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terça-feira, 5 de abril de 2011

Houve um tempo no Egito - A vida de Henri Curiel

por Sheila Sacks

(atualizado em 2015)


A menos de dois quilômetros da Praça Thair (libertação, em árabe), principal palco dos protestos que resultaram na queda do presidente Hosni Mubarak, em 11 de fevereiro, a ilha verde de Zamalek, com vista sobre os dois afluentes do Nilo, ainda é uma das regiões mais elegantes e aprazíveis do Cairo. Em suas ruas arborizadas se alinham confortáveis residências de classes abastadas, modernos hotéis cinco estrelas, suntuosas embaixadas e movimentados cafés, livrarias, teatros e museus. Esse oásis turístico que passou ao largo dos conflitos que sacudiram o Egito nos primeiros meses de 2011, guarda histórias centenárias por trás das imponentes fachadas das poucas mansões remanescentes das primeiras décadas do século 20. Época em que a nobreza egípcia e a oficialidade britânica frequentavam os salões restritos do Turf Club, jogavam tênis e golf no elitista Sporting Club, e eventualmente eram encontradas em esticadas noturnas no Casino Badia.

Hoje cercado por grades de ferro, o majestoso palacete de 17 quartos construído pelo banqueiro judeu sefardita Daniel Nessim Curiel, em meados de 1930, abriga a embaixada da República da Argélia no endereço Brazil Street nº 14. Entretanto, há mais de 80 anos, quando a Villa Curiel foi projetada na então Hassam Sabry`s Street, suas espaçosas dependências eram ocupadas pela jovem Zefira, esposa de Daniel – que ficou cego aos três anos- e seus dois filhos, Raoul e Henri. Havia um salão de música, outro salão para a coleção de moedas raras do dono da casa e um segundo pavimento de onde se podia contemplar o esplendor do Nilo. A residência servida por uma dezena de empregados estava sempre repleta de convidados, mas raramente oriundos da comunidade judaica. E em 1937 viviam 63.500 judeus nas cidades de Cairo e Alexandria.

Miséria “sem limites” dos egípcios ainda impressiona

A família Curiel havia sido expulsa da Espanha pela Inquisição e alcançado o Egito no final do século 19, via Portugal e depois Itália. O caçula Henri, nascido em 1914, apesar de pertencer a segunda geração dos Curiel no Egito, tinha a nacionalidade italiana e foi educado em um colégio jesuíta francês. Ele cresceu em um Egito ocupado pelos britânicos e tiranizado por uma monarquia feudal, e ainda jovem voltou-se para o marxismo. Porém, coube a ele suceder o pai na direção do banco, enquanto o irmão Raoul seguia para estudar em uma universidade na França. Por sua vez, a mãe de Henri era dona de uma livraria que divulgava autores socialistas, ponto de reunião da intelectualidade egípcia antifascista.

No livro “Um homme à part” (1984), o jornalista e escritor Gilles Perrault  conta que Henri conheceu a tragédia dos camponeses egípcios ao visitar as propriedades de sua família, no delta do Nilo. “Foi na companhia de Rosette Aladjem, que mais tarde se tornaria a sua esposa, que Henri Curiel descobriu a miséria sem limites do povo egípcio. O trabalho de um homem valia menos do que o serviço de uma mula. Crianças de 7 a 13 anos trabalhavam nas fábricas de algodão, em meio à poeira sufocante, sob o jugo de feitores. A esperança de vida girava em torno dos 27 anos e doenças como a tracoma e a malária devastavam a população.”

Situação de extrema pobreza que lamentavelmente ainda persiste no século 21, conforme descrição do jornalista Samy Adghirni, em reportagem para a Folha de São Paulo (01.02.2011). Destacando que parte dos egípcios mais pobres se manteve alheia aos recentes protestos “preocupada só em sobreviver”, o enviado do jornal ao Cairo visitou uma favela assentada em meio a um cemitério, com milhares de pessoas se amontoando em barracos erguidos nos vãos dos túmulos. Sem dinheiro para pagar aluguel, famílias inteiras foram transformando, ao longo do século 20, o cemitério de Majauirun em um labirinto de ruelas onde cada quarteirão é composto por túmulos coletivos. Uma tragédia social que pune um país em que 40% da população ganha menos que 2 dólares ao dia.

A luta por um Egito independente

Em 1943, vivendo sob a monarquia do rei Farouk, Henri Curiel funda o Movimento Egípcio de Libertação Nacional – depois Movimento Democrático de Libertação Nacional (Hadetu) – que vem a se tornar a maior organização comunista do Egito. Os acontecimentos no país durante a 2ª Grande Guerra, com parte da sociedade egípcia se aproximando dos nazistas em reação ao domínio britânico, mostram a Curiel que o anseio por uma pátria independente muitas vezes conduzem as pessoas por caminhos tortuosos.

Decide permanecer no Cairo, apesar de uma grande fatia da comunidade judaica lotar os trens rumo a Jerusalém, atemorizada com a possível invasão dos áfricakorps do general Rommel (a força expedicionária nazista que combatia no Norte da África). Ele adquire a nacionalidade egípcia e começa a aprender o árabe. Mas a derrota egípcia na primeira guerra árabe-israelense, em 1948, muda o seu destino. Centenas de comunistas são presos e Curiel vai para a prisão de Huckstep, onde cumpre pena por 18 meses.

Para o seu companheiro de partido, Raymond Stambouli (1923-2004), a guerra de independência de Israel forçou os comunistas judeus egípcios a se confrontar com a sua identidade e a arcar com as conseqüências políticas desse fato. “A guerra na Palestina pôs fim ao sonho. Nós nos considerávamos egípcios, ainda que muitos nos vissem como estrangeiros. Porém, agora, não éramos estrangeiros, mas judeus, o inimigo, uma potencial quinta coluna. Nenhum de nós havia previsto isso.”


Em 26 de agosto de 1950, Curiel perde a cidadania egípcia e é colocado à força em um navio rumo à Europa. Expulso do país, ele se transforma em um exilado político para o resto da vida. “Ele foi o pai do comunismo egípcio”, escreveu Mohamed Sid-Ahmed, em 1998, no diário de maior circulação do país – Al-Ahram. Escritor, jornalista e por muitos anos editor de política do jornal, Sid-Ahmed (falecido em 2006) lembrou que apesar de Curiel ter sido expulso do Egito, “ele sempre esteve envolvido com os problemas egípcios, sua política interna e o conflito árabe-israelense.”

Ao lado dos argelinos, na Guerra da Independência

Deportado para a Itália com outros militantes expulsos do país, Curiel acaba por se instalar em Paris e reúne em uma associação – o Grupo de Roma - os judeus egípcios comunistas exilados. Tempos depois, se torna um dos homens-chave da Frente Nacional de Libertação da Argélia (FLN), movimento fundado em 1954, no Cairo, por Ahmed Ben Bella, líder da revolução e primeiro presidente da República da Argélia. No Egito, o coronel Gamal Abdel Nasser (1918-1970), que havia deposto Farouk em 1952, fecha as portas a Curiel, não obstante manifestar apoio ao FLN. Impedido de retornar ao Egito, Curiel doa a mansão de Zamalek para sede provisória do governo argelino no Cairo.

Entre 1954 e 1962, no decurso da guerra de independência argelina contra a França, cabe a ele disponibilizar recursos, documentos, cobertura e treinamento aos oficiais e estudantes anticolonialistas, apoiado por um esquema subterrâneo onde se misturam grandes somas não identificadas provenientes da Suíça, a rede árabe do Kremlin, os partidos comunistas europeus, intelectuais socialistas e sacerdotes cristãos.

Em 1960, após interrogatório sobre as suas atividades na FLN, é preso pelo serviço de segurança interno francês (DST) e permanece dois anos encarcerado na prisão de Fresnes, na periferia de Paris. Com o fim da guerra da Argélia é solto e funda a organização Solidarité, de apoio aos movimentos de libertação nacional em países antidemocráticos do Terceiro Mundo.

O militante político de esquerda e jornalista israelense Uri Avnery   fundador do movimento Gush Shalom (Bloco da Paz) e que na Guerra da Independência de Israel, em 1948, foi membro da organização paramilitar Irgun, conheceu Curiel em Paris, no final da década de 1950, quando a guerra na Argélia estava no auge. Curiel sonhava em estabelecer uma conexão argelina-israelense que Avnery considerou totalmente utópica, já que os judeus argelinos portavam identidade francesa e se identificavam completamente com o regime colonialista francês.

No artigo “The silent idealist”, publicado na revista Le Monde Diplomatique (1998), Avnery observa que Curiel era um idealista que jamais se deixou render. “Ele era determinado, jamais levantou a voz e nunca se desesperou. Apesar das inúmeras decepções, ele não desistia. Não se deixava levar pelas emoções e nem permitia que problemas pessoais interferissem em suas decisões. Para mim, Curiel foi um modelo de político idealista. Através de seu exemplo pessoal, ele me ensinou determinação, paciência e perseverança.”

Um dos companheiros de Curiel no “grupo de Roma”, Joseph Hazan, lembra que o fato de ambos terem nascido em um país com um sistema de produção extremamente cínico, em que a exploração do homem pelo homem atingira uma situação degradante, provocou em Curiel uma reação instintiva que permeou sua forma de ser e sua consciência para sempre. “Ele nunca se esqueceu que foi a miséria do povo egípcio que o levou à política.”

Hazan que militava no partido de Curiel tinha nacionalidade francesa e acolheu o amigo quando este procurou abrigo em Paris. Infelizmente, a onda de nacionalismo que se implantou na Argélia, após a saída dos franceses, atingiu em cheio a comunidade judaica, com a edição de decretos discriminatórios, confiscos e perseguições. Mais de 130 mil judeus nascidos na Argélia e portadores de cidadania francesa imigraram para a França e Israel, reduzindo a pó a tradicional comunidade sefardita (judeus originários de Portugal e Espanha) que veio a se formar, a partir do século XIV, em Argel.

Pedindo dinheiro e armas para derrubar o regime de Nasser

De acordo com André Marty (1886-1956), político francês que foi secretário do Partido Comunista na França e chefe das Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola (1936-39), Curiel fez o possível para derrubar Nasser na década de 1950. “Em repetidos encontros com líderes de partidos comunistas europeus, Curiel insistia em solicitar armas e dinheiro para destituir Nasser”, relatou. A crise do Canal de Suez (1956-1957) que envolveu o Egito, Inglaterra, França e Israel havia resultado em mais um traumático êxodo para os judeus egípcios. Vinte e cinco mil foram expulsos, centenas tiveram a prisão decretada e bens e propriedades foram confiscados.

No livro “The Jews of Egypt, 1920-1970”, o professor Michael M.Laskier, do Departamento de História do Oriente Médio da Universidade Bar-Ilan, de Tel Aviv, descreve a dolorosa situação: “A expulsão e fuga tiveram início em larga escala com centenas de pessoas aglomerando-se nos escritórios do rabinato, consulados e embaixadas, procurando conselho, assistência e meios de escapar. O porto de Alexandria e o aeroporto do Cairo ficaram abarrotados de refugiados deixando o país. As dificuldades nos pontos de embarque, com os funcionários do governo confiscando arbitrariamente qualquer coisa que julgassem valiosas, fizeram com que muitas pessoas, diante da confusão, partissem com apenas algumas roupas nas bagagens.” Para o American Jewish Congress (AJC), a atitude de Nasser, em certo sentido, é comparável a de Hitler, pois o intento do coronel egípcio foi destruir a antiga comunidade judaica existente no país, privando-a de seus direitos e de meios de subsistência.

Uma central de ajuda a refugiados e revolucionários

Em 1962, aos 48 anos e após sair da prisão de Frasnes, Curiel amplia suas atividades até então centradas no Egito e na independência da Argélia. Através da organização Solidarité ele promove ajuda financeira e estratégica aos movimentos anticolonialistas de países da África e aos grupos que lutavam contra a Grécia dos coronéis e as ditaduras na Espanha (do general Francisco Franco), Portugal (Oliveira Salazar) e Chile (Augusto Pinochet).

A rede baseada em Paris contava com militantes de origens e filiações diversas, clérigos protestantes, padres católicos, sindicalistas, intelectuais, professores, socialistas e membros do partido comunista. Os seus filiados davam abrigo e proteção aos revolucionários de outras partes do mundo que, em fuga, chegavam a Paris. A organização também funcionava como uma central de prestação de serviços voltada para os ensinamentos das múltiplas técnicas de sobrevivência e clandestinidade, os quais os militantes, expostos à repressão violenta e sofisticada de estados opressores como a África do Sul do aparthaid, necessitavam dominar para permanecerem vivos.


Outro foco de atenção no curso político de Henri Curiel estava direcionado para o conflito árabe-israelense. Ele manteve contato com figuras proeminentes do Partido Trabalhista de Israel e com os membros do “Israeli Council for Israeli-Palestinian Peace” (ICIPP), em busca de um caminho de entendimento que chegasse à Organização para a Libertação da Palestina (OLP).


Perrault afirma que Curiel estava convencido de que era possível promover um diálogo entre as duas partes. “Em 1976, ele organiza com seus amigos judeus de origem egípcia, exilados na França, um encontro clandestino entre o general da reserva israelense e pacifista Matti Peled (1923-1995), e Issam Sartawi (assassinado em Portugal, quando participava do encontro da Internacional Socialista, em 1983), antigo terrorista convertido ao processo de paz e amigo de Yasser Arafat.” Entretanto, na mesma época, uma reportagem no semanário Le Point acusa Curiel de ser o cabeça de uma rede terrorista conectada com a KGB (serviço secreto da antiga União Soviética).

A matéria assinada por Georges Suffert equivale a uma condenação capital. “Curiel abominava o terrorismo, considerava uma falta de bom senso político e uma monstruosidade humana. A acusação foi frívola, mas mortal”, revela Perrault. “Uma campanha na imprensa o fulminou e medidas administrativas baixadas pelo governo francês incluíram prisão domiciliar na cidade de Digne, nos Alpes franceses. Três meses depois, quando as acusações se mostraram infundadas, as restrições foram suspensas, mas o caminho estava aberto para os inimigos de Curiel.” (Henri Curiel, citizen of the third world, de Gilles Perrault - 1998)

Assassinato não esclarecido na Rive Gauche

Curiel foi assassinado com três tiros por dois pistoleiros de mãos enluvadas no elevador de seu apartamento, na Rive Gauche de Paris, em 4 de maio de 1978. No dia seguinte, a organização Delta, uma rede da extrema direita francesa composta de nostálgicos da Argélia francesa, reivindicou a autoria do crime. Mas a “Delta”, esquadrão de extermínio dos extremistas de direita francesa durante a guerra da Argélia estava extinta há mais de 15 anos.

Contudo, ainda que passado tanto tempo após a sua morte, as autoridades francesas não conseguiram elucidar o caso. Existem suspeitas que levam a radicais argelinos, donos de terra que perderam suas propriedades na Argélia; ao serviço secreto da África do Sul, que considerava Curiel um perigoso inimigo; ou mesmo ao terrorista palestino da al Fatah e assassino profissional Abu Nidal, mercenário a soldo da Síria e da Líbia e responsável por centenas de atentados a alvos israelenses e árabes (morto no Iraque em 2002). Quatro meses antes da execução de Curiel, o representante em Londres da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Sa’id Hammami, que participava com Curiel das iniciativas em prol de uma coexistência pacífica entre árabes e judeus, também fora assassinado.

O mistério da morte de Curiel foi tema de um documentário apresentado na TV francesa, em setembro de 2008. “Henri Curiel; un crime politique” explora a pista que imputa às autoridades francesas a responsabilidade direta pelo assassinato de Curiel. Isso porque seus passos eram monitorados pelos serviços secretos da França e nem a polícia ou a justiça francesa levaram adiante a investigação. Ninguém foi interrogado ou detido. É o que reclama Alain Gresh, diretor adjunto de Le Monde Diplomatique (revista mensal publicada em 25 idiomas, inclusive português, com tiragem de 2,4 milhões de exemplares), no artigo “Henri Curiel:la piste française”. Especialista em assuntos ligados ao Oriente Médio e filho natural de Curiel, Gresh nasceu no Egito, em 1948, de mãe judia de origem russa. Educado por um egípcio copta (cristão), só soube da existência de seu verdadeiro pai aos 28 anos, quando já vivia em Paris.

Apesar de Curiel estar morto há décadas, sua figura carismática e seu trabalho solidário a favor da emancipação dos povos continuam a despertar interesse e admiração. Livros, filmes e artigos sobre o curso de suas atividades ainda confundem estudiosos e leitores pela diversidade de opiniões e pontos de vista. “A estranha carreira de Henri Curiel” , assim definida por Claire Sterling (1919-1995), em seu livro a “A rede do terror” (1981), também mereceu um longo e polêmico capítulo.

Segundo a jornalista norte-americana que foi correspondente na Europa das revistas Life e The New York Times Magazine, nos 27 anos em que viveu na França, Henri Curiel constou nos arquivos do serviço secreto francês como o agente estrangeiro S531916, ligado à KGB. Todos os principais serviços ocidentais de contraespionagem tinham um dossiê a seu respeito, assegurava Sterling, e a confirmação veio em março de 1979 quando a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) registrou em seu relatório anual, de distribuição interna, na página 3, o seguinte obituário: “Revolucionários do mundo inteiro, inclusive terroristas, lamentam o assassinato de Henri Curiel, líder de uma organização de apoio sediada em Paris que fornecia dinheiro, armas, documentos, treinamento e outros serviços a dezenas de grupos esquerdistas.”

terça-feira, 8 de março de 2011

Xerifes urbanos contra os senhores do crime

por Sheila Sacks
Publicado no Portal da Federação Nacional dos Policiais Federais - FENAPEF

De tempos em tempos chegam à superfície ecos de supostas lambanças ocorridas nos subterrâneos da área da segurança pública em sua permanente batalha contra o crime organizado. Transitando por uma complexa rede de conexões que se interligam em voltagens diversas, se isso é possível, agentes públicos responsáveis por manter a ordem e a lei muitas vezes são levados a percorrer um intrincado e ambíguo sistema de alta tensão povoado de peças à margem da esfera oficial, mas nem por isso menos capazes de provocar curto-circuitos e panes avassaladoras à estrutura e hierarquia organizacionais estabelecidas.


As inevitáveis notícias que dali surgem, em um primeiro momento, e que a mídia transfere ao público, tendem a ganhar novas conotações e desdobramentos com o passar dos dias, muito deles contraditórios em relação aos primeiros publicados, em razão da entrada de outros dados vindos de fontes diferentes. Entretanto, o imediatismo e a dinâmica que regem o jornalismo diário muitas vezes interferem e precipitam decisões no âmbito administrativo do Estado, preocupado em dar por encerrado o episódio. Mas aí o estrago está feito e, com verdades reveladas ou não, sobram chamuscados a instituição e os personagens envolvidos.


Muito antes do fenômeno Tropa de Elite, filme brasileiro de 2007 construído a partir do livro Elite da Tropa (escrito por ex-policiais e um ex-secretário de Segurança), que enfoca as contradições morais e éticas que permeiam as ações de um batalhão de operações especiais no Rio de Janeiro, um seriado de TV de temática semelhante alcançava picos de audiência e arrebatava os mais importantes prêmios da televisão norte-americana. Isso, nos idos de 2002, quando o canal a cabo FX, da Fox Entertainment Group, lançou sua primeira série original, The Shield (O distintivo, em tradução livre), um trabalho audacioso assinado pelo jovem roteirista Shawn Ryan (no Brasil, o seriado foi apresentado no canal pago AXN).


Pressão da mídia e interesses políticos


À época com 36 anos, Ryan se inspirou em uma divisão do Departamento de Polícia da cidade de Los Angeles para mostrar, de forma intensa e incisiva, o dia-a-dia de cão de uma delegacia policial e de um eficiente e seleto grupo de profissionais que se utiliza de métodos violentos e pouco convencionais no combate ao crime e ao tráfico de drogas. Por sete anos e ao longo de 88 episódios, os telespectadores puderam acompanhar o périplo tenso e angustiante de policiais em mortificantes conflitos com os princípios morais e os valores éticos representados por suas insígnias e a realidade cruel e impiedosa que embrutece seus atos, congela seus sentimentos e conspurca de fel suas vidas nos âmbitos profissionais e familiares.


O fictício distrito de Farmington constituiu-se no perfeito microcosmo de centenas de centros urbanos existentes no planeta onde traficantes, viciados, aliciadores, informantes, denunciantes, desempregados, prostitutas e degenerados convivem em bolsões de pobreza ao lado de crianças e jovens provenientes de famílias desestruturadas pelo consumo de drogas e pelo subemprego que avilta e corrompe. Em outro patamar, atuando sobre esses conglomerados humanos, profissionais pagos pelo Estado para gerenciar a aplicação das leis e assegurar a ordem social se veem às voltas com situações em que o bom senso e o padrão regular de ações se revelam insuficientes ou inócuos. Fustigados por interferências de fatores díspares, que vão desde a pressão da mídia até ao assédio de interesses políticos e econômicos, os chamados homens da lei travam uma dura e dúbia batalha interior e que, no cômputo final, se revela, na maioria das vezes, desesperada e solitária.


A influência das redes ilícitas


No livro Ilícito (2005), o analista político Moisés Naim, 59, editor-chefe por mais de 10 anos da conceituada revista Foreign Policy, identifica as transformações tecnológicas e a abertura de mercados ocorridas nos anos 90 como fatos marcantes que propiciaram o advento de um tipo de crime mais evasivo e poderoso, que entrelaça "intimamente" redes ilícitas a atividades lícitas do setor privado, da área pública e do sistema político. "Eventos políticos como a queda do muro de Berlim, a derrocada da União Soviética, a multiplicação de nações que se democratizaram, a política liberal e o livre mercado, tudo isso associado à introdução de novas tecnologias, favoreceram não só a expansão do crime global como, graças à sua capacidade de acumular lucros colossais, torná-lo também uma poderosa força política."


Nascido em Caracas, Naím foi ministro da Indústria e de Comércio da Venezuela, diretor do Banco Central e diretor-executivo do Banco Mundial na década de 1990, antes de fixar residência nos Estados Unidos. Doutor em Ciências Econômicas pelo Massachusetts Institute of Technology, ele é autor de 10 livros sobre economia e política internacional e atualmente mantém uma coluna semanal no jornal espanhol El País, reproduzida em diversas mídias da América Latina, inclusive no site Observatório da Imprensa. Best-seller traduzido para 18 idiomas, o livro, que apresenta um longo subtítulo – "O ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global" – serviu de base para o documentário Illicit: The Dark Trade, produzido pelo canal National Geographic e premiado com o Emmy Award de 2009.


Entre outras constatações, Naím observa que os criminosos globais mudaram o mundo, ainda que os governos custassem a perceber o teor dessas transformações. Ele alerta para o fenômeno: "À medida que as redes ilícitas se expandem em direção a empresas privadas lícitas, partidos políticos, parlamentares, governos locais, grupos de comunicação, tribunais, exército e setores beneficentes, elas assumem uma influência poderosa – e, em certos países, sem igual – nas questões de Estado."


Uma máquina gigantesca


Tudo começou no início dos anos 1990, quando o comércio ilícito global criou os mesmos mecanismos que as organizações terroristas internacionais – como a Al-Qaida e a Jihad Islâmica – já utilizavam. As hierarquias fixas foram substituídas por redes descentralizadas; líderes autoritários, por agentes e células múltiplas relacionados e dispersos; linhas rígidas de controle, por transações em constante transformação, de acordo com as oportunidades. Segundo Naím, em países em desenvolvimento e naqueles que fizeram a transição do comunismo, as redes criminosas frequentemente constituem o capital investido mais poderoso que confronta o governo. E, em alguns países, os traficantes e seus sócios controlam os partidos políticos, dominam importantes meios de comunicação, são os maiores filantropos por trás das organizações não-governamentais (ONGs) e tornam-se "o grande empresariado" nacional.


Há ainda a internet. Para o crime organizado, um presente do céu. Naím ressalta que essa tecnologia é de um valor "imenso" para os traficantes e o comércio ilegal. "Aqueles que se envolvem em transações ilícitas, comunicam-se uns com os outros fazendo uso da privacidade e do anonimato de contas de e-mail, alteradas com frequência e acessadas de cibercafés e outros lugares impenetráveis. A internet permite que os traficantes se comuniquem reservada e eficientemente a fim de operar quantas transações sejam possíveis, tanto no espaço virtual quanto no real, e cria novas formas de movimentar e ocultar bens."


Maior mercado mundial de cocaína, correspondendo a quase 40% do total de consumidores da droga, os Estados Unidos há duas décadas vêm combatendo esse tipo de ilícito dentro e fora de suas fronteiras. Naím cita Washington como o centro da guerra contra as drogas, com milhares de funcionários federais contratados exclusivamente para combater o tráfico e impor a lei. São agentes da DEA (Drug Enforcement Administration, agência antidrogas dos Estados Unidos), funcionários da secretaria antidrogas da Casa Branca, especialistas em drogas do ICE (Immigration and Customs Enforcement – Departamento de Imigração e Alfândega), policiais federais, serviço secreto, FBI e a Guarda Costeira, para citar alguns. Uma máquina gigantesca que consome 20 bilhões de dólares anuais apenas em nível federal, na luta contra o uso e o comércio das drogas. No entanto, ressalta o analista, a poucos minutos desses escritórios estão os 60 pontos de venda de drogas que Washington abriga a céu aberto e que atendem os moradores de classe média, além de revendedores e intermediários que levam o produto para bairros ainda mais abastados.


O lucro ilícito gerando atividades legais


Em abril de 2009, poucos meses após a sua eleição, Barack Obama visitou o México para conversar com o presidente Felipe Calderón sobre a intensificação no combate ao comércio das drogas e à venda ilegal de armas vindas dos EUA que abastecem os cartéis mexicanos. Dois anos depois, amargando mais de 34 mil mortes na guerra contra o narcotráfico, sendo 15 mil somente em 2010, Calderón criticou as agências do governo norte-americano, como CIA e DEA, por sua suposta incapacidade de colaborar na guerra contra o narcotráfico. "A realidade é que eles não se coordenam. São rivais", disse Calderón (agência Reuters, em 03/03/2011).


Cerca de 30 mil agentes são disponibilizados pelo governo dos EUA para patrulhar os 3.169 quilômetros que separam os dois países. Mas tal aparato não inibe os fora da lei. A respeito, o sociólogo e político suíço Jean Ziegler reproduz, em seu livro Les Seigneurs du Crime (1999), o comentário de um procurador de Justiça de Berlim: "Os senhores do crime organizado são hoje em dia os únicos autênticos cosmopolitas. São cidadãos do mundo. Isso porque as fronteiras detêm a ação de juízes, mas não a dos criminosos."


Ziegler, de 77 anos, ganhou notoriedade com a obra A Suíça, o Ouro e os Mortos – Como os Banqueiros Suíços Ajudaram a financiar a Máquina de Guerra Nazista, publicado em 1997.


As Nações Unidas calculam que existem mais de 200 milhões de consumidores de drogas no mundo, o que gera um negócio de mais de 270 bilhões de euros por ano. Em entrevista ao jornal El País, o ex-primeiro-ministro espanhol Felipe Gonzáles analisa o tema: "Se você liga a droga aos negócios associados com o tráfico de armas e de pessoas, aumenta esse volume de negócio. E não falamos do que se pode fazer com esse dinheiro: uma pizzaria, um hotel..., legais. A lavagem de dinheiro negro entra no aparato de circulação do sistema e proporciona emprego e gera atividades econômicas que não são ilegais."


Costa brasileira favorece tráfico


Moisés Naím denomina de "buracos negros geopolíticos" os lugares onde as redes de tráfico "vivem" e prosperam, lembrando que na astrofísica essas regiões do universo estão fora das tradicionais leis da física newtoniana. Ou seja, nesses locais não se aplicariam as formas tradicionais de pensamento sobre política mundial e relações internacionais. Um exemplo seria a cidade de Málaga, na Costa do Sol da Espanha, conhecida região turística. De 2000 a 2005 houve um aumento de 1.600% na construção de casas particulares, apesar da localidade ter uma das mais altas taxas de desemprego e um dos mais baixos índices de renda da Espanha. O motivo se encaixaria na explicação dada por um chefe de polícia espanhol ao jornal inglês Financial Times: "Os criminosos são os empresários de hoje... Eles querem boas escalas para suas viagens, um sistema bancário eficiente, um clima ameno e anonimato. Conseguem tudo isso em Málaga."


A reportagem de Leslie Crawford ("Hot money pays for boom on Spain´s Costa del Crime") revela os resultados de uma ação policial, realizada em 2005, que envolveu agentes de sete países e que constatou a presença de 550 grupos criminosos operando na Espanha. No caso de Málaga, o crime organizado lavava o dinheiro ilegal através da indústria da construção civil, que teve uma expansão extraordinária. "É talvez a mais importante força motriz por trás da indústria da construção", afirmou Per Stangeland, responsável pela cadeira de Criminologia da Universidade de Málaga. Em relação ao Brasil, documento elaborado pelo Departamento de Estado norte-americano e divulgado pela mídia em 3 de março de 2011 aponta o país como o maior consumidor de drogas da América do Sul (900 mil de usuários de cocaína) e com o consumo em crescimento. O Paraguai continua sendo o maior fornecedor de maconha para o Brasil, cujo cultivo local da droga está concentrado na região Nordeste.


O relatório anual "Estratégia para o Controle Internacional de Narcóticos" indica que o Brasil está aberto ao trânsito de pequenos aviões da Colômbia (maior produtor mundial de cocaína) e Peru (maior produtor mundial de coca, matéria-prima da cocaína), com destino à Venezuela e Suriname (principais áreas de saída da América do Sul com carregamentos de drogas ilícitas para Europa) e começa a se mostrar como uma fonte importante no fornecimento de compostos químicos para a produção de cocaína. "O Brasil não só é o maior consumidor de drogas da América do Sul, mas também tem a costa mais extensa do continente e isto o transforma em uma rota de passagem inevitável para o contrabando de narcóticos rumo à Europa, África e em menor quantidade aos Estados Unidos", conclui o estudo. A costa brasileira tem 7.367 quilômetros de extensão.


Um submundo capaz de controlar nações inteiras


O Brasil também apresenta números significativos na venda ilegal de armas. Pesquisa divulgada pela Subcomissão de Armas do Congresso Nacional, em novembro de 2010, revela que quase a metade das armas que circulam no país é ilegal – 7,6 milhões de um total de 16 milhões de armas. Em seu livro sobre os cartéis do crime organizado, Jean Ziegler procura demonstrar que a progressiva institucionalização desse exército de criminosos representa o estágio supremo e a própria essência do modo de produção capitalista. Ele explica: as redes criminosas realizam a "maximização" do lucro, acumulam sua mais-valia a uma velocidade vertiginosa, criam oligopólios, a noção de contrato social lhes é estranha, agem no imediato e numa liberdade quase total e seus capitais atravessam as fronteiras cibernéticas do planeta sem qualquer obstáculo. Qual capitalista, pergunta Ziegler, em seu foro íntimo, não sonharia com tamanha liberdade, uma tal rapidez de acumulação, semelhante ausência de transparência e lucros dessa ordem?


Doutor em Direito e Ciências Econômicas, escritor, professor de Sociologia nas Universidades de Genebra e Sorbonne, em Paris, e membro do parlamento suíço por quase 20 anos, Jean Ziegler dedica a parte final do livro aos policiais e magistrados que em diversos países estão engajados no combate às redes criminosas. Segundo ele, nessa "guerra da liberdade", dentre todos os policiais que lutam contra o crime organizado, a figura do undercover agent (agente infiltrado), agindo sob identidade falsa e participando das atividades criminosas, é a mais ambígua e a mais difícil.


Entrevistando fontes policiais da Europa, Ásia e Estados Unidos, peritos, juízes, procuradores e diretores de serviços secretos, Ziegler chegou à conclusão de que esse tipo específico de policial é "um herói de nossa época". "Ele não é nem um delator nem um informante da polícia, explica. É um agente encoberto. Age sob identidade falsa e mantém as autoridades informadas sobre uma infração que está sendo cometida ou um projeto, enquanto se encontra ele mesmo infiltrado entre os delinquentes visados. Constitui-se uma arma decisiva na guerra contra os senhores sanguinários."


Enfim, na batalha crucial contra o tráfico global e as perversas variantes do comércio ilícito, ainda são os policiais que permanecem na linha de frente, sujeitos a sofrerem incalculáveis reveses e pesadas baixas, físicas e morais, em ações potencialmente arriscadas e limitadas pela hierarquia e a burocracia de Estado. "Frequentemente os agentes policiais fazem parte da engrenagem da máquina, mas não são o seu motor", atesta o venezuelano Moisés Naím, para quem o crime organizado é o outro lado da moeda da globalização. Um submundo com poder político e econômico capaz de controlar nações inteiras.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Nosso amigo Kadafi


por Sheila Sacks

Entre tantas figurações bizarras registradas pela mídia associadas ao desastre climático que devastou grande área da região serrana do Rio de Janeiro (com destaque para as performances dos ilustres tagarelas de plantão, sempre dispostos a palpitar sobre qualquer assunto), uma delas focalizou a aprazível conversa telefônica entre a presidente Dilma Rousseff e o ditador líbio Muammar Kadafi, ocorrida uma semana depois do horrendo cataclismo da madrugada de 12 de janeiro de 2011, que vitimou mais de 850 pessoas.


Por dez minutos Kadafi papeou com Dilma sobre assuntos variados, inclusive sobre a tragédia que foi o motivo que ensejou o oportuno contato entre os dois. Depois de prestar solidariedade às vítimas dos deslizamentos e oferecer ajuda ao governo brasileiro, Kadafi parabenizou Dilma pela vitória nas urnas. A presidente agradeceu o envio de uma delegação da Líbia à posse e disse que “se necessário, recorreria à Líbia” (O Globo online de 20.01.2011). Vale lembrar que o governo brasileiro, dois dias depois da tragédia, recusou a ajuda oferecida pelo Escritório das Nações Unidas para Assuntos Humanitários, sediado em Genebra, que se colocou à disposição para auxiliar no resgate e atendimento à população.


Segundo a agência Estado, a instituição estava pronta para entrar em ação na região serrana. A porta-voz da ONU, Elisabeth Byrs, confirmou que o pedido de ajuda “não foi transmitido” pelo governo brasileiro, uma maneira diplomática para dizer que a oferta de participação da ONU não foi aceita pelo governo brasileiro (Brasil recusa ajuda da ONU no resgate e auxílio a vítimas da chuva, em 15.01.2011).


Reunião em Lima deve juntar Dilma e Kadafi


Mas, voltando ao bate-papo amigo de Dilma e Kadafi, o colóquio telefônico também serviu para a brasileira cobrar do líbio a sua honorável presença na 3ª Cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa), que até então seria realizada de 13 a 16 de fevereiro de 2011, em Lima, no Peru (posteriormente adiada para o mês de abril, por conta da onda de protestos no Cairo). O encontro pretende reunir os 12 líderes sul-americanos, incluindo a nova presidente do Brasil, e os 22 chefes de Estado da liga árabe que integram o conclave.


Segundo o Portal Terra, a presidente finalizou a ligação afirmando que “terá prazer em encontrar Kadafi na Cúpula”. A troca de gentilezas se justificaria porque Kadafi é tratado pelo Palácio do Planalto como “líder da revolução líbia” (O Estado de São Paulo, de 21.01.2011). Imagem reforçada pela agência de notícias “Jana”, da Líbia, que dias antes já tinha informado que Dilma “manifestou-se disponível para trabalhar com Kadafi para o êxito de um outro evento: o da próxima “Cimeira África-América Latina”, prevista para ser realizada no segundo trimestre de 2011, no país líbio.


A agência também divulgou que logo depois da posse, em reunião com a delegação da Líbia, a presidente brasileira salientou o papel pioneiro de Kadafi a favor das questões de liberdade, justiça e de promoção da mulher. Dilma falou das relações históricas entre o Brasil e a Líbia e de sua vontade em incrementar ainda mais esse relacionamento entre os dois países. A Líbia possui as maiores reservas comprovadas de petróleo da África. Em Brasília, a delegação líbia também manteve contato com Hugo Chávez, da Venezuela, Fernando Logo (Paraguai), Sebástian Piñera (Chile) e Allan Garcia, do Peru (Dilma Rousseff trabalha com Kadafi - Jornal de Angola de 07.01.2011).


Kadafi subvencionava a OLP com 40 milhões de dólares anuais


Apontado pela jornalista norte-americana Claire Sterling (1919-1995) como “o papai rico do terrorismo”, Muammar Kadafi proveu de fundos, armas e treinamento o terrorismo palestino responsável pelo massacre nos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, que matou 11 atletas israelenses.


Em seu livro “A rede do terror” (The Terror Network - 1981), publicado em 22 países, a autora revela que Kadafi, de 69 anos, nascido numa tenda de nômade no deserto e educado no Alcorão, subvencionava as atividades terroristas da Organização Para a Libertação da Palestina (OLP) com uma verba anual de 40 milhões de dólares retirada de um fundo especial de 580 milhões de dólares para obras terroristas em todo o mundo. “A lista ia dos sandinistas da Nicarágua, Monteneros da Argentina e Tupamaros do Uruguai aos Provos do IRA, bascos espanhois, bretões e franceses e separatistas corsos, sardos e sicilianos, turcos, iraquianos, japoneses e rebeldes muçulmanos da Tailândia, Indonésia, Malásia e Filipinas”, escreve Sterling.


O ditador libio também gastou somas milionárias para derrubar governantes árabes “conservadores”. Manteve de pé uma oferta de um milhão de dólares a qualquer pessoa disposta e capaz de matar o presidente egípcio Anwar Sadat, (assassinado no Cairo em 1981) e gastou uma quantia seis vezes superior para tentar derrubar o primeiro presidente da Tunísia, Habib Bourguiba (1903-2000), destituído do cargo em 1987. Ambos os dirigentes procuraram se aproximar do Ocidente e de Israel.


Vivendo na Itália desde o fim da 2ª Grande Guerra, Sterling foi correspondente de importantes jornais e revistas, incluindo “The New York Times” e “Washington Post”. Compilando fatos e desvendando ligações, ela foi capaz de traçar um surpreendente mapa do terror que emergiu na Europa, entre 1970 e 1980, na forma de uma vasta rede internacional, com campos de treinamento, arsenais poderosos, pontos de apoio para fugas, enfim, como um exército moderno, bem equipado e pronto para atacar em qualquer lugar do planeta.


Campos de treinamento na Líbia exportavam o terror


A Líbia de Kadafi era o centro logístico do terrorismo internacional, afirmava Sterling. O país se pôs a serviço da criminalidade do terror e em seus campos de treinamento havia mais de 20 mil estrangeiros recrutados no Egito, Sudão, Tunísia, Mali, Nigéria, Etiópia, Mauritânia, Camarões, Chade, Senegal, Costa do Marfim, entre outros da África. “Os campos de guerrilheiros de Kadafi também fervilhavam de europeus e os instrutores eram tanto soviéticos como cubanos.”


Para Sterling, os países ocidentais dependentes do petróleo líbio gostavam de pensar que o coronel só desejava a libertação da Palestina. “Ele insistia em afirmar que todos os judeus que se haviam instalado na Palestina desde 1948 deveriam voltar aos locais de origem. Certa vez, ao enviar uma equipe de palestinos para metralhar o aeroporto de Istambul, suas ordens foram: - Matem o máximo possível de judeus.” A jornalista e pesquisadora assinala que, em 1978, dois anos após fechar um contrato de 12 bilhões de dólares para a compra de armamentos russos, Kadafi disse ao New York Times que o marxismo estava mais próximo dos muçulmanos que o cristianismo e o judaísmo: “São os cristãos e os judeus que cometem genocídios e são o ateus que clamam pela paz e pela causa da liberdade.”


Nessa época, o “queridinho” do ditador líbio era um ex-capitão do exército sírio, guerrilheiro profissional, marxista, um dos fundadores da Frente Popular para a Libertação da Palestina-FPLP. Tratava-se de Ahmed Jibril (atualmente com 72 anos e secretário-geral da FPLP), que gozando da plena confiança de Kadafi e de seu principesco patrocínio, tinha prestígio suficiente, conforme observava Sterling, de convocar a imprensa e anunciar numa entrevista coletiva que recebera dos soviéticos “pesados mísseis de longo alcance”, capazes de penetrarem “bem fundo em território israelense”.


Vivendo hoje em Damasco, Ahmed Jibril continua ativo e em dezembro de 2010 se encontrou com o iraniano Ali Baqeri, secretário-adjunto do Supremo Conselho de Segurança iraniano, que em visita à Síria exortou o chefe da FPLP a fortalecer a “resistência” no Oriente Médio. Jibril, por sua vez, fez um agradecimento público ao Irã pelo apoio à causa palestina, segundo a Press TV, rede iraniana de notícias.


Armas nucleares para os palestinos, diz Kadafi


Em abril de 1986, depois de um punhado de anos aterrorizando a Europa com atentados a bomba e sequestros de aviões, Kadafi enfim recebe o troco dos Estados Unidos. Trípoli é bombardeada e a Organização das Nações Unidas (ONU) impõe sanções econômicas ao país. Passada uma década de “suposto” ostracismo, o ditador sanguinário aceita pagar as indenizações às famílias das vítimas no atentado ao boeing da Pan Am - que explodiu quando sobrevoava a cidade escocesa de Lockerbie, matando 270 pessoas de 21 nacionalidades (dezembro de 1988) – e anuncia que desistiu do terrorismo e de seu programa de armas nucleares.


Em 2003, o Ocidente acolhe um Kadafi “arrependido” e carimba o nada consta em sua ficha criminal. Entretanto, o coronel líbio que afirma praticar um “socialismo islâmico” jamais desistiu de falar o que pensa em suas viagens pelas capitais europeias. Em 2010, em Roma, Kadafi propôs o islamismo como religião de toda a Europa. A declaração feita em um país majoritariamente católico foi considerada provocativa e ofensiva ao Papa. “As palavras de Kadafi mostram seu perigoso projeto de islamização para a Europa”, afirmou o parlamentar europeu Mario Borghezio ao jornal “Il Messaggero” (30.8.2010).


Um ano antes, em Londres, o coronel líbio tinha afirmado aos jornalistas britânicos que os palestinos deveriam ter o direito de possuir armas nucleares, assim como o Egito, a Síria e a Arábia Saudita. As declarações foram feitas durante uma entrevista em que Kadafi foi cobrado pela participação da Líbia no atentado de Lockerbie e sobre as alegadas atividades terroristas do país, centradas em suas embaixadas em todo o mundo (Palestina tem direito a bomba!, matéria veiculada no site “área militar”, de Portugal ). Em agosto de 2009, com o apoio da Inglaterra, Kadafi consegue que a Escócia liberte o líbio condenado à prisão perpétua pela explosão do boeing da Pan Am. O autor do atentado segue para Trípoli onde é recebido com honras de herói.


Ditador líbio propõe um terrorismo justificável


Um mês depois da libertação do terrorista, o ditador que governa a Líbia há mais de 40 anos, faz sua primeira visita à América Latina para participar da Cúpula de líderes da África e países do continente. No encontro com Hugo Chávez, na Venezuela, assina uma declaração sugerindo a realização de uma conferência global para redefinir o conceito de terrorismo. Os dois disseram rejeitar “as tentativas de vincular a luta legítima do povo pela liberdade e autodeterminação” ao terrorismo (Hugo Chávez e Kadafi propõem nova definição para o terrorismo no mundo - Correio do Brasil, em 29.9.2009).


Um comportamento público leviano beirando ao deboche, considerando que países como os Estados Unidos e Israel estão na linha de fogo dos atentados das organizações terroristas palestinas, justamente os grupos radicais armados que ambos os políticos pretendem redimir. Uma atitude, porém, que faz sentido, levando-se em conta que em 2008, mesmo dando por “definitivamente arquivado” o conflito entre a Líbia e os Estados Unidos, Kadafi não se furtou em declarar que seu país descartava qualquer amizade com os norte-americanos. “Tudo o que queremos é que nos deixem em paz”, avisava em tom teatral o chefão líbio que foi eleito, em 2009, a personalidade africana do ano por mais de 200 ONGs da África.


Resultado que decerto não contaria com o beneplácito do prêmio Nobel da Paz, Andrei Sakharov (1921-1989). O físico russo que recebeu o Nobel em 1975 pela sua luta em defesa dos direitos humanos na antiga União Soviética, considerava o terrorismo, em todas as suas manifestações, a mais degradada forma de linguagem. Dizia ele: “Não importa o quanto sejam elevados os objetivos pregados pelos terroristas, suas atividades são sempre criminosas, sempre destrutivas, lançando a humanidade de volta a uma era de ilegalidade e caos, contradizendo os objetivos de paz e progresso. Espero que os povos de todo o mundo compreendam a natureza mortífera do terrorismo, quaisquer que sejam seus objetivos e lhes neguem qualquer espécie de apoio, mesmo o mais passivo, circundando-os com um muro de condenação.” (Washington Post, em 1980).


O terror por trás da Guerra Santa


Os tumultos nos países muçulmanos que já provocaram a queda do governante da Tunísia, Zine al-Abidine Ben Ali, em 14 de janeiro, e mudanças nos rumos da política egípcia dominada pelo regime de Hosni Mubarak, levaram o aiatolá Ahmad Khatami, do Irã, a comparar os conflitos do mundo árabe à revolução iraniana que em 1970 derrubou a monarquia no Irã e passou o poder para os aiatolás. ”Um Oriente Médio Islâmico está tomando forma, emergindo com base no Islã e na democracia religiosa”, comemorou em seu sermão semanal (O Globo de 29.01.2011).


Motivada pela ebulição dos acontecimentos, a facção iraquiana da Al-Qaeda (Islamic State of Iraq – ISI) também se pronunciou, convocando os manifestantes egípcios anti-Mubarak a promoverem uma guerra santa, estabelecendo no país um Estado baseado em leis islâmicas. A mensagem divulgada na Internet afirma que a missão da guerra santa é defender os fracos e oprimidos no Egito e na região da faixa de Gaza. “Cada muçulmano que foi afetado pela opressão do tirano do Egito e de seus patrões de Washington e Tel Aviv deve reagir”, diz o texto (Agência Lusa, de 09.02.2011).


Por sua vez, o nosso amigo Kadafi, mantendo-se fiel ao que sempre advogou, desde o tempo em que era conhecido como “o papai rico do terrorismo”, culpou Israel pelos protestos violentos no Egito. Atribuindo tudo a uma conspiração de Israel – “O que acontece hoje no Egito é obra dos serviços secretos de Israel” - Kadafi afirmou ao jornal Libya al-Youm que “é errado ficar culpando Mubarak, pois ele é um homem pobre, não tem dinheiro nem para comprar roupas novas e a quem ajudou muitas vezes”. Fontes internacionais estimam em 40 a 60 bilhões de dólares a fortuna pessoal de Mubarak e seus familiares.


E as conseqüências desse clima de animosidade e de incitamento ao ódio já começam a aflorar: na noite de 31 de janeiro, a sinagoga de El Hamma, perto da cidade de Gabes, no sul da Tunísia, foi incendiada por desconhecidos. O representante da comunidade judaica de Djerba, Trabelsi Pérez, disse por telefone que os rolos da Torá foram queimados. Ele ainda contou que na semana anterior, vários carros tinham sido destruídos no bairro judeu de Houmt-Souk, a capital da ilha de Djerba, e que a pequena comunidade judaica, de 1.600 membros, estava com muito medo. (Diário de Notícias de Portugal, em 01.02.2011).

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A prática da democracia inocente

por Sheila Sacks

"Uma das vantagens deste mundo é que podemos odiar e ser odiados sem sequer nos conhecermos." (Alessandro Manzoni, poeta italiano do século 19)
publicado no "Observatório da Imprensa

Os vários comentários feitos pelo ex-presidente Lula no decorrer de seus dois mandatos sobre a ação da imprensa proporcionaram uma farta e prodigiosa munição aos articulistas e editorialistas de jornais influentes, mestres consagrados na exímia arte da esgrima linguística. A palavra escrita tem um poder de fogo que os profissionais do vernáculo, cientes dessa prerrogativa, buscam aperfeiçoar em diários e suados exercícios de arquitetura mental. Protegidos por estandes de vidro e armados com um teclado de laptop, eles têm a seu favor uma arena majestosa e ensolarada para a prática do tiro ao alvo. Afinal, a democracia é um campo aberto que favorece a exposição pública de pensamentos e opiniões e, por conseguinte, as réplicas e tréplicas de variados matizes.

Nas vésperas do pleito presidencial de 2010, uma reportagem de Lucas Abreu Maia publicada no jornal O Estado de S. Paulo e reproduzida pelo Observatório da Imprensa, em 21/9, revelava o grau de irritação de instituições representativas como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a ANJ (Associação Nacional dos Jornais) e a Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão), diante das declarações do então presidente Lula sobre o papel da imprensa. Sob o título "Entidades reagem a ataques de Lula", a matéria colocava na mesa a bazófia dita em tom magoado por um presidente empenhado em uma campanha de tudo ou nada, e emocionalmente arisco em suas colocações, resultado talvez do confronto diário com uma mídia beligerante em seu poder magnificente.

A gramática do óbvio


Desde a época de líder sindical, nos idos da década de 1970, Lula deu mostras de se sentir mais em casa e desbragadamente à vontade exorcizando os demônios em praça pública e em mangas de camisa. A tal da compostura que um cargo presidencial costuma exigir de seus ocupantes jamais inibiu o ex-presidente de soltar a voz em concorridos comícios eleitorais e soletrar o óbvio que habita no inconsciente coletivo. "Lula presidente surpreenderá a nação, pois adotará outra gramática do poder", escreveu o amigo e coordenador inicial do Programa Fome Zero, o frade dominicano, escritor e militante dos movimentos de Direitos Humanos Frei Betto, logo após a confirmação da vitória de Lula nas eleições de 2002.

Oito anos depois, em uma inauguração em Brasília com representantes da comunidade científica, Lula creditou o sucesso de seu governo à coragem de ter feito "o óbvio". Anteriormente, em um evento no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o ex-presidente já havia sublinhado que "o óbvio é a única coisa que um governante tem que fazer". Uma deixa providencial para os caçadores de bordões sempre atentos e ávidos em desossar uma presa linguística de fácil digestão. Imediatamente, o Estadão pôs em campo o eficiente Rolf Kuntz para ministrar lições de "óbvio", convenientemente traduzido como sinônimo de bom senso, qualidade esta que, segundo o jornalista, faltou a Lula em muitas de suas realizações políticas. "Se o óbvio é o sensato, Lula fez o oposto do óbvio em parte de sua gestão" ("Lula e a política do óbvio", 29/12/2010).

Sem papas na língua

Ressuscitando os palanques e os comícios a céu aberto de sua militância sindicalista, Lula introduziu um novo estilo de impor sua presença na mídia, menos como primeiro mandatário e muito mais como porta-voz dos brasileiros.

Essa disposição de encarnar o protótipo do cidadão comum na correlação de alguns de seus pontos mais sensíveis, como o trabalho, a família e a paixão pelo futebol, alçou o ex-presidente a um inquestionável e extraordinário patamar de liderança e popularidade pessoais, criando-se um fenômeno surpreendente e, de certa forma, perturbador, aferido imediatamente pela sensível ótica da mídia e de outros setores elitistas do país, dadas as inevitáveis implicações que um possível culto à personalidade tende a introduzir em uma sociedade democrática.

Desabafos do tipo "Vamos derrotar alguns jornais e revistas que se comportam como se fossem um partido político" ou "Nós somos a opinião pública e nós mesmos nos formamos", expelidos de maneira atabalhoada em exacerbados comícios eleitorais durante a campanha da candidata do PT, Dilma Rousseff, foram prontamente revidados de forma coesa e emparelhada, no melhor estilo de artilharia pesada, visando à neutralização das declarações do então presidente.

Em editorial, O Globo deduziu das palavras de Lula um provável plano de cerceamento da liberdade da imprensa e "um entendimento autoritário da função dos meios de comunicação". Valendo-se de palavras afetadas e de sentenças pedantes de difícil compreensão, o jornal creditou os desabafos pessoais de Lula a uma espécie de complô da "vulgata ideológica dos intelectuais orgânicos do lulopetismo" e à "percepção lulista" de considerar a imprensa "um instrumento de manipulação da sociedade". No mesmo editorial ("Lula e a visão autoritária da imprensa", 21/9/2010), o ex-presidente foi apontado como déspota ("como se tomado pelo espírito do Rei Sol, um Luís 14 tropicalizado"), desequilibrado ("o presidente foi jogando às favas o equilíbrio"), insensato ("Lula radicaliza na insensatez") e burro ("tosca engenharia de raciocínio").

Já na reportagem do Estadão, o ex-presidente foi taxado de intolerante pelo presidente da OAB, Ophir Cavalcanti, que viu na atitude de Lula um ato "contra a liberdade de imprensa" e "um desserviço à Constituição e ao Brasil". Declarações essas que receberam considerável reforço, alguns dias depois, na entrevista do mesmo Cavalcanti veiculada pela Folha de S.Paulo ("Presidente da OAB condena ataques à imprensa", 25/9/2010). Avaliando o "clima de acirramento" pré-eleitoral da campanha, o presidente da OAB tocou no ponto nevrálgico da questão, responsável por todo o arsenal bélico arremessado sobre Lula. Disse ele: "Homens e pessoas não devem ter a mesma força que as instituições." Pensamento compartilhado pela Abert, que conclamou "as entidades representativas da liberdade de imprensa a ficarem sempre atentas". Indo mais fundo na reação conjugada da imprensa, a Anaj detectou em Lula um lamentável e preocupante desconhecimento em relação ao papel da imprensa nas sociedades democráticas.

Um "culto despropositado"

Passados alguns meses dessa contenda de viés mercadológico, a imprensa retornou ao tema, dias após a posse de Dilma Rousseff, desta vez utilizando-se do aguerrido esgrimista linguístico Demétrio Magnoli. Tendo como pretexto a análise dos discursos proferidos pela nova presidente, o articulista se sentiu a cavaleiro para desacatar o dirigente que se despedia, a quem chamou de "chefe de facção", pouco merecedor da "louvação desmedida" de Dilma. Repetindo o argumento-padrão adotado pelas empresas de comunicação – "Democracia é o regime das instituições, não dos líderes" –, Magnoli afunilou o conceito desse regime político, reduzindo-o a um embate maniqueista e interesseiro entre dois polos antagônicos: instituições e empresas, que seriam o lado bom da história, versus líderes populares, o aspecto negativo e de risco. Uma metáfora ardilosa, já que a democracia não exclui a presença carismática de autoridades políticas legalmente constituídas.

Desmerecer autênticas qualidades positivas, tais como a simplicidade, simpatia e o discurso caloroso – para citar alguns atributos pessoais que parecem acompanhar o ex-presidente –, pela possibilidade de as mesmas favorecerem "o culto despropositado" a um dirigente ou político na vida pública, é um ponto de vista que chega a ser ofensivo ao eleitor brasileiro que avança no caminho de sua maturidade política. A democracia não é um sistema frágil que possa ruir por conta de um presidente sem papas na língua que falou o que devia e o que não devia em discursos desaforados no decorrer de uma campanha eleitoral. A afirmação de que "o culto a Lula é uma ferida na alma da democracia" ("Dilma, interrompida", 06/01/2011, no Globo e Estadão) soa como artificial e forçada, já que a admiração por um político não se configura, no significado exemplar do termo, em adoração, veneração ou "culto".

Poder econômico e imprensa

Mas qual seria de fato o papel da imprensa nas sociedades democráticas do século 21? Retornando ao editorial de O Globo, a resposta do jornal a essa questão brigaria com "a visão maniqueista lulopetista da imprensa" para a qual a mídia precisa estar subordinada ao Estado. "É inconcebível para esses (lulopetistas) que a imprensa profissional – que precisa ser rentável para se manter independente, e o mais distante possível de verbas administradas pelos poderosos do momento – cumpra uma função pública, e disto têm consciência profissionais e acionistas das empresas de comunicação", assinalava o editorial.

Para o jornalista e sociólogo espanhol Ignacio Ramonet, autor do livro "A Tirania da Comunicação" (1999), com o avanço da globalização as grandes empresas de mídia juntaram todas as formas de comunicação em um mesmo saco, da cultura de massa à publicidade e informação. Um exemplo perceptível é a mudança ocorrida nos suplementos literários dos jornais, hoje travestidos em desembaraçados balcões de venda das editoras e livrarias, tornando difícil o leitor distinguir o que é processo de persuasão, marketing ou utilidade cultural.

Constituindo-se em grandes grupos que englobam a imprensa, rádio e TV (com suas linguagens e mensagens, antes distintas, agora misturadas e mercantilizadas), essas megaempresas acabam exercendo pressão sobre os governos no sentido de que não sejam cerceadas ou limitadas em seus negócios. Ramonet afirma que a mídia no Ocidente sobrepujou o poder do Estado, representado pelo Executivo, Legislativo e Judiciário, ficando abaixo apenas do poder econômico. Lembra ainda que, há algumas décadas, os meios de comunicação representaram no contexto democrático um recurso dos cidadãos contra os abusos desses três poderes, daí serem mencionados como um quarto poder.

Diretor da edição espanhola do jornal "Le Monde Diplomatique", Ramonet, de 67 anos, observa também que, à medida que a globalização se acelerou, a imprensa perdeu a sua função de reagir e resistir, de se impor como um "contrapoder", de ser, enfim, "a voz dos sem-voz". De acordo com o sociólogo, hoje a mídia seria de fato o segundo poder pela sua ação e influência, funcionando como um aparato ideológico da globalização. "O mais difícil de perceber não é a informação distorcida, mas a informação oculta", alerta. "Na atual fase de globalização assiste-se a um confronto brutal entre o mercado e o Estado, entre o setor privado e os serviços públicos, dando a impressão de que grupos econômicos planetários ou conglomerados de comunicação de dimensão continental são mais importantes, pelo peso de seus negócios, do que os governos e Estados."

Discursando na cidade de Barcelona, em agosto de 2010, depois de receber o Prêmio Antonio Asensio de Jornalismo, Ignacio Ramonet surpreendeu a plateia ao afirmar que o jornalismo atravessa uma "grave crise de identidade". Ao sentenciar que a imprensa escrita vive um dos momentos mais difíceis, Ramonet desmentiu aqueles que proclamam que "a informação circula mais livre, mais abundante e mais transparente do que nunca". Ao contrário do que muitos pensam, disse, "a massa de informação oculta supera o imaginável em muitos temas".

Deslizamentos na região serrana

Nem bem 2011 se iniciou e já se pôs em marcha o processo de desestruturação daquilo que muitos entendem como o "mito" Lula. Na recente tragédia na região serrana do Rio de Janeiro – um dos dez maiores deslizamentos do mundo nos últimos 111 anos, pela avaliação da ONU – achou-se imediatamente um culpado na figura do governo federal (gestão Lula), que somente liberou 39% dos R$ 425 milhões previstos para 2010 para prevenção de desastres, sendo que a região serrana nada recebeu ("Verba para prevenção fica no papel", O Globo, 13/01/2011). No final da matéria fica-se sabendo que foram destinados R$ 377 milhões ao Rio de Janeiro pelo Programa de Resposta aos Desastres e Reconstrução, o segundo maior volume de recursos federais, ficando apenas atrás de Pernambuco (R$ 380 milhões).

Porém, o que faltou dizer em meio a tantos números é que um presidente da República não tem a função de monitorar as mais de 5 mil prefeituras brasileiras em seus variados projetos, inclusive de contenção de encostas, nos procedimentos técnicos adequados para se habilitarem a pleitear verbas federais necessárias à execução das obras. Por incapacidade e falta de conhecimento, muitas prefeituras perdem a oportunidade de manter profícuas e permanentes parcerias técnicas com o governo federal e somente após alguma tragédia climática, sob o regime de calamidade pública, se lançam ao encalço das verbas emergenciais para remediar o irremediável.

Em outra reportagem, também em tom acusatório, a administração Lula é culpabilizada pelo "inchaço" de funcionários públicos na esfera federal ("No governo Lula, mais 82 mil servidores" – O Globo, 16/01/2011). Segundo os números apresentados, "pelo menos 82.749 funcionários civis foram incorporados à máquina do governo federal nos últimos oito anos". Dito isso e lendo um pouco mais, topa-se com os seguintes dados: "Os funcionários civis do Executivo na ativa passaram de 485.741 em dezembro de 2002 para 568.490 em novembro de 2010 (...) Em números absolutos, a maioria das contratações foi feita na área de educação: 49.286. Isso decorre da criação de universidades públicas e escolas técnicas." Enfim, dos 82,7 mil novos servidores contratados quase 50 mil foram professores e pessoal auxiliar. Um percentual que faz sentido, em se tratando de um país que vem sendo estimulado por todos os setores da sociedade a investir maciçamente em educação e treinamento.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Mahmoud Abbas vira estrela na posse de Dilma


por Sheila Sacks

A presença do presidente da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas na posse da presidente Dilma Rousseff, em Brasília, no primeiro dia de 2011, recebeu tratamento vip da mídia brasileira. Fotos de ambos em caloroso aperto de mãos ganharam as primeiras páginas dos principais jornais do país (O Globo, Estado de São Paulo, Estado de Minas), superando a atenção dada a outras personalidades presentes ao evento, a saber: a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, o primeiro-ministro de Portugal, José Sócrates, o príncipe de Astúrias, Felipe de Borbón, herdeiro da coroa espanhola, o primeiro-ministro da Coreia do Sul, Kim Hwang-Sik, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez e o primeiro-ministro da Bulgária, Boyco Borissov (Dilma é filha de búlgaro).

A foto também serviu de chamariz para uma ampla entrevista de quase uma página que O Globo fez publicar, encimada por um título provocador – Israel não acredita na paz” pinçado de uma das respostas do dirigente palestino acerca dos assentamentos judaicos em Jerusalém Oriental. Diante da insinuação do repórter Roberto Maltchik de que o governo de Israel não dava mostras de querer “congelar os assentamentos”, Abbas foi incisivo: “Esse não é meu problema. É problema deles. Se eles não se importam com nada, se eles não escutam ninguém, isso significa que eles não querem a paz. Eles não acreditam na paz. Então, quem pode pôr pressão neles? Só os Estados Unidos. Paralelamente, a comunidade internacional. Então, o governo Israel vai ficar isolado.”

Governo brasileiro doou terreno para a embaixada palestina

Mahmoud Abbas ficou 4 dias no Brasil e antes da posse de Dilma ele inaugurou a pedra fundamental da futura embaixada palestina em Brasília, a ser construída em um terreno de 15 mil metros quadrados doado pelo governo brasileiro. No início de dezembro de 2010, ainda no governo Lula, o Brasil reconheceu o Estado palestino “com as fronteiras de 1967” (antes da Guerra dos Seis Dias), que incluem a Cisjordância, Jerusalém Oriental e a faixa de Gaza. A decisão foi seguida pelos vizinhos Argentina, Paraguai e Uruguai, e outros países da região, como a Bolívia, Equador e Peru, já se manifestaram a favor desse reconhecimento.

Em Brasília, Abbas aproveitou para agradecer de viva voz o gesto do presidente uruguaio e ex-guerrilheiro tupamaro, José Mujica, e iniciou as negociações com o chileno Sebástian Piñera para que o Chile se junte ao grupo. Na entrevista ao Globo, um dia depois dos festejos da posse e minutos antes de ser recebido em audiência por Dilma Roussef, ele revelou que iria demonstrar a sua gratidão ao governo brasileiro, “que foi o primeiro no continente a reconhecer o Estado palestino”. Abbas ainda adiantou que o ex-presidente Lula visitará Ramallah nos próximos meses.

Acompanhando o encontro de Abbas com Dilma, o novo ministro brasileiro de Relações Exteriores, Antônio Patriota, contou aos jornalistas que o dirigente palestino convidou a presidente para uma visita à Cisjordânia. Segundo o ministro, o tom da reunião entre os dois líderes foi de “congraçamento”. Patriota, de 56 anos, que substitui o chanceler Celso Amorim (o ministro do Exterior que mais tempo ficou no cargo, cerca de 8 anos), foi embaixador em Washington e é casado com uma norte-americana naturalizada brasileira. De perfil discreto e disciplinado, caracteriza-se, segundo analistas, por ser um eficiente executor das diretrizes da diplomacia palaciana que deverão se manter inalteradas no quesito ideológico, em função da permanência do assessor internacional da Presidência do governo Lula, o gaúcho Marco Aurélio Garcia, 70 anos, ex-militante do partido comunista e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores(PT).

Críticas à diplomacia brasileira são reveladas pelo Wikileaks

Formado em Filosofia e Direito, Marco Aurélio é professor licenciado de História da Universidade de Campinas (SP) desde que se instalou no Planalto, em 2003, como uma espécie de guru da Presidência para assuntos internacionais. Em 2007, em entrevista à revista política-literária Piauí, o assessor de Lula atacou Israel, classificando as ações de defesa do país contra atos terroristas de “crimes de guerra”, porque atingiam civis. Jactando-se de seus conhecimentos históricos, ele continuou no mesmo tom: "Se querem reconstituir a história, estou disposto a reconstituir. É a minha profissão. Israel apoiou durante todo o tempo o regime do apartheid na África do Sul. Apoiou todo o tempo a ditadura de Somoza, na Nicarágua, e a de Salazar, em Portugal. Não venham agora querer bancar os bacanas para o meu lado."
Recentemente, Marco Aurélio foi citado como simpatizante das Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em documentos revelados pelo Wikileaks. A afirmação foi feita em 2009, pelo então embaixador colombiano em Brasília, Tony Jozame, em referência às reações contrárias do Brasil ao Acordo Militar de Cooperação de Defesa EUA-Colômbia. Em conversa com diplomatas americanos, Jozame disse ainda que “o Ministério de Relações Exteriores brasileiro é esquerdista, anti-ianque e ciumento da liderança de qualquer país da região”.

Enviado do Irã diz que aliança com o Brasil vai se ampliar

Outra figura que ficou na berlinda foi Mohammad Abbasi, assessor especial para assuntos da América Latina do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Apontado como um dos homens de confiança do líder iraniano, Abbasi esteve na posse de Dilma e veio com a missão de fortalecer e consolidar as boas relações entre o Brasil e o Irã. Falando ao jornal Folha de São Paulo, na véspera da posse, ele se mostrou otimista em relação à ampliação dos vínculos com o governo brasileiro, inclusive na área nuclear. Na entrevista realizada na Embaixada do Irã, em Brasília, o enviado de Ahmadinejad declarou que a sua presença na cerimônia da posse foi “uma maneira de enviar ao mundo a mensagem de que nossa aliança continua, e que haverá mais acordos entre nós”. Abbasi destacou o interesse do Irã em desenvolver uma cooperação bilateral com o Brasil no campo nuclear, já que ambos os países “conseguiram desenvolver cientificamente a capacidade do uso da energia nuclear de forma autônoma, para fins pacíficos”.

É importante assinalar que o comércio entre Brasil e Irã duplicou nos últimos sete anos, de US$ 500 milhões para US$ 1,23 bilhão. O Irã é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil no Oriente Médio, principalmente quando o assunto é o setor alimentício. Na visita que fez a Teerã, em maio de 2010, Lula anunciou uma linha de financiamento de 1 bilhão de euros, nos próximos cinco anos, para importadores iranianos de produtos brasileiros.

Países árabes são o terceiro maior parceiro comercial do Brasil

Em artigo publicado no jornal Valor Econômico (30.12.2010), o professor de economia Javier Santiso observa que em 2010 os países árabes foram o terceiro principal parceiro comercial do Brasil (depois da China e dos Estados Unidos), absorvendo mais de US$ 10 bilhões de exportações brasileiras,cerca de 11º do total exportado pelo Brasil. Ele lembra que a estimativa é de que existem cerca de 20 milhões de latino-americanos de origem árabe na América Latina, sendo sete milhões no Brasil (alguns calculam em 10 milhões). Países como Catar e Emirados Árabes Unidos, através de seus bilionários fundos de investimentos, estão adquirindo participações em bancos, ativos comerciais, hotéis, petróleo, gás, construção civil e particularmente no setor agroindustrial que esteja ligado à água, um bem escasso na península arábica. Santiso lembra que a América Latina concentra cerca de 30% do total das reservas mundiais de água, sendo 13% no Brasil. “Esse ouro azul esta se tornando tão precioso quanto o ouro negro.”

América do Sul e países árabes na nova geografia de poder

No balanço final sobre os seus oito anos à frente do Itamaraty, o chanceler Celso Amorim também destacou a intensificação dos laços comerciais com os países árabes. Convidado a falar na Comissão de Relações Exteriores do Senado, em dezembro último, ele anunciou para breve o fechamento de Acordo de Livre Comércio (ALC) do Mercosul com o Egito e adiantou que outros acordos serão feitos com a Síria e a Autoridade Palestina. Dentre as suas realizações ele citou a realização das “Três cúpulas América do Sul-Países Árabes (ASPA)” – um fórum de coordenação política e cooperação bi-regional implantado em 2005 por iniciativa do presidente Lula, reunindo 22 países árabes e 12 sul-americanos - , salientando que as relações do Brasil com o mundo árabe, no campo dos negócios, quadruplicaram nesse período.

Por sua vez, o novo ministro do Exterior, Antônio Patriota, no discurso de posse, defendeu “o acerto das opções dos últimos anos” em política externa, mas deu a entender que haverá “reconsiderações de certas ênfases”. Cuidadoso na escolha das palavras e meticuloso na adoção de mensagens cifradas endereçadas à Casa Branca e seus aliados, ele disse que o Brasil superou “o acúmulo de vulnerabilidades” econômicas e sociais que limitavam a sua ação internacional e hoje esta entre os novos pólos globais. Afirmando que “consensos de outras eras são cada vez mais questionados e os antigos formadores de opinião encontram dificuldade crescente para prevalecer suas ideias”, o Patriota de Dilma promete ser o clone melhor acabado do homem que de fato vem dando as cartas, há quase uma década, na política internacional brasileira. De seu pequeno e discreto gabinete em Brasília, Marco Aurélio, um ex-exilado político, definido como “idealista da esquerda” pela Wikipédia, continuará no seu afã de recriar um novo mapa geográfico de poder onde o Brasil teria reais condições de cutucar, nem que fosse com vara curta, o gigante do Ocidente.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Até onde a memória alcança


por Sheila Sacks

Judeus retornam à Alemanha. Quem se importa?


Por ocasião das festividades do ano novo judaico, em setembro último, os leitores de um dos mais influentes jornais brasileiros foram surpreendidos com uma informação aparentemente surreal, mas nem por isso fora da realidade. A matéria made in Germany da correspondente de O Globo, Graça Magalhães Ruether, intitulava o país de "o novo eldorado dos judeus" e mostrava o estupendo "florescer" da comunidade judaica na Alemanha que lotou as sinagogas de Berlim durante as cerimônias religiosas desse evento.

Palco de um dos mais cruéis e violentos genocídios em massa produzidos por um regime político, a Alemanha tem recebido de braços abertos os judeus originários principalmente da antiga União Soviética que para lá acorreram (cerca de 220 mil), a partir da queda do Muro de Berlim, em 1989.

Atualmente, a comunidade judaica acomodada na Alemanha tem se movimentando em busca de suas tradições nas 16 sinagogas existentes em Berlim e Munique. Para muitos, uma espécie de desforra sobre aqueles que há pouco mais de seis décadas quase lograram varrer do planeta seus compatriotas judeus. "O judaísmo voltou a florescer não só em Berlim, mas em toda a Alemanha", celebra a porta-voz da comunidade judaica em Berlim, Maja Zeder. Hoje, 85 cidades alemãs dispõem de sinagogas.

Jovens não querem "remoer o passado"

Em outra reportagem, dessa vez do jornalista alemão Thorsten Schmitz, Berlim é comparada a Tel Aviv pela quantidade de israelenses que tomam conta da cidade durante todo o ano. "Há cinco anos, só havia uma ligação direta entre Tel Aviv e Berlim; atualmente pode haver três voos por dia. A Lufthansa oferece quatro voos diários para a Alemanha."

Segundo o jornalista, que escreve para o jornal Südeutsche Zeitung, de Munique, a cidade é o destino preferido dos israelenses, antes mesmo de Barcelona e Praga. Quarenta e oito mil israelenses visitaram Berlim, em 2009, e dentre os turistas não europeus, os nascidos em Israel só perdem para os norte-americanos, ainda o principal contingente turístico em terra alemã.

Também cresceu a quantidade de israelenses que escolhe Berlim para residir ou para investir no seu mercado imobiliário. Entre 1999 e 2009, o número de israelenses que imigrou para a Alemanha aumentou em 50% e já existem bairros, como os de Kreuzberg e Friedrichshain, onde a presença de israelenses é considerável. O resultado é que duplicou a presença de estudantes israelenses nas universidades berlinenses.

Para os agentes de turismo de Berlim, os judeus mais jovens que visitam a cidade querem descobrir o novo rosto da capital alemã. Todos conhecem a história do Holocausto, já viram alguém com um número tatuado no antebraço e foram a Auschwitz, na Polônia, em excursão escolar, mas "não querem ficar remoendo o passado". É comum encontrar turistas israelenses no antigo campo de concentração de Sachsenhausen carregados de sacolas de compras das lojas Zara e Bikenstock. Esse campo, situado a 35 quilômetros de Berlim, foi um dos mais ativos do regime nazista e lá foram executados cerca de 50 mil prisioneiros por fuzilamento, câmaras de gás e experimentos médicos.

"Olhem para nós, nós não somos maus"

A diretora de programação do Museu Judaico de Berlim, Cilly Kugelmann, de 63 anos, avalia que o judaísmo da geração das testemunhas pertence à história. "A definição dos judeus pelo extermínio em massa está acabando", afirma. Formada em história da arte pela Universidade Hebraica de Jerusalém, Kugelmann nasceu em Frankfurt e estudou cinco anos em Israel. Apesar de reconhecer que a sociedade alemã, nesses 62 anos pós-Holocausto, desenvolveu um relacionamento com o período nazista no qual o assassinato em massa tornou-se o único paradigma, ela acha que o judaísmo não se beneficiou com o fato. Ao contrário. Em sua opinião, os seguidos e continuados alertas de representantes judaicos contra o antissemitismo, o neonazismo e o antissionismo subtraíram, em parte, uma imagem positiva do judaísmo.

Em entrevista ao portal de notícias da Alemanha Deutsche Welle, o diretor-geral do Museu Judaico de Berlim, W. Michael Blumenthal, de 84 anos, reconheceu que com a morte das testemunhas a qualidade da memória do Holocausto também vai mudar, já que a transmissão dos fatos se fará em segunda mão. Nascido na Alemanha, Blumenthal deixou o país em 1939, estudou nos Estados Unidos e chegou a secretário do Tesouro norte-americano na gestão do presidente Jimmy Carter, de 1977 a 79. Segundo ele, o Holocausto vai continuar sendo uma parte importante da história alemã, um acontecimento histórico que implica em responsabilidade. Blumenthal chama a atenção para a diferença entre culpa e responsabilidade. "As novas gerações não são culpadas pelos atos de seus antepassados, mas têm responsabilidade nacional que acredito que vai continuar sendo assumida."

A nova geração de judeus da Alemanha almeja mudar esse modelo de relacionamento. "Eu quero me libertar dessa sensação de que, quando o assunto é minha religião, as pessoas sempre pensam: `Ah, você é judia.´ E imediatamente começam a prestar atenção no que falam como se estivessem pisando em ovos", dizia a estudante de Ciências Políticas, Katharina Goos, em 2005. A jovem propunha uma maior abertura no convívio diário. "Nós podemos nos abrir para as pessoas de outras religiões e dizer: olhem para nós, nós não somos maus."

O suicídio de um apátrida

Na mesma reportagem, o jovem Daniel Iranyl explicava os seus motivos para residir na Alemanha. "Aqui é um bom lugar para se viver, mesmo que alguns discordem. Eu me vejo como um judeu europeu e acho importante que as pessoas entendam que o judaísmo não esta limitado à tristeza. Somos pessoas felizes e eu amo Berlim."

Voltando no tempo, em 1938 centenas de casas, lojas e sinagogas foram apedrejadas e incendiadas em várias cidades da Alemanha. Começava efetivamente o processo de extermínio em massa da comunidade judaica alemã naquele 9 de novembro que passou para a história como a noite das vidraças quebradas ou a Noite dos Cristais. Na época, mais de meio milhão de judeus vivia na Alemanha.

Com o fim da Segunda Grande Guerra, sobraram 15 mil judeus e nos 62 anos posteriores esse número foi se multiplicando até atingir a marca oficial de 110 mil. Quantidade respeitável de membros que, somada à onda de turismo específico, estimulou a mídia internacional, no decorrer de 2010, a enfocar a Alemanha sob um bizarro ângulo de cartão postal do Holocausto, aplicando-se ainda em propalar o tal renascimento judaico em um país salpicado de monumentos, memoriais, mausoléus e museus de lembranças e de mea culpa. Uma realidade que pouco surpreenderia o filósofo e pensador judeu Walter Benjamim (1892-1940), figura cultuada pela intelectualidade brasileira. É dele a frase-slogan : "Não há um documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie."
Em 1939, Benjamim foi destituído de sua cidadania alemã, enquanto vivia na França, e passou a ser um "estrangeiro de nacionalidade indeterminada de origem alemã". Nascido em Berlim, o autor de Teses sobre o conceito da História tentou em vão obter a cidadania francesa. Quando só restava a fuga para escapar à Gestapo, ele se viu impossibilitado de alcançar a liberdade pela falta de documentos legais. Deprimido, na noite de 25 de setembro de 1940, em um quarto de hotel na fronteira com a Espanha, cometeu suicídio ingerindo uma dose letal de morfina. Tinha 48 anos e embora somasse uma história pessoal enraizada na Alemanha e uma reconhecida bagagem literária, era um apátrida.

Uma missão quase impossível

Em 1989, o livro "Modernidade e Holocausto", de um sociólogo judeu de origem polonesa, ganhou o prestigioso prêmio Almafi, concedido pela Associação Italiana de Sociologia à melhor obra do ramo publicada na Europa. Seu autor, Zigmunt Bauman, atualmente com 85 anos, atribuía à modernidade e suas técnicas de planejamento, organização e produção, um papel decisivo na consecução do Holocausto. Observava Bauman que "o Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano". Radicado na Inglaterra desde da década de 1970, o sociólogo criticava o afrouxamento dos mecanismos de lembrança em relação ao genocídio. "A autocura da memória histórica que se processa na consciência da sociedade moderna é mais do que uma indiferença ofensiva às vítimas do Holocausto. É também um sinal de perigosa cegueira, potencialmente suicida."

"Custa-me acreditar que meu pai tenha sido deportado daqui para o campo de Sachsenhausen", afirma o israelense Amit Sonnenfeld, de 56 anos, em sua primeira visita à Alemanha, em setembro de 2010. Sua mulher Eynat acrescenta: "Berlim é completamente multicolor, e não tem nada que ver com as imagens da Alemanha que me acompanham desde a infância." Ambos, segundo a reportagem do jornal de Munique, se movimentavam esbaforidos e felizes pelas ruas de Berlim, carregados de sacolas de compras e animados com o circuito gastronômico que a cidade oferece.

Para Bauman, redimir o passado implicaria em atualizar o seu significado no tempo presente. Entretanto, a memória da história oficial é sempre percebida de forma linear, enfileirando fatos,datas e as diversas formas de poder que atuaram no contexto. No caso do Holocausto, os testemunhos dos sobreviventes acrescentaram uma segunda dimensão à história. Mas, no estágio atual – onde os campos de horror foram transformados em bem cuidados museus a céu aberto e o genocídio se recria em projetos arquitetônicos monumentais –, a globalização já aspirou e centrifugou os inevitáveis espantos e discordâncias, transformando-os em resíduos ou pó. Com os seus (aparentemente) ilimitados recursos de pasteurização sobre as sociedades midiáticas e marquetizadas, a globalização viabilizou o encontro mágico entre a mais alta tecnologia e as táticas de convencimento, tornando a busca de um sentido singular e contemporâneo ao significado do Holocausto, uma missão quase impossível.

O prognóstico de Orwell

O pensamento globalizado é uma das características do século 21 e aqueles cujas ideias possam de alguma forma desregular uma azeitada ordem midiática, construída sobre sólidas estruturas de poder, certamente terão grandes dificuldades em concretizá-las com algum êxito.

No caso específico do Holocausto, o aspecto ideológico e a sua vigorosa instrumentalização que permitiu, com sucesso, a implantação de um sistema industrial de matança dentro de uma sociedade civil informada e evoluída, caminha para ganhar ares de ficção, cercado dos cintilantes penduricalhos que a imaginação e a criatividade associadas à arte e a tecnologia do marketing são capazes de produzir. Sobrando disso tudo, talvez, em um futuro não muito distante, um shopping virtual de imagens – símbolo de uma época perdida no tempo – a ser acessado por alguns curiosos.

Essa complexa relação entre o presente, a percepção do passado e o poder, em suas formas manifestas ou subterrâneas, já tinha sido admiravelmente prenunciada pelo jornalista britânico Eric Arthur Blair (1903-1950), ferido no pescoço na Guerra Civil espanhola enquanto lutava contra o ditador Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler. Ele sabiamente prognosticou: "Quem controla o passado, controla o futuro; e quem controla o presente controla o passado". Sob o pseudônimo de George Orwell, na novela 1984, o autor, que foi correspondente da BBC de Londres na 2ª Grande Guerra, delineou um axioma que em 1949, data da publicação do livro, poderia parecer delirante. Um livro que ainda fascina milhões de pessoas e que, de acordo com a pesquisa da revista Newsweek, publicada em 2009, foi apontado como segundo melhor livro de todos os tempos, perdendo apenas para o romance "Guerra e Paz", de Leon Tolstoi.