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quinta-feira, 7 de agosto de 2025

A loja dos bibelôs encantados - Recordando papai

/ Sheila Sacks /

https://www.revistariototal.com.br/pais/sheilasacks.htm

Sentada no banquinho de madeira nos fundos da loja, eu olhava fascinada papai desenhar as letras e os números nas páginas do livro-caixa encadernado com uma brochura azul marinho. As palavras eram escritas metricamente em cima das linhas, com arabescos que as tornavam mágicas. Os valores numéricos também pareciam desenhos ornamentais que mexiam com minha imaginação.     

O pequeno escritório, protegido por um balcão arredondado onde ficava a imponente máquina registradora de metal, abrigava uma escrivaninha com tampo de vidro, um armário, a pequena geladeira e duas cadeiras, uma delas maior, de madeira clara envernizada, com apoio para os braços. Sobre a mesa ficavam o bloco de notas e o telefone preto que a primeira chamada papai já atendia de forma elegante com a voz singular que todos elogiavam.  – Casa Carlos, boa tarde!

A mesa também comportava um pote bojudo de couro no qual estavam três lápis pretos de meticulosas pontas finas e duas borrachas parecendo goma de mascar, em suas cores laranja e azul, e mais o xodó de papai, o estojo de camurça marrom forrado em seu interior de seda bege, onde era guardada a caneta-tinteiro Parker usada para assinar documentos e recibos.

A loja tinha duas portas altas geminadas na entrada e uma vitrine na qual eram exibidos panelas e faqueiros na parte de baixo, e nas prateleiras superiores a “prata da casa”: jogos de pratos, xícaras e sopeiras de porcelana inglesa; copos e taças de cristal lapidado da Boêmia; vasos coloridos de vidro Murano; e, para o meu prazer infinito, os incríveis bibelôs de porcelana alemã de Dresden, explicava papai, que reproduziam cenas galantes do tempo de Luiz XV, quando os casais dançavam em jardins monumentais, as damas de vestidos rendados e seus pares de jaquetas e coletes bordados.

No lado direito da loja onde armazenavam os materiais de construção, as gavetinhas com os mais variados tamanhos de pregos me mantinham fascinada. Observava “seu Silva” examinando com rigorosa atenção o comprimento e as dimensões certas de cada preguinho conforme os pedidos dos clientes e depois pesá-los na pequena balança de pratos de metal, um deles para colocar a mercadoria e no outro os pesos de diversos tamanhos.   

No balcão do lado esquerdo, papai comandava as vendas das louças, sempre gentil no atendimento e distinto em suas camisas sociais de algodão de cores claras e calças de linho. Os meus amados bibelôs, ao lado de outros enfeites de porcelana e cristal, ficavam expostos aleatoriamente nas compridas prateleiras no centro da loja. Ao fundo, no galpão, as folhas de madeira ficavam empilhadas por tamanho e espessura, e uma enorme balança de ferro servia para pesar os volumosos sacos de cimento e outros materiais ensacados.

Meu irmão passava todo o tempo nessa área da loja. Ele acompanhava o encarregado subir nas pilhas de madeira, escolher a que considerava mais adequada e depois descer para serrar na medida certa. E, compenetrado, ajudava a arrumar os sacos menores de pó de gesso que ficavam a alguns metros de um pequeno banheiro.  

Algumas tardes, depois da escola, nós visitávamos papai na loja. Essa atividade contava como um passeio especial, apesar de morarmos na mesma rua. Tínhamos que atravessar a avenida principal onde passavam o bonde e as lotações para alcançar a loja que ficava próxima à estação de trem.

Adorávamos esse passeio e na nossa chegada papai largava o que estava fazendo e nos abraçava, sem esquecer, porém, de apontar para o enorme relógio redondo na parede, perto do galpão. − Crianças, quando marcar 4 horas, vocês se despedem e voltam para casa. Combinado?

Balançávamos as cabeças concordando com o veredito, já esperando a recomendação que viria logo em seguida. − Com as mãozinhas comportadas. Não mexam em nada, dizia, olhando para nós com aqueles olhos cor do céu por trás dos óculos redondos de aros dourados.

Mas, diante da formosura e graciosidade dos bibelôs, essa assertiva era difícil de cumprir. Só os olhos não davam conta de tanta doçura. Desejava tê-los para mim, tocá-los, acariciá-los em seus contornos emoldurados por flores, passarinhos e querubins.

Uma noite, na volta para a casa, papai trouxe uma caixinha de música de madeira escura e a colocou sobre o buffet. Após o jantar, abriu com cuidado a tampa e uma mimosa bailarina de saiote rosa surgiu em meio a um forro de cetim escarlate e um espelho redondo ao fundo. Papai girou várias vezes a pequena manivela dando corda como fazia todas as manhãs no relógio que usava no pulso. Como por encanto a bailarina começou a girar suavemente  sob um fundo musical que muitos anos depois descobri ser uma canção de ninar do compositor Johannes Brahms.

A meu pedido, papai acomodou a caixinha de música aberta, com a bailarina à vista, ao lado dos três bibelôs que ele trouxera para a casa devido a pequenos defeitos. O conjunto ficou ainda mais destacado na majestosa cristaleira da sala, um móvel alto de madeira maciça com ornamentos entalhados e portas de vidro. Lá estavam o aparelho de porcelana de doze pratos e xícaras hexagonais com bordas prateadas, e os copos, taças e cálices com desenhos em alto relevo usados na páscoa e ano novo judaicos.

Uma noite acordei com um som que, a princípio, pensei vir da rua. Pulei da cama e pela janela do quarto vi uma lua cheia, redonda e brilhante no céu noturno. Percebi então que o som vinha da caixinha de música e corri para a sala. Uma claridade prateada iluminava a cristaleira onde a pequena bailarina dançava rodeada pelos alegres bibelôs. Estes se movimentavam graciosamente ao som da música e as damas e os cavalheiros de louça pareciam felizes com a novidade. Permaneci extasiada com aquela visão e me senti transportada para uma esfera mágica além do real.

De manhã contei ao papai o que aconteceu à noite. Estava radiante e ofegante. Ele me ouviu em silêncio e logo achou uma explicação, com sua voz mansa e pausada. A corda deve ter se soltado e a trepidação fez os bibelôs se mexerem, argumentou. – Mais tarde dou uma olhadinha na engrenagem, disse, balançando minhas trancinhas arrumadas para ida à escola.   

Os anos se passaram, trocamos de casa e de bairro, o mobiliário antigo substituído por outro mais contemporâneo. Uma tarde, vendo papai em sua poltrona preferida, absorto nas páginas de um livro, me lembrei dos bibelôs que dançavam e compreendi como papai foi sábio e generoso. Isso porque em nenhum momento ele questionou minha história, opinando que poderia ser fruto da minha imaginação ou simplesmente um sonho. Nem tampouco considerou que fosse um engano ou uma bobagem de criança.  Eu tinha oito anos, era uma menina tagarela e inquieta. Papai ouviu o que eu disse e atencioso procurou uma resposta dentro da lógica de um adulto.

Apesar disso, durante um bom tempo eu tive a grata sensação de que os bibelôs encantados, de maneira extraordinária e inexplicável, talvez sentindo o imenso amor que eu tinha por eles, ganharam um breve sopro de vida e, sob a noite enluarada, dançaram radiantes na cristaleira. Dois anos depois, para meu desalento, os três ornamentos não resistiram às mãos pesadas dos carregadores do caminhão de mudanças. Papai ainda tentou colar as pequenas figuras, mas sem sucesso porque alguns pedacinhos se perderam.

Restou solitária a dançarina na caixinha de música que sobreviveu mais alguns anos até que a ferrugem corroeu o mecanismo da corda e os pinos que a sustentavam. Da loja, enfim, não sobrou nenhum bibelô para dar vida à nova cristaleira, agora de madeira em tom vinho e embutida na parede.  

Porém, afortunadamente, a sensação de magia, acompanhada da alegria e entusiasmo tão próprios do mundo infantil, não se perdeu nos intrincados ramais do tempo. Muitas noites, quando o vagão da memória me leva à singular figura de meu pai e à extraordinária loja de bibelôs encantados, fecho os olhos devagar e me entrego, em devaneio, a esses felizes instantes de fantasia, saudade e gratidão.