/ Agente
da Inteligência viveu infiltrado na comunidade judaica argentina /
Sheila Sacks /
Por quinze anos, de 1985 a
2000, um policial federal da Inteligência frequentou centros judaicos de Buenos
Aires, se passando por judeu e ganhando a confiança e a simpatia da comunidade.
Nesse período, houve dois sangrentos atentados terroristas na capital portenha
e apesar da notória participação do Irã e do Hezbollah, torna-se cada vez mais consolidado
o envolvimento de agentes locais nos ataques que permanecem, mais de duas
décadas depois, sem um desfecho criminal e jurídico conclusivo.
A revelação veio à tona
através de um livro publicado no final de 2015 por Horacio Lutzky e Miriam
Lewin, intitulado “Iosi: El espía arrepentido”. Os autores foram procurados
pelo policial, ainda na década de 2000, que se mostrou arrependido e disposto a
contar tudo o que sabia da operação. Foram anos de conversas secretas, averiguações
e contatos com centros judaicos internacionais e organizações de direitos
humanos, até o seu afastamento definitivo do órgão de inteligência. Temendo por
sua segurança, o agente ingressou no Programa de Proteção à Testemunha e assim
permanece escondido até hoje, com nova identidade e paradeiro ignorado.
Segundo o relato, fez
parte de sua preparação estudar os costumes judaicos e aprender o hebraico. Sua
performance foi tão convincente que ele se tornou dirigente de uma instituição
judaica, também comandou uma entidade juvenil sionista, esteve várias vezes na
embaixada de Israel e chegou a casar com uma jovem da comunidade, com quem teve
um filho.
Informações privilegiadas
Usando o nome fictício de
José Pérez, ou Iosi, o policial foi escalado por seus superiores para a missão
de investigar e colher informações, dentro da comunidade judaica, sobre um fantasioso
plano que atribuía aos judeus a suposta intenção de promover um estado judaico-sionista na
Patagônia.
Cumprindo ordens
superiores, o agente se passou por judeu durante uma década e meia, fornecendo
informações privilegiadas sobre membros da comunidade e repassando dados de
segurança de organizações judaicas, notadamente sobre a AMIA (Associação Mutual
Israelita Argentina), vítima do terrível atentado de 18 de julho de 1994.
No prédio também funcionava a Delegação de Associações Israelitas Argentinas (DAIA), e no ataque morreram 85 pessoas e 300 ficaram feridas. Foi o maior atentado à bomba contra uma entidade judaica desde o fim do Holocausto. Era uma segunda-feira, um dia depois da vitória do Brasil no final da Copa do Mundo, em San Diego, na Califórnia.
Dois anos antes, a Embaixada de Israel na capital argentina já tinha sofrido um ataque terrorista, em 17de março de 1992, quando morreram 29 pessoas e mais de 200 ficaram feridas. Em ambos os ataques, terroristas suicidas estacionaram os veículos carregados de explosivos em frente aos prédios e acionaram os dispositivos.
O atentado à embaixada ocorreu na parte da tarde, às 14h45, na rua Arroyo, no bairro Retiro, a dois quarteirões da embaixada brasileira. Em segundos, o antigo palacete Lastra e seu entorno ficaram destruídos. Também foram atingidas as fachadas de uma escola primária e uma casa geriátrica. Vinte e nove dias antes da explosão, o então secretário-geral do Hezbollah, Abbas al-Musawi , havia sido assassinado e o Irã culpou Israel.
O ataque ao prédio da AMIA foi às 9h53, no bairro comercial conhecido como Once, no centro de Buenos Aires. A construção datava de 1945 e a explosão matou 67 pessoas no seu interior e 18 que andavam na calçada ou estavam nos prédios vizinhos. Cinco anos depois, o novo prédio da AMIA foi reaberto, no mesmo local do anterior, na rua Pasteur 633. Em 2018, um imenso painel de 30 metros de altura – O Mural da Memória - criado pelo artista plástico Martin Ronh, foi instalado ao lado da sede da AMIA, em homenagem às vítimas.
Depoimento
a Nisman
Em julho de 2014, um ano e
meio antes da publicação do livro de Lutzky e Lewin, o promotor do caso AMIA,
Alberto Nisman, depois de ouvir o depoimento do espião, então com 54 anos,
determinou a sua inclusão no programa de Proteção à Testemunha do Ministério da
Justiça. Na ocasião, Nisman afirmou à imprensa que iria analisar com seus
colaboradores o depoimento de Pérez para estudar os procedimentos a serem
realizados.
Seis meses depois, em
janeiro de 2015, Nisman, de 51 anos, foi encontrado morto em seu apartamento em
um crime ainda sem solução. Ele estava prestes a apresentar denúncia no
Congresso contra a presidente Cristina
Kirchner e outras altas autoridades por encobrir os envolvidos no ataque
à entidade judaica. O curioso é que os sete promotores que sucederam Nizman, na
unidade especial que cuida do ataque à AMIA, não levaram adiante as
investigações, a partir das informações do agente registradas nos arquivos daquela
unidade de promotoria.
Em seu depoimento, Iosi afirmou que seguia ordens diretas do órgão de Inteligência Nacional, foi secretário adjunto da Organização Sionista Argentina, tinha funções de segurança na própria AMIA e acesso às chaves do prédio. Pouco antes do ataque, ele entregou mapas e planos da histórica sede da Associação aos seus superiores.
Pista
ignorada
Para os autores do livro,
publicado meses depois do assassinato de Nizman, Iosi pode ser a porta de
entrada para a identificação da conexão local com o grupo terrorista Hezbollah
e os diplomatas iranianos acusados do crime. Eles estão convictos de que a
predominância de interesses indizíveis está no cerne do alegado desinteresse
por parte das autoridades em relação a essa trilha investigativa.
Opinião compartilhada pela representante da Associação para o Esclarecimento do Massacre Impune da AMIA (APEMIA), Laura Ginsberg, que enfatiza a responsabilidade do estado argentino não só no acobertamento dos envolvidos, mas até na própria prática do atentado. “O atentado à AMIA foi uma operação controlada pelo próprio SIDE (Secretaria de Inteligência de Estado), não pela inteligência iraniana”, acusa.
Segundo Ginsberg, que
perdeu o marido no atentado, as posições da AMIA e da DAIA também são
questionáveis em relação à política de encobrimento que se arrasta por mais de
um quarto de século. O que é contestado pela direção da AMIA que argumenta que
não cabe à entidade judaica “conduzir o litígio”, e sim as autoridades
argentinas.
A representante da APEMIA lembra
que já se sucederam oito governos desde o atentado e todos optaram por ocultar
a responsabilidade do Estado no crime. “ Querem fazer de conta que um comando
árabe entrou na Argentina, colocou uma bomba no coração de Buenos Aires e
cometeu um assassinato sem que ninguém aqui estivesse envolvido.”
Prédios
em reforma
A tese é corroborada por técnicos e estudiosos do caso AMIA que sustentam que existe uma notável coincidência nos ataques aos prédios da instituição judaica e da embaixada de Israel. Ambos estavam em reforma, motivo pelo qual havia sacos com material de construção na parte frontal, sem que fosse averiguado seu conteúdo. Nesses sacos poderiam estar os explosivos denotados remotamente pelo lado de fora.
Também na noite anterior foi observado o sobrevoo de um helicóptero da polícia federal que iluminou o prédio por alguns minutos, com um refletor. No dia de ambos os ataques, os policiais que normalmente faziam plantão, não foram vistos. Outro detalhe apontado diz respeito às crateras que deveriam estar bem visíveis nos locais onde estariam os carros-bombas estacionados que explodiram.
Nesse rol de absolvições
conta-se ainda a do falecido presidente Carlos Menem (no cargo de 1989 a 1999),
processado em 2009 por acobertamento de provas. Seu advogado justificou, durante
o julgamento, que Menem “poderia revelar segredos para testemunhar, mas por
razões de segurança do Estado isso afetaria o governo, os interesses da nação e
a relação pacífica da Argentina com outras nações”. Menem foi absolvido em
fevereiro de 2019. Também ganhou absolvição o ex-dirigente
da DAIA na década de 1990, Rubén Bereja, processado em 2006 por favorecer
supostos desvios da linha de investigação.
Restaram condenados a
penas brandas e recorríveis de quatro a seis anos de prisão, um ex-juiz do
caso, Juan Galeano, o ex-chefe da SIDE no governo Menen, Hugo Anzorreguy, ambos acusados de coerção e desvios na investigação, e o proprietário da van usada no ataque,
Carlos Telleldín, que já havia cumprido pena em outro julgamento e acabou sendo
absolvido no final do ano passado.
Teoria
da conspiração
Uma prévia do livro publicada no site da revista digital Anfíbia, da Universidade Nacional de San Martin, de Buenos Aires, apresenta o espião contando sua história, na primeira pessoa. Em um trecho, ele diz: “Desde 1985, meu trabalho como policial consistia em me infiltrar nas entidades da comunidade judaica para obter informações sobre seus planos secretos. Todas as atividades de seus grupos e seus líderes tiveram que ser relatadas por mim. Mas o essencial era descobrir como os judeus se organizavam para levar a cabo o projeto de conquistar parte do solo argentino e converter a Patagônia em um de seus domínios, como advertia o plano Andinia.”
Sobre essa missão específica, o agente
relata: “Fui líder de grupos universitários e - não sei bem em
que momento ocorreu - comecei a me sentir muito à vontade no grupo social no
qual transcorria minha vida. Eu não tinha encontrado nenhuma conspiração
obscura, nada do que os textos antissemitas previam e que norteavam meus
superiores.”
Segundo o professor Ernesto Bohoslavsky, da Universidade Nacional de General Sarmiento, em
Buenos Aires, o fomento dessa disparatada teoria conspiratória, o tal plano
Andinia, teve nos filhos de carrasco nazista Adolf Eichman,na década de 1960,
seus maiores disseminadores, após o pai ser capturado e levado a julgamento em
Israel. Eles fundaram a Frente Nacional Socialista Argentina (FNSA), ligada a
redes internacionais do neonazismo e à extrema direita, que difundia, de forma
clandestina, supostas conspirações bolchevistas-judaicas para dominar o país.
Com o passar dos anos, essa fake
news antissemita ganhou contornos piores e versões mais abjetas e absurdas,
culminando, em 1965, com uma publicação apócrifa, de autor anônimo, encampada
por alas peronistas e posteriormente recriada, em novas versões, nas décadas de
1970 e 1980, no submundo de figuras neonazistas da Argentina e do Chile.
Pormenores do prédio
O agente conta que o atentado contra a embaixada, em 1992, o fez acreditar que as informações que transmitia poderiam estar sendo usadas para outros fins: “Quando a bomba explodiu na embaixada de Israel, pouco depois de ter uma reunião cancelada, comecei a me perguntar se as informações que repassava aos meus superiores em reuniões secretas não haviam contribuído para o atentado. Depois da explosão na AMIA (1994), não tive mais dúvidas. Pediram-me pormenores do edifício, deixei nas mãos dos meus chefes uma planta da sede, comuniquei movimentos, nomes, responsabilidades e horários.”
O agente também relata que participou de grupos de jovens
judeus encarregados da segurança de instituições comunitárias, clubes, escolas
e sinagogas. “Meus chefes começaram
a suspeitar de mim quando ao me pedirem sobrenomes e locais de treinamento desses
grupos eu respondi evasivamente. Eles então me transferiram para o
interior do país e me designaram para tarefas burocráticas.”
Com medo de ser morto, Iosi buscou
apoio em Lutzki e Lewin, que conheceu
na comunidade judaica. O primeiro, advogado, professor e editor de um jornal
comunitário, e Lewin, uma jornalista investigativa com trabalhos importantes em
rádio e televisão. Durante anos os autores tentaram sensibilizar organizações
de direitos humanos internacionais em busca de suporte e proteção ao testemunho
do agente, mas a situação delicada do caso, envolvendo o governo e a justiça da
Argentina, afastou possíveis ajudas e comprometimentos.
Pérez ou Iosi afirma que guardou
evidências de seu trabalho, documentos, atas e credenciais, mas que pouco
adiantou. “Agora sou uma testemunha protegida, que deve permanecer escondida,
com tudo que eu sei. Porque foi isso que o procurador Alberto Nisman determinou.
Mas ele apareceu morto e não sei o que fazer”, desabafa.
Escondido
e subestimado
Mais de cinco anos se passaram desde o
lançamento do livro e o policial arrependido permanece escondido. Os superiores
de Iosi, quando convocados por Nizman, minimizaram as informações fornecidas
pelo subalterno e não houve tempo hábil para eventuais desdobramentos do depoimento
porque meses depois Nizman foi vítima de um homicídio, igualmente não
esclarecido.
Em 2020, em um evento virtual lembrando
as vítimas do ataque, o atual presidente da AMIA, Ariel
Eichbau, destacou o envolvimento da chamada “conexão local” na ação terrorista,
ressaltando que “está
comprovado que os réus não poderiam atuar sozinhos, sem o apoio local”. Vale lembrar que em 2006 Nizman pediu à
Interpol a captura internacional de dez iranianos acusados do ataque, entre
eles, um ex- presidente e seus dois ministros, membros consulares e ex-chefes
do Hezbollah. Todos permanecem soltos e sem punição.
De acordo com Nizman, o Irã foi o autor
ideológico e financeiro do atentado, o Hezbollah, o executor, e a nível
nacional “alguém teve de encobrir os fatos”. A pergunta que se faz, tanto tempo depois, ainda
continua sem resposta: Quem colocou a bomba que explodiu o prédio da AMIA?
O livro de Lutzki e Lewin pretende ser um caminho para o encontro de uma resposta, mas é também mais uma das muitas peças que se somam a esse intrincado quebra-cabeça cuja solução parece se tornar mais distante à medida que os anos passam. No mês passado (março), a incrível historia de Iosi e sua vivência como espião infiltrado na comunidade judaica de Buenos Aires - a segunda maior das Américas, depois de Nova York - começou a ser filmada no Uruguai, em formato de seriado para TV. Sob a direção dos cineastas argentinos Daniel Burman e Sebastian Borensztein, e produzida pela Amazon Prime, a série tem lançamento mundial previsto para o final do ano.
Perigo presente
Enquanto isso, reavivando o trauma que se mantém presente na comunidade judaica argentina, em novembro do ano passado (2020) um alerta enviado à embaixada da Argentina no Reino Unido dava conta de um possível transporte de nitrato de amônia - um componente usado em fertilizante e para fabricar explosivo - em território nacional, por pessoa vinda de um país vizinho. O e-mail anônimo dizia que a carga teria como alvo uma entidade judaica.
De imediato acendeu o alarme vermelho porque três meses antes, em agosto, uma grande explosão no Porto de Beirute confirmou a ligação do Hezbollah, que tem sede no Líbano, com o nitrato de amônia. A explosão ocorreu em um depósito onde estava estocada a substância, causando a morte de mais de 200 pessoas e com milhares de feriados.
Na ocasião, o então coordenador geral dos Estados Unidos contra terrorismo global, Nathan Sales, declarou que a organização xiita, desde 2012, montou depósitos de nitrato de amônia em toda a Europa, se utilizando do transporte de kits de primeiros socorros cujas embalagens refrigeradas contêm as substâncias.
Especialistas de geopolítica ambiental dizem que a menção desse material é recorrente em relatórios de órgãos de Inteligência sobre as atividades terroristas do Hezbollah, incluindo a explosão do prédio da AMIA. Segundo os investigadores, a van usada no ataque continha entre 300 a 400 quilos de um composto de nitrato de amônia, alumínio, dinamite e nitroglicerina.