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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Nosso amigo Kadafi


por Sheila Sacks

Entre tantas figurações bizarras registradas pela mídia associadas ao desastre climático que devastou grande área da região serrana do Rio de Janeiro (com destaque para as performances dos ilustres tagarelas de plantão, sempre dispostos a palpitar sobre qualquer assunto), uma delas focalizou a aprazível conversa telefônica entre a presidente Dilma Rousseff e o ditador líbio Muammar Kadafi, ocorrida uma semana depois do horrendo cataclismo da madrugada de 12 de janeiro de 2011, que vitimou mais de 850 pessoas.


Por dez minutos Kadafi papeou com Dilma sobre assuntos variados, inclusive sobre a tragédia que foi o motivo que ensejou o oportuno contato entre os dois. Depois de prestar solidariedade às vítimas dos deslizamentos e oferecer ajuda ao governo brasileiro, Kadafi parabenizou Dilma pela vitória nas urnas. A presidente agradeceu o envio de uma delegação da Líbia à posse e disse que “se necessário, recorreria à Líbia” (O Globo online de 20.01.2011). Vale lembrar que o governo brasileiro, dois dias depois da tragédia, recusou a ajuda oferecida pelo Escritório das Nações Unidas para Assuntos Humanitários, sediado em Genebra, que se colocou à disposição para auxiliar no resgate e atendimento à população.


Segundo a agência Estado, a instituição estava pronta para entrar em ação na região serrana. A porta-voz da ONU, Elisabeth Byrs, confirmou que o pedido de ajuda “não foi transmitido” pelo governo brasileiro, uma maneira diplomática para dizer que a oferta de participação da ONU não foi aceita pelo governo brasileiro (Brasil recusa ajuda da ONU no resgate e auxílio a vítimas da chuva, em 15.01.2011).


Reunião em Lima deve juntar Dilma e Kadafi


Mas, voltando ao bate-papo amigo de Dilma e Kadafi, o colóquio telefônico também serviu para a brasileira cobrar do líbio a sua honorável presença na 3ª Cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa), que até então seria realizada de 13 a 16 de fevereiro de 2011, em Lima, no Peru (posteriormente adiada para o mês de abril, por conta da onda de protestos no Cairo). O encontro pretende reunir os 12 líderes sul-americanos, incluindo a nova presidente do Brasil, e os 22 chefes de Estado da liga árabe que integram o conclave.


Segundo o Portal Terra, a presidente finalizou a ligação afirmando que “terá prazer em encontrar Kadafi na Cúpula”. A troca de gentilezas se justificaria porque Kadafi é tratado pelo Palácio do Planalto como “líder da revolução líbia” (O Estado de São Paulo, de 21.01.2011). Imagem reforçada pela agência de notícias “Jana”, da Líbia, que dias antes já tinha informado que Dilma “manifestou-se disponível para trabalhar com Kadafi para o êxito de um outro evento: o da próxima “Cimeira África-América Latina”, prevista para ser realizada no segundo trimestre de 2011, no país líbio.


A agência também divulgou que logo depois da posse, em reunião com a delegação da Líbia, a presidente brasileira salientou o papel pioneiro de Kadafi a favor das questões de liberdade, justiça e de promoção da mulher. Dilma falou das relações históricas entre o Brasil e a Líbia e de sua vontade em incrementar ainda mais esse relacionamento entre os dois países. A Líbia possui as maiores reservas comprovadas de petróleo da África. Em Brasília, a delegação líbia também manteve contato com Hugo Chávez, da Venezuela, Fernando Logo (Paraguai), Sebástian Piñera (Chile) e Allan Garcia, do Peru (Dilma Rousseff trabalha com Kadafi - Jornal de Angola de 07.01.2011).


Kadafi subvencionava a OLP com 40 milhões de dólares anuais


Apontado pela jornalista norte-americana Claire Sterling (1919-1995) como “o papai rico do terrorismo”, Muammar Kadafi proveu de fundos, armas e treinamento o terrorismo palestino responsável pelo massacre nos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, que matou 11 atletas israelenses.


Em seu livro “A rede do terror” (The Terror Network - 1981), publicado em 22 países, a autora revela que Kadafi, de 69 anos, nascido numa tenda de nômade no deserto e educado no Alcorão, subvencionava as atividades terroristas da Organização Para a Libertação da Palestina (OLP) com uma verba anual de 40 milhões de dólares retirada de um fundo especial de 580 milhões de dólares para obras terroristas em todo o mundo. “A lista ia dos sandinistas da Nicarágua, Monteneros da Argentina e Tupamaros do Uruguai aos Provos do IRA, bascos espanhois, bretões e franceses e separatistas corsos, sardos e sicilianos, turcos, iraquianos, japoneses e rebeldes muçulmanos da Tailândia, Indonésia, Malásia e Filipinas”, escreve Sterling.


O ditador libio também gastou somas milionárias para derrubar governantes árabes “conservadores”. Manteve de pé uma oferta de um milhão de dólares a qualquer pessoa disposta e capaz de matar o presidente egípcio Anwar Sadat, (assassinado no Cairo em 1981) e gastou uma quantia seis vezes superior para tentar derrubar o primeiro presidente da Tunísia, Habib Bourguiba (1903-2000), destituído do cargo em 1987. Ambos os dirigentes procuraram se aproximar do Ocidente e de Israel.


Vivendo na Itália desde o fim da 2ª Grande Guerra, Sterling foi correspondente de importantes jornais e revistas, incluindo “The New York Times” e “Washington Post”. Compilando fatos e desvendando ligações, ela foi capaz de traçar um surpreendente mapa do terror que emergiu na Europa, entre 1970 e 1980, na forma de uma vasta rede internacional, com campos de treinamento, arsenais poderosos, pontos de apoio para fugas, enfim, como um exército moderno, bem equipado e pronto para atacar em qualquer lugar do planeta.


Campos de treinamento na Líbia exportavam o terror


A Líbia de Kadafi era o centro logístico do terrorismo internacional, afirmava Sterling. O país se pôs a serviço da criminalidade do terror e em seus campos de treinamento havia mais de 20 mil estrangeiros recrutados no Egito, Sudão, Tunísia, Mali, Nigéria, Etiópia, Mauritânia, Camarões, Chade, Senegal, Costa do Marfim, entre outros da África. “Os campos de guerrilheiros de Kadafi também fervilhavam de europeus e os instrutores eram tanto soviéticos como cubanos.”


Para Sterling, os países ocidentais dependentes do petróleo líbio gostavam de pensar que o coronel só desejava a libertação da Palestina. “Ele insistia em afirmar que todos os judeus que se haviam instalado na Palestina desde 1948 deveriam voltar aos locais de origem. Certa vez, ao enviar uma equipe de palestinos para metralhar o aeroporto de Istambul, suas ordens foram: - Matem o máximo possível de judeus.” A jornalista e pesquisadora assinala que, em 1978, dois anos após fechar um contrato de 12 bilhões de dólares para a compra de armamentos russos, Kadafi disse ao New York Times que o marxismo estava mais próximo dos muçulmanos que o cristianismo e o judaísmo: “São os cristãos e os judeus que cometem genocídios e são o ateus que clamam pela paz e pela causa da liberdade.”


Nessa época, o “queridinho” do ditador líbio era um ex-capitão do exército sírio, guerrilheiro profissional, marxista, um dos fundadores da Frente Popular para a Libertação da Palestina-FPLP. Tratava-se de Ahmed Jibril (atualmente com 72 anos e secretário-geral da FPLP), que gozando da plena confiança de Kadafi e de seu principesco patrocínio, tinha prestígio suficiente, conforme observava Sterling, de convocar a imprensa e anunciar numa entrevista coletiva que recebera dos soviéticos “pesados mísseis de longo alcance”, capazes de penetrarem “bem fundo em território israelense”.


Vivendo hoje em Damasco, Ahmed Jibril continua ativo e em dezembro de 2010 se encontrou com o iraniano Ali Baqeri, secretário-adjunto do Supremo Conselho de Segurança iraniano, que em visita à Síria exortou o chefe da FPLP a fortalecer a “resistência” no Oriente Médio. Jibril, por sua vez, fez um agradecimento público ao Irã pelo apoio à causa palestina, segundo a Press TV, rede iraniana de notícias.


Armas nucleares para os palestinos, diz Kadafi


Em abril de 1986, depois de um punhado de anos aterrorizando a Europa com atentados a bomba e sequestros de aviões, Kadafi enfim recebe o troco dos Estados Unidos. Trípoli é bombardeada e a Organização das Nações Unidas (ONU) impõe sanções econômicas ao país. Passada uma década de “suposto” ostracismo, o ditador sanguinário aceita pagar as indenizações às famílias das vítimas no atentado ao boeing da Pan Am - que explodiu quando sobrevoava a cidade escocesa de Lockerbie, matando 270 pessoas de 21 nacionalidades (dezembro de 1988) – e anuncia que desistiu do terrorismo e de seu programa de armas nucleares.


Em 2003, o Ocidente acolhe um Kadafi “arrependido” e carimba o nada consta em sua ficha criminal. Entretanto, o coronel líbio que afirma praticar um “socialismo islâmico” jamais desistiu de falar o que pensa em suas viagens pelas capitais europeias. Em 2010, em Roma, Kadafi propôs o islamismo como religião de toda a Europa. A declaração feita em um país majoritariamente católico foi considerada provocativa e ofensiva ao Papa. “As palavras de Kadafi mostram seu perigoso projeto de islamização para a Europa”, afirmou o parlamentar europeu Mario Borghezio ao jornal “Il Messaggero” (30.8.2010).


Um ano antes, em Londres, o coronel líbio tinha afirmado aos jornalistas britânicos que os palestinos deveriam ter o direito de possuir armas nucleares, assim como o Egito, a Síria e a Arábia Saudita. As declarações foram feitas durante uma entrevista em que Kadafi foi cobrado pela participação da Líbia no atentado de Lockerbie e sobre as alegadas atividades terroristas do país, centradas em suas embaixadas em todo o mundo (Palestina tem direito a bomba!, matéria veiculada no site “área militar”, de Portugal ). Em agosto de 2009, com o apoio da Inglaterra, Kadafi consegue que a Escócia liberte o líbio condenado à prisão perpétua pela explosão do boeing da Pan Am. O autor do atentado segue para Trípoli onde é recebido com honras de herói.


Ditador líbio propõe um terrorismo justificável


Um mês depois da libertação do terrorista, o ditador que governa a Líbia há mais de 40 anos, faz sua primeira visita à América Latina para participar da Cúpula de líderes da África e países do continente. No encontro com Hugo Chávez, na Venezuela, assina uma declaração sugerindo a realização de uma conferência global para redefinir o conceito de terrorismo. Os dois disseram rejeitar “as tentativas de vincular a luta legítima do povo pela liberdade e autodeterminação” ao terrorismo (Hugo Chávez e Kadafi propõem nova definição para o terrorismo no mundo - Correio do Brasil, em 29.9.2009).


Um comportamento público leviano beirando ao deboche, considerando que países como os Estados Unidos e Israel estão na linha de fogo dos atentados das organizações terroristas palestinas, justamente os grupos radicais armados que ambos os políticos pretendem redimir. Uma atitude, porém, que faz sentido, levando-se em conta que em 2008, mesmo dando por “definitivamente arquivado” o conflito entre a Líbia e os Estados Unidos, Kadafi não se furtou em declarar que seu país descartava qualquer amizade com os norte-americanos. “Tudo o que queremos é que nos deixem em paz”, avisava em tom teatral o chefão líbio que foi eleito, em 2009, a personalidade africana do ano por mais de 200 ONGs da África.


Resultado que decerto não contaria com o beneplácito do prêmio Nobel da Paz, Andrei Sakharov (1921-1989). O físico russo que recebeu o Nobel em 1975 pela sua luta em defesa dos direitos humanos na antiga União Soviética, considerava o terrorismo, em todas as suas manifestações, a mais degradada forma de linguagem. Dizia ele: “Não importa o quanto sejam elevados os objetivos pregados pelos terroristas, suas atividades são sempre criminosas, sempre destrutivas, lançando a humanidade de volta a uma era de ilegalidade e caos, contradizendo os objetivos de paz e progresso. Espero que os povos de todo o mundo compreendam a natureza mortífera do terrorismo, quaisquer que sejam seus objetivos e lhes neguem qualquer espécie de apoio, mesmo o mais passivo, circundando-os com um muro de condenação.” (Washington Post, em 1980).


O terror por trás da Guerra Santa


Os tumultos nos países muçulmanos que já provocaram a queda do governante da Tunísia, Zine al-Abidine Ben Ali, em 14 de janeiro, e mudanças nos rumos da política egípcia dominada pelo regime de Hosni Mubarak, levaram o aiatolá Ahmad Khatami, do Irã, a comparar os conflitos do mundo árabe à revolução iraniana que em 1970 derrubou a monarquia no Irã e passou o poder para os aiatolás. ”Um Oriente Médio Islâmico está tomando forma, emergindo com base no Islã e na democracia religiosa”, comemorou em seu sermão semanal (O Globo de 29.01.2011).


Motivada pela ebulição dos acontecimentos, a facção iraquiana da Al-Qaeda (Islamic State of Iraq – ISI) também se pronunciou, convocando os manifestantes egípcios anti-Mubarak a promoverem uma guerra santa, estabelecendo no país um Estado baseado em leis islâmicas. A mensagem divulgada na Internet afirma que a missão da guerra santa é defender os fracos e oprimidos no Egito e na região da faixa de Gaza. “Cada muçulmano que foi afetado pela opressão do tirano do Egito e de seus patrões de Washington e Tel Aviv deve reagir”, diz o texto (Agência Lusa, de 09.02.2011).


Por sua vez, o nosso amigo Kadafi, mantendo-se fiel ao que sempre advogou, desde o tempo em que era conhecido como “o papai rico do terrorismo”, culpou Israel pelos protestos violentos no Egito. Atribuindo tudo a uma conspiração de Israel – “O que acontece hoje no Egito é obra dos serviços secretos de Israel” - Kadafi afirmou ao jornal Libya al-Youm que “é errado ficar culpando Mubarak, pois ele é um homem pobre, não tem dinheiro nem para comprar roupas novas e a quem ajudou muitas vezes”. Fontes internacionais estimam em 40 a 60 bilhões de dólares a fortuna pessoal de Mubarak e seus familiares.


E as conseqüências desse clima de animosidade e de incitamento ao ódio já começam a aflorar: na noite de 31 de janeiro, a sinagoga de El Hamma, perto da cidade de Gabes, no sul da Tunísia, foi incendiada por desconhecidos. O representante da comunidade judaica de Djerba, Trabelsi Pérez, disse por telefone que os rolos da Torá foram queimados. Ele ainda contou que na semana anterior, vários carros tinham sido destruídos no bairro judeu de Houmt-Souk, a capital da ilha de Djerba, e que a pequena comunidade judaica, de 1.600 membros, estava com muito medo. (Diário de Notícias de Portugal, em 01.02.2011).