/ Sheila Sacks /
Pela segunda vez dona Edite repete o longo trajeto de Copacabana ao bairro de Bonsucesso, na Zona Norte, para finalizar a promessa assumida pelo pronto restabelecimento de uma prima muito querida. A doação seria para uma creche mantida por uma dessas organizações sociais de ajuda ao próximo. Entorpecida pela viagem, os pensamentos vagam perdidos entre as fronteiras do consciente e do sono. Sorri ao lembrar a garotada da creche. Tem 70 anos e o físico esbelto a faz esquecer a idade.
Um tempo depois o táxi diminui a velocidade e estaciona em uma rua que parece desabitada. A via silenciosa avança por dezenas de metros até uma pequena praça de terra batida. − A senhora trouxe o endereço? − pergunta o taxista olhando ao redor. − Estou na dúvida sobre a rua, diz. Dona Edite abre a bolsa e procura o papel onde anotou o endereço. Tinha esquecido em cima da cômoda. − É aqui mesmo – afirma, reconhecendo o muro em frente. Desce do táxi. No céu, as nuvens se acumulam.
Encimado por pontudos cacos de vidros, o muro de cimento é um desafio a possíveis intrusos. Dona Edite toca a campainha já antevendo o abraço afetuoso da risonha atendente. Enquanto espera, alça a vista para o horizonte recortado pela admirável estrada suspensa do teleférico que se estende sobre o conjunto de favelas do Alemão, uma cidadela fortificada e inexpugnável.
Postada na calçada, pressiona mais uma vez o botão vermelho instalado na frente do muro. Finalmente o portão é aberto e um sujeito de boca murcha, cabelos ralos e com as roupas sujas de massa e tinta assoma à soleira. − A creche está em obra, madame − apressa-se em explicar. E emenda: − Só volta a funcionar na semana que vem.
Dona Edite sente que a bexiga fraca dá sinais preocupantes. De supetão ela cruza o portão sem dar tempo ao homem de impedi-la. − Preciso usar o toalete. É rapidinho e sei o caminho − vai dizendo enquanto aperta o passo. Mas logo sente uma pressão violenta na nuca e se dá conta de que a arrastam para o interior da casa. É largada em frente a uma enorme cratera escancarada no centro da sala. Operários de torsos nus empilham sacos de entulho trazidos do fundo do buraco que se alonga em um túnel por debaixo da casa, em direção, talvez, à agência bancária instalada a poucos metros da esquina. Outros cavam a terra dura e escura. Atônita, dona Edite percebe alguns homens fardados. Um deles se aproxima, o rosto oculto por uma touca de malha. Das fendas do gorro, dois olhos cinzentos e frios a avaliam. − Deje la bolsa acá − ordena. O portunhol range na voz cavernosa do gigante. Ele usa coturnos emborrachados e colete à prova de bala. Aponta o banheiro. –Adelante, vá.
No estreito banheiro dona Edite se vê sem os documentos, dinheiro, celular, relógio e sua inseparável sombrinha. Ela se abandona desolada sobre o tampo do vaso sanitário. As horas passam impassíveis às garras da aflição. De repente escuta uma sirene. Sons confusos e amortecidos pelas paredes vão ganhando contornos estranhos em sua cabeça. Pessoas discutem, as vozes alteradas pela agitação e a raiva. Escuta xingamentos, gritos, urros de dor e o que parece ser uma movimentação de luta. Súbito, a porta é aberta com um estrondo de ferragens partidas e um homem é empurrado violentamente banheiro adentro. Ele bate com a cabeça no piso de ladrilhos. – Traidor! − berra o gigante
− Não faça isso, colombiano, tenha dó! − implora o homem com a voz engasgada. Em resposta, rajadas de tiros de fuzil desfolham o seu peito que se rompe como um vulcão em erupção. Uma larva gosmenta tinge o morto de vermelho. – Ninguna palabra, mujer − ordena o justiceiro mirando a mulher petrificada. A touca suja de sangue é jogada ao chão e com a mão faz um sinal inesperado para segui-lo. Dona Edite percebe que as pernas estão imobilizadas pelo terror. O gigante de botas se afasta e a velha senhora ganha fôlego e se joga sobressaltada em direção à porta tropeçando sobre o corpo do morto que estranhamente se contorce em convulsões.
Desorientada, ela se depara com a carnificina, o vestido florido empapado de sangue. Atravessa a sala onde corpos se espalham pelo chão. Gritos e batidas vindos do buraco agora tampado por pedras a confundem. Uma nuvem de calor e fumaça se eleva do chão e ela se desespera. O homem corre para o fundo do quintal e com precisão e agilidade afasta os móveis empilhados que escondem uma portinhola que se abre para o terreno baldio de uma rua próxima. Fora da casa, dona Edite por um instante tem a impressão de que a cabeça vai explodir. Repentinamente, ouve o ronco ruidoso de uma motocicleta que vem em sua direção. Travada pelo medo, as pernas não obedecem. O colombiano acelera em seus calcanhares. – Detrás − bufa o desconhecido em fuga, respingando saliva e indicando a garupa da motocicleta. A velha senhora é arrancada do solo por um braço pesado como um trator. Ela se agarra à cintura do homenzarrão enquanto a máquina saracoteia e ganha velocidade.
−Fogo! − berra alguém no fundo da rua. Dona Edite escuta, atrás de si, duas violentas explosões e o estrondo de uma casa vindo abaixo. Um furacão de poeira move-se velozmente sobre a rua. O colombiano faz uma manobra arriscada e por alguns segundos a mulher avista os escombros da creche e um carro da polícia encobertos pelas chamas e rolos de fumaça. Já na avenida principal, ziguezagueando entre os carros, o bandido se lança para o Complexo do Alemão, em um itinerário de incerteza e medo.
Alguns metros acima da entrada da favela, em um pequeno descampado, a velha senhora avista novamente o incêndio lá embaixo e a confusão que se formou. Pessoas deixando as suas casas, outras acorrendo ao local, curiosos já amontoados comentando a tragédia. Uma viatura dos bombeiros atravessa a rua na contramão com a sirene ligada. Em frente aos escombros da creche, voluntários tentam se aproximar do carro da polícia ainda em chamas.
Equilibrando-se
na garupa, dona Edite sente uma fisgada no peito quando o bandido se desvia de
uma carroça de bananas e a moto ameaça derrapar. A boca está seca, a cabeça lateja
e os braços e pernas entorpecidos. Olha para o alto e percebe que os bondinhos
do teleférico estão parados. Passageiros contrariados saltam nas estações.
− Tá pegando fogo lá na creche da rua das margaridas − grita o garoto para a jovem na janela que solta uma gargalhada estridente. O colombiano acelera e se envereda pelas ruelas íngremes, desviando-se de restos de comida, latas de cerveja, garrafas e pneus. Cachorros soltos, porcos e gatos famintos perambulam por entre roupas estendidas em varais improvisados em meio a criançada que corre pelas vielas sem ter o que fazer. A poucos metros do topo da favela, uma saraivada de tiros interrompe a corrida. A moto rodopia, estatela-se no barro e seus ocupantes rolam pelo matagal.
Dona Edite tem a queda amortecida pela copa de uma árvore e cai sobre os restos de um colchão imundo misturado ao lixo acumulado. Tenta se levantar a procura de um lugar para se esconder. Um corpo desconhecido cai ao seu lado, vísceras à mostra. O sangue espirra em seu rosto e ela fecha os olhos espavorida. A cabeça dói e um fiapo de líquido quente escorre pela face e pescoço. Nas lajes, a céu aberto, um pelotão de bandidos varre o espaço com uma torrente de disparos.
Desesperada,
ela se arrasta até um beco próximo. Espreme-se em um vão entre alguns casebres
e deixa o corpo exaurido cair ao chão. Os pés inchados dentro
dos tênis sujos de lama a enojam. O chão barrento exala forte fedor de
urina. Seus lábios balbuciam a oração dos aflitos até o cansaço, o
medo e a desesperança silenciá-los. Adormece e quando novamente abre os olhos
uma garoa umedece os barracos e luzes mortiças de algumas lâmpadas pintam
a escuridão. Levanta-se com dificuldade, sob o olhar curioso de um menino
que parece observá-la há algum tempo. – Como eu chego à estação do teleférico? −
pergunta, sentindo um fragmento de esperança. O vestido de fundo branco
salpicado de flores coloridas tornou-se um trapo amarfanhado e dona Edite tem
consciência de sua figura patética. O garoto de pouco mais de sete
anos chupa os dedos e leva alguns instantes até apontar a localização da
estação, um pouco abaixo de onde estavam.
No interior da cabine a velha senhora e o mendigo enrolado em uma manta são os únicos passageiros. O temor não a impede de embarcar. O relógio da estação marca quase dez horas da noite e o bondinho completa seu último trajeto até a avenida. A gigantesca favela parece blefar em um falso silêncio, espreguiçada como um paquiderme em vigília. A viagem se estende por intermináveis quinze minutos até a linha férrea. Desorientada, ela avista um táxi e solta um grito esganiçado. Joga-se no assento do carro e, antes mesmo de dizer para aonde vai, põe-se a soluçar. O taxista nota as condições deploráveis da mulher e aguarda alguns segundos. Indaga o que aconteceu. Dona Edite respira fundo. – Sem palavras, responde com um fio de voz. Finalmente consegue articular um pedido de socorro. − Me leva para a casa, pelo amor de Deus! Em seguida, ainda aterrorizada pelos acontecimentos se afunda no estofado e leva a mão trêmula ao coração. − Copacabana, por favor.
Publicado na antologia "Contos e Poemas Noturnos", vol.8 (agosto de 2025), da plataforma digital Revista Conexão Literária, do editor Ademir Pascale.