual é a importância deste personagem na moderna história judaica-portuguesa?

Eu não concordo muito com a designação de Dreyfus Português, porque as circunstâncias foram bem diferentes. Barros Basto não foi destituído da sua patente militar. Foi sim exonerado do exército e viveu seus últimos anos ferido no mais íntimo da sua alma, e em condições econômicas muito difíceis. Não foi acusado de traição, foi castigado com o intuito de aniquilar a obra que havia iniciado. Ele começou a sua vida rejeitando, instintivamente, a religião católica em que foi educado pela mãe, e buscando a verdadeira religião com todas as forças da sua alma. Passou por várias fases até que seu avô paterno, antes de falecer, o escolheu para transmitir o grande segredo da família: eles eram descendentes dos judeus convertidos pela força, em 1497. A Obra do Resgate, que ele criou para convencer os outros "anussim" (convertidos à força) de que já havia liberdade religiosa em Portugal, foi um trabalho gigantesco que encontrou eco em todo o mundo judaico. E conseguiu construir uma imponente sinagoga na cidade do Porto. Mas foi uma obra que durou apenas enquanto durou essa liberdade religiosa, e enquanto o espírito de discordância entre os judeus não foi aproveitado pelo clero, que não via com bons olhos o regresso dos marranos ao judaísmo. Em nossos dias a sinagoga Mekor Haim, que ele construiu, voltou a ser um pólo de atração para um número crescente de bnei-anussim (descendentes dos ‘forçados’) que procuram regressar ao Judaísmo.

Existe curiosidade nas famílias portuguesas em investigar possíveis raízes de ascendência judaica?

Imensa. E não só curiosidade como grande perseverança na investigação, quase sempre tão difícil quanto serem aceitos no seio do judaísmo institucional. É um movimento que se alastra rapidamente, não só dentro de Portugal, como nas comunidades de descendentes de imigrantes portugueses em vários países. Soube que no Brasil o seu número já excede a um milhão, o que é bem possível devido às raízes históricas. Mas também nos Estados Unidos, no México, na África do Sul e em alguns países europeus. Eles estão agrupados em diversos fóruns da Internet, principalmente no "Saudades", heroicamente dirigido por Rufina Bernardette da Silva Mausembaum, em Johannesburgo, África do Sul, ela própria uma retornada.


** Localizada na Rua do Brum nº 16, a Sinagoga de Ponta Delgada (1836) – a mais antiga sinagoga portuguesa construída depois da expulsão dos judeus do país - vai ser recuperada com o apoio da Comunidade Israelita de Lisboa. O prédio encontra-se em precárias condições físicas e em 2009 abriu as portas pela primeira vez, depois de mais de 50 anos fechada, para visitas guiadas pelo historiador José de Almeida e Mello, responsável pela sinagoga e autor do livro “Sinagoga Sahar Hassamain de Ponta Delgada – História, Recuperação e Conservação".

A respeito do tema, o colega Alfredo Maia, presidente do Sindicato de Jornalistas de Portugal, escreveu um pequeno e sensível texto em seu blog “Nave dos Dias”, que reproduzimos abaixo:

Domingo, 3 de outubro de 2010

Rua do Brum, n.º 16, Ponta Delgada: o futuro da memória hebraica

Rua do Brum, n.º 16, Ponta Delgada. A casa pouco difere das demais - rés-do-chão, dois andares, fachada rebocada pintada de branco, janelas ornamentadas por faixas amarelas, a porta com faixa ocre prolongando a faixa de meio metro ao longo do alçado principal, duas varandas em ferro forjado.

No interior, uma impressionante amostra de um passado guardado na cápsula do tempo. Algures, discretamente protegido pela envolvência doméstica de uma casa de habitação, um belo salão de culto – um solene cadeiral em U voltado para as Tábuas da Lei, o armário que guardava a Tora e a cadeira (raríssima!) destinada à circuncisão; um púlpito pejado de livros vetustos e ruídos pelas térmitas e pelos ratos; nas costas, um relógio parado nas 2:15 de um dia – sabe-se lá qual – muitas décadas atrás, muito poucas mais chegarão para perfazer um século, quando emudeceram as orações no rito hebraico e o sarcófago do tempo foi envolvendo a Sinagoga de Ponta Delgada.

Abateu-se a ruína sobre a cobertura da casa e os sobrados; a vegetação invadiu a casa; salvaram-se à pressa livros sagrados e apetrechos de culto; outros pereceram na humidade inapelável e na voragem de insectos e roedores. Salvou-se a sala de culto – uma das mais belas (ou a mais?...) de Portugal e a mais antiga das sinagogas da Europa (e também em Portugal, depois da expulsão dos judeus, por D. Manuel I, fundada em 1836 e marcando o seu regresso em pleno Portugal liberal) – como se fosse quase intocável ao tempo e ao abandono (as outras, já se sabe, foram destruídas pela fúria nazi).

Há dez anos, porém, que José de Almeida Mello peleja pela recuperação da Sinagoga Sahar Hassamani, procurando dar-lhe um rumo, restituir-lhe uma dignidade. Ouvi-o ontem, com muita satisfação, falar de um futuro (próximo, pois as obras decorrem no próximo ano) através do qual poderemos perscrutar o passado para compreendermos melhor o passado: deverá ser uma biblioteca-museu da identidade hebraica – com destaque para a sala de culto e para a biblioteca que há-de ser constituída pelo fundo próprio dado à guarda da Comunidade Israelita de Lisboa e por doações de particulares, integrada numa rota que inclui os cemitérios judeus de Ponta Delgada e Angra do Heroísmo.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Obama e o 11/9


por Sheila Sacks

Passados nove anos dos atentados de 11 de setembro e dois anos do início da gestão de Barack Obama, continuam sem julgamento os cinco acusados de terem tramado o pior ataque terrorista da história dos Estados Unidos. Três mil pessoas foram mortas naquele fatídico dia de 2001 em três pontos diferentes - Nova York, Washington e Pensilvânia -, em um diabólico circuito de insanidade e horror cujas imagens ainda causam perplexidade e indignação.

Prisioneiros na base militar de Guantánamo, em Cuba, os terroristas muçulmanos da Al Qaeda, inclusive o autoproclamado mentor da catástrofe, o paquistanês Khalid Sheik Muhamad (que degolou o jornalista Daniel Pearl, um ano depois, e divulgou a execução em vídeo) ainda aguardam a definição do local (jurisdição) onde serão julgados. Uma demora que vem recebendo pesadas críticas dos principais segmentos da sociedade americana e que tem respingando sobre o presidente Obama.

Com a popularidade em baixa (somente 43% aprovam seu governo), Obama já está sendo visto por 25% dos americanos como muçulmano ao invés de cristão como afirma (seu pai, nascido no Quênia, era muçulmano). Também o seu posicionamento a favor da construção de uma mesquita a ser erguida perto do local da tragédia do 11/9 tem provocado polêmica e um grande mal-estar principalmente entre os parentes das vítimas dos ataques.

Para o professor emérito de História e Religião Islâmica da Universidade Hebraica de Jerusalém, Moshé Sharon, o importante não é o fato de que 1 em 5 norte-americanos já acredita que Obama é muçulmano. O principal na questão é saber o que os muçulmanos pensam de Obama. De que forma os seguidores do Islã veem um filho de pai muçulmano que nega publicamente seu vínculo com a religião.

Em 2009, quando Obama visitou o Egito, Sharou falou à rede de TV norte-americana CBN News (The Christian Broadcasting Network) sobre esse aspecto da biografia de Obama. Segundo Sharon, o nome Hussein que Obama carrega tem um peso histórico e religioso muito grande, porque esse nome remonta ao príncipe Hussein Ibn Ali (626-680), neto de Maomé, reverenciado como “Mártir dos Mártires”. Ele foi morto e decapitado na Batalha de Karbala e a data é uma das mais importantes do calendário islâmico, em especial para o ramo xiita.

Diferente da religião judaica que considera judeu quem é filho de mãe judia, pela lei islâmica da sharia a religião passa de pai para o filho e aquele que a abjura comete um ato de apostasia. Dessa forma, pela religião do Islã, Obama é muçulmano, ainda que negue publicamente. Outro detalhe: somente meninos muçulmanos recebem o nome Hussein.

O Ocidente e a linguagem do Islã

Autor de mais de 10 livros sobre a civilização árabe, Sharon, de 72 anos, também é especialista em inscrições antigas e profundo conhecedor da Shia, a seita xiita predominante no Irã e no Iraque. No início de 2010, a mídia mundial divulgou um importante achado arqueológico na cidade velha de Jerusalém, coordenado pelo professor Sharon: a descoberta de uma placa de mármore, entre outras antiguidades, com uma inscrição rara em língua árabe do ano 910.

Integrante do movimento Americans for a Safe Israel (AFSI), Sharon explica que "as nações erram ao aplicar o pensamento judaico-cristão às ações políticas que envolvem os países árabes. A linguagem do ocidente não impressiona e nem repercute nos países islâmicos da forma que os ocidentais ingenuamente supõem, já que o Islã tem uma linguagem própria em que acreditam e da qual jamais se afastarão.

O professor lembra que em agosto de 2005, quando da retirada de Israel da Faixa de Gaza, um dos líderes mais radicais do Hamas, posteriormente ministro palestino de Relações Exteriores e atual comandante do grupo na região, Mahmoud al-Zahar, em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, declarou que o Hamas jamais desistiria da Grande Palestina, que inclui a cidade de Jerusalém e a Cisjordânia. “Esta solução que está aí é temporária e pode durar de 5 a 10 anos. Mas, ao final, a Palestina voltará a ser muçulmana e Israel desaparecerá da face da terra.”

Em outra apresentação, desta vez à CBN News, Al-Zahar, declarou textualmente: “Nós estamos em meio a uma terceira Guerra Mundial. Eu digo isso o tempo todo. E mais: Por que o Hamas deveria abrir mão de suas armas? Para satisfazer Israel? Para satisfazer algum ser humano na terra? A resposta é não”.

Profundo conhecedor da língua e do pensamento árabes, professor Sharon vem alertando, já há alguns anos, sobre a necessidade das nações prestarem mais atenção à linguagem usada pelo Hamas (que significa fervor) e por grupos como o Hezbollah e Al Qaeda. “O que Al-Zahar quis dizer quando falou em terceira Guerra Mundial é o seguinte”, explica Sharon: “ Nós, muçulmanos, queremos restabelecer o Califado – da Índia e China à Espanha”. Isso porque os árabes ainda consideram a Espanha como território islâmico (a Península Ibérica ficou sob o domínio dos árabes por 700 anos- do séc. VIII ao XV).

Os cristãos-sionistas que acreditam no Salvador

Em outra oportunidade, Al-Zahar chamou os norte-americanos de “cristãos-sionistas” que acreditam em ilusões como a de que o Salvador retornará a Jerusalém e que os judeus devem estar lá para esperá-Lo. “Os americanos incitam o mundo contra o Hamas e outros grupos muçulmanos”, acusou o líder palestino, “e portanto não há benefício em manter um diálogo com pessoas que convivem com o Satã.” Para o professor Sharon está patente que a briga com os chamados “cristãos-sionistas” dos Estados Unidos faz parte de uma guerra maior que o Islã trava contra o sistema de vida judaico-cristã do Ocidente. “Quando Al-Zahar diz que o poder de Israel e dos americanos não é eterno e que isso pode mudar, o que ele verdadeiramente expõe é que o objetivo do Hamas é o estabelecimento de um estado palestino muçulmano em Israel e também o domínio de toda a terra pelo Islã.”

Universidade Hebraica de Jerusalém
Sharon adverte que o Ocidente está em perigo e deve enfrentar a situação de maneira séria. “Para muitos pode parecer uma piada esta história de dominar o mundo, mas para os muçulmanos são palavras de Deus. Desde os primórdios, a intenção do Islã sempre foi subjugar os povos e colocá-los sob as suas leis e regras. E hoje, este plano está a caminho e nós precisamos ter consciência do fato”. E lista alguns pontos que comprovam a sua tese:
1.Está escrito literalmente no Corão (Repetição) que “Alá enviou Maomé com a religião verdadeira para governar sobre todas as religiões”;
2. Maomé afirmou que os judeus e os cristãos falsificaram os livros da Bíblia e que todos os profetas são muçulmanos, inclusive Abraão, Isaac, Jacob, David e Moisés;
3.O Sistema Islâmico diz que é preciso lutar contra aqueles que não querem viver sob o domínio do Islã. A guerra contra os infiéis, sejam judeus ou cristãos, chama-se Jihad (esforço, empenho);
4. O Corão divide o planeta em duas Casas: uma se chama Dar al-Islam (Casa do Islã), onde o Islamismo governa, e a outra Dar al-Harb (Casa da Guerra), como é conhecido o restante do mundo. Esta Casa da Guerra será conquistada no final dos tempos e subjugada pelo Islã;
5.Para a civilização islâmica, se uma terra, no passado, foi dominada pelo Islã, ela sempre será propriedade do Islã. Daí os árabes só se referirem a Israel como território;
6.O propósito do Islã é de se constituir em uma força militar divina para impor a cultura islâmica. Cada muçulmano que entrega a sua vida na luta pela disseminação do Islã se constitui em um mártir (shaheed), não importando a maneira como essa morte possa vir a ocorrer. Ou seja, este é um conflito bélico eterno, uma guerra sem fim, entre duas civilizações: a da Bíblia versus a do Corão.

A eterna guerra das civilizações

Além de professor, Sharon foi Consultor para Assuntos Árabes do Governo de Israel, no período do Primeiro-Ministro Menachem Begin (1977-1983). Ele é incisivo ao questionar a posição de políticos ocidentais que, sem conhecerem uma palavra do idioma árabe, se arvoram em vozes e intérpretes de uma cultura que não entendem. “Esses políticos criaram uma falácia denominada fundamentalismo islâmico. Algo como um Islã bom e um Islã mau. Isso não existe. Há apenas um Islã (significa submissão), aquele dos oradores das mesquitas que vociferam horríveis sermões contra os judeus e os cristãos. Daí que o uso de nossa terminologia e vocabulário para abordar temas como democracia ou fundamentalismo equivale a falar sobre futebol usando termos de beisebol. Para falar com o Islã, você precisa usar o idioma do Islã”, acentua o historiador.

Sharon lembra ainda que nestas guerras de civilizações são muito utilizados os artifícios do tipo cessar-fogo ou acordos de paz , como instruiu Maomé (570-632) que usou desta tática em Hudaybiya (em 628). Neste local ele firmou um tratado de paz de 10 anos com a tribo Quraish que vivia na cidade de Meca. Em dois anos quebrou a promessa e marchou com 10 mil soldados sobre a cidade. Tal fato histórico, aliás, foi mencionado por Yasser Arafat, quando semanas depois do Acordo de Oslo (1994) ele se justificou em uma mesquita na África do Sul. À época, o professor Sharon lecionava na universidade de Witwarestrand, em Joanesburgo, e gravou o discurso em que Arafat pedia desculpas pela sua assinatura no documento, dizendo: “Vocês acham que eu poderia assinar algo com os judeus contrário ao que dizem as regras do Islã? Não foi assim. Eu fiz exatamente o que o profeta Maomé fez”. Para Sharon, Arafat estava simplesmente falando: “Lembrem-se da história de Hudaybiya”.

Tratados não são permanentes

O provérbio árabe - palavras não pagam impostos - define bem as características das negociações utilizadas pelos muçulmanos e que devem ser entendidas da seguinte forma: “tratados não são permanentes”. Sharon conta que aconselhou o ministro Begin a não ser o primeiro a falar sobre as propostas de Israel, em qualquer acordo ou tratado de paz com os árabes, porque eles seguem o exemplo do califa muçulmano Ali Ibn Abu Talib - primo e genro de Maomé e mártir dos xiitas - que, em uma contenda em Damasco, no século VII, fez o inimigo falar primeiro e assim conheceu os seus planos, dando a impressão de uma concordância que, mais adiante, não se concretizou.

Nem tudo é negociável

No artigo "Doormat Policy" (2010) o professor Sharon qualifica de débil a política diplomática de Israel em relação aos árabes/palestinos porque não assegura plenas condições de segurança para a população do país. "É preciso parar de dizer que tudo é negociável, quando se sabe que é inconcebível libertar terrorristas assassinos assumidos". Segundo Sharon, " se você se comporta como um capacho, considera a si mesmo um capacho, e deixa os outros o tratarem como um capacho, então você provavelmente deve ser um capacho."

A fé Bahá´í em Israel

Em conversa pelo telefone, em 2007, Moshé Sharon contou que jamais foi convidado para realizar palestras no Brasil ou em outro país da América Latina. Desde 1999 ele preside o Centro de Estudos Bahá’í, na Universidade de Jerusalém.

(Na foto, o santuário Bahá´í, em Haifa, no Monte Carmel, declarado patrimônio da humanidade pela Unesco)
Nascido em Israel, Sharon é o primeiro judeu a dirigir a área de história e desenvolvimento desta crença oriental e pacifista (originária do Irã), que possui 5 milhões de seguidores em 200 países (somente na Índia são mais de 2 milhões). No Brasil estima-se que existem 57 mil adeptos.

Lamentavelmente, os seguidores da fé Bahá`í ( cerca de 300 mil ) estão sendo perseguidos pelo regime islâmico do Irã. Desde 2008, 7 líderes bahá´is, sendo duas mulheres, estão detidos e em agosto de 2010 eles foram condenados a 20 anos de encarceramento.

Linha de frente contra o terrorismo

Repetindo o que vem dizendo em seminários acadêmicos na Europa e nos Estados Unidos, Sharon destaca que Israel está na linha de frente nesta batalha de civilizações, mas também precisa da ajuda das nações do Ocidente, porque no momento em que o radicalismo muçulmano se apropriar do controle de armas de destruição em massa – químicas, biológicas e atômicas – estas serão implacavelmente usadas.

Apesar dos alertas de Moshé Sharon projetarem um futuro inquietante para o nosso planeta, a grande mídia teima em se ater a fatos correntes sem se aprofundar no cerne da questão. Talvez pela sua condição de judeu-israelense, muitos jornalistas e intelectuais, instintivamente, façam um pré-julgamento de seus estudos.

Entretanto, alguns pesquisadores de religiões monoteístas e observadores da cultura islâmica já citam o especialista israelense como importante fonte de referência. É o caso do teólogo Samuele Bacchiocchi, doutor em História Cristã, com 15 livros publicados. Formado pela Pontifical Gregorian University, de Roma, e mestre de Teologia da Andrews University, em Michigan, Samuele introduziu os conceitos de Moshé Sharon em suas conferências e também no artigo “Reflexões sobre Terrorismo e Intolerância”. É dele a seguinte frase:
“Lamentavelmente, os repórteres que cobrem o conflito entre Israel e os palestinos/árabes não oferecem quaisquer lampejos sobre quais são as forças ideológicas em ação por trás destas guerras”.


Na foto, Albert Einstein no campus da Universidade Hebraica de Jerusalém. O cientista foi um dos fundadores da instituição, em 1925, e ministrou a sua aula inaugural.

sábado, 11 de setembro de 2010

Lula de volta ao futuro


por Sheila Sacks

Em fevereiro de 2009, mais de um ano e meio atrás, uma frase do presidente Lula na inauguração de uma obra do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em uma favela do Rio de Janeiro desencadeou na mídia uma série de comentários ácidos. A inauguração da obra – uma escola na favela de Manguinhos – foi considerada eleitoreira devido ao ar festivo e ao entusiasmo dos discursos que naturalmente fazem parte desse tipo de evento.

De lá para cá, pouca coisa mudou em termos de popularidade do presidente apesar das percepções e análises desfavoráveis de colunistas e editorialistas. Quanto às obras do PAC nas favelas (urbanização e saneamento; ampliação das vias de acesso com planos inclinados, elevadores e teleférico; e a construção de moradias, escolas, creches, quadras de esportes, praças, áreas de lazer e postos de policiamento – as UPPs), o trabalho já começa a ser visto e entendido pela população como necessário para a implementação da paz e da segurança nas cidades.
Erroneamente, muitos julgam que a finalidade última das obras é a plena erradicação do tráfico de drogas, de armas e de outros ilícitos nesses redutos pobres. Mas o que o programa visa, efetivamente, é levar a cidadania aos seus moradores, abrindo espaço para o poder do Estado e as leis constituídas serem aplicados nas comunidades.


Mal urbano que atinge as maiores cidades do mundo, o negócio das drogas deve, sim, ser enfrentado e combatido onde estiver, das favelas aos bairros das zonas sul, norte e oeste do Rio de Janeiro. Trabalhar com o objetivo de melhorar as condições gerais das favelas tem sido uma forma inteligente adotada pelo Estado no sentido de se promover a paz social, gerando um benéfico clima de satisfação e esperança naqueles que até então se sentiam ignorados pelos agentes públicos ( na foto, o Complexo esportivo da Rocinha).


Por outro lado, os moradores dos bairros adjacentes às favelas também logo irão sentir os resultados dessa política de inclusão social que fixa direitos e deveres a uma parcela da população descompromissada com certos aspectos básicos de uma sociedade. Com a instalação de serviços de coleta de lixo, água, luz, telefone, internet, tv a cabo e outras benfeitorias, serão cobradas taxas de pagamento ainda que inferiores às convencionais. Uma forma de aprendizado e de conscientização da cidadania que cria novos parâmetros de comportamento e de convivência social.

Esse e outros aspectos da vida nacional levaram o correspondente do jornal New York Times, Larry Rohter, que viveu oito anos no Brasil (1999 a 2007), a afirmar, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo (4/9/2010), do interesse crescente que o país desperta nos americanos. Autor do recém-lançado “Brazil on the Rise” (Brasil em ascenção), ele já se prepara para uma maratona de palestras sobre o nosso país em várias cidades norte-americanas. Segundo Rohter o país passou por um processo de profundas mudanças e há uma curiosidade em saber mais sobre o Brasil. “O livro visa ao futuro”, explica o jornalista para quem o presidente Lula é peça fundamental nesse cenário que irá se descortinar após as eleições de outubro, quaisquer que sejam os resultados das urnas.


Frente as inovadoras mudanças de foco que estavam ocorrendo em 2009 com as obras nas favelas, escrevi naquela ocasião o artigo “O PAC de todos nós”, publicado no site Observatório da Imprensa (23.02.2009). No texto inseri o presidente Lula na máxima de Wittgenstein: “As fronteiras de minha linguagem são as fronteiras do meu universo.” Porque tendo o Brasil e os brasileiros como o seu universo prioritário, Lula sempre esteve mais perto do futuro do que a grande maioria de seus colegas políticos ( na foto, interior da biblioteca de Manguinhos).

O PAC DE TODOS NÓS

Embalado por uma aprovação que já atinge a notável marca de 84%, segundo pesquisa do instituto mineiro Sensus divulgada no início de fevereiro de 2009, o presidente Lula parece estar caminhando para uma impensável unanimidade, em se tratando de político brasileiro. Ancorado por um carisma pessoal que, indubitavelmente, agrada e seduz uma imensa parcela da população nacional, pela sua natural facilidade de enfocar e verbalizar, com simplicidade, pontos importantes do cotidiano e do imaginário da vida das pessoas, Lula superou-se, mais uma vez, em uma inauguração no Rio de Janeiro, ao traduzir, de forma idealista e sensível, a nobre missão dos líderes e do poder público.

Com o rosto suado e em mangas de camisa, o presidente empolgou a plateia, sob um forte sol de meio-dia, composta de operários do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), de jovens atendidos por programas sociais e de moradores da área da favela de Manguinhos, na zona norte da cidade, ao condicionar a diretriz e a prioridade do trabalho da administração pública para os mais carentes e necessitados.

No mesmo dia da publicação dos índices que atestavam a sua popularidade (3/02/2009) e acompanhado pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e pelo prefeito carioca, Eduardo Paes, Lula foi categórico: "A única razão para ser prefeito, governador ou presidente é governar para os mais pobres." A frase simples e, em certo sentido, óbvia, reverberou pelas redações de jornais e foi devidamente registrada pelas editorias nos títulos e leads de dezenas de matérias publicadas no day after do acontecimento.

Os ricos e o Estado

Ainda que não primasse pelo ineditismo, a mensagem esbanjou um vibrante entusiasmo, soando simultaneamente trivial e surpreendente, face às experiências negativas correntes e recorrentes no uso do dinheiro público. Dado o pano de fundo do evento – um antigo prédio de suprimentos do exército transformado em um garboso colégio público de ensino médio com capacidade para atender 1.500 alunos e grupos de adultos para alfabetização –, as palavras do presidente singularmente transcenderam o evidente aspecto social da obra, alcançando uma dimensão algo filosófica e muito bem-vinda. Como já havia percebido o austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), um dos mais instigantes filósofos do século 20, os aspectos das coisas que mais nos sensibilizam, ou que julgamos importantes, quase sempre ficam escondidos devido à sua simplicidade e familiaridade. Daí que enfocar o comum e o notório em um linguajar popular em praça pública pode ter lá as suas conseqüências.

Primeira obra do PAC na comunidade de Manguinhos (40 mil moradores), a nova escola também provocou suspiros de prazer nos convidados e visitantes surpreendidos com o inesperado clima de montanha disseminado pelos potentes aparelhos de ar condicionado instalados nas salas de aula e laboratórios, um equipamento pouco usual em se tratando de colégio público. Chamando a atenção para o fato, Lula prosseguiu em seu discurso, defendendo esse tipo de investimento (uma escola "de primeiro mundo") como importante instrumento de combate à criminalidade nas comunidades carentes, recomendando ainda às autoridades presentes a intensificarem o foco e as ações nesse segmento da população, visto que, na sua avaliação, os ricos precisam pouco do Estado.

"Precoce ânsia político-eleitoral"

Observa-se que o conteúdo das frases presidenciais exaladas no ardor do acontecimento incorpora uma espécie de racionalidade ética das mais elogiáveis e uma intencionalidade meritória que tenderia a conduzir à apreciação positiva de todos. Entretanto, aos analistas políticos, colunistas e editorialistas curtidos no impiedoso contexto da mídia do século 21 – reflexo pragmático de um mundo confuso, desconfiado e irascível –, essas mensagens foram absorvidas de forma reversa, compondo-se em ilusórios jogos de palavras vãs e de ardilosas encenações lingüísticas.

Jornalistas conceituados e brilhantes em suas argumentações, como Merval Pereira e Miriam Leitão (O Globo), Dora Kramer (Estado de S. Paulo) e Villas-Bôas Corrêa (Jornal do Brasil), imediatamente analisaram com dureza o aparato daquele evento e de outros semelhantes ligados ao PAC, comparando as afirmações do presidente, sua confiança, otimismo e o conjunto de suas ações, a um espetáculo encenado com vistas às eleições de 2010 e, portando, eleitoreiro e desprovido de um valor genuíno.

Para Merval Pereira, "ao lado da retórica de palanque de Lula, há também os projetos de palanque que, se criam a falsa impressão de que muita coisa está sendo feita, podem acabar se revelando ineficientes para ajudar a sair da crise" ("Política de risco", em 5/2/2009). Já Miriam Leitão considerou que "o PAC não tem o tamanho que dizem, a maior parte do número é fumaça. E, no que tem de verdadeiro, ele é, em muitos casos, uma ameaça, por ser planejado e executado com uma visão retrógrada". ("Os Ilusionistas", em 5/2/2009). No artigo "Lula desconfia do esquema que armou" (7.2.2009), Villas-Bôas destaca a imagem de Lula na TV "transpirando por todos os poros, a camisa amarfanhada e com manchas de suor, cabelos desgrenhados e os exageros de indignação e da eloqüência, na safra de improvisos que assinala a retomada da campanha na hora certa ou precipitada, como a inauguração da primeira obra do PAC em Manguinhos, no Rio", passando a impressão de insegurança "de quem nunca erra e sabe tudo". E, por último, no editorial de O Globo intitulado "Mau Uso" (12/2/2009), critica-se "a precoce ânsia político-eleitoral do governo" e "o agressivo plano de marketing" em prol da "candidata oficial". "Nesse vale-tudo", alerta o jornal, "turbinam-se estatísticas do PAC, montam-se palanques em inaugurações – algumas risíveis..."

O fetiche da palavra

Embora na comunicação se pressuponha que as palavras possam ser compreendidas por todos da mesma maneira, estão aí exemplos que demonstram que o seu significado é variável e se refere menos aos objetos que representam e mais ao uso que se faz delas, como já deduzia Wittgenstein na obra Investigações Filosóficas (1953). Em face disso, o filósofo britânico George Edward Moore (1873-1958), mestre e amigo de Wittgenstein, tinha a preocupação de escrever longas introduções em vários de seus artigos, para deixar claro em que sentido não queria que fossem entendidos os principais termos usados e as principais teses defendidas em seus textos.

No caso das frases entusiastas de Lula em relação às obras do PAC, preexiste uma vivência de ações, fatos e emoções positivas experimentadas e presenciadas pelo presidente que favorecem a sua empolgação verbal. Como assinala o aforismo de Wittgenstein "as fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo". E esse universo, tratando-se do Rio de Janeiro, representa, entre outras ações, a implantação de um sistema de teleférico com 4 quilômetros de extensão, no Complexo do Alemão – um conjunto de sete favelas na zona norte – que vai mudar a vida de 95 mil pessoas. Muitas delas, idosas, doentes e deficientes, incapacitadas de chegar até o asfalto para receber atendimento médico necessário.

No morro Dona Marta, na zona sul, o chamado plano inclinado, o bondinho percorrendo cinco estações – desde o alto da comunidade até as ruas do bairro de Botafogo – já é uma realidade para os seus moradores. Uma obra que propiciou à menina Indiana, de 13 anos, portadora da síndrome de West (forma grave de epilepsia em crianças), a retomada do indispensável tratamento médico interrompido devido às difíceis condições de acesso existentes no local.

Vale, pois, o presidente comemorar com o fetiche da palavra essa e outras histórias de dificuldades (que a pobreza é pródiga em gerar) superadas pela intervenção de um poder público afinado com a realidade das grandes questões sociais. À revelia e sob a visão interpretativa de renomados cardeais da mídia.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A eterna primavera de Casimiro de Abreu



por Sheila Sacks

A uma hora e meia de carro do centro do Rio de Janeiro, na direção norte, existe um município que leva o nome de um poeta brasileiro. Trata-se de Casimiro de Abreu, uma pequena localidade na Baixada Litorânea, com 28 mil habitantes, e propícia para o ecoturismo e o esporte de aventura pelas suas belas e íngremes trilhas que atravessam a frondosa vegetação, as altas cachoeiras que deságuam nos vales floridos e os rios encrespados que correm em meio as rochas e as montanhas da Mata Atlântica.

Nesse cenário majestoso nasceu, há mais de 170 anos, aquele que seria o primeiro autor de um best-seller nacional no campo da poesia. Lançado em 7 de setembro de 1859, o livro intitulado “Primaveras” ganhou uma tiragem de mil exemplares (incomum à época, quando as cópias não chegavam a trezentos) e rapidamente se esgotou.

Os poemas do garoto de 20 anos, nascido às margens do Rio São João, no município fluminense que hoje leva o seu nome, encantaram leitores e arregimentou centenas de admiradores nos saraus literários que reuniam intelectuais e amantes das letras. Também a imprensa brasileira derramou-se em elogios ao poeta. Até em Portugal foram lançadas duas edições sucessivas, na década de 1860. Mas, a tuberculose que o levou à morte antes de completar 21 anos, privou o poeta de usufruir a consagração e a popularidade advindas de seus versos delicados.

Para toda a vida

Figura literária incluída na grade escolar, Casimiro de Abreu (1839-1860) apresenta-se a grande maioria dos estudantes de forma acadêmica e ilustrativa como um item a mais na pauta de estudos curriculares. Entretanto, muitos jovens tocados pelo lirismo dos versos acabam abrindo uma imperceptível fresta em sua memória emocional, conduzindo consigo, em sua caminhada pela vida, o frescor daquelas rimas aprendidas na juventude.

Em 1985 coube ao festejado jornalista e escritor Rubem Braga (1913-1990) editar uma coletânea com a seleção dos melhores poemas de Casimiro de Abreu. Interessante notar é que ambos, o poeta romântico e o cronista capixaba, considerado por muitos o melhor no gênero desde Machado de Assis (1839-1908), escreviam de forma lírica, mas em linguagem acessível, sobre a aventura do cotidiano, os sons e as cores da natureza e principalmente as vertigens das emoções e dos sentimentos comuns a todas as pessoas.

Uma janela aberta

Essa simplicidade de linguagem é realçada na apresentação do livro de Braga, para quem Casimiro foi um dos retratos mais perfeitos do estilo de uma época: “Era como uma janela aberta numa sala fechada havia muitos anos. O frescor e a espontaneidade dessa poesia, o lirismo simples, os namoricos ingênuos e levemente maliciosos, a melancolia e a certeza da morte prematura”. Aliás, o uso inspirado de palavras corriqueiras em temáticas simples e universais é recorrente em textos de ícones da literatura mundial, como Luís Vaz de Camões (1524-1580), aclamado o maior dos poetas da língua portuguesa. Rubem Braga cita o verso “a grande dor das coisas que passaram” como exemplo da genialidade poética do narrador de Os Lusíadas, a grande epopeia da navegação heroica do reino de Portugal.

O gênero cálido e amoroso de Casimiro também foi abordado por outro grande nome de nossa literatura. Em seu primeiro livro de prosa, “Confissões de Minas” (1944), o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) observa a capacidade do jovem autor romântico de se comunicar com o leitor de forma a atingir o âmago de seus mais profundos sentimentos. No ensaio intitulado “No Jardim Público de Casimiro”, Drummond usa um termo passível de interpretações em sua análise crítica. Diz ele: “O encanto de Casimiro de Abreu está em sua tocante vulgaridade. Nenhum sentimento nele se diferencia dos sentimentos gerais que visitam qualquer espécie de homem, de qualquer classe, em qualquer país. Em sua poesia tudo é comum a todos”. Mais adiante, Drummond completa: “O segredo de dizer coisas tristes sem envenenar muito a vida faz de Casimiro um parente de todos nós”.

Momentos mais importantes

Ainda em “Confissões de Minas”, o poeta de Itabira (MG) faz um relevante paralelo entre a poesia e a prosa, exaltando a singularidade da primeira e a sua inegável predileção por essa forma literária. Para Drummond, apesar de a prosa ser a linguagem de todos os instantes, a linguagem da poesia marca os instantes “mais densos e importantes da existência”. Foi o que vez com pureza e doçura Casimiro de Abreu em sua curta vida. Nos quatro anos que passou em Portugal (1853 a 1857) ele eternizou os sítios de sua infância, o afeto filial e o cenário de um país de paisagens deslumbrantes e acolhedoras.

Filho de um comerciante português, o poeta não teve uma esmerada formação cultural porque o pai o queria trabalhando em seus negócios. Mas, à revelia da vontade paterna, Casimiro mesmo na atividade comercial encontrava tempo para se dedicar à literatura. Em Lisboa, aos 17 anos, desenvolveu seus dons poéticos, exaltando as belezas de sua pátria distante. Em 1857, na volta ao Rio, publica textos na imprensa da época. Adoecendo, passa uma temporada em Nova Friburgo e, não tendo ocorrido melhora, retorna a São João da Barra, aonde vem a falecer prematuramente do chamado “mal dos poetas”.

Repetindo sentimentos

Entretanto, seus versos simples e sonoros se eternizam na memória e nas vozes de seus compatriotas, ainda que ao longo do tempo uma fatia da intelectualidade nativa mostre-se incomodada com uma possível falta de técnica e esmero lingüísticos de sua poesia impregnada de juventude e espontaneidade. Mas, relembrando G.K. Chesterton (1874-1936), o brilhante e profícuo escritor inglês, cuja obra influenciou líderes de movimentos sociais como Mahatma Gandhi (Índia) e Martin Luther King (Estados Unidos), “toda a verdade é um lugar-comum”. Dito que Carlos Drummond, em seu livro “A Retórica do Silêncio” (1979), confirma ao afirmar que “o poeta trabalha sempre a mesma obra, repetindo sentimentos”. Logo, o possível desmerecimento à obra de Casimiro advinda de sua capacidade de exprimir, de forma popular, as mesmas emoções primárias registradas em versões mais eruditas por outros poetas, seria uma visão preconceituosa, consequência direta da própria formação pessoal e cultural de cada indivíduo.

Quanto ao saudosismo e a recorrente ode ao passado encontrados nos versos de Casimiro, vale citar outro expoente da literatura brasileira, o escritor Guimarães Rosa (1908-1967), que na sua obra máxima “Grande Sertão-Veredas”, faz uma referência ao tempo “recordado” através de um dos personagens: “Tem horas antigas que ficam muito mais perto da gente do que outras, de recente data”. Trata-se do tempo psicológico, entendido como memória, um tempo sobre o qual o homem ainda é capaz de ordenar, diferentemente do tempo cronológico, que avança incontrolável às nossas vontades. Para o poeta Percy Shelley (1792-1822), romântico inglês que faleceu aos 29 anos, “a poesia é o registro dos melhores e mais felizes momentos dos melhores e dos mais felizes espíritos”.

Via de acesso

Aliás, o tempo também é a matéria-prima da poesia para o escritor mexicano Octavio Paz (1914-1998), prêmio Nobel de Literatura em 1990. Em seu ensaio “O Arco e a Lira” (1956), Paz afirma que “a poesia nada é se não tempo, ritmo perpetuamente criador". O poema seria “a via de acesso ao tempo puro”, ao momento imortalizado pela palavra. Paz também acredita que o poeta e o leitor são personagens de uma mesma trama, cabendo ao segundo decifrar e se encantar com o ritmo, a cadência e os sons da mensagem de seu criador. “Cada leitor procura algo no poema. E não é insólito que o encontre: já o trazia dentro de si”. Diante disso, explica-se a aceitação e a acessibilidade dos versos de Casimiro de Abreu, imersos em humana e comovente espiral de sentimentos.

Quanto à releitura feita pela literatura modernista, na primeira metade do século XX, e, mais recentemente por estudiosos contemporâneos, no que concerne ao estilo algo ingênuo, simples, subjetivo, sentimental dos poetas ultra-românticos, e em especial de Casimiro de Abreu (cuja expressão “aurora da minha vida”, designando a infância, já faz parte do inventário popular), classificando-o de ultrapassado e seus poemas de “mero devaneio poético”, vale citar mais uma vez Octavio Paz: “Quando um poeta adquire um estilo, uma maneira, deixa de ser um poeta e se converte em construtor de artefatos literários. Os estilos nascem, crescem e morrem. Os poemas permanecem.”

Versos imortais

Daí que a partir de algumas palavras encantadas, a poesia de Casimiro renasce a cada dia, através do tempo, reascendendo a chama das emoções básicas de todo o ser humano. Como, por exemplo, quando fala no amor filial, expresso nos versos “Eu choro e soluço por quem me chamava/ - Oh filho querido do meu coração!”; ou no primaveril entusiasmo da mocidade que canta “Não era belo, Maria/ Aquele tempo de amores/ Quando o mundo nos sorria/ Quando a terra era só flores/ Da vida na primavera?” ; ou mesmo na doce e melancólica saudade das paisagens natais, sussurradas em Eu nasci além dos mares/ Os meus lares/ Meus amores ficam !”; e na pura musicalidade lírica de "Oh! Que saudades que tenho/ da aurora da minha vida,/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais!”

Na crônica “Salão dos Românticos”, publicada no jornal Folha de São Paulo, em 2001, o escritor, jornalista e imortal Carlos Heitor Cony, 84 anos, faz uma defesa bem-humorada dos poetas românticos, que possuem um sala especial na Academia Brasileira de Letras. Segundo Cony, “não fosse o romantismo ficaríamos atrelados ao classicismo das arcádias, à pomposidade do verso burilado que tem o equivalente cinematográfico nos efeitos especiais. Sem falar nos poemas-piadas, a partir de 1922, tidos como vanguarda da vanguarda”.

Para o autor de “A Casa do Poeta Trágico” (1997) “o homem, qualquer homem, é uma casa habitada por um poeta e foram os românticos, na prosa e no verso, que colocaram em nossas letras, as palmeiras, os índios, as praias selvagens, o sabiá, as borboletas de asas azuis, a juriti. Enfim, o cheiro e o gosto de nossa gente”.

A casa de Casimiro

Em 2009, o governo estadual promoveu a restauração do imóvel onde o poeta viveu boa parte de sua breve vida. Situada na Praça das Primaveras, à margem do Rio São João, a casa do século 19 tinha sido transformada em museu em 1957 e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em 1974. Ponto de atração turística mais visitado do município, cuja identidade cultural está intimamente ligada à imagem do poeta e de sua poesia, a recuperação arquitetônica da casa e de seu entorno foi ansiosamente aguardada pela população local. Isso porque, à parte a exuberante paisagem e os atrativos dos esportes radicais praticados em seus rios e matas, a curiosidade e o interesse dos brasileiros, e em especial dos estudantes, em conhecer o berço natal de um dos maiores poetas brasileiros – estar na casa em que o poeta viveu e registrou as suas emoções, percorrendo os cenários imortalizados em seus poemas - ainda são os mais intensos motores a impulsionar o turismo na cidade.
Também em 2009, em homenagem aos 150 anos da publicação do livro “Primaveras”, o Correio Brasileiro emitiu um selo alusivo à data.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A Engenharia sem fronteiras do século 21

por Sheila Sacks

(na foto, o elevador do Cantagalo na favela Pavão-Pavãozinho que se conecta com o metrô de Ipanema)


Em 2008 a engenharia mundial escolheu o Brasil para realizar o seu maior encontro. A World Engineers Convention (WEC) reuniu em Brasília 5.200 engenheiros de 40 países para renovar os seus conhecimentos tecnológicos e também debater temas de relevância como a responsabilidade social, a ética, a inclusão e a inovação sem degradação ambiental. 


A convenção foi aberta pelo presidente Lula que na ocasião reafirmou a importância da engenharia na economia, no setor produtivo e no trabalho. O presidente destacou ainda o papel fundamental da profissão na implementação de projetos de transformação das cidades e da imensa capacidade do setor de inovar e criar novas realidades “mesmo sobre os escombros de modelos ultrapassados.”

Como seria natural, o presidente Lula citou o desafio do PAC – o Programa de Aceleração do Crescimento – com suas obras nas áreas de infraestrutura, energia, logística, social e urbana. Uma oportunidade valiosa, segundo ele, para os engenheiros que possuem “a inovação em seu DNA”. Para Lula, vitoriosa será a nação que melhor aproveitar a infinita capacidade humana de reinvenção da vida e de superação de cada problema que se apresenta.


No Rio de Janeiro, o trabalho de engenharia urbana que vem sendo executado nas favelas, através do PAC, introduziu novas diretrizes e padrões de comportamento social nos profissionais engajados no projeto. Engenheiros e arquitetos têm ao seu lado, participando e atuando no dia a dia, técnicos da área social que acompanham o desenrolar das obras nas comunidades. 

Há três anos o programa está promovendo uma inédita ponte de diálogo e entendimento com os moradores das favelas beneficiadas, estimulando os moradores a interagir e contribuir para que as melhorias introduzidas – acessos, novas moradias, escolas, equipamentos esportivos, áreas de lazer etc – sejam compartilhadas e mantidas de forma consciente e com cidadania. ( na foto, apartamentos construídos na favela de Manguinhos)

Esse tipo de abordagem mais humana e social por parte da engenharia, focalizada nos problemas das pessoas e das comunidades menos favorecidas, desabrochou de fato com o PAC das favelas. Seus objetivos se assemelham às propostas da organização internacional “Engenheiros sem Fronteiras” (Engineers Without Borders – EWB), criada em 2000 nos Estados Unidos, e que atualmente está presente em mais de 40 países, inclusive no Brasil. 

Com sede na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, o núcleo brasileiro foi implantado em 2007 na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e transferido para a UFV em junho de 2010. Na visão da organização, a engenharia deve atuar como uma ferramenta a serviço da equidade e da construção da dignidade humana, conciliando o conhecimento acadêmico e as necessidades dos segmentos mais carentes da população. Missão que vem sendo cumprida pelos engenheiros e arquitetos dos órgãos públicos do governo estadual do Rio de Janeiro em relação às obras do PAC, em consonância com as diretrizes do governo federal. 

Portanto, já se afigura lógica a participação brasileira na próxima WEC, a ser realizada em 2011 em Genebra (Suíça), se reportar à experiência e aos resultados positivos da vertendo social e urbana do PAC que tem transformado as condições de vida dos habitantes das favelas. (Na foto, construção do teleférico no Complexo de favelas do Alemão que vai se conectar com a via férrea). 

Propósito Coletivo

A Construção Civil, como tema expositivo, costumeiramente atrai abordagens tecnológicas associadas às inovações e ao aperfeiçoamento de itens técnicos tendo em vista a própria natureza científica e matemática do serviço e a formação específica e especializada de seus profissionais. No campo do trabalho aplicado, a prioridade está centrada na escolha dos materiais, equipamentos e maquinário a serem utilizados nas edificações e que devem, virtuosamente, se conjugarem com a qualidade e a funcionalidade desejáveis, adequando-se ainda a uma planilha de custos e prazos previamente calculada. A meta final é a entrega da obra de acordo com o planejamento e a expectativa iniciais, fatores que se preservados até o concluir dos serviços vão garantir o sucesso da empreitada em termos técnicos e contratuais.

Semelhante ao que ocorre, há décadas, nos projetos endereçados à área privada, agora também no setor público agrega-se à responsabilidade técnica do gestor a variante do compromisso sócioeconômico da cidadania, um valor já percebido e que começa a ser cobrado pelas comunidades beneficiadas pelas obras. Se em tempos passados o responsável por uma obra de edificação pública tinha como única preocupação cumprir, basicamente, os requisitos técnicos e burocráticos que acompanham esse tipo de trabalho, alijando-se de qualquer ação participativa que pudesse ser interpretada como um comprometimento político, hoje essa visão de gestor público está superada face à percepção de que atender bem o propósito coletivo é atribuição básica de uma empresa que gerencia obras com recursos governamentais.


Gestão com motivação e solidariedade


Essa mudança de ótica nas instituições públicas tem ocorrido sob a égide do núcleo governamental que, em anos recentes, vem promovendo a capacitação das gestões e dos gestores com a introdução de modelos contemporâneos de administração e o incremento de cursos e seminários voltados aos novos conceitos, normas, condutas e valores pró-ativos que combinem conhecimento e tecnologia com resultados que incluam a satisfação coletiva. É um novo paradigma de gestão organizacional, pautado no ícone da contínua aprendizagem e aprimoramento, que estimula a incorporação de padrões de cooperação, participação, confiança e de solidariedade.

Especialistas em gestão como Noel Tichy, professor de comportamento organizacional da Universidade de Michigan (EUA) e autor de dezenas de livros sobre o tema, considera de profunda importância motivar os funcionários com uma visão empolgante do trabalho que realizam. Exemplo desse modelo é relatado por Brian Dumaine, antigo editor da revista norte-americana “Fortune”, no artigo “Por que nós trabalhamos?”. 


O autor se vale de uma parábola para reafirmar a importância da noção de “missão” no cotidiano das tarefas. Citando três tipos de operários que executam o mesmo tipo de serviço – talhar uma pedra com um martelo e um cinzel – Dumaine conta que o primeiro se sente frustrado e irritado porque considera aviltante o trabalho que faz. O segundo, ao explicar que talha a pedra para um prédio, não parece nem zangado nem satisfeito. Já o terceiro cantarola feliz e, enquanto esculpe a pedra, responde com orgulho que está construindo uma catedral.

O aprendizado que evolui no cotidiano

Dessa forma, a tradicional noção de capacitação técnica não seria o valor preponderante a atuar na condução do trabalho em uma empresa. O engenheiro aeroespacial Peter Senge, Ph.D. em administração organizacional pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA) e autor do best-seller “A Quinta Disciplina” (1990), aponta o engajamento do profissional “em relação aos princípios, às diretrizes e ao futuro que a empresa pretende criar e alcançar”, como um fator decisivo na evolução sustentável e competitiva da organização. A essa disciplina apreendida pelo grupo funcional ele chama de “visão compartilhada”.

Em entrevista à revista norte-americana “HSM Management” em julho de 1998, Senge questiona alguns mitos corporativos como a excelência de programas de treinamento e a importância da tecnologia de informação. Para ele é preciso pensar no tipo de aprendizado que a tecnologia proporciona, já que uma pessoa pode até receber mais informações graças à tecnologia, mas, se não possuir as capacidades necessárias para aproveitá-las, de nada adiantará, visto que a informação não cria aprendizado. ”Esse é um enorme mal-entendido que afeta muitas pessoas. A informação só pode nos ajudar a aprender alguma coisa que já entendemos.” Quanto aos programas de treinamento, Senge considera que poucos profissionais aprendem as coisas que são realmente importantes nesses programas. “O aprendizado ocorre no dia-a-dia, ao longo do tempo e sempre acontece quando as pessoas estão às voltas com questões essenciais ou se veem diante de desafios.“


O desenvolvimento social como meta


Desde os anos de 1970, o tema da responsabilidade social das empresas em relação às comunidades onde estão inseridas tem sido foco de debates e de uma extensa literatura. Nota-se que a filosofia desse conceito é abrangente, englobando problemas sociais, econômicos e ambientais como pobreza, desemprego, segurança no trabalho, poluição e desmatamento, além de aspectos legais e jurídicos referentes a desapropriações e remoção de moradores, para citar alguns. Porém, o entendimento mais comum do termo é aquele que traduz a responsabilidade social empresarial como um comportamento socialmente responsável, do ponto de vista ético, praticado pelas organizações em suas atividades-fins.

Conhecidos teóricos da administração, como o filósofo e economista de origem austríaca Peter Drucker (1909-2005), e o americano Robert M. Grant, consultor e autor do livro “Análise da Estratégia Contemporânea” (1995), destacam a necessidade de uma gestão de empresas voltada para a evolução da sociedade moderna, já que as empresas são importantes e influentes agentes sociais, e seus gestores são percebidos como lideranças pelas comunidades onde atuam.

Na obra “O Líder do Futuro”, os autores Hesselbein, Goldsmith e Beckard enfocam o lado humanístico na condução empresarial. Para eles, o propósito de uma administração organizacional deve ser o de tornar eficazes os pontos fortes das pessoas e irrelevantes as suas fraquezas. O livro datado de 1996 advoga que as posturas serão mais úteis do que as habilidades e que as futuras lideranças vão flexibilizar as hierarquias, construindo um sistema de trabalho mais fluido: “O maior capital das empresas serão as pessoas que as compõem. Conseguir o comprometimento delas e colher o fruto de suas mentes criadoras deverá ser o grande desafio do século 21.”


A importância de fazer a coisa certa

Esse novo conceito de liderança se afasta do primitivo modelo de liderança carismática, onde não havia espaço para a argumentação ou contestação. Um tipo de comando criticado pelo próprio Drucker - o cultuado guru “inventor da gestão” - que aos 95 anos e em sua última entrevista à imprensa norte-americana (reproduzida pela revista “Exame” em fevereiro de 2006, sob o título “Liderança é Conversa Fiada”) questiona a fixação dos gestores executivos pela formação de líderes: “É um erro afirmar que as escolas de negócios formam líderes. Sua tarefa consiste em formar medíocres competentes para que realizem um trabalho competente Permita-me dizer com toda a sinceridade: não acredito em líderes. Toda essa conversa sobre líderes é uma bobagem muito perigosa. É tudo conversa fiada. Entristece-me constatar que, encerrado o século 20, com líderes como Hitler, Stálin e Mao, as pessoas ainda estejam em busca de quem as comande, apesar de todo esse mau exemplo. Acho que tivemos carisma demais nos últimos 100 anos.”

Autor de mais de 30 livros sobre práticas de administração de empresas, Drucker sempre acreditou que os bons resultados obtidos em uma gestão não advêm das soluções de problemas e sim de se saber explorar as novas oportunidades que se apresentam. Também alertava para a interpretação confusa dos gestores sobre os termos “eficácia – fazer a coisa certa – e eficiência – fazer certo as coisas. Segundo o teórico “é difícil achar algo tão inútil quanto fazer com grande eficiência algo que simplesmente não deveria ser feito”. Mas mesmo assim, assinalava Druker, as ferramentas utilizadas - sobretudo conceitos contábeis e dados - estavam todas voltadas à eficiência. “O que precisamos é de um jeito de identificar áreas de eficácia (de possíveis resultados relevantes) e de um método para nos concentrarmos nelas”, recomendava.


Aprender, desaprender e reaprender

Em 1930, na obra “O Mal-Estar na Civilização”, o fundador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), já especificava as três grandes forças causadoras da infelicidade no ser humano: o próprio corpo “condenado à decadência e à dissolução”; o mundo exterior “repressivo” e “ameaçador”:; e os relacionamentos com os outros, essa última correspondendo à frustração mais difícil de se lidar e adequadamente rotulada de “a fonte social do sofrimento”. Reconhecendo-se a importância das relações pessoais no contexto das organizações, torna-se um desafio para qualquer gestor desenvolver um clima de harmonia, integração e satisfação em sua comunidade funcional, face à diversidade dos “modelos mentais” inerentes a cada indivíduo.

No livro “A Força dos Modelos Mentais” (2005), os consultores norte-americanos Yoram Wind e Colin Crook explicam que esses processos cerebrais e emocionais - frutos de influências familiares, escolares, culturais e religiosas que se somam às experiências e vivências na fase adulta - moldam todos os aspectos da vida de uma pessoa e muitas vezes, no âmbito profissional, eles não acompanham ou não correspondem à realidade do momento, dificultando e limitando a evolução de uma carreira que poderia ser promissora. Caberia, pois, aos profissionais se reestruturarem, desfazendo-se de antigos referenciais e adaptando-se aos novos conceitos de competência e padrões de comportamento sinalizados pela empresa. “Daí a importância de aprender, desaprender e reaprender para construir nossos conhecimentos sob novos paradigmas”, desafiam Wind e Crook.


O trabalho que gera satisfação

Mas, para Freud a insatisfação humana é um fato imutável porque “nascemos com um programa inviável que é atender aos nossos instintos, mas o mundo não o permite”. Ou seja, o homem, faça o que fizer, estará condenado a conviver com a frustração na vida privada e profissional. Logo, gerenciar atividades e serviços da mais alta complexidade e tecnologia empresarial como grandes obras de engenharia também é administrar expectativas pessoais que não devem ser desconsideradas ou minimizadas pelos gestores.

Em uma pesquisa na cidade de Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA), na década de 1950, quando a localidade ainda era um grande pólo siderúrgico e o maior produtor de aço do mundo, o professor e psicólogo Frederick Herzberg, falecido em 2000, realizou entrevistas com 200 engenheiros e contadores de onze indústrias da região para descobrir os fatores que geravam satisfação e insatisfação no ambiente de trabalho. Percebeu que elementos relacionados com o conteúdo do trabalho (motivação), tais como o desenvolvimento do potencial intelectual, a possibilidade de crescimento profissional e a autorrealização, eram fortes indutores para a criação de um clima de satisfação entre os funcionários. Por outro lado constatou que o contexto físico e as condições de trabalho e de remuneração, mesmo apresentando ótimos padrões, não aumentavam o grau de satisfação entre os empregados, apesar de funcionarem como barreiras de contenção contra a insatisfação.

Esse estudo, compilado no livro “A Motivação para o Trabalho” (1959), serviu de base para outras centenas de observações e análises sobre modelos e teorias de administração produzidas ao longo do tempo que têm ajudado a redefinir o conceito de trabalho empresarial nas organizações públicas e privadas, incorporando às atividades econômicas e tecnológicas valores como o capital intelectual, o talento e a inovação, ferramentas insuperáveis na produção de ações que objetivem resultados promissores nos ambientes internos e externos em que atuam.


A singularidade do ser humano

Com essa opção pela gestão social, que se traduz por um gerenciamento mais participativo e solidário, priorizando o diálogo no desenvolvimento das pessoas e no interesse público das comunidades, as empresas vão se aproximando, pouco a pouco e de forma extraordinária, da filosofia política de Hannah Arendt (1906-1975) – uma das mais cultuadas pensadoras do século 20 –, algo impensável há alguns anos. Isso porque para Arendt, autora de “A Condição Humana” (1958), a suposição de que a identidade de uma pessoa transcenda, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir, seria um elemento indispensável da dignidade humana. Juntamente com a assombrosa capacidade de agir do ser humano, da qual, segundo a filósofa, “se pode esperar o inesperado e o infinitamente improvável, independentemente da produção de coisas, porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo”.