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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Borges:uma maneira judaica de narrar histórias


por Sheila Sacks

Lançado em outubro pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o livro “Borges e outros rabinos”, de Lyslei Nascimento, destaca e analisa a forte influência da escrita judaica no modelo narrativo presente nas obras do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), ícone da literatura latino-americana do século XX. Professora de Literatura da UFMG, com pós-doutorado na Universidade de Buenos Aires, Lyslei coordena o Núcleo de Estudos Judaicos da universidade, é editora da revista digital “Arquivo Maaravi”, e responde pelo convênio de intercâmbio discente entre a UFMG e a “Academy of Art and Design“, de Jerusalém. Traduziu o livro “A Ficção Marrana”, do sociólogo argentino Ricardo Forster, e “Planetas sem Boca”, do poeta e ensaísta uruguaio Hugo Achugar. Em 2006 participou, em Israel, de dois seminários internacionais sobre memória e história da Shoah.

Qual é o tema central de “Borges e outros rabinos”?

- Pesquisadores importantes como Saul Sosnowski e Edna Aizenberg já haviam, em excelentes trabalhos, demonstrado a presença da cultura judaica em Borges. Eu, além dessa referência, notei que havia uma dicção judaica, ou seja, um modo de escrever/ler os livros, um culto aos livros, aos comentários.

O que leva Borges a se sentir tão atraído pela tradição judaica?

- A Buenos Aires em que Borges nasceu favoreceu essa atração. Cosmopolita, com imigrantes de todas as partes do mundo, incluindo os judeus, a cidade portenha foi o berço desse envolvimento de Borges com o judaísmo. Não podemos desconsiderar, também, a herança cristã protestante da avó, Fanny Haslam, que, segundo o escritor, sabia toda a Bíblia de cor.

Como você conceituaria a tríade tempo-espaço-memória nas narrativas de Borges?

-Tempo e espaço, em Borges, são relativizados e atravessados pela memória. Desse modo, como no conto "O milagre secreto", um escritor judeu, no momento em que está para ser fuzilado, pede a D-us um tempo para terminar uma peça de teatro. Nesse espaço de morte, cumprido o tempo que é a ele concedido, como ao rei Ezequias, na Bíblia, o escritor pode terminar a obra inacabada, não efetivamente, mas pela memória. O que está em jogo, na literatura borgiana, não é um tempo sagrado, mítico, mas um tempo-espaço da memória. O escritor, no conto, se vale dessa memória para terminar seu trabalho.

Quais as obras de Borges onde mais se evidenciam as influências da mitologia judaica?

- Explicitamente, o conto "O aleph"; o poema "O Golem", considerado por Borges como o mais perfeito de toda a sua obra; as conferências dedicadas à Cabala; os contos sobre o nazismo: "O milagre secreto" e "Deutches Requiem", além de Ema Zunz e os poemas dedicados a Israel. Implicitamente, são incontáveis as referências: à Cabala, aos livros, à Bíblia, à cultura sefaradi, ao Hebraico, a Spínoza... realmente, são infinitas as referências e alusões.

É possível afirmar que Borges fez da mística judaica, com seus signos, alegorias e metáforas, a base de sua inspiração literária?

- Sim, a mística judaica deu a Borges um motivo literário, porque o fazia refletir sobre a linguagem, a criação, o verbo, as palavras e as coisas, como queria Foucault. Mas não só a riqueza da mística judaica, a Cabala, foi inspiração para os contos e poemas de Borges, também a história dos judeus, o amor que nutria por Israel. Quando a Argentina se torna um covil de nacionalistas antissemitas, Borges faz publicar o belíssimo poema "A Israel", reafirmando seu apoio ao Estado judaico. Um exemplo a ser seguido hoje, por todos nós.

O que busca Borges, ao se apropriar e ficcionalizar os mitos judaicos em sua escrita?

- Sobretudo, ele entende a tradição judaica como um acervo, um arquivo de bens culturais, que ele acessa com maestria. A saga judaica, da tribo ao Estado de Israel, são fascinantes, o amor dos judeus aos livros, a forma desse amor de manifestar em lendas, mitos e comentários fascina Borges, que disso tudo se aproxima para criar sua obra inigualável.