/ Sheila Sacks /
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Sentada no banquinho de madeira nos fundos da loja,
eu olhava fascinada papai desenhar as letras e os números nas páginas do
livro-caixa encadernado com uma brochura azul marinho. As palavras eram
escritas metricamente em cima das linhas, com arabescos que as tornavam
mágicas. Os valores numéricos também pareciam desenhos ornamentais que mexiam
com minha imaginação.
O pequeno escritório, protegido por um balcão
arredondado onde ficava a imponente máquina registradora de metal, abrigava uma
escrivaninha com tampo de vidro, um armário, a pequena geladeira e duas
cadeiras, uma delas maior, de madeira clara envernizada, com apoio para os
braços. Sobre a mesa ficavam o bloco de notas e o telefone preto que a primeira
chamada papai já atendia de forma elegante com a voz singular que todos elogiavam.
– Casa Carlos, boa tarde!
A mesa também comportava um pote bojudo de couro no
qual estavam três lápis pretos de meticulosas pontas finas e duas borrachas parecendo
goma de mascar, em suas cores laranja e azul, e mais o xodó de papai, o estojo
de camurça marrom forrado em seu interior de seda bege, onde era guardada a
caneta-tinteiro Parker usada para assinar documentos e recibos.
A loja tinha duas portas altas geminadas na entrada
e uma vitrine na qual eram exibidos panelas e faqueiros na parte de baixo, e
nas prateleiras superiores a “prata da casa”: jogos de pratos, xícaras e
sopeiras de porcelana inglesa; copos e taças de cristal lapidado da Boêmia;
vasos coloridos de vidro Murano; e, para o meu prazer infinito, os incríveis
bibelôs de porcelana alemã de Dresden, explicava papai, que reproduziam cenas
galantes do tempo de Luiz XV, quando os casais dançavam em jardins monumentais,
as damas de vestidos rendados e seus pares de jaquetas e coletes bordados.
No lado direito da loja onde armazenavam os
materiais de construção, as gavetinhas com os mais variados tamanhos de pregos
me mantinham fascinada. Observava “seu Silva” examinando com rigorosa atenção o
comprimento e as dimensões certas de cada preguinho conforme os pedidos dos
clientes e depois pesá-los na pequena balança de pratos de metal, um deles para
colocar a mercadoria e no outro os pesos de diversos tamanhos.
No balcão do lado esquerdo, papai comandava as
vendas das louças, sempre gentil no atendimento e distinto em suas camisas
sociais de algodão de cores claras e calças de linho. Os meus amados bibelôs,
ao lado de outros enfeites de porcelana e cristal, ficavam expostos aleatoriamente
nas compridas prateleiras no centro da loja. Ao fundo, no galpão, as folhas de
madeira ficavam empilhadas por tamanho e espessura, e uma enorme balança de
ferro servia para pesar os volumosos sacos de cimento e outros materiais
ensacados.
Meu irmão passava todo o tempo nessa área da loja. Ele
acompanhava o encarregado subir nas pilhas de madeira, escolher a que
considerava mais adequada e depois descer para serrar na medida certa. E,
compenetrado, ajudava a arrumar os sacos menores de pó de gesso que ficavam a alguns
metros de um pequeno banheiro.
Algumas tardes, depois da escola, nós visitávamos papai na loja. Essa atividade contava como um passeio especial, apesar de morarmos na mesma rua. Tínhamos que atravessar a avenida principal onde passavam o bonde e as lotações para alcançar a loja que ficava próxima à estação de trem.
Adorávamos esse passeio e na nossa chegada papai
largava o que estava fazendo e nos abraçava, sem esquecer, porém, de apontar
para o enorme relógio redondo na parede, perto do galpão. − Crianças, quando
marcar 4 horas, vocês se despedem e voltam para casa. Combinado?
Balançávamos as cabeças concordando com o veredito,
já esperando a recomendação que viria logo em seguida. − Com as mãozinhas
comportadas. Não mexam em nada, dizia, olhando para nós com aqueles olhos cor
do céu por trás dos óculos redondos de aros dourados.
Mas, diante da formosura e graciosidade dos
bibelôs, essa assertiva era difícil de cumprir. Só os olhos não davam conta de
tanta doçura. Desejava tê-los para mim, tocá-los, acariciá-los em seus
contornos emoldurados por flores, passarinhos e querubins.
Uma noite, na volta para a casa, papai trouxe uma
caixinha de música de madeira escura e a colocou sobre o buffet. Após o jantar,
abriu com cuidado a tampa e uma mimosa bailarina de saiote rosa surgiu em meio
a um forro de cetim escarlate e um espelho redondo ao fundo. Papai girou várias
vezes a pequena manivela dando corda como fazia todas as manhãs no relógio que
usava no pulso. Como por encanto a bailarina começou a girar suavemente sob um fundo musical que muitos anos depois
descobri ser uma canção de ninar do compositor Johannes Brahms.
A meu pedido, papai acomodou a caixinha de música aberta, com a bailarina à vista, ao lado dos três bibelôs que ele trouxera para a casa devido a pequenos defeitos. O conjunto ficou ainda mais destacado na majestosa cristaleira da sala, um móvel alto de madeira maciça com ornamentos entalhados e portas de vidro. Lá estavam o aparelho de porcelana de doze pratos e xícaras hexagonais com bordas prateadas, e os copos, taças e cálices com desenhos em alto relevo usados na páscoa e ano novo judaicos.
Uma noite acordei com um som que, a princípio,
pensei vir da rua. Pulei da cama e pela janela do quarto vi uma lua cheia,
redonda e brilhante no céu noturno. Percebi então que o som vinha da caixinha
de música e corri para a sala. Uma claridade prateada iluminava a cristaleira onde
a pequena bailarina dançava rodeada pelos alegres bibelôs. Estes se
movimentavam graciosamente ao som da música e as damas e os cavalheiros de
louça pareciam felizes com a novidade. Permaneci extasiada com aquela visão e me
senti transportada para uma esfera mágica além do real.
De manhã contei ao papai o que aconteceu à noite. Estava
radiante e ofegante. Ele me ouviu em silêncio e logo achou uma explicação, com
sua voz mansa e pausada. A corda deve ter se soltado e a trepidação fez os
bibelôs se mexerem, argumentou. – Mais tarde dou uma olhadinha na engrenagem, disse,
balançando minhas trancinhas arrumadas para ida à escola.
Os anos se passaram, trocamos de casa e de bairro, o mobiliário antigo substituído por outro mais contemporâneo. Uma tarde, vendo papai em sua poltrona preferida, absorto nas páginas de um livro, me lembrei dos bibelôs que dançavam e compreendi como papai foi sábio e generoso. Isso porque em nenhum momento ele questionou minha história, opinando que poderia ser fruto da minha imaginação ou simplesmente um sonho. Nem tampouco considerou que fosse um engano ou uma bobagem de criança. Eu tinha oito anos, era uma menina tagarela e inquieta. Papai ouviu o que eu disse e atencioso procurou uma resposta dentro da lógica de um adulto.
Apesar disso, durante um bom tempo eu tive a grata sensação
de que os bibelôs encantados, de maneira extraordinária e inexplicável, talvez sentindo
o imenso amor que eu tinha por eles, ganharam um breve sopro de vida e, sob a
noite enluarada, dançaram radiantes na cristaleira. Dois anos depois, para meu
desalento, os três ornamentos não resistiram às mãos pesadas dos carregadores
do caminhão de mudanças. Papai ainda tentou colar as pequenas figuras, mas sem
sucesso porque alguns pedacinhos se perderam.
Restou solitária a dançarina na caixinha de música
que sobreviveu mais alguns anos até que a ferrugem corroeu o mecanismo da corda
e os pinos que a sustentavam. Da loja, enfim, não sobrou nenhum bibelô para dar
vida à nova cristaleira, agora de madeira em tom vinho e embutida na parede.
Porém, afortunadamente, a sensação de magia, acompanhada
da alegria e entusiasmo tão próprios do mundo infantil, não se perdeu nos
intrincados ramais do tempo. Muitas noites, quando o vagão da memória me leva à
singular figura de meu pai e à extraordinária loja de bibelôs encantados, fecho
os olhos devagar e me entrego, em devaneio, a esses felizes instantes de
fantasia, saudade e gratidão.