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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Chávez no Mercosul:mudança de rumo?


por Sheila Sacks


Hugo Chavez está vencendo a queda de braço com o Parlamento brasileiro e prepara-se para invadir o Mercosul. Após três anos de pressões, ironias e ameaças veladas do líder populista, a comissão do Senado validou o passaporte de ingresso da Venezuela chavista no bloco, com direito a voz, voto e veto nas questões básicas do grupo. Oficializa-se, portanto, nos trópicos do continente americano, um panorâmico palanque público para o venezuelano lançar os seus ataques verbais e propagandísticos contra Israel (país com o qual Chávez cortou relações diplomáticas no início de 2009) e, por acréscimo, promover a desavergonhada apologia ao urânio nuclear do Irã.

Depoimentos de ativistas de direitos humanos eram contrários ao ingresso

Voltando no tempo, em meados de 2009 um fato relevante passou a descoberto pela mídia nacional. Foi a 37ª reunião da Cúpula do Mercosul, ocorrida em Assunção (24 e 25 de julho) e boicotada por Hugo Chávez, inquieto com a demora do nada consta dos congressos do Brasil (Senado) e do Paraguai à investidura da Venezuela bolivariana como membro pleno do bloco, com direito a voto decisório nas questões que envolvem os países do Cone Sul. A aspiração de Chávez, ao solicitar o ingresso no Mercosul, em 2006, jamais foi a de ser um mero participante. Sua intenção era se alçar a membro pleno, para poder comandar ações e ter a visibilidade dos países-membros fundadores: Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.

Interessante é que quinze dias antes da Cúpula de Assunção, em uma dupla audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, dois cidadãos venezuelanos, Leopoldo López, economista formado em Harvard e duas vezes prefeito da cidade de Chacao, perto de Caracas, e o jornalista e ativista de direitos humanos, Gustavo Tovar-Arroyo, deram depoimentos contrários ao ingresso da Venezuela no Mercosul. López em seu testemunho instou os senadores presentes a visitarem a Venezuela (segundo ele o país mais perigoso do continente americano) para verificarem in loco a criminalização das vozes discordantes e a falta de democracia no país, situações que contrariam os princípios fundamentais da Carta do Mercosul.

Há mais de dez anos no poder (foi eleito em dezembro de 1998), Chávez também foi duramente criticado pela ONG Human Rights Watch (HRW), no ano passado. No relatório divulgado em Caracas, em setembro de 2008, a organização denunciou o acentuado e grave enfraquecimento das instituições democráticas na Venezuela, a intolerância política, a violação de direitos básicos, a intimidação e a censura nos meios de comunicação, o controle do Judiciário, a repressão aos opositores do regime e a discriminação em concursos públicos daqueles que não se perfilam com o governo. O documento de 267 páginas enfatiza a perda das liberdades civis ocorrida nessa década, com a limitação do acesso à informação e a elaboração de listas negras, utilizadas para excluir das estatais os servidores que não votem a favor do governo. Em resposta às críticas, Chaves expulsou do território venezuelano o representante da organização, José Miguel Vivanco.

Congresso americano considera Venezuela uma ameaça a países vizinhos

Convidado a participar de uma audiência do Senado,há poucos meses, o jurista Celso Lafer, que foi embaixador do Brasil junto à ONU e ministro das Relações Exteriores, também se posicionou contra o ingresso da Venezuela no Mercosul, assinalando que um dos problemas delicados da atual agenda internacional é justamente a possibilidade da entrada daquele país no bloco. Para Lafer, existe um conflito de concepções entre a Venezuela e os países do Mercosul, principalmente no que se refere à defesa da democracia e dos direitos humanos. Em outro campo, relatório do Congresso americano divulgado em julho deste ano revela a crescente infiltração do narcotráfico e o alto grau de corrupção no governo e exército venezuelanos. O documento constata o nascimento de um ameaçador narcoestado assentado na América Latina com graves conseqüências aos países vizinhos. De acordo ainda com o estudo, a Venezuela de Chávez vem se transformando no principal centro de distribuição de cocaína produzida na Colômbia e no maior porto de embarque da droga para os Estados Unidos (cerca de 17% da produção mundial do produto).

Liberman alerta para o crescimento de movimentos radicais na América do Sul

Confirmando as relações perigosas da Venezuela com o ilícito, armas fabricadas na Suécia e vendidas a Caracas foram encontradas com a guerrilha colombiana das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), expondo ainda mais a estreita ligação de Chávez com grupos armados que desafiam estados democráticos. Situação enfatizada pelo ministro Liberman, em sua passagem este ano pela Argentina, quando destacou, na entrevista ao jornal La Nación, a perigosa influência de Chávez no fortalecimento de movimentos radicais na América do Sul e a ameaça que tais grupos terroristas representam para o Brasil, Argentina e Paraguai, países da Tríplice Fronteira. Entretanto, certo que a Venezuela em breve ganhará o status de membro votante no Mercosul, Hugo Chávez já se articula com os dirigentes de Cuba, Nicarágua, Equador e Bolívia para criar uma espécie de partido político latino-americano para sustentar as suas posições no bloco.

Regimes autoritários em ascensão no Cone Sul

Analisando a situação da América Latina, o cientista político norte-americano Francis Fukuyama - que em seu livro “O Fim da História” (1992) afirma ser a democracia liberal o ponto final da história dos sistemas políticos, descartando o comunismo e a utopia socialista – acusa os dirigentes populistas de países como Venezuela, Equador e Bolívia de promoverem reformas constitucionais com o único objetivo de aumentarem o seu próprio poder, instituindo regimes autoritários. Falando no programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, Fukuyama disse ser difícil imaginar uma sociedade moderna que não precise de algum tipo de democracia, porque esse sistema político é o que mantém o maior índice de variedade cultural e é compatível com a diversidade de idéias, ao contrário das teocracias muçulmanas e outros regimes fechados.

Também para o pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004), a democracia é o governo das leis por excelência, opondo-se a qualquer forma autocrática de governo. Daí que a democracia pode se dar ao luxo de errar porque os procedimentos democráticos permitem corrigir os erros. O que não acontece hoje na autocracia eletiva da Venezuela, segundo Celso Lafer. Lá, não se aplicam as idéias de Bobbio que tem uma frase exemplar sobre a excelência da democracia sobre os outros regimes: “A grande vantagem da democracia é que ela não corta cabeças. Conta cabeças.”

Nesse sentido, a ratificação da Venezuela de Chávez no Mercosul, em breve com novos poderes, se inclui como mais um dado inquietante na atual geografia política do continente.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Borges:uma maneira judaica de narrar histórias


por Sheila Sacks

Lançado em outubro pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o livro “Borges e outros rabinos”, de Lyslei Nascimento, destaca e analisa a forte influência da escrita judaica no modelo narrativo presente nas obras do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), ícone da literatura latino-americana do século XX. Professora de Literatura da UFMG, com pós-doutorado na Universidade de Buenos Aires, Lyslei coordena o Núcleo de Estudos Judaicos da universidade, é editora da revista digital “Arquivo Maaravi”, e responde pelo convênio de intercâmbio discente entre a UFMG e a “Academy of Art and Design“, de Jerusalém. Traduziu o livro “A Ficção Marrana”, do sociólogo argentino Ricardo Forster, e “Planetas sem Boca”, do poeta e ensaísta uruguaio Hugo Achugar. Em 2006 participou, em Israel, de dois seminários internacionais sobre memória e história da Shoah.

Qual é o tema central de “Borges e outros rabinos”?

- Pesquisadores importantes como Saul Sosnowski e Edna Aizenberg já haviam, em excelentes trabalhos, demonstrado a presença da cultura judaica em Borges. Eu, além dessa referência, notei que havia uma dicção judaica, ou seja, um modo de escrever/ler os livros, um culto aos livros, aos comentários.

O que leva Borges a se sentir tão atraído pela tradição judaica?

- A Buenos Aires em que Borges nasceu favoreceu essa atração. Cosmopolita, com imigrantes de todas as partes do mundo, incluindo os judeus, a cidade portenha foi o berço desse envolvimento de Borges com o judaísmo. Não podemos desconsiderar, também, a herança cristã protestante da avó, Fanny Haslam, que, segundo o escritor, sabia toda a Bíblia de cor.

Como você conceituaria a tríade tempo-espaço-memória nas narrativas de Borges?

-Tempo e espaço, em Borges, são relativizados e atravessados pela memória. Desse modo, como no conto "O milagre secreto", um escritor judeu, no momento em que está para ser fuzilado, pede a D-us um tempo para terminar uma peça de teatro. Nesse espaço de morte, cumprido o tempo que é a ele concedido, como ao rei Ezequias, na Bíblia, o escritor pode terminar a obra inacabada, não efetivamente, mas pela memória. O que está em jogo, na literatura borgiana, não é um tempo sagrado, mítico, mas um tempo-espaço da memória. O escritor, no conto, se vale dessa memória para terminar seu trabalho.

Quais as obras de Borges onde mais se evidenciam as influências da mitologia judaica?

- Explicitamente, o conto "O aleph"; o poema "O Golem", considerado por Borges como o mais perfeito de toda a sua obra; as conferências dedicadas à Cabala; os contos sobre o nazismo: "O milagre secreto" e "Deutches Requiem", além de Ema Zunz e os poemas dedicados a Israel. Implicitamente, são incontáveis as referências: à Cabala, aos livros, à Bíblia, à cultura sefaradi, ao Hebraico, a Spínoza... realmente, são infinitas as referências e alusões.

É possível afirmar que Borges fez da mística judaica, com seus signos, alegorias e metáforas, a base de sua inspiração literária?

- Sim, a mística judaica deu a Borges um motivo literário, porque o fazia refletir sobre a linguagem, a criação, o verbo, as palavras e as coisas, como queria Foucault. Mas não só a riqueza da mística judaica, a Cabala, foi inspiração para os contos e poemas de Borges, também a história dos judeus, o amor que nutria por Israel. Quando a Argentina se torna um covil de nacionalistas antissemitas, Borges faz publicar o belíssimo poema "A Israel", reafirmando seu apoio ao Estado judaico. Um exemplo a ser seguido hoje, por todos nós.

O que busca Borges, ao se apropriar e ficcionalizar os mitos judaicos em sua escrita?

- Sobretudo, ele entende a tradição judaica como um acervo, um arquivo de bens culturais, que ele acessa com maestria. A saga judaica, da tribo ao Estado de Israel, são fascinantes, o amor dos judeus aos livros, a forma desse amor de manifestar em lendas, mitos e comentários fascina Borges, que disso tudo se aproxima para criar sua obra inigualável.

domingo, 18 de outubro de 2009

Nostradamus e o enigma do fim dos tempos

por Sheila Sacks



O ano judaico de 5770 se iniciou em setembro de 2009 e, segundo o calendário lunar hebraico, daqui a 231 anos, no ano comum de 2240, terá início o 7° milênio (6001). Até lá, tudo pode acontecer, quando se trata de Nostradamus e suas misteriosas profecias.



Por que tanta gente, quando quer explicar o inexplicável, ainda cita esse obscuro vidente, nascido há 500 anos e que, aparentemente, não dizia coisa com coisa?

O maior fenômeno midiático de todos os tempos tem nome e sobrenome: Michel de Nostradame, codinome Nostradamus. Jogando por terra conceitos básicos da boa comunicação, como a clareza e a objetividade, o mago é o exemplo mais radical de que a desordem redacional dá ibope.

Valendo-se de uma misteriosa e complexa fonte de informações – a mística judaica – Nostradamus fez seu pé-de-meia junto aos poderosos e, de quebra, ganhou uma cadeira cativa na galeria dos notáveis da História.

Interesse sobre o mago aumentou depois do atentado de 11 de setembro

Já virou rotina na mídia: a cada desastre natural, ato de terrorismo ou situação anormal no planeta, uma multidão de curiosos e pseudo-estudiosos surgem do nada para garimpar o seu minuto de fama, divulgando rocambolescas teorias com base em obscuros versos de um médico-astrólogo que viveu na Renascença. Nascido em 1503, na região da Provença, no sul da França, Michel de Nostradame transformou-se no maior fenômeno literário e cibernético de todos os tempos.

Segundo os pesquisadores de plantão, depois do atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro (2001), Nostradamus ganhou status de ídolo, sendo uma das palavras mais acessadas na Web. Também estão contabilizados milhares de livros, cujos autores recontam e interpretam, a seu bel-prazer, os textos do vidente, muitos com a ressalva de que dedicaram 30 a 40 anos de suas vidas em pesquisas full time. Talvez esta seja uma das razões para que muitos afirmem que As Profecias seja o livro mais editado de todos os tempos, depois da Bíblia.

Também conhecida como Centúrias, a obra é uma seqüência de 942 quadras (versos em quatro linhas), agrupadas em conjuntos de 100. O primeiro fascículo foi publicado em 1555, e os demais, dois e três anos depois. Em 1568, dois anos após a morte do vidente, apareceu a versão que chegou até os nossos dias, com a inclusão de mais três centúrias.

Origem judaica de Nostradamus o obrigou a se esconder da Inquisição

Em seu livro “The Jewish Doctor: A Narrative History”, o norte-americano Michael Nevins conta que ambos os avós de Nostradamus eram médicos e o influenciaram em seus estudos de matemática, astrologia, latim, grego e hebraico. “Eles participaram ativamente da educação do neto, introduzindo-o na medicina, no trato com as ervas naturais e, principalmente, no secreto estudo da Cabalá e da alquimia”.

Segundo o autor, que também é médico, quando o rei da França, Luis XII, conhecido como o Pai do Povo (reinou de 1498 a 1515), obrigou os judeus a se converterem, ameaçando com o confisco de bens e a pena de morte, a família de Nostradamus obedeceu, mas secretamente continuou a professar a religião judaica.

Formado pela Universidade de Montpellier, Nostradamus começou a praticar medicina a partir de 1525. Ele viajava bastante, exercendo a sua função de médico, ainda que praticasse uma medicina pouco ortodoxa, com o uso de ervas e plantas. Isso durante o dia, porque quando chegava a noite, ele reunia-se à rede secreta de alquimistas e cabalistas em seus estudos, principalmente no campo da astrologia.

Nevins relata que Nostradamus, em 1537, teve a Inquisição em seu calcanhar e durante seis anos ele vagou pela Europa, sendo os seus passos, durante esta época, pouco conhecidos. Com a publicação de suas primeiras profecias, ele conquista a fama e torna-se o favorito da rainha Catarina de Médici (1519-1589).

Profecias lembram textos de livros hebraicos

Para o francês Robert Benazra, fundador do Cahiers Kabbalah (revista de estudos sobre a mística Judaica, na década de 1980) e pesquisador do Répertoire Chronologique Nostradamique - um compêndio de 700 páginas com documentos e publicações sobre Nostradamus - o estilo literário das profecias lembra os textos do Talmud (comentários rabínicos a Torá/Pentateuco) “sem uma ordem cronológica definida, saltando frequentemente de um tema para outro, tendo por base a associação de ideias e apoiados em um jogo de palavras somente compreensível para os iniciados”.

Benazra destaca que o astrólogo, em carta ao seu filho César, dá a entender que é um estudioso da Cabalá, ao afirmar que inúmeras obras escondidas ao longo do tempo lhe foram reveladas. Os livros seriam o Bahir, o Zohar e o Yetsirah (que fala da criação do mundo), documentos fundamentais para o estudo da Cabalá. Os trabalhos já seriam conhecidos na Provença, nos séculos XIII e XIV, trazidos pelos ancestrais judeus de Nostradamus.

Em outro trecho, o vidente diz textualmente que “as revelações são recebidas em minhas continuadas vigílias noturnas”, em alusão aos estudos da Cabalá que devem ser feitos, preferencialmente, entre a meia-noite e a madrugada. Ele também escreve que o “Deus imortal faz revelações aos profetas através de anjos bons e em meio ao fogo”, lembrando Moisés no deserto e a sarça ardente (Êxodo 3.2).

Já na “Carta a Henrique II, Rei da França” (marido de Catarina de Médici, que reinou de 1547 a 1559), Nostradamus faz um registro da sua hereditariedade ao assinalar o instinto natural recebido de seus antepassados.

Simbolismo da Cabalá é a principal influência

O caráter conservador presente nos escritos e nas observações da quase totalidade dos místicos é apontado pelo renomado historiador e teólogo alemão, Gershom Scholem (1897-1982), como uma característica resultante da própria educação recebida pelo aprendiz e da influência religiosa do seu guia espiritual, que vai inspirá-lo e o conduzir pela vida afora (no caso de Nostradamus, os seus avós).

Na obra “A Cabalá e o seu Simbolismo”, Scholem observa que o místico sempre carrega dentro de si uma herança antiga, permeada de elementos tradicionais, e com símbolos de seu próprio mundo. “Por que um místico cristão sempre tem visões cristãs, e não as de um budista?”, dispara o autor, que lembra ainda que a palavra Cabalá significa tradição recebida.

Outro dado importante é que Nostradamus nasceu no berço europeu da Cabalá, onde por volta de 1180, apareceria o surpreendente documento cabalista conhecido como Sefer Bahir (Livro Luminoso), escrito numa mistura de hebraico e aramaico. Segundo Scholem, esse pequeno livro de 30 a 40 páginas, é um texto difícil, cheio de ditos e teses enigmáticas, que faz afirmações ambíguas acerca do problema do mal, a partir de um dos versículos do Velho Testamento: “Do Norte irromperá o mal sobre todos os habitantes da terra” (Jeremias1:14– Neviim/Profetas).

Coincidentemente, Nostradamus parece ter incorporado este conceito, porque em suas Centúrias o imprevisível sempre vem do norte: “Aparecerá, no céu no norte, um grande cometa” (Cen.II-43) e “De repente ergue-se no céu uma enorme chama, quando os do Norte fizerem a sua experiência” (Cen.VI-97). Scholem também chama a atenção para uma das características mais marcantes entre os primeiros cabalistas que surgiram em Languedoc, na Provença: a sua postura diante do conceito do mal e do demoníaco. Enquanto os filósofos judeus consideravam um problema menor, para os cabalistas o mal sempre foi um assunto dos mais sensíveis e instigantes.

A associação com o número 7 nas Centúrias

Outro livro que exerceu grande influência no misticismo judaico europeu e nos estudiosos da Cabala foi o Sefer há-Temuná (Livro da Configuração ou da Imagem), que surgiu na Catalunha, por volta de 1250. Entre outros temas o texto fala de 7 ciclos cósmicos que durariam, cada um, sete mil anos, ao fim dos quais se somariam mais mil anos, formando o 50º milênio do Jubileu (Santificareis o 50º ano... Levítico 25.10). Cada ciclo seria governado por um atributo diferente de Deus, resultando em períodos mais austeros e outros menos severos.

Observa-se, ainda, que um dos maiores mestres da astrologia na Europa Medieval, o rabino espanhol Abraham ben Meir Ibn Ezra (1089-1167), ensinava que o sistema astrológico de tempo se estruturava sobre 7 ciclos ou planetas (Saturno, Vênus, Júpiter, Mercúrio, Marte, a Lua e o Sol). Cada um influenciaria o mundo por um período de 354 anos e 4 meses, repetindo-se ao término de cada conjunto de ciclos. Médico e erudito, ele viveu na Provença quatro séculos antes do nascimento de Nostradamus, sendo o autor de cerca de 200 livros sobre os mais variados assuntos - religião, filosofia, astronomia, gramática hebraica e matemática -, nove deles voltados à astrologia (o mais conhecido é o Sefer há-Olam – O Livro do Mundo).

A frequência do número 7 nas páginas do Velho Testamento, número associado à própria Criação e a símbolos, eventos e normas básicas do judaísmo, também pode ser observada na obra de Nostradamus. Ele registra o número 7 em várias quadras de suas Centúrias e Presságios: O cometa brilhará por 7 dias... (Cen.II-41); O ano de 1999 e 7 meses... (Cen. X-72); Outro que não o Papa ocupará o trono de São Pedro por 7 meses...(Cen.VIII-93); Um outro (poder) restabelecerá a monarquia até o sétimo milênio... (Cen.I-48); Por semearem a morte, 7 países da Europa serão mortalmente feridos... (Pr. 40); A grande cidade de 7 colunas... (Cen.I-69).

Mas, é na quadra X-74, uma das mais conhecidas e citadas, que se verifica uma clara transposição da mística judaica quanto ao ciclo cósmico, ao ano do Jubileu e a era messiânica (com a ressurreição dos mortos, presente na oração judaica diária da Amidá/18 bênçãos). Os versos da quadra dizem: “No ano do grande sétimo número completado, aparecerá nesta ocasião os jogos da hecatombe, não longe da idade do grande milênio, quando os mortos sairão de suas tumbas”.

Ano judaico começa no 7° mês bíblico

O rabino Chaim Zukerwar – nascido no Uruguai e que estudou a Cabalá em seminários rabínicos de Jerusalém – lembra que o número 7 costuma indicar os ciclos e os processos que abrangem a dobradinha tempo e espaço, aparecendo nos textos judaicos de tradição oral e escrita. Em sua obra “As 3 dimensões da Kabalá”, ele dá alguns exemplos: “Em seis dias Deus criou os céus e a terra, e no sétimo dia descansou (Shabat/sábado); Sete dias formam uma semana; durante 7 dias é celebrada a festa de Pessach (Páscoa judaica/libertação dos judeus no Egito); 7 semanas depois é Shavuot (Outorga da Lei-Torá); Sete meses depois de Pessach é Sucot ( Festa das Cabanas)” etc.

Outro dado interessante é que o ano novo judaico começa no sétimo mês bíblico (1º de Tishrei/setembro-outubro), Rosh Hashaná, ainda que o primeiro mês do calendário judaico seja Nissan (março-abril), quando se comemora a Páscóa judaica. O ano regular tem 354 dias, encerrando-se em 29 de Elul (agosto-setembro).


Previsões se estendem até o ano de 2240

Além dos números, as datas incluídas em seus versos também instigam e alimentam o mito Nostradamus. Benazra assinala que na carta ao “Rei da França”, em 1558, Nostradamus é muito preciso quando escreve que as suas previsões vão de 14 de março de 1557 até o início do 7º milênio, em... 3797 (?), cobrindo um período de 2240 anos.

Para o pesquisador, o vidente utilizou-se do calendário hebraico em seu enigma cronológico: o ano de 1557 corresponderia ao ano hebreu de 5318; o ano de 2001 equivaleria ao 5762; e 2240 ao ano 6001 do calendário judaico, às portas do 7º milênio. Logo, as datas de “julho de 1999” ou “11 de setembro de 2001”, que provocaram acaloradas discussões e controvérsias, estariam inseridas em uma contagem de tempo alheia ao período da chamada Era Comum, já que Nostradamus, como cabalista, não contabilizaria o fim dos dias pelo Novo Testamento.

Uma curiosidade: a médium mais famosa da Inglaterra, Doris Collins (1918-2003), conhecida por reivindicar para si poderes de clarividência e de cura, declarou que conseguiu manter contato com Nostradamus uma única vez. Ele lhe teria dito que, embora tivesse mudado de religião, isso não modificaria o fato real de que nascera judeu (site Cristian Answers.net).

Planetas determinam o destino do homem

No livro “Universo Kabbalístico”, o inglês Z’ev ben Shimon Halevi – escritor e professor de Cabalá - afirma que a astrologia sempre esteve dentro da Cabalá judaica, apesar de muitos negarem o fato. “Até no Talmud há muita discussão sobre a influência do macrocosmo sobre o homem: por exemplo, um rabino chamado Hanina argumentava que os planetas determinavam a sina de uma pessoa, e um outro rabino, conhecido como Rava, declarava que a sorte de um indivíduo não dependeria de merecimento, mas do seu planeta regente”.

Halevi assinala que nesses debates com rabinos contrários à ideia do poder atuante dos astros, ninguém negava a validade das influências celestiais, apenas o seu “governo” sobre Israel. “A palavra mazalot, que significa zodíaco, tem a mesma raiz de mazal (fortuna), e até hoje os judeus usam a expressão mazal tov (boa sorte) nas festas e celebrações, sem se darem conta de que a palavra trata de influências astrológicas”, explica o professor. E mais: o número 77 é o valor da palavra hebraica mazal.

Nostradamus também previu a criação do estado de Israel

Outro tema abordado por Nostradamaus em suas Centúrias diz respeito ao retorno do povo judeu à terra de seus antepassados. O pesquisador Robert Benazra lembra que na quadra III-97 o astrólogo escreveu: “A nova lei ocupará a nova terra, em direção a Síria, Judéia e Palestina, o grande império bárbaro desabará...”. O conteúdo dos versos está em sintonia com as profecias de Zacarias (Eu farei chegar o meu povo e ele permanecerá no centro de Jerusalém – VIII.8) e de Isaías (Nesse dia os sobreviventes de Israel irão voltar- X.20; O Eterno juntará os exilados de Israel e reunirá os dispersos de Judá, dos quatro cantos do mundo- XI.12).

“Deus faz os seres humanos profetizarem”

Estudioso da mística judaica, Nostradamus tinha conhecimento de que, segundo o Talmud, a era dos “Verdadeiros Profetas” tinha chegado ao fim na primeira geração do Segundo Templo (515 antes da Era Comum). Mas, provavelmente, também teria lido “O Guia dos Perplexos”, escrito em 1190 por Maimônides. Na obra, o grande médico e filósofo judeu, nascido na Espanha, expõe os Treze Princípios da Fé e fala sobre a crença de que “Deus faz os seres humanos profetizarem”. Porém, o espírito da verdadeira profecia só retornaria ao povo judeu um pouco antes da Era Messiânica e da total revelação da Torá (o conteúdo dos espaços em branco, entre as palavras, seriam dados a conhecer).

Segundo o rabino Yossef Benzecry, da sinagoga Beit Chabad, não se sabe como nem quando a era do Messias irá chegar. Há uma data-limite que é o ano judaico de 6000 ( ano comum de 2240). Esse prazo se deve ao fato de que cada milênio simboliza um dia da semana e o sétimo dia, o sábado, corresponde ao período de paz, descanso, tranquilidade e espiritualidade. Assim, a Era Messiânica corresponderia ao Milênio Sabático.

Até lá, os Sábios levariam adiante a Tradição e, apesar da inspiração, conhecimento, visões e previsões que poderiam ser dotados, a percepção que se formou foi a de que a cada geração que se sucedia, o nível espiritual tornava-se inferior à anterior, resultando em uma frase muito usada pelos mestres aos seus discípulos: “Se nossos predecessores foram como anjos, nós somos apenas homens”.

Investindo nessa máxima, Nostradamus utilizou com sucesso a sua ancestralidade e os conhecimentos do hebraico e da Cabalá - ainda uma fonte oculta e incompreensível para a maioria das pessoas – para ditar as suas herméticas previsões. O efeito paradoxal e confuso de seus versos funcionou a seu favor e a sua obra tem se mostrado um campo aberto a exercícios de adivinhações e a teorias relacionadas com o fim do mundo.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Eleições na Unesco: Sobre palavras e ações


por Sheila Sacks

Vamos iniciar o nosso texto com uma pergunta: será que o leitor ou alguém de suas relações tinha conhecimento, há algumas semanas, do nome e da nacionalidade do chefe da Unesco, a agência da ONU para Educação, Ciência e Cultura? Pois é, o diplomata japonês Koïchiro Matsuura exerce esse importante cargo de diretor-geral desde 1999 (em 2005 foi reeleito por mais quatro anos) e é quase certo que o grande público continuaria alheio a esse detalhe se não fosse o imbróglio constrangedor de sua sucessão, disputada por um ministro da cultura que já propôs a queima de livros em hebraico.


Considerado favorito, o egípcio Farouq Hosni só perdeu na quinta apuração, de forma apertada, por apenas quatro votos. Ou seja, foi apoiado por 27 dos 58 membros do comitê votante. Uma derrota preocupante, pois revela o tamanho da adesão obtida pelo candidato do Egito, malgrado a imensa repercussão negativa de sua candidatura, expressa de maneira veemente nos meios de comunicação por intelectuais, jornalistas, diplomatas, educadores e até políticos de várias nações.


Em relação à participação do Brasil, a questão desde o início foi tratada publicamente pela diplomacia brasileira como uma troca de favores. Tanto que o chanceler Celso Amorim jamais se sentiu inibido em suas justificativas em prol da candidatura egípcia, ainda que as mesmas fossem questionadas por muitos em razão da flagrante incompatibilidade com o que se convencionou designar de ética e de bons costumes. Envolvido até o pescoço nas tramas de bastidores da geopolítica – um jogo de poder usualmente apresentado pela mídia sob uma artificiosa terminologia que agrega siglas e títulos como G-8, G-20, emergentes, países em desenvolvimento etc. – o ministro já sinalizava, em maio deste ano, o rumo do voto brasileiro.


Tolerância zero para o antissemitismo


Na ocasião, entrevistado pelo jornal Folha de S.Paulo, ele descartou qualquer apoio à candidatura do diplomata Marcio Barbosa, diretor-adjunto da Unesco, por ver nela uma ameaça à pretensão do Rio de Janeiro em sediar a Olimpíada de 2016. Segundo Amorim, "cada candidatura tem um custo para as outras e pode gerar desgaste em termos de apoio", visto que naquele momento o governo brasileiro estava empenhado na candidatura do Rio para abrigar os Jogos Olímpicos: "Fizemos uma opção geopolítica", afirmou o ministro. "O Brasil tem uma aproximação com os países árabes e africanos que apoiam a candidatura egípcia." Uma posição que, aparentemente, colaborou para a conquista das Olimpíadas para o Brasil na votação em Copenhague (2/10), dez dias depois das eleições na Unesco, encerradas em 22 de setembro.


Interessante é que o ministro de Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, que esteve em julho no Brasil e depois estendeu a sua viagem à Argentina, Peru e Colômbia (primeira visita de um ministro do exterior israelense ao Brasil, em 22 anos), também parece advogar uma nova configuração para a política externa de seu país. De acordo com o portal de notícias "Aurora-Israel", o gabinete do ministro elaborou um estudo sigiloso sobre a política externa de Israel praticada no passado em relação ao resto do mundo. "Durante décadas", revela o documento, "Israel se descuidou por completo de regiões como a América Latina, África, Europa Oriental, Bálcãs (sudeste europeu), América Central e sudeste asiático. O Ministério de Relações Exteriores transformou-se em um ministério de relações israelenses-palestinos. E o custo dessa negligência tem sido imenso, evidenciando-se na ONU e em outros centros internacionais." Segundo o site, essa nova política defendida por Lieberman prevê uma maior aproximação com outras potências mundiais e com os países em desenvolvimento, buscando novos parceiros, além da sua já consolidada aliança com os Estados Unidos.


Por outro lado, o estudo também preconiza uma política de "tolerância zero" para comportamentos e expressões de antissemitismo em qualquer parte do mundo.


Vozes importantes não calaram


Mas, voltando à votação na Unesco, que deu uma vitória apertada à diplomata búlgara Irina Bolkova, custa a crer que uma organização composta por 193 países-membros e voltada basicamente para a difusão da educação, principalmente nas nações mais pobres, escapou, por pouco, de ser comandada por um personagem que em um determinado momento de sua vida pública foi capaz de expressar pensamentos tão mórbidos e racistas em relação a uma cultura e a um povo.


Criada em 1945 e sediada em Paris, a Unesco também tem como metas prioritárias contribuir para a paz e a segurança mediante o pluralismo e a diversidade de ideias, a liberdade de imprensa e a salvaguarda do patrimônio cultural dos povos, representada pela preservação das entidades culturais e tradições orais, a promoção de livros e a leitura. E foi exatamente aí, no quesito "livros", que o diplomata egípcio se aproximou do abominável, ao defender perante o parlamento, em 2008, a queima de livros israelenses em todas as bibliotecas de seu país. Não sem antes expelir ofensas inaceitáveis e desrespeitosas ("a cultura israelense é inumana, agressiva, racista, pretensiosa, rouba o que não lhe pertence...") que, se dirigidas a outras nações, talvez resultassem em um penoso impasse diplomático. No entanto, devido ao papel do Egito como mediador em conflitos na região e ao tratado de paz entre os dois países, que vigora há 30 anos, o assunto não teve conseqüências mais sérias.


Importantes vozes, porém, não se calaram diante de tamanho descalabro e repercutiram suas objeções à candidatura do egípcio. A escritora francesa Simone Weil, a primeira mulher a presidir o Parlamento europeu (1979-1982), condenou as declarações de Hosni e pediu o boicote à sua candidatura. O secretário-geral da organização Repórteres Sem Fronteiras, o jornalista Jean-Fraçois Julliard, lembrou que o diplomata egípcio não era um bom candidato para a Unesco porque representava um país que não respeita a liberdade de expressão, principalmente na internet. O combativo Elie Wiesel, prêmio Nobel da Paz de 1986, acompanhado de outros intelectuais, alertou a comunidade internacional, em artigo no jornalLe Monde, sobre o passado e as declarações racistas de Hosny.


Compromissos não podem ser questionados


Contudo, houve uma pessoa em todo esse contexto permeado de palavras de indignação, protestos e manobras de bastidores, a quem coube produzir um gesto raro e admirável, quase um ato de redenção, capaz de sugerir um viés de esperança em um mundo político cada vez mais afastado dos valores morais que devem nortear o comportamento e as ações nas sociedades civilizadas. Trata-se de Manuel Maria Carrilho, embaixador de Portugal na Unesco, que não aceitou as instruções de votar no candidato egípcio, o que obrigou o governo português a enviar outro diplomata a Paris para executar as suas instruções.


Portugal decidiu apoiar Hosni na expectativa de contar com o voto do Egito à sua candidatura a membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU para o biênio 2011-2012. Carrilho, de 58 anos, se recusou a comparecer às últimas votações e a imprensa portuguesa especulou que o diplomata tenha alegado razões de consciência para não votar no egípcio, denunciado por suas declarações antissemitas e por representar um país onde se pratica a censura.


Muito respeitado em Portugal, Carrilho é doutor em Filosofia Contemporânea, escritor, jornalista (foi colunista do jornalLe Monde e manteve uma coluna semanal, até 2008, no jornal Diário de Notícias, um dos mais lidos do país), ministro da Cultura (1995-2000), deputado e vice-presidente do Partido Socialista, de 2002 a 2008. Entre medalhas e condecorações recebidas, destacam-se a Gran Cruz da Ordem de Mérito Civil, do rei da Espanha (1996), a Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco, do governo brasileiro (1997) e o Grand Offícier da Légion d’Honneur, do governo francês (1999).


Nomeado embaixador de Portugal junto à Unesco em janeiro deste ano, o diplomata apoiava a austríaca Benita Férreo-Waldner, da Comissão Européia, instituição que representa e defende os interesses dos países europeus. Esta foi a primeira opção do governo português para o comando da Unesco e quando a comissária retirou a sua candidatura, Portugal passou a apoiar o candidato egípcio. Sobre a diferença de opiniões com Carrilho, o Ministério de Negócios Exteriores de Portugal declarou, em nota à imprensa, que "os compromissos do Estado português são superiores e não podem ser postos em causa". Conforme publicado no matutinoDiário de Notícias, "a decisão de Carrilho de não votar não merece comentários".


Os "destruidores de livros"


Contudo, a sua corajosa atitude se enquadra de forma primorosa no elucidativo pensamento do escritor norte-americano Ernest Hemingway acerca do que seja, de fato, um feito. Dizia o prêmio Nobel de Literatura de 1954: "Jamais confunda movimento com ação."


Vale lembrar ainda que o que estava em jogo, prioritariamente, era a mudança do comando da mais importante e respeitada organização internacional de fomento à educação e cultura, bastião da luta contra o preconceito e a censura nos meios de comunicação. Bem mais do que eleger, por exemplo, um síndico de prédio que, mesmo assim, se deseja que tenha bons antecedentes. A retórica de amenizar os pensamentos explicitados pelo candidato egípcio com artifícios do tipo de que "não foi bem isso que ele quis dizer" e que "a declaração foi retirada de seu contexto original" consiste em argumentações escapistas que não convencem. Na realidade, as palavras devem sem manipuladas com cuidado, pois são mais poderosas que bombas atômicas. Conselho da época de 1930, da britânica Pearl Strachan Hurd, que continua a valer neste século 21.


Estimular, através das palavras, uma prática condenável que a humanidade deseja crer que jamais será ressuscitada, é uma afronta à inteligência e à sensibilidade das pessoas de bem. O filósofo e poeta alemão Heinrich Heine já escrevia, lá pelos idos de 1820, que aqueles que se mostram dispostos a queimar livros acabam, cedo ou tarde, por queimar homens. Palavras proféticas, tendo em vista que, um século mais tarde, livros de grandes autores como Freud, Marx, Einstein, Mann, Zweig, Remarque e o próprio Heine arderam em fogueiras públicas nas principais cidades da Alemanha, precedendo a tragédia do Holocausto.


Em seu livro História Universal da Destruição dos Livros (2006), o venezuelano Fernando Baez aponta o ódio, o medo, a soberba, a intolerância e a sede de poder como os motivos que animam os chamados "destruidores de livros" a seguir adiante. "Na verdade, a intenção deles nunca foi destruir o objeto em si, mas o que este representa – o vínculo com a memória, o patrimônio de ideias de toda uma civilização."

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Quando a fé remove montanhas

por Sheila Sacks

A história de uma amizade que mudou o mundo

"Quando eu era jovem costumava admirar as pessoas inteligentes, com a idade passei a admirar as pessoas de bom coração" (Heschel) 


Bradando por justiça e liberdade, os anos 1960 adentraram pela história de uma maneira atrevida e rebelde que sacudiu as estruturas do establishment social e cultural do planeta. Arrebanhando intelectuais, universitários, artistas, profissionais liberais, religiosos, políticos e ativistas em geral, a luta pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos incendiou mentes e corações, mobilizou jovens e sacudiu todo o continente americano.

Somando-se a tal desafio, outras batalhas titânicas foram travadas naquela década conturbada, com coragem e lucidez, por uma geração iluminada. Como a façanha de dizer “não”, em determinado momento, à guerra do Vietnã, e participar dos esforços para erradicar, por completo, no seio da Igreja Católica, um conceito milenar e preconceituoso contra os judeus. O que foi feito no Concílio Vaticano II, através da Encíclica "Nostra Aetate".

Em todos esses combates onde o entusiasmo, a tenacidade e a perseverança se apresentavam como condições básicas para qualquer militância atingir o seu objetivo, um homem do livro e da fé destacou-se com a sua presença indelével, despertando encantamento e admiração naqueles que dele se acercavam.

De família ortodoxa e natural da Polônia, Abraham Joshua Heschel (1907-1972) era filósofo, professor, escritor e rabino. Em 1963, quando se encontrou pela primeira vez com o reverendo Martin Luther King, Heschel já tinha escrito a maioria de seus livros, dentre eles os quatro mais conhecidos: “Os Profetas”, “O Shabat” (sábado), “O Homem não está Só” e “Deus em Busca do Homem”.

Black Zion

No ensaio escrito por Susannah Heschel sobre o seu pai e incluído no livro “Black Zion: African-American Religious Encounters with Judaism” (2000) - que trata das relações culturais e religiosas dos negros norte-americanos com o Judaísmo - são realçadas a afeição, a amizade e a convergência de ideias que uniam esses dois gigantes de seu tempo. “Ambos, Heschel e King, buscavam as imagens do Êxodus para despertar suas audiências para o grave problema do racismo”, conta Susannah.

Foi o que aconteceu na conferência Nacional de Religião e Raça realizada em Chicago, em janeiro de 1963, que reuniu judeus e cristãos em torno de temas como a discriminação e o preconceito. Na ocasião, Heschel inicia o seu discurso comparando o dia presente à história bíblica de Moisés e o Faraó: “O resultado daquela primeira assembleia não se completou”, alerta Heschel, “porque o Faraó ainda não capitulou". E afirma: "Na realidade foi mais fácil para as crianças de Israel atravessar o Mar Vermelho do que está sendo para os nossos irmãos afro-americanos cruzarem certos campus universitários.”


Convidado por John F. Kennedy para um encontro na Casa Branca, Heschel faz um apelo para que o presidente convoque as lideranças espirituais do país para um maior engajamento pessoal nas questões dos Direitos Civis: “Eu proponho que o presidente dos Estados Unidos declare estado de emergência moral”, enfatizou o rabino, “já que nós permaneceremos em falta com Deus enquanto a humilhação aos negros persistir”.


Em março de 1965, Heschel e King caminham juntos na emblemática marcha realizada no estado de Alabama (depois de duas tentativas abortadas pelas forças policiais), um dos mais segregacionistas do país. Durante cinco dias eles percorrem os 71 quilômetros que separam a cidade de Selma à capital Montgomery, à frente de uma multidão que chega a 25 mil pessoas, para defender o sagrado direito do voto da população negra. “O contrário do bem não é o mal, e sim a indiferença”, argumenta Heschel. “Em uma sociedade livre, alguns são culpados, mas todos são responsáveis.”

Vietnã

Naquele mesmo ano Heschel funda o movimento antibelicista “Clergy and Laymen Concerned About Vietnam (CALCAV)”, que congrega religiosos e leigos que se opõem à guerra no Sudeste Asiático. Com a parceria do teólogo cristão John C. Bennett e do pastor luterano Richard Neuhaus, o grupo discursa em universidades, sinagogas e igrejas, clamando pelo fim do conflito no Vietnã. “Se hoje é difícil parar com a guerra, amanhã será muito mais difícil ”, protesta Heshel.

Em janeiro de 1967, ao final do primeiro encontro nacional da organização, em Washington, e na presença dos 2.500 representantes de 47 estados, Heschel lê o documento que resume o pensamento e a disposição dos participantes: “Chega um tempo em que o silêncio soa como traição. Esse tempo está entre nós e tem relação com o Vietnã.” A filha de Heschel conta da angústia do pai acerca do problema: “Frequentemente eu o via no meio da noite, incapaz de dormir. A guerra o afligia cruelmente.”

A mensagem e a mobilização do CALCAV sensibiliza Luther King. Ele ingressa oficialmente no movimento pela paz e faz um pronunciamento emocionado, ao lado de Heschel, em Nova York. Assumindo publicamente o seu engajamento, King louva a missão dos companheiros, dizendo-se profundamente solidário com os objetivos e o trabalho realizado: “Estou aqui esta noite porque a minha consciência não me deu outra escolha. É tempo de romper o silêncio... mesmo não sendo fácil assumir a tarefa de se opor a uma política de governo, especialmente em tempo de guerra.”

Vaticano II

Heschel também tem uma atuação única em outra missão singular: preparar um texto sobre os tópicos antijudaicos na liturgia católica, a pedido da instituição judaica “American Jewish Commitee”, e ir a Roma para se encontrar com o Cardeal Augustin Bea, que supervisionava o texto da Encíclica " Nostra Aetate" acerca das relações da Igreja com as outras religiões. Entre 1962 e 1965, período em que se realiza o Conselho Vaticano II, Heschel participa de várias audiências de trabalho com o Papa Paulo VI, ajudando-o a pavimentar o caminho das novas relações entre judeus e católicos.

Em uma de suas correspondências enviadas ao Vaticano, Heschel é contundente em relação ao parágrafo sobre a conversão: “A mensagem que considera os judeus candidatos à conversão e que proclama que o destino do Judaísmo é o desaparecimento, soa abominável para os judeus de todo o mundo. E como tenho seguidamente declarado para as lideranças do Vaticano, se eu me deparar com a alternativa da conversão ou a morte, eu escolho Auschwitz, sem problema.”

Anos depois, em 1971, quando Heschel viaja à Itália para uma série de conferências, ele revê Paulo VI em uma audiência reservada. Em seu diário, Heschel deixa registrado: “Quando o Papa me viu ele sorriu alegremente, com a face radiante. Apertou a minha mão com ambas as mãos, gesto que repetiu algumas vezes durante o encontro. Disse que havia lido os meus livros e que os mesmos eram muito espirituais e belos, e que os católicos deveriam lê-los. Disse ainda para que eu continuasse a escrever mais livros, acrescentando que tinha conhecimento da importante influência que meus escritos exerciam sobre os jovens.”

Profetas como exemplo

O estudo da vida dos profetas bíblicos de Israel fez com que Heschel partilhasse o seu tempo espiritual com os necessitados e injustiçados. Um dia antes de sua morte, em meio ao frio e a neve, ele permaneceu de pé durante horas, em frente a uma prisão, aguardando a liberação de um companheiro ativista - um sacerdote católico. Era dezembro e Haschel tinha 65 anos.

Filho de rabino, Heschel nasceu em Varsóvia e estudou em uma Yeshiva (seminário rabínico). Obteve o grau de Doutor em Filosofia na Universidade de Berlim e completou sua formação religiosa em “Hochschule”, a academia alemã de altos estudos judaicos. Em 1940, junto com outros intelectuais judeus que fugiam do horror nazista, encontrou refúgio nos Estados Unidos. Seus esforços, porém, para resgatar seus familiares da Polônia foram infrutíferos. Perdeu a mãe viúva e as três irmãs no Holocausto (nos campos de morte de Treblinka e de Auschwitz). Nunca mais retornou à Polônia e à Alemanha, “pois cada pedra e cada árvore traziam lembranças”.

Professor de Ética Judaica e Misticismo, por mais de 25 anos, no “Jewish Theological Seminary of América”, em Nova York, ele visitou Israel em 1967, depois da Guerra dos Seis Dias. Ao retornar aos Estados Unidos ele publica o livro “Israel: an echo of Eternity” e emocionado confessa que não tinha ideia do quão intensamente sentia-se ligado a sua ancestralidade.

Valor do tempo

No conjunto de sua obra encontramos amplos temas recorrentes que tratam do significado da fé, da divindade das ações e da sacralidade do tempo. Ele afirmava que qualquer ação é um teste porque é nas ações que o homem toma consciência de seu poder de destruir ou de criar alegria. “O coração se revela no que o homem realiza, no que ele faz.”

Heschel também separa a piedade da fé, argumentando que existem atos de piedade sem fé, já que esta pressupõe uma ligação com Deus. Quanto ao aspecto sagrado do tempo, o sábado ou shabat seria a materialização do santificado, “pois este dia representa a eternidade dentro do tempo”. Para o filósofo, a fascinação do homem pela grandiosidade do espaço e pelos objetos que pode ver e tocar – aos quais intitula de realidade – o afasta da verdadeira conquista espiritual que só o entendimento da sublimidade do tempo é capaz de proporcionar: “O resultado desta nossa consciência dos objetos é nossa cegueira a toda a realidade que, de início, não se identifica como um objeto. Ela se mostra óbvia em nossa compreensão de tempo, que não sendo um objeto palpável, parece carecer de realidade.”

Entretanto, acentua Heschel, a própria Bíblia preocupa-se mais com o tempo do que com o espaço: "Ela vê o mundo na dimensão do tempo. Presta mais atenção às gerações, aos eventos do que aos países e às coisas; preocupa-se mais com a história do que com a geografia. O tempo é o coração da existência."

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Lula, o embaixador do Brasil


por Sheila Sacks 

Primeiro foram os balangandãs e a brejeirice de Carmem Miranda, a pequena notável, que nos anos de 1940 encantaram a América romântica dos musicais da Metro e da Fox. Depois foi a vez de Pelé, o camisa 10, tornar-se o rei do futebol e deslumbrar o mundo com seus dribles e jogadas nos campos da Europa. Já na era globalizada surge Paulo Coelho, o mago, cujos livros de autoconhecimento e de simbologias espirituais são traduzidos em mais de 60 idiomas e se vendem aos milhões até em praças editoriais da Malásia e da Macedônia.

Agora, nesta primeira década do século 21, um novo ícone made in Brazil vem emergindo na mídia mundial, angariando simpatia e marcando presença nos mais variados encontros de cúpulas do planeta. Posando ao lado de líderes das mais diferentes tendências políticas, exibindo trajes típicos dos locais visitados e presenteando os seus anfitriões com camisas autografadas da seleção brasileira de futebol, o presidente Lula tem roubado a cena em todos os eventos mundiais dos quais participa. Seu jeito simples e bonachão amolece qualquer protocolo e provoca sorrisos e empatia, já que ele é capaz de colocar a nossa tão amada camisa canarinho tanto nas mãos de Barack Obama quanto na de Dai Bingguo, da China, e também apoiar um protesto do Greenpeace pela salvação da Amazônia, no mesmo palco em que é condecorado com o prêmio da Unesco pela busca da paz.

Saída à francesa

Tais procedimentos à margem dos padrões convencionais dos cerimoniais levaram o presidente dos Estados Unidos a afirmar, em tom de brincadeira, em um encontro dos países do G-20 (nações em desenvolvimento) em Londres, que Lula é “o político mais popular da Terra”. Para em seguida se valer da expressão “this is the guy” (esse é o cara), deixando os ingleses um tanto confusos, já que o termo “guy” também pode ser entendido como bizarro. Mas, o presidente dos EUA não encerrou por aí as suas gentilezas. Dias depois da premiação de Lula, ocorrida em Paris, Obama se encontrou novamente com o presidente brasileiro, desta vez na Itália, para as reuniões do G-8 ( países mais ricos) e G-5 ( países emergentes), e pediu a Lula para que este intercedesse junto ao Irã, no sentido de que aquele país não utilize energia nuclear para fins bélicos. Um pedido meio esquisito, tratando-se do presidente da mais poderosa nação do mundo e cuja diplomacia possui outros meios para valer a sua vontade. A solicitação, aliás, soou mais como uma censura velada ao atual matiz da política exterior brasileira – que tem priorizado o fomento de relações com países fora do eixo Europa-Estados Unidos – e uma espécie de recado enviesado para que o Brasil saia de cima do muro e se posicione mais claramente em relação a uma das principais dores de cabeça do Ocidente: o Irã nuclear.

Observe-se que as recentes viagens de Lula às nações islâmicas do Cazaquistão (país que tem a maior reserva de urânio do mundo), Líbia (como convidado de honra de Muamar Kadafi, há 40 aos no poder, na Cúpula dos Países Africanos) e emirado de Catar (15% das reservas de gás natural do planeta), local da 2ª Cúpula América do Sul-Países Árabes, se de um lado renderam boas fotos e foram pródigas na produção de imagens favoráveis à personalidade carismática de nosso presidente, também ocasionaram alguns fatos constrangedores, como o da sua saída à francesa no início do banquete em Doha, para evitar ser fotografado ao lado do companheiro de mesa, o ditador do Sudão, Omar al-Bashir, indiciado dias antes por “crimes de guerra” pelo Tribunal Penal Internacional de Haia.

O Presidente das multidões

Quanto ao público interno, tudo leva a crer que cada vez mais se consolida a posição de Lula como o presidente das multidões, título análogo ao exibido pelo cantor carioca Orlando Silva, o cantor das multidões, que brilhou nas décadas de 1940/50. Colabora para isso o jeitão despojado associado a um tempero lingüístico muito pessoal, que não só colore e apimenta as entrevistas e eventos políticos como também incorpora o coletivo, dando cara e voz ao cidadão-urbano de salário achatado - o peão, o operário e o empregado em geral – que, não obstante a sua classe social se mantém atento e informado sobre o que ocorre no Brasil. Uma exposição de 80 fotos ( pinçadas de um total de mais de 2 milhões, informa o jornal O Globo) montada no Rio de Janeiro focaliza esse aspecto da personalidade de Lula, sempre cercado por uma multidão que quer abraçá-lo ou cumprimentá-lo como fosse um amigo de longa data ou uma pessoa da família. “Há uma projeção de cada brasileiro na imagem de Lula”, constata o curador da mostra, Ricardo Van Steen. Opinião que a última pesquisa do Ibope (junho/2009) confirma ao atribuir 80% de aprovação à figura do presidente.

Mas, sem dúvida, o maior abre alas da política social de Lula continua sendo o programa Bolsa-Família, que oferece mensalmente a 11 milhões de brasileiros uma ajuda de custo em dinheiro que varia de 60 a 180 reais. Esse projeto de complementação de renda familiar e redução da pobreza, que pode alçar o presidente brasileiro à chefia do Banco Mundial em 2011 ou levá-lo a um outro posto internacional, foi um dos trunfos de Lula na conquista do prêmio Félix Houphouët-Boigny, da Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (Unesco). Uma láurea que o júri concedeu ao brasileiro “por sua atuação na promoção da paz e da igualdade de direitos”. Na ocasião foi lembrado que um terço dos premiados até hoje – 23 personalidades mundiais -, posteriormente receberam o Nobel da Paz, como os ex-presidentes Nelson Mandela (África do Sul) e Jimmy Carter (Estados Unidos). Um caminho, portanto, que Lula já começa a percorrer em sua trajetória de cidadão do mundo e embaixador honorário do Brasil, por vocação e mérito. Ainda que muita gente duvide.

sábado, 26 de setembro de 2009

Paz para o ano 5770


por Sheila Sacks

As guerras ainda assombram pela dor e sofrimento que causam.

Às vésperas do ano judaico de 5770, uma peregrinação inédita lembrou os 70 anos do início da 2ª Guerra Mundial e do Holocausto. Foi na cidade polonesa de Cracóvia, onde mais de 200 líderes das principais religiões do mundo, na primeira semana de setembro, caminharam sobre o solo empapado de sangue e tragédias dos campos de Auschwitz-Birkenau. Presente ao evento, o rabino Meir Lau, de Tel Aviv (rabino-chefe de Israel durante dez anos), lembrou a conversa que teve, em 1993, com o papa João Paulo II. Na ocasião o papa disse lembrar do avô de Lau caminhando para a sinagoga, aos sábados, sempre rodeado de muitas crianças. Rabino na cidade de Cracóvia onde o papa então servia como bispo, o avô de Lau tinha 47 netos. João Paulo II perguntou quantas dessas crianças sobreviveram ao Holocausto e ouviu que apenas cinco foram salvas. O irmão de 13 anos de Lau e todos os primos pereceram na guerra. O papa também se interessou em saber se o rabino Lau tinha filhos. Sobrevivente do campo de concentração de Buchenwald (foi salvo em 1945, com oito anos de idade) e hoje presidindo o Instituto Yad Vashem que abriga o Museu do Holocausto, em Jerusalém, Lau, de 72 anos, pôde dizer ao papa que sim, tinha filhos e netos, todos vivendo em Israel. E essa resposta, segundo o rabino israelense, seria a expressão de sua revanche às atrocidades do passado. Uma vida familiar plena, assentada na tolerância, na amizade, no amor e na paz.

Uma herança que ninguém quer

No outro extremo, que condições restariam à conduta, ao modo de viver, aos pensamentos e sentimentos daqueles que se dispuseram a violar os preceitos mais básicos da condição humana, exterminando friamente famílias inteiras, deixadas despidas e amontoadas em cubículos injetados de gás letal? O psiquiatra e filósofo austríaco Viktor Frankl, sobrevivente do campo de Auschwitz e falecido em 1997, conta uma história interessante. Quando os aliados libertaram os campos de concentração, duas prisioneiras judias sobreviventes do Holocausto esconderam um oficial da SS, de nome Hoffman, e só concordaram em entregá-lo às autoridades com a condição de que ele não fosse maltratado. Frankl foi testemunha em seu julgamento e, durante algum tempo, manteve correspondência com o oficial, tentando confortá-lo, já que o homem vivia atormentado por sua participação no processo de extermínio implantado pela máquina nazista. Sem dúvida, muitos outros Hoffman que lograram escapar da Justiça se viram presos ao horror de suas memórias odientas. A fuga e o anonimato aparentemente não os puseram a salvo de seus medos, temores e fantasmas, restando a essas pessoas uma sombria e miserável vida acuada de fugitivos da lei. Personagens do limbo da história, execrados pelas gerações posteriores de compatriotas para as quais sobraram uma abominável herança de ódio e um legado de desconforto e vergonha

O silêncio dos que sabiam

Passadas sete décadas do infortúnio do Shoá, o tema já aglutinou uma vastíssima literatura que imortalizou nomes como o da jovem Anne Frank (1929-1945) e do italiano Primo Levi (1919-1987), consagrando ainda figuras do porte do escritor e ativista de direitos humanos Elie Wiesel, de 81 anos, prêmio Nobel da Paz de 1986. É difícil imaginar um outro assunto que nos últimos cinqüenta anos tenha monopolizado todas as gamas de arte e cultura de forma tão intensa e diversificada através de livros memorialistas, romances, ensaios, filmes, peças teatrais, museus, monumentos, esculturas, exposições de pintura, seriados de TV etc.
O rabino Meir Lau, também autor de uma autobiografia que conta a sua experiência no campo de Buchenwald, lembrou aos participantes do encontro em Cracóvia que houve apenas três grupos associados ao monstruoso crime do Holocausto: os nazistas e seus colaboradores, as vítimas, e aqueles que sabiam e não diziam nada. Para esses últimos, muitos ainda vivos, a quantidade estupenda de literatura disponível sobre esse terrível momento histórico expõe de forma brutal o silêncio covarde que ajudou a aniquilar milhões de seres humanos de forma vil e bestial.

A voz do coração

Em outro patamar e com um enfoque diverso, a guerra do Líbano (1982) e demais guerras empreendidas pelo estado de Israel em defesa de sua nacionalidade, têm feito surgir uma geração inquieta e aflita de escritores, artistas e diretores de cinema memorialistas. Dispostos a abrir seus corações ao mundo, o foco de suas atenções é o serviço militar israelense, o exército, as guerras, a perplexidade de uma juventude atada a um destino único em termos de história de perseguições e sobrevivência. Estimulados e adulados pela mídia internacional, são convidados em congressos e bienais, e ganham importantes prêmios em festivais.

É o caso do escritor israelense David Grossman, convidado da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. O festejado intelectual, nos debates e nas entrevistas das quais participou, fez questão de explicitar a íntima ligação de sua literatura com a vivência contínua de um país em guerra. O ato de escrever, segundo ele, funcionaria como uma espécie de redenção, de contradição à guerra que “nacionaliza” e encouraça a própria alma. Uma percepção que também se mostra presente nos filmes israelenses “Valsa com Bashir”, de Ari Folman, e “Lebanon”, de Samuel Maoz, co-produzidos pela França e Alemanha. Ambos de caráter autobiográfico e relacionados às memórias de soldados na guerra do Líbano (1982), os filmes foram criados, segundo seus autores, para exorcizar os medos e culpas dos que enfrentam e sobrevivem às guerras. O primeiro, produzido em 2008, já conquistou o “Globo de Ouro” norte-americano e o César francês (uma espécie de Oscar), e o segundo acaba de ganhar o prêmio máximo no Festival de Veneza de 2009.

Enfatizando a sua simbiose com o filme (‘escrito com as próprias entranhas’) e dedicando o prêmio a todos que se defrontaram com uma guerra e “tiveram de aprender a viver com essa dor”, Moaz, de 47 anos, talvez sem perceber, singularmente reconcilia os dois lados do conflito, um e outro nivelados pela tragédia interior de sobreviverem como reféns de um passado de pesadelo e horror. Esse sentido essencialmente humano da questão que inclui a primorosa qualidade da solidariedade com o sofrimento do seu antagonista, é a autêntica expressão da face judaica, revelada com coragem e generosidade pelo israelense. Uma declaração nada fácil que deveria servir de inspiração aos povos e líderes de nações que estimulam a guerra e o terrorismo. Palavras que iluminam um pouco mais o novo ano de 5770, que se deseja melhor que os anteriores no quesito da paz.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Diga Sim à Vida


por Sheila Sacks
Prisioneiro de um campo de concentração nazista, o austríaco Viktor Frankl teve a sua família exterminada, mas superou a dor e a tragédia de maneira excepcional. Seu livro “Em Busca de Sentido” (Diga Sim à Vida, de Qualquer Maneira) tornou-se um dos mais lidos em todo o mundo.

O personagem de nossa história, Viktor Frankl, faleceu em 1997, aos 92 anos. Precursor da atual literatura de auto-ajuda, o psiquiatra e filósofo austríaco, fundador da Logoterapia – um método original de tratamento psicológico - sobreviveu a Auschwitz e a sua tragédia pessoal, apostando na força da vida, investindo na busca de um propósito e jogando todas as fichas no poder do espírito. Assim ele transcendeu à dor e ao sofrimento e deixou de herança uma terapia que tem ajudado milhões de pessoas a superar o “vazio existencial” (expressão criada por ele), uma epidemia mortal que vem se alastrando, silenciosamente, pelos subterrâneos da alma humana.

Livro da década

No início dos anos 90, uma pesquisa realizada entre os leitores dos Estados Unidos apontou os dez livros que mais influenciaram as suas vidas. No topo da lista não houve surpresa: a Bíblia continuava liderando com facilidade (fato que se repete até os dias de hoje nos EUA). A consulta, conduzida pela prestigiosa instituição norte-americana “Library of Congress” - a maior biblioteca do mundo com um acervo de 29 milhões de livros -, em parceria com o Clube do Livro, também consagrou um texto escrito em 1945 (e somente traduzido para o inglês em 1959) por um médico judeu vienense, intitulado “Man’s Search for Meaning” (Em Busca de Sentido, na edição brasileira). O autor, Viktor Emil Frankl, tinha sobrevivido a três longos e sofridos anos em campos de extermínios nazistas, após os quais descreveu a sua terrível experiência e a de outros prisioneiros submetidos a atrocidades indescritíveis, sob a ótica de um psicólogo. Publicado pela primeira vez em Viena, em 1946, o livro de pouco mais de cem páginas, e escrito em nove dias, trazia uma mensagem estimulante já a partir do título: “Trotzdem já zum Leben sagen” (Diga sim à vida, de qualquer maneira). Espantoso para quem acabara de perder seus entes queridos de modo tão bárbaro: o pai, no campo de Theresienstadt (República Tcheca); a mãe e o irmão caçula, em Auschwitz (Polônia); e a esposa grávida, em Bergen-Belsen (Alemanha).

Junto aos pais

Em sua autobiografia, publicada em 1995, Frankl lembra que teve a oportunidade de escapar ao horror nazista: “Eu esperei alguns anos até obter o visto de imigração para os Estados Unidos. Finalmente, um pouco antes do ataque a Pearl Habor (7/12/1941), fui convidado a ir à embaixada para pegar o meu visto. Aí então, eu hesitei, pois como poderia deixar meus pais para trás? Eu já imaginava qual seria o destino deles: deportação para um campo de concentração. Poderia eu dizer adeus e deixá-los entregues a própria sorte? O visto era pessoal, exclusivo para a minha pessoa”. À época, Frankl tinha 36 anos e era diretor do setor de Neurologia do Hospital Rothschild, tendo trabalhado antes, por quatro anos, no Hospital Geral de Viena, no tratamento de pacientes com tendências ao suicídio. Ele conta que quando chegou em casa naquele dia, encontrou o pai, em lágrimas: “Os nazistas atearam fogo na sinagoga, disse-me, mostrando um pedaço de mármore que ele conseguira salvar. Na peça estava gravada, em dourado, uma única letra hebraica, justamente a letra inicial do quarto Mandamento - Honra teu pai e tua mãe.” Diante disso, Frankl telefonou para a Embaixada Americana e cancelou o visto. “Talvez a decisão que eu tomei já estivesse comigo há muito tempo, e na realidade somente escutei o eco da voz de minha consciência”, concluiu.

Ponto de Vista

O jornalista, escritor e speechwriter (redator de discursos) do presidente George W. Bush, o norte-americano Matthew Scully, observa que Frankl publicou “Em Busca de Sentido” um ano antes do surgimento de “O Diário de Anne Frank” (1947). Ambos os livros ganharam o mundo, mas os autores tiveram destinos distintos. “No caso de Frankl, a sorte o conduziu para uma direção diferente. Depois da perda da esposa no Holocausto, ele casou-se novamente, escreveu outros 32 livros, criou um método de psicoterapia, construiu um instituto em Viena que leva o seu nome, deu palestras ao redor do mundo, e permaneceu vivo para ver o seu livro ser traduzido para 27 idiomas.” Em 2007, a obra já havia atingido a cifra de 12 milhões de exemplares vendidos.

No encontro que teve com Frankl, em Viena, em 1995, o jornalista demonstrou a sua surpresa pelo livro não ser o segundo mais lido na biblioteca do Museu do Holocausto, em Washington, onde “O Diário de Anne Frank” reinava e ainda reina absoluto (24 milhões de cópias em 55 idiomas). Frankl atribuiu o fato ao tom conciliatório que sempre adotou em suas mensagens e que desagradava a muitos: “Em todo o meu livro Em Busca de Sentido você não vai encontrar a palavra ‘judeu’. Eu não acentuei a minha condição de judeu e nem de ter sofrido como um judeu”, afirmou. Na entrevista Frankl também fez questão de igualar a sua dor à de qualquer outro ser humano submetido a uma situação de horror. “Sou 100% contra a tese de culpa coletiva”, enfatizou. “Parto do fundamento de que a culpa, a priori, é individual.” Reforçando essa posição, Frankl já havia dito, em outra ocasião, que mesmo nos estreitos limites de um campo de concentração, ele somente encontrara dois gêneros de pessoas: as decentes e as sem decência. “Nenhuma sociedade está imune aos dois, portanto, havia no campo guardas decentes e prisioneiros sem decência, notadamente os capos, que insultavam e torturavam os seus próprios companheiros em troca de vantagens pessoais.”

Escondendo o inimigo

O antropólogo Richard A.Shweder, escritor, professor e presidente do Comitê de Desenvolvimento Humano da Universidade de Chicago,destaca o fato de que Frank surpreendeu o mundo ao afirmar que o espírito humano encontrava maneiras de alcançar a dignidade mesmo na lama de Auschwitz. “Ele argumentava que um prisioneiro tornava-se digno ou não a partir de uma decisão própria interior, e não somente em conseqüência das condições do campo.” Para Frankl, ninguém melhora ou evolui enxergando-se como vítima. Cada pessoa é capaz de se sobrepor a situações degradantes, “já que a saúde mental está relacionada com as decisões e não com as condições”.

Um fato interessante ilustra esse ponto de vista. Quando os aliados libertaram os campos de concentração, duas prisioneiras judias sobreviventes do Holocausto esconderam um oficial da SS, de nome Hoffman, e só concordaram em entregá-lo às autoridades com a condição de que ele não fosse maltratado. Frankl foi testemunha em seu julgamento e, durante algum tempo, manteve correspondência com o oficial, tentando confortá-lo, já que o homem vivia atormentado por sua participação no processo de extermínio implantado pela máquina nazista.

Conselhos

Frank também lembra em seu livro uma das primeiras recomendações que, recém-chegado a Auschwitz, recebeu de um prisioneiro veterano: “Não tenha medo! Não se amedronte com as seleções! Mas uma coisa eu peço para você... faça a barba diariamente, mesmo que tenha de usar um fragmento de espelho... mesmo que você tenha que dar o seu último pedaço de pão para isso. Você ficará com uma aparência mais jovial e o ato de se barbear dará a sua face mais rubor. Se você quiser sobreviver, só existe um jeito: Mostre-se saudável para o trabalho.”

Já nos momentos de intensa frustração, recorda Frankl, o artifício era orientar os pensamentos para as coisas mais triviais, como, por exemplo, achar um pedaço de arame para substituir o cadarço podre de um sapato. Ele também se forçava a pensar acerca de seu futuro, após a libertação.

Nas escolas

Admirador das teorias de Viktor Frankl e autor de um livro que aborda a crise espiritual nos Estados Unidos (This Unbearable Boredom of Being: The Crisis of Meaning in América, com prefácio de Frankl), o físico Genrich L. Krasko defende a inclusão de “Em Busca do Sentido” no currículo das escolas norte-americanas. Cientista que serviu no “US Army Research Laboratory” e antigo professor no Departamento de Engenharia Nuclear do Instituto de Tecnologia de Cambridge, Krasko acredita que a juventude teria muito a aprender com esse importante texto, principalmente para entender como a vida em um mundo livre - em contraste com o cotidiano dos campos de concentração – é tão confortável e plena. Krasko também destaca o pensamento de Frankl acerca da felicidade, que introduz um ângulo diverso do tradicional: “Frankl defendia que as pessoas mentalmente sãs e equilibradas são aquelas que aceitam seu fardo e não consideram a felicidade um direito líquido e certo. A visão do sofrimento não é um obstáculo para a felicidade, mas freqüentemente o meio indispensável para atingi-la.”

Nas diversas universidades norte-americanas onde lecionou - entre elas a de Harvard – Frankl sempre enfatizava para os seus alunos que cada pessoa deve ir ao encontro de sua missão. “O homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido da vida. Por isso é preciso trabalhar por algo além de si mesmo.”

Nobel da Paz

Viktor Frankl foi professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Medicina de Viena até 1990, quando se aposentou aos 85 anos (ele também praticava o alpinismo e tirou o seu brevê de piloto de aeroplano aos 67 anos). Doutor em Filosofia, Frankl recebeu o título de “Doutor Honoris Causa” em 29 universidades de todo o mundo, entre elas, as federais de Brasília e do Rio Grande do Sul, e a de Haifa (proferiu palestras em 209 faculdades nos cinco continentes). Membro honorário da Academia Austríaca de Ciências e Cidadão Honorário de Viena, Frankl foi considerado pelo “American Journal of Psychiatry”, o mais importante pensador desde Freud e Adler. A Logoterapia ou Análise Existencial - método psicológico criado por Frankl - é conhecida como “A Terceira Escola Vienense de Psicoterapia” (a primeira é a Psicanálise Freudiana e a segunda é a Psicologia Individual de Adler). Pelo conjunto de sua obra, o seu nome foi proposto para o Prêmio Nobel da Paz por iniciativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e pela Faculdade do Texas. Atualmente existem “Institutos Viktor Frankl de Logoterapia” em dezenas de países, inclusive no Brasil e em Israel.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A Cabalá Universal que une os povos


por Sheila Sacks


Se existe uma face de glamour no Judaísmo que atrai e fascina, não há dúvida que seu nome é Cabalá. A filosofia mística da Árvore da Vida está presente em coletâneas de astrologia, numerologia, alquimia, simbologia, quiromancia etc. Também virou acessório esotérico de fórmulas particulares de pensamentos e reflexões que adorna os best-sellers de autoajuda.

A austríaca Ann Williams-Heller é uma dessas personagens que passou toda a sua existência a procura de Deus. A busca metafísica a levou a estudar as grandes religiões ocidentais e orientais. Durante 33 anos, primeiro em Viena e a partir de 1938 nos Estados Unidos, ela se dedicou aos estudos do Hinduísmo, Budismo, Cristianismo e Islamismo, enquanto conduzia a sua bem-sucedida carreira de escritora e conferencista para assuntos de nutrição e alimentação.

Em 1966, com o falecimento do marido, Ann sentiu-se perdida e conta que teve a “sorte” de conhecer uma pessoa que a introduziu nos mistérios da Cabalá. No livro “Cabala, o Caminho da Liberdade Interior”, ela detalha que durante sete anos manteve contatos mensais com um grande mestre metafísico e eminente cabalista que a aceitou como única aluna. Munida de um gravador, Ann registrou esses ensinamentos que trouxeram novas dimensões a sua vida. Estabelecendo como condição primordial que seu nome jamais fosse revelado, o Mestre, assim intitulado pela autora, trouxe luz ao seu questionamento sobre a morte e a natureza do amor.

Outra vida

Mergulhando no provérbio talmúdico “Se quiseres conhecer o invisível, abre os olhos para o visível”, Ann se empenhou em seguir a orientação de seu Mestre. “Aprendi a enxergar o que nunca vira e a escutar o que jamais ouvira. Estar desperta e consciente de que todo acontecimento, no encadeamento da vida, tem dois significados interligados: o individual e o cósmico”.

Aos poucos Ann foi abandonando o que chamou do “outro eu”, a requisitada e bem-remunerada profissional de nutrição, escritora de vários livros e festejada conferencista. Na busca do “eu real”, aquele que se esconde por trás da aparência ilusória da matéria, ela encontrou na Cabalá modelos de pensamentos que incorporavam a Lei das Correspondências (o universo imprime seu reflexo sobre o ser humano e vice-versa) e até a teoria da sincronicidade (ou coincidência significativa) do psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961), que acreditava na existência de uma conexão sutil, não causal, entre a mente interior e o mundo externo.

Em 1974, o líder da Ordem Sufi do Ocidente, hoje “The Sufi Order International”, Pir (líder) Vilayat Inayat Khan (1916-2004), convida Ann para que ensine a Cabalá para os grupos sufis nos Estados Unidos e na França. A Ordem fundada em 1919, em Paris, pelo seu pai, o indiano Hazrat Inayat Khan, embora difundindo a filosofia mística e contemplativa do Islã, considerou importante trazer ao conhecimento de seus iniciados a sabedoria judaica da Cabalá. Para os que se surpreendiam, Ann explicava que os opostos, na realidade, são complementos dissimulados, aliados e jamais inimigos. Assim como as duas margens de um rio, eles funcionariam como dois aspectos ou efeitos de uma causa única.

Durante os quinze anos seguintes, Ann (que recebeu o nome sufi de Rabi-a al`Adawiyya) ministrou seminários e workshops sobre a Cabalá para os jovens sufis e para aqueles a quem ela carinhosamente denominou de “jovens de coração” ou “buscadores da eternidade”. Pessoas das mais diferentes formações e religiões que compartilham encantadas a grande aventura de encontrar respostas significativas para os enigmas da existência. Citando novamente do Mestre, ela escrevia: “Leve o passado com você! O ontem é sempre o seu mestre. Sempre será o seu companheiro de hoje e o seu amigo de amanhã. O hoje é sempre o amanhã que você construiu ontem.”
Quando faleceu em 1989, os originais de seu único livro sobre a Cabalá ainda estavam com a editora que o publicou no ano seguinte.

O Rabino dos Sufis

Com 5 milhões de adeptos agrupados em 800 Ordens em todo o mundo ( com predominância na Índia, Paquistão, Bangladesh, Egito, Sudão, China, Marrocos e Turquia), o Sufismo se utiliza da meditação, da música e da dança para alcançar a paz espiritual. Confundindo-se com os primórdios do Islã e muitas vezes discriminados nos países muçulmanos, os sufis acreditam que o profeta Maomé foi um deles, pela vida simples que levava e pelo hábito de se retirar de Meca para meditar em uma caverna. No Ocidente, essa filosofia oriental é praticada em países como a Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Estados Unidos, onde a Ordem Sufi Internacional mantém mais de 100 centros de estudos. Seu líder espiritual, Zia Inayat Khan, de 38 anos, é amigo pessoal do rabino Zalman Schachter-Shalomi, do movimento renovador judaico.

Muito ligado aos círculos sufis e consagrado shaykh (sheik), o rabino Zalman, 85 anos, é professor emérito de Psicologia da Religião e Misticismo Judaico da “Temple University”, na Filadélfia, e por uma década foi Mestre de Sabedoria Universal na Universidade Naropa, no Colorado, uma instituição fundada por monges budistas tibetanos que concilia estudos superiores com práticas de contemplação e meditação. Uma das principais figuras do movimento para a “revitalização” do Judaísmo, Zalman teve atuação destacada como professor e orientador do seminário rabínico “The Reconstructionist Rabbinical College”, na Pensilvânia, que já ordenou em torno de 80 rabinos (homens e mulheres).

Autor de vários livros sobre a Cabalá e o Chassidismo (movimento ortodoxo religioso nascido na Polônia, no século 18, que prioriza a fé com devoção, espiritualidade e alegria, e a prática da piedade e da bondade), o rabino publicou há quatro anos a obra “Jewish with Feeling” (Judeu com Sentimento), onde traça a rota para o exercício de um judaísmo com alma, menos mecânico e mais conectado ao coração.

Polonês de nascimento e formado rabino em 1947 pela Ieshivá ortodoxa Lubavitch, de Nova York, Zalman estudou e manteve diálogo com outras religiões orientais, viajando até a Índia, em 1990, para se encontrar com o Dalai Lama (documentado no livro ‘Os Judeus no Lótus’, de Rodger Kamenetz). Junto com o professor de Sufismo e Chassidismo, Netanel Miles-Yepez, fundou a ordem sufi-chassídica “The Inayaty-Maimuni Tariqat”, única ordem sufi do mundo formada por judeus. No início de 2009, Zalman (ou Pir Zalman Sulayman Schachter-Shalomi, na Ordem sufi) e Netanel lançaram o livro de histórias e ensinamentos chassídicos “A Heart Afire: Stories and Teaching of Early Hasidic Masters”.
Em abril deste ano, mais uma vez integrou a lista dos 50 mais influentes rabinos do Estados Unidos, anualmente editada pela revista Newsweek.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Panamá: sem exército e ....casher


por Sheila Sacks
Banhada pelos oceanos Atlântico e Pacífico e dispondo de florestas exuberantes, montanhas, lagos, cachoeiras e praias ao longo do mar do Caribe, a república do Panamá, na América Central, não se reduz apenas a um belíssimo roteiro turístico de paisagens tropicais. Ponte de terra que une as duas Américas e com 25% do seu território protegido por parques nacionais (viveiro de milhares de espécies de aves e abrigo de uma estupenda fauna animal onde se destacam mais de 300 tipos de répteis e anfíbios), o país também apresenta características inéditas: não possui exército (extinto em 1989); teve dois presidentes judeus, fato único na diáspora, Max Shalom Delvalle (1964-68) e seu sobrinho Eric Delvalle Maduro (1987-88); e concentra uma comunidade judaica que apresenta índice zero de assimilação e o maior crescimento populacional, em termos percentuais, fora do estado de Israel.

Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, a zona antiga da cidade do Panamá recebeu os primeiros judeus vindos da Síria (Alepo), Marrocos, Turquia e Grécia ainda nos meados do século 19. Essa pequena comunidade, que em 1876 cria a sua primeira instituição, a Kol Shearit Israel, e que até há poucos anos não passava de 2 mil pessoas, a partir do final de 1999, data em que o Panamá assume o controle do canal (inaugurado em 1913 e gerido pelos Estados Unidos por mais de 85 anos ), começa a crescer, chegando hoje perto de 10 mil membros, sendo 7 mil sefaraditas e mais de mil oriundos do estado de Israel. Porém, a imigração não parou com os sabras, também judeus vindos da Argentina, Uruguai, Venezuela e Colômbia se instalaram no Panamá.

Na opinião do rabino Eliahu Birnbaum, da organização Shavei Israel (que acolhe os descendentes de anussim – judeus convertidos à força pela Inquisição), se não existe assimilação e casamentos mistos na comunidade judaica panamenha, esse contexto se deve basicamente ao trabalho incansável do rabino ortodoxo Sion Levy, falecido em novembro de 2008. Nascido em Jerusalém, o religioso desempenhou suas funções de líder espiritual da comunidade sefaradita do Panamá durante 55 anos e, segundo alguns, com um certo rigor. Em sua grande maioria residindo na capital e seguindo os preceitos do Kashrut, as famílias judaicas desfrutam de um conjunto de instituições, como sinagogas, escolas judaicas, yeshivá, associações, clubes, supermercados e restaurantes kasher etc, instalados em prédios amplos, modernos e confortáveis. Em sua visita ao Panamá, o rabino Birnbaum se mostrou entusiasmo com o que viu: “Esse é o exemplo de uma comunidade que conta com toda uma infraestrutura judaica, religiosa e educativa, para preservar a existência judaica.” E reportando-se ao seu último encontro com o rabino Sion Levy, lembrou as palavras que ele disse após mais de meio século de uma vida dedicada à preservação de valores judaicos em terras da América Central: “No Panamá tem tudo o que tem na Terra de Israel, à exceção do Muro das Lamentações.”

Equação complicada

Mas, saindo do Panamá, a situação é bem diferente. Em 2008, a população judaica cresceu 0,05%, embora na diáspora tenha encolhido em 15 mil pessoas. É o que registra a Agência Judaica que também revela que cerca de 11 milhões de norte-americanos que têm pelo menos um avô ou avó de origem judaica já perderam seus vínculos com o judaísmo e não se consideram judeus. Nas últimas três gerações, 55% das uniões de judeus norte-americanos são com pessoas de outras religiões. Já nas antigas repúblicas soviéticas, a assimilação chega a 85%.

Atualmente são 13,3 milhões de judeus no mundo, a mesma população do início do século passado (1914), constata o demógrafo Sergio Della Pergola, da Universidade de Jerusalém. Segundo o especialista, desde o final da 2ª Guerra Mundial, em 1945, a população judaica só cresceu 15% frente a um aumento de 240% da população em geral. Israel, com 5,5 milhões e EUA com 5,3 milhões, são as maiores comunidades judaicas.

Para o presidente da Agência Judaica, Zeev Bielski, o baixo índice de natalidade e a assimilação são ameaças concretas para o judaísmo mundial que enfrenta no presente o desafio de inverter uma equação complicada, mas cada vez mais visível nos grandes centros: a perda da identidade judaica à medida que os judeus se integram de forma positiva nas sociedades em que vivem.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Saudades



Minha saudade maior
vem de tudo que não vivi.
Das terras que não visitei,
das pessoas que não conheci.
Mais que lembrança,
passado é herança.

Viver existindo
sem risco ou gasto,
só sobre o contado,
não vale um vintém furado.
Até a paixão e a loucura,
recontadas,
viram sentimentos comportados.

Vou mudar o curso do rio,
me tornar pescador
da alma incontida.
Como um peixe trazê-la na rede
à tona do dia.

Usar por arte e ofício
a espada do esgrimista,
pois nas escaramuças da vida
não se brinca em serviço.

Vide Herzl na Suíça
se indispor com a escrita:
tanta viagem não é sina,
é costume, é vício.

Vou arrumar as malas,
voltar de vez para a casa,
mesmo sabendo que uma pátria
não se recebe em salva de prata.

Mas chega de conversa fiada,
a hora é de cair na estrada.
Desafio é desfazer o nó da gravata,
sair porta afora,
romper as amarras.

Ser lavrador sentinela
em um kibutz na Galiléia,
ensinar a mão europeia
o manejo do martelo.

Virar pioneiro na terra
que de certo
só a voz do Eterno.
Dar as costas ao bom senso
que diz que o conforto
é o anseio do corpo.

Participar da odisseia
de florir de rosas o deserto.
Acreditar em mil outras loucuras
que a razão não permite
mas que em Israel é possível
porque a Aliança
existe.

Ter em mim a certeza
de que a vida é uma trajetória ascendente.
No ponto em que eu parar

outro irá começar.