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terça-feira, 2 de setembro de 2025

China em alta no Brasil apesar das críticas de organizações de direitos humanos

/ Sheila Sacks /

Pesquisa Quaest divulgada em 26/8/2025 mostra um aumento da percepção positiva dos brasileiros em relação à China. Houve uma alta de 11pontos em relação a fevereiro, evoluindo de 38% para 49% os percentuais dos que veem o país asiático de forma favorável. O levantamento também detalha que a China lidera a aprovação entre os mais pobres (45%).

A mídia nacional interpretou o tarifaço de Trump (50%) aos produtos brasileiros  como o principal fator de influência na sondagem, visto que a percepção negativa em relação aos Estados Unidos aumentou de 24% para 48%. Mas, entre os brasileiros que recebem mais de 5 salários mínimos, a avaliação positiva aos EUA lidera com 53%, aponta o mesmo levantamento. 

A China é o terceiro maior país do mundo em extensão territorial, só perdendo para a Rússia e o Canadá.  Uma em cada cinco pessoas no mundo (1,4 bilhão) vive na China que até 2023 era o país mais populoso. Atualmente cabe à Índia esse título. O salário mínimo mensal é de 378 dólares mensais (2.740 yens chineses ou em torno de 2 mil reais), de acordo com a plataforma digital China Briefing. Já a média salarial de profissionais qualificados de nível superior, como médico, engenheiro ou advogado, pode variar de 2 a 3 mil dólares mensais, com o setor estatal pagando os salários mais altos.

Vigilância e intimidação

De acordo com o relatório anual da Anistia Internacional sobre os direitos humanos no mundo, disponibilizado em abril deste ano em sua plataforma on-line, o governo chinês continua a aplicar leis e políticas repressivas que restringem o direito à liberdade de expressão e à liberdade religiosa. Ao longo de 2024, defensores dos direitos humanos foram perseguidos, processados ​​e condenados a longas penas de prisão. Ativistas que viviam no exterior enfrentaram ameaças e intimidação. Líderes religiosos foram presos e novos regulamentos limitando ainda mais a liberdade de religião e crença entraram em vigor no país.

“Novos regulamentos foram emitidos pelo ministério de Segurança concedendo poderes adicionais aos agentes da lei para inspecionar dispositivos eletrônicos, incluindo os de visitantes estrangeiros na China”, afirma o documento, que destaca ainda outros pontos de assédio e constrangimento:

- estudantes chineses, alunos em universidades na Europa Ocidental e Estados Unidos enfrentaram vigilância e censura on-line e off-line por parte de agentes estatais;

- defensores dos direitos humanos, incluindo ativistas, advogados e jornalistas continuaram a enfrentar intimidação, assédio, detenção arbitrária, tortura e maus-tratos;

- regulamentos religiosos sofreram revisões mais restritivas e entraram em vigor limitando ainda mais a liberdade de religião e crença;

– o acesso às informações sobre segredos de Estado, incluindo a aplicação da pena de morte, ficou ainda mais rigoroso pelas revisões da Lei de Proteção de Segredos de Estado;

- o espaço para a liberdade de expressão, já altamente cerceado pela Lei de Segurança Nacional (NSL) e outras leis repressivas, diminuiu ainda mais;

- e em Hong Kong uma nova lei de segurança nacional restringiu ainda mais o espaço cívico e dezenas de ativistas pró-democracia foram condenados a duras penas de prisão.

Órgão jurídico da ONU faz alerta

O relatório da Anistia, disponível na internet, cita datas, locais e os nomes de ativistas, artistas, intelectuais, juízes, advogados e jornalistas detidos e presos por expressarem suas opiniões. A ONG também nomeou a China como o “principal carrasco do mundo”, com milhares de pessoas sendo executadas, 40% relacionadas ao tráfico de drogas. Na ONU, a Relatora Especial sobre a Independência de Juízes e Advogados, Margaret Satterthwaite, expressou preocupação “sobre as restrições administrativas, criminalização e outros padrões de interferência no trabalho de advogados”. Para a Relatora, “advogados de direitos humanos que trabalham em casos delicados foram particularmente visados”.

Em relação às restrições religiosas, a Catholic News Agency (CNA), em artigo publicado em 21/10/2024, revelou a repressão a 10 bispos católicos chineses por resistirem a se submeter ao controle estatal da Associação Católica Patriótica Chinesa (CPCA), uma organização ligada ao Partido Comunista que na prática exerce vigilância e emite diretrizes para os religiosos.  A informação está contida no relatório “Ten Persecuted Catholic Bishops in China”, do Hudson Institute, uma instituição americana de pesquisa sobre questões da atualidade.  Alguns religiosos estão presos, como o bispo Bispo Julius Jia Zhiguo, de 90 anos, cujo “crime” foi ter permitido que hinos fossem cantados em sua igreja sem a permissão do governo.

De acordo com a autora do relatório, a advogada de direitos humanos Nina Shea, a repressão religiosa à Igreja Católica da China se intensificou desde o acordo China-Vaticano de 2018 sobre a nomeação de bispos. Sete desses bispos foram detidos sem o devido processo legal, alguns deles sob prisão contínua,, enquanto outros foram presos repetidamente, até seis vezes desde a assinatura do acordo.

Em 2024, a Santa Sé e a República Popular da China prorrogaram a validade deste acordo provisório por mais quatro anos. O Vaticano justificou a medida como uma forma de prosseguir na abertura de um “diálogo respeitoso e construtivo com a parte chinesa, para o desenvolvimento das relações bilaterais visando o bem da Igreja Católica no país e de todo o povo chinês”. Antes do acordo, as ordenações episcopais eram realizadas sem o consentimento do papado.

Lembrando ainda que a Organização Repórteres Sem Fronteiras classificou a China como "a maior prisão de jornalistas do mundo".  Em seu relatório de 2025, a ONG internacional denuncia que atualmente mais de 100 jornalistas estão presos em condições severas no país, inclusive a jornalista Zhang Zhan que divulgou a epidemia de Covid-19. Ela cumpriu pena de quatro anos de prisão e voltou a ser detida em agosto do ano passado. No ranking de 180 países, a China ocupa a 3ª posição como um dos piores lugares para jornalistas trabalharem e viverem, perdendo apenas para a Coreia do Norte e a Eritreia.

O documento também relata que todos os dias o Departamento de Propaganda do Partido Comunista envia aos meios de comunicação uma lista detalhada de tópicos a serem destacados e outra de tópicos cuja abordagem é proibida, sob pena de sanções.

 

domingo, 31 de agosto de 2025

Sem palavras - uma aventura urbana

 / Sheila Sacks /

Pela segunda vez dona Edite repete o longo trajeto de Copacabana ao bairro de Bonsucesso, na Zona Norte, para finalizar a promessa assumida pelo pronto restabelecimento de uma prima muito querida. A doação seria para uma creche mantida por uma dessas organizações sociais de ajuda ao próximo. Entorpecida pela viagem, os pensamentos vagam perdidos entre as fronteiras do consciente e do sono. Sorri ao lembrar a garotada da creche. Tem 70 anos e o físico esbelto a faz esquecer a idade.

Um tempo depois o táxi diminui a velocidade e estaciona em uma rua que parece desabitada. A via silenciosa avança por dezenas de metros até uma pequena praça de terra batida. − A senhora trouxe o endereço? − pergunta o taxista olhando ao redor. − Estou na dúvida sobre a rua, diz. Dona Edite abre a bolsa e procura o papel onde anotou o endereço. Tinha esquecido em cima da cômoda. − É aqui mesmo – afirma, reconhecendo o muro em frente. Desce do táxi. No céu, as nuvens se acumulam.

Encimado por pontudos cacos de vidros, o muro de cimento é um desafio a possíveis intrusos. Dona Edite toca a campainha já antevendo o abraço afetuoso da risonha atendente. Enquanto espera, alça a vista para o horizonte recortado pela admirável estrada suspensa do teleférico que se estende sobre o conjunto de favelas do Alemão, uma cidadela fortificada e inexpugnável.

Postada na calçada, pressiona mais uma vez o botão vermelho instalado na frente do muro. Finalmente o portão é aberto e um sujeito de boca murcha, cabelos ralos e com as roupas sujas de massa e tinta assoma à soleira. − A creche está em obra, madame − apressa-se em explicar. E emenda: − Só volta a funcionar na semana que vem.

Dona Edite sente que a bexiga fraca dá sinais preocupantes. De supetão ela cruza o portão sem dar tempo ao homem de impedi-la. − Preciso usar o toalete. É rapidinho e sei o caminho − vai dizendo enquanto aperta o passo. Mas logo sente uma pressão violenta na nuca e se dá conta de que a arrastam para o interior da casa. É largada em frente a uma enorme cratera escancarada no centro da sala. Operários de torsos nus empilham sacos de entulho trazidos do fundo do buraco que se alonga em um túnel por debaixo da casa, em direção, talvez, à agência bancária instalada a poucos metros da esquina. Outros cavam a terra dura e escura. Atônita, dona Edite percebe alguns homens fardados. Um deles se aproxima, o rosto oculto por uma touca de malha. Das fendas do gorro, dois olhos cinzentos e frios a avaliam. − Deje la bolsa acá − ordena. O portunhol range na voz cavernosa do gigante. Ele usa coturnos emborrachados e colete à prova de bala. Aponta o banheiro. –Adelante, vá.

No estreito banheiro dona Edite se vê sem os documentos, dinheiro, celular, relógio e sua inseparável sombrinha. Ela se abandona desolada sobre o tampo do vaso sanitário. As horas passam impassíveis às garras da aflição. De repente escuta uma sirene. Sons confusos e amortecidos pelas paredes vão ganhando contornos estranhos em sua cabeça. Pessoas discutem, as vozes alteradas pela agitação e a raiva. Escuta xingamentos, gritos, urros de dor e o que parece ser uma movimentação de luta. Súbito, a porta é aberta com um estrondo de ferragens partidas e um homem é empurrado violentamente banheiro  adentro. Ele bate com a cabeça no piso de ladrilhos. – Traidor! − berra o gigante

− Não faça isso, colombiano, tenha dó! − implora o homem com a voz engasgada. Em resposta, rajadas de tiros de fuzil desfolham o seu peito que se rompe como um vulcão em erupção. Uma larva gosmenta tinge o morto de vermelho. – Ninguna palabra, mujer − ordena o justiceiro mirando a mulher petrificada. A touca suja de sangue é jogada ao chão e com a mão faz um sinal inesperado para segui-lo. Dona Edite percebe que as pernas estão imobilizadas pelo terror. O gigante de botas se afasta e a velha senhora ganha fôlego e  se joga sobressaltada em direção à porta tropeçando sobre o corpo do morto que estranhamente se contorce em convulsões.

Desorientada, ela se depara com a carnificina, o vestido florido empapado de sangue. Atravessa a sala onde corpos se espalham pelo chão. Gritos e batidas vindos do buraco agora tampado por pedras a confundem. Uma nuvem de calor e fumaça se eleva do chão e ela se desespera. O homem corre para o fundo do quintal e com precisão e agilidade afasta os móveis empilhados que escondem uma portinhola que se abre para o terreno baldio de uma rua próxima. Fora da casa, dona Edite por um instante tem a impressão de que a cabeça vai explodir. Repentinamente, ouve o ronco ruidoso de uma motocicleta que vem em sua direção. Travada pelo medo, as pernas não obedecem. O colombiano acelera em seus calcanhares. – Detrás − bufa o desconhecido em fuga, respingando saliva e indicando a garupa da motocicleta. A velha senhora é arrancada do solo por um braço pesado como um trator. Ela se agarra à cintura do homenzarrão enquanto a máquina saracoteia e ganha velocidade.

−Fogo! − berra alguém no fundo da rua. Dona Edite escuta, atrás de si, duas violentas explosões e o estrondo de uma casa vindo abaixo. Um furacão de poeira move-se velozmente sobre a rua. O colombiano faz uma manobra arriscada e por alguns segundos a mulher avista os escombros da creche e um carro da polícia encobertos pelas chamas e rolos de fumaça. Já na avenida principal, ziguezagueando entre os carros, o bandido se lança para o Complexo do Alemão, em um itinerário de incerteza e medo.

Alguns metros acima da entrada da favela, em um pequeno descampado, a velha senhora avista novamente o incêndio lá embaixo e a confusão que se formou. Pessoas deixando as suas casas, outras acorrendo ao local, curiosos já amontoados comentando a tragédia. Uma viatura dos bombeiros atravessa a rua na contramão com a sirene ligada. Em frente aos escombros da creche, voluntários tentam se aproximar do carro da polícia ainda em chamas.

Equilibrando-se na garupa, dona Edite sente uma fisgada no peito quando o bandido se desvia de uma carroça de bananas e a moto ameaça derrapar. A boca está seca, a cabeça lateja e os braços e pernas entorpecidos. Olha para o alto e percebe que os bondinhos do teleférico estão parados. Passageiros contrariados saltam nas estações.

− Tá pegando fogo lá na creche da rua das margaridas − grita o garoto para a jovem na janela que solta uma gargalhada estridente. O colombiano acelera e se envereda pelas ruelas íngremes, desviando-se de restos de comida, latas de cerveja, garrafas e pneus. Cachorros soltos, porcos e gatos famintos perambulam por entre roupas estendidas em varais improvisados em meio a criançada que corre pelas vielas sem ter o que fazer. A poucos metros do topo da favela, uma saraivada de tiros interrompe a corrida. A moto rodopia, estatela-se no barro e seus ocupantes rolam pelo matagal. 

Dona Edite tem a queda amortecida pela copa de uma árvore e cai sobre os restos de um colchão imundo misturado ao lixo acumulado. Tenta se levantar a procura de um lugar para se esconder. Um corpo desconhecido cai ao seu lado, vísceras à mostra. O sangue espirra em seu rosto e ela fecha os olhos espavorida.  A cabeça dói e um fiapo de líquido quente escorre pela face e pescoço. Nas lajes, a céu aberto, um pelotão de bandidos varre o espaço com uma torrente de disparos.

Desesperada, ela se arrasta até um beco próximo. Espreme-se em um vão entre alguns casebres e deixa o corpo exaurido cair ao chão. Os pés inchados dentro dos tênis sujos de lama a enojam. O chão barrento exala forte fedor de urina. Seus lábios balbuciam a oração dos aflitos até o cansaço, o medo e a desesperança silenciá-los. Adormece e quando novamente abre os olhos uma garoa umedece os barracos e luzes mortiças de algumas lâmpadas pintam a escuridão. Levanta-se com dificuldade, sob o olhar curioso de um menino que parece observá-la há algum tempo. – Como eu chego à estação do teleférico? − pergunta, sentindo um fragmento de esperança. O vestido de fundo branco salpicado de flores coloridas tornou-se um trapo amarfanhado e dona Edite tem consciência de sua figura patética.  O garoto de pouco mais de sete anos chupa os dedos e leva alguns instantes até apontar a localização da estação, um pouco abaixo de onde estavam.

    No interior da cabine a velha senhora e o mendigo enrolado em uma manta são os únicos passageiros. O temor não a impede de embarcar. O relógio da estação marca quase dez horas da noite e o bondinho completa seu último trajeto até a avenida. A gigantesca favela parece blefar em um falso silêncio, espreguiçada como um paquiderme em vigília. A viagem se estende por intermináveis quinze minutos até a linha férrea. Desorientada, ela avista um táxi e solta um grito esganiçado. Joga-se no assento do carro e, antes mesmo de dizer para aonde vai, põe-se a soluçar. O taxista nota as condições deploráveis da mulher e aguarda alguns segundos. Indaga o que aconteceu. Dona Edite respira fundo. – Sem palavras, responde com um fio de voz.  Finalmente consegue articular um pedido de socorro. − Me leva para a casa, pelo amor de Deus! Em seguida, ainda aterrorizada pelos acontecimentos se afunda no estofado e leva a mão trêmula ao coração. − Copacabana, por favor.  

Publicado na antologia "Contos e Poemas Noturnos", vol.8 (agosto de 2025), da plataforma digital Revista Conexão Literária, do editor Ademir Pascale.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

A loja dos bibelôs encantados - Recordando papai

/ Sheila Sacks /

https://www.revistariototal.com.br/pais/sheilasacks.htm

Sentada no banquinho de madeira nos fundos da loja, eu olhava fascinada papai desenhar as letras e os números nas páginas do livro-caixa encadernado com uma brochura azul marinho. As palavras eram escritas metricamente em cima das linhas, com arabescos que as tornavam mágicas. Os valores numéricos também pareciam desenhos ornamentais que mexiam com minha imaginação.     

O pequeno escritório, protegido por um balcão arredondado onde ficava a imponente máquina registradora de metal, abrigava uma escrivaninha com tampo de vidro, um armário, a pequena geladeira e duas cadeiras, uma delas maior, de madeira clara envernizada, com apoio para os braços. Sobre a mesa ficavam o bloco de notas e o telefone preto que a primeira chamada papai já atendia de forma elegante com a voz singular que todos elogiavam.  – Casa Carlos, boa tarde!

A mesa também comportava um pote bojudo de couro no qual estavam três lápis pretos de meticulosas pontas finas e duas borrachas parecendo goma de mascar, em suas cores laranja e azul, e mais o xodó de papai, o estojo de camurça marrom forrado em seu interior de seda bege, onde era guardada a caneta-tinteiro Parker usada para assinar documentos e recibos.

A loja tinha duas portas altas geminadas na entrada e uma vitrine na qual eram exibidos panelas e faqueiros na parte de baixo, e nas prateleiras superiores a “prata da casa”: jogos de pratos, xícaras e sopeiras de porcelana inglesa; copos e taças de cristal lapidado da Boêmia; vasos coloridos de vidro Murano; e, para o meu prazer infinito, os incríveis bibelôs de porcelana alemã de Dresden, explicava papai, que reproduziam cenas galantes do tempo de Luiz XV, quando os casais dançavam em jardins monumentais, as damas de vestidos rendados e seus pares de jaquetas e coletes bordados.

No lado direito da loja onde armazenavam os materiais de construção, as gavetinhas com os mais variados tamanhos de pregos me mantinham fascinada. Observava “seu Silva” examinando com rigorosa atenção o comprimento e as dimensões certas de cada preguinho conforme os pedidos dos clientes e depois pesá-los na pequena balança de pratos de metal, um deles para colocar a mercadoria e no outro os pesos de diversos tamanhos.   

No balcão do lado esquerdo, papai comandava as vendas das louças, sempre gentil no atendimento e distinto em suas camisas sociais de algodão de cores claras e calças de linho. Os meus amados bibelôs, ao lado de outros enfeites de porcelana e cristal, ficavam expostos aleatoriamente nas compridas prateleiras no centro da loja. Ao fundo, no galpão, as folhas de madeira ficavam empilhadas por tamanho e espessura, e uma enorme balança de ferro servia para pesar os volumosos sacos de cimento e outros materiais ensacados.

Meu irmão passava todo o tempo nessa área da loja. Ele acompanhava o encarregado subir nas pilhas de madeira, escolher a que considerava mais adequada e depois descer para serrar na medida certa. E, compenetrado, ajudava a arrumar os sacos menores de pó de gesso que ficavam a alguns metros de um pequeno banheiro.  

Algumas tardes, depois da escola, nós visitávamos papai na loja. Essa atividade contava como um passeio especial, apesar de morarmos na mesma rua. Tínhamos que atravessar a avenida principal onde passavam o bonde e as lotações para alcançar a loja que ficava próxima à estação de trem.

Adorávamos esse passeio e na nossa chegada papai largava o que estava fazendo e nos abraçava, sem esquecer, porém, de apontar para o enorme relógio redondo na parede, perto do galpão. − Crianças, quando marcar 4 horas, vocês se despedem e voltam para casa. Combinado?

Balançávamos as cabeças concordando com o veredito, já esperando a recomendação que viria logo em seguida. − Com as mãozinhas comportadas. Não mexam em nada, dizia, olhando para nós com aqueles olhos cor do céu por trás dos óculos redondos de aros dourados.

Mas, diante da formosura e graciosidade dos bibelôs, essa assertiva era difícil de cumprir. Só os olhos não davam conta de tanta doçura. Desejava tê-los para mim, tocá-los, acariciá-los em seus contornos emoldurados por flores, passarinhos e querubins.

Uma noite, na volta para a casa, papai trouxe uma caixinha de música de madeira escura e a colocou sobre o buffet. Após o jantar, abriu com cuidado a tampa e uma mimosa bailarina de saiote rosa surgiu em meio a um forro de cetim escarlate e um espelho redondo ao fundo. Papai girou várias vezes a pequena manivela dando corda como fazia todas as manhãs no relógio que usava no pulso. Como por encanto a bailarina começou a girar suavemente  sob um fundo musical que muitos anos depois descobri ser uma canção de ninar do compositor Johannes Brahms.

A meu pedido, papai acomodou a caixinha de música aberta, com a bailarina à vista, ao lado dos três bibelôs que ele trouxera para a casa devido a pequenos defeitos. O conjunto ficou ainda mais destacado na majestosa cristaleira da sala, um móvel alto de madeira maciça com ornamentos entalhados e portas de vidro. Lá estavam o aparelho de porcelana de doze pratos e xícaras hexagonais com bordas prateadas, e os copos, taças e cálices com desenhos em alto relevo usados na páscoa e ano novo judaicos.

Uma noite acordei com um som que, a princípio, pensei vir da rua. Pulei da cama e pela janela do quarto vi uma lua cheia, redonda e brilhante no céu noturno. Percebi então que o som vinha da caixinha de música e corri para a sala. Uma claridade prateada iluminava a cristaleira onde a pequena bailarina dançava rodeada pelos alegres bibelôs. Estes se movimentavam graciosamente ao som da música e as damas e os cavalheiros de louça pareciam felizes com a novidade. Permaneci extasiada com aquela visão e me senti transportada para uma esfera mágica além do real.

De manhã contei ao papai o que aconteceu à noite. Estava radiante e ofegante. Ele me ouviu em silêncio e logo achou uma explicação, com sua voz mansa e pausada. A corda deve ter se soltado e a trepidação fez os bibelôs se mexerem, argumentou. – Mais tarde dou uma olhadinha na engrenagem, disse, balançando minhas trancinhas arrumadas para ida à escola.   

Os anos se passaram, trocamos de casa e de bairro, o mobiliário antigo substituído por outro mais contemporâneo. Uma tarde, vendo papai em sua poltrona preferida, absorto nas páginas de um livro, me lembrei dos bibelôs que dançavam e compreendi como papai foi sábio e generoso. Isso porque em nenhum momento ele questionou minha história, opinando que poderia ser fruto da minha imaginação ou simplesmente um sonho. Nem tampouco considerou que fosse um engano ou uma bobagem de criança.  Eu tinha oito anos, era uma menina tagarela e inquieta. Papai ouviu o que eu disse e atencioso procurou uma resposta dentro da lógica de um adulto.

Apesar disso, durante um bom tempo eu tive a grata sensação de que os bibelôs encantados, de maneira extraordinária e inexplicável, talvez sentindo o imenso amor que eu tinha por eles, ganharam um breve sopro de vida e, sob a noite enluarada, dançaram radiantes na cristaleira. Dois anos depois, para meu desalento, os três ornamentos não resistiram às mãos pesadas dos carregadores do caminhão de mudanças. Papai ainda tentou colar as pequenas figuras, mas sem sucesso porque alguns pedacinhos se perderam.

Restou solitária a dançarina na caixinha de música que sobreviveu mais alguns anos até que a ferrugem corroeu o mecanismo da corda e os pinos que a sustentavam. Da loja, enfim, não sobrou nenhum bibelô para dar vida à nova cristaleira, agora de madeira em tom vinho e embutida na parede.  

Porém, afortunadamente, a sensação de magia, acompanhada da alegria e entusiasmo tão próprios do mundo infantil, não se perdeu nos intrincados ramais do tempo. Muitas noites, quando o vagão da memória me leva à singular figura de meu pai e à extraordinária loja de bibelôs encantados, fecho os olhos devagar e me entrego, em devaneio, a esses felizes instantes de fantasia, saudade e gratidão. 



domingo, 27 de julho de 2025

AK-47: um ícone sinistro a serviço do crime e do terror

 / Sheila Sacks /

No livro Gomorra, sobre a máfia napolitana, o jornalista italiano Roberto Saviano reserva um capítulo de 31 páginas para dissertar sobre o fuzil russo Avtomat Kalasnikova, mais conhecido como AK-47. Diz que a arma matou mais do que a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, do que o vírus HIV, mais do que todos os atentados terroristas e todos os terremotos. Assinala que dezenas de países usaram o fuzil em guerras civis na Argélia, Angola, Bósnia, Burundi, Camboja, Chechênia, Colômbia, Congo, Haiti, Caxemira, Moçambique, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão e Uganda.

Saviano lembra os dois presidentes que morreram sob o fogo do Kalashnikov: o chileno Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, no palácio presidencial de La Moneda, em Santiago, no golpe militar que instaurou o regime ditatorial do general Augusto Pinochet; e o egípcio Anwar Sadat, em 6 de outubro de 1981, no Cairo, durante uma parada militar, três anos depois de ter assinado dois importantes acordos de paz com Israel, em Camp David. Mortes que se somam a de outros políticos, como a do general italiano Dalla Chiesa, que foi prefeito de Palermo, assassinado em 1982, e a do ditador comunista da Romênia, Nicolae Ceausescu, fuzilado em 1989. “Mortes de excelência” que segundo Saviano garantiram “uma verdadeira publicidade histórica” ao AK-47.

Concebido pelo general Mikhail Kalashnikov, que morreu em 2013, aos 94 anos, e incorporado ao exército soviético em 1947, o AK-47 é o fuzil mais popular da terra e estima-se que 250 mil pessoas são mortas anualmente baleadas pela arma. Em 2017, para comemorar os 70 anos de sua invenção, foi inaugurada em uma praça de Moscou, em 19 de setembro, a estátua de Kalashnikov empunhando o célebre fuzil que, há décadas, é um dos maiores sucessos russos de exportação, igualando-se a Coca-Cola, talvez a marca americana mais conhecida do mundo.

Símbolo do liberalismo

Com mais de 200 milhões de exemplares espalhados pelo mundo, segundo Michael Hodges, autor de AK47: A História da Arma do Povo, o fuzil está nas bandeiras de Moçambique e do grupo terrorista xiita Hezbollah; nos brasões do Timor Leste e do Zimbábue; em centenas de emblemas de grupos políticos e nos vídeos de Osama Bin Laden. “É um símbolo do liberalismo, um ícone absoluto”, abaliza Saviano. E explica: “A invenção desta arma permitiu a todos os grupos de poder e de micropoder ter um instrumento militar. Ninguém, depois da AK-47 pode dizer que foi vencido porque não tinha acesso a armas.”

Se na África Ocidental, o fuzil russo pode custar 50 dólares, no Iêmen é possível encontrar um AK-47 usado de segunda e terceira mãos por seis dólares. É o que afirma Saviano em seu livro. “O kalashnikov permite que todos se tornem soldados, todos, até crianças esquálidas, e transformou em generais das Forças Armadas pessoas que não conseguiriam guiar um rebanho de ovelhas”, ironiza.

O jornalista revela que as drogas sustentam as compras dos AK-47 por grupos armados. Sejam de guerrilheiros, terroristas, paramilitares, milícias ou traficantes. “Coca em troca de armas”, enfatiza. Destaca o exemplo do ETA, o grupo separatista basco considerado terrorista pela União Europeia, que enviava cocaína através de seus militantes para receber, em troca, armas da Camorra, a máfia napolitana. Não somente kalashnikov, mas explosivos e lança-mísseis. Conhecido pelo seu histórico de quatro décadas de violência e mortes, resultando em mais de 800 vítimas fatais, o ETA obtinha a cocaína através de seus contatos com grupos guerrilheiros colombianos.

Queda do comunismo ajudou

Com a queda da Cortina de Ferro – expressão usada por Winston Churchill, em 1946, para definir as áreas na Europa sob o domínio da União Soviética – e o fim da chamada Guerra Fria, países como Romênia, Polônia e a ex-Iugoslávia ficaram com os seus arsenais abarrotados de armas russas e precisando se reestruturar. O desmantelamento da União Soviética em 1991, precedido pela queda do Muro de Berlim, em 1989, criou um novo cenário geopolítico na Europa e abriu as fronteiras para o mercado ilícito das armas, dirigido principalmente para grupos políticos armados da África, América Latina e do próprio Balcãs, como a Bósnia e a Sérvia.

De acordo com Saviano, a máfia napolitana pagava informalmente a dirigentes comunistas em decadência a manutenção desses depósitos de armas estocadas nos próprios países de origem. Dependendo da conveniência, essas armas eram retiradas e levadas para a Itália para serem negociadas. “Os fuzis vinham empilhados em caminhões militares que ostentavam o símbolo da OTAN ( Organização do Tratado do Atlântico Norte). Eram grandes carretas roubadas das garagens americanas da base da OTAN, em Nápoles, que graças àquela inscrição, podiam rodar tranquilamente pela Itália.”

Antes, na década de 1980, durante o conflito entre a Argentina e a Inglaterra na Ilha das Malvinas, no Atlântico Sul, a Camorra também entrou no circuito para a venda informal de armas para a defesa argentina. O jornalista afirma que devido ao isolamento econômico do país à época, “ninguém teria lhe vendido oficialmente”. A chamada Guerra das Malvinas durou dois meses e foi um fiasco para a máfia. “Poucos tiros, poucos mortos, pouco consumo.” Ele conta que no mesmo dia que foi decretado o fim do conflito, o serviço secreto inglês interceptou um telefonema intercontinental entre a Argentina e uma localidade em Nápoles. “Aqui a guerra acabou”, falavam da Argentina. “Não se preocupe, haverá outras...”, responderam do outro lado do Atlântico.

Saviano é categórico ao ressaltar o poder de fogo dos clãs da região da Campânia, no sul da Itália, e de sua capital Nápoles e arredores, nas décadas de 1980 e 1990: “As guerras, da América do Sul aos Bálcãs, são feitas com as garras das famílias da Campânia. Em Nápoles, a Camorra já fez 3.600 mortos nos últimos 30 anos”, afirma no livro.

Fuzis com a marginalidade

No Rio de Janeiro, em junho de 2017, a polícia civil carioca descobriu no terminal de cargas do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro uma grande leva de armamentos escondidos em aquecedores de piscinas dentro de containers vindos de Miami. Foram apreendidos 45 fuzis AK-47 que iriam abastecer os traficantes nas favelas, no valor de R$ 1,6 milhão. Na ocasião a secretaria de Segurança informou que desde o início do anho  250 fuzis já tinham sido retirados das mãos de bandidos. “No Rio de Janeiro, traficante só tira onda de macho por conta disso, de ter o fuzil. A hora que tiver uma pistola, ele vai dar meia volta”, comentou o titular da Segurança na ocasião, delegado Roberto Sá, repetindo com outras palavras as observações de Saviano acerca da portabilidade do AK-47.

Pelas contas da polícia do Rio de Janeiro, cada fuzil vendido aos traficantes no mercado negro teria um custo de 20 mil reais (em torno de 6,6 mil dólares, valor de 2017). Saviano escreve em Gomorra que o valor de um AK-47 está diretamente ligado à violação dos direitos humanos. Quanto mais barato o fuzil, pior são as condições de civilidade e cidadania.

Preocupado com a disseminação dessas armas de alta letalidade, contrabandeadas principalmente do Paraguai e da Bolívia, o governo brasileiro sancionou a Lei Nº 13.497 (26/10/2017) que torna crime hediondo, com prisão imediata e sem direito à fiança, o porte ilegal de fuzis e outros armamentos restritos às áreas militares. Em junho deste ano (2025), projeto aprovado pela Câmara dos Deputados prevê o aumento da pena para até 12 anos de reclusão no caso de porte de arma de fogo de uso proibido, como os fuzis. 

Mas, o poder da Justiça, as leis e suas penalidades não parecem amedrontar os criminosos. Reportagem recente sobre a ascensão  das organizações criminosas em ambientes urbanos no Rio de Janeiro, publicada no jornal O Globo (13/7/2025), afirma que, ao contrário de outros países, o fuzil por aqui “circula livremente em áreas sobre o domínio do crime” e “virou garantia para controlar comunidades inteiras”.

 Vida sob escolta

Desde a publicação de Gomorra (2006), que desvenda o crime organizado em Nápoles, Roberto Saviano vive sob escolta policial, devido a ameaças de morte da Camorra. Em julho deste ano, a agência britânica Reuters divulgou que juízes do Tribunal de Apelações de Roma mantiveram a condenação de um ex-chefão da máfia e de seu advogado por ameaças ao jornalista.

Em outro livro, Zero Zero Zero (2013), que aponta as rotas e o tráfico de cocaína no mundo, ele registra uma dedicatória especial, logo na primeira página: “Dedico este livro a todos os carebinieri da minha escolta. Às 38 mil horas vividas juntos. E àquelas que ainda viveremos. Onde quer que seja.”

O título da obra de 400 páginas se refere à gíria pela qual os traficantes europeus se referem à cocaína de melhor qualidade. O Brasil mereceu o capítulo intitulado Caldeirão do Diabo que trata das facções criminosas brasileiras e seu histórico. Escreve Saviano: “No Brasil, a prisão é muitas vezes um escritório a partir do qual os chefes dos maiores grupos criminosos podem comandar os próprios homens dentro e fora da penitenciária sem que a sua liderança seja questionada.”

Mas, quase duas décadas depois do seu livro de estreia – que foi transportado para as telas de cinema e depois transformado em série de TV com cinco temporadas – Saviano ainda passa a maior parte de seu tempo recluso, embora escrevendo nos meios de comunicação (El Pais, The Guardian, New York Times, L’Espresso) e publicando livros, como o romance La Paranza dei Bambini (O bando dos meninos), de 2016, sobre a deliquência juvenil em Nápoles; Vieni via con me (A máquina da lama: histórias da Itália de hoje - 2012); Sono ancora vivo (Ainda estou vivo -2021) ; Falcone: Los valientes están solos (edição espanhola -2024), entre outros.

Ele diz lamentar que Gomorra, escrito quando tinha 26 anos, tenha afetado drasticamente a vida de sua família, que teve de sair de Nápoles. “Minha mãe sofreu um infarto e me senti culpado. Estava vivendo nos Estados Unidos e vim correndo porque de alguma forma me senti como se lhe tivesse dado o golpe no coração (...). Com o meu irmão, a quem amo demais, acontece o mesmo. Ele diz que está comigo, mas sei que está cansado de aguentar tanto.”

As confissões foram feitas ao jornalista Daniel Verdú, do El Pais (29.08.2017), em um parque na cidade de Bolonha, sob os olhares atentos de cinco carabiniere. Apesar do enorme sucesso internacional – Gomorra vendeu 10 milhões de exemplares em mais de 50 idiomas - Saviano admite que hoje não teria escrito o livro da mesma maneira. Jurado de morte pela Camorra, ele tem pesadelos e passa por períodos de depressão. “Eu os desafiei, estava convencido de ser invencível.”

No entanto, um ano antes desse desabafo, Saviano  escreveu La Paranza dei Bambini  que retorna ao tema da máfia napolitana, focando em um grupo de adolescentes da Camorra, em Nápoles, que circulava pelas ruas e bairros em motos, atirando com seus fuzis AK-47, amedrontando e controlando seus moradores. Um enredo que desagradou à população e aos empresários da cidade que acusaram o jornalista de criminalizar Nápoles e espalhar para o mundo uma imagem negativa do lugar.

Porém, o livro se baseia em fatos reais, a partir de uma investigação desenvolvida pelos promotores antimáfia Henry Woodstock e Francesco De Falco e que culminou, em 2015, com a prisão de dezenas de pessoas. Assim, mesmo sob protestos e ameaças, Saviano não tem como excluir o AK-47 de sua literatura. O que lembra uma situação semelhante tendo o Rio de Janeiro como cenário. Desta vez atingindo o premiado cineasta José Padilha. Seus filmes Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 – Agora o inimigo é outro (2010) que tratam das relações promíscuas entre policiais, traficantes e políticos, e onde não faltam AK-47, o levaram a sair do Brasil, em 2015, depois de se sentir ameaçado. Ele reside, desde então, em Los Angeles, na Califórnia.  

Arma de atentados e guerrilha

O AK-47 também atraiu a atenção de dois jornalistas americanos que se debruçaram sobre o tema: Larry Kahaner, que publicou em 2006 o livro AK-47, a Arma Que Transformou a Guerra (na edição em português), e CJ Chivers, ex-correspondente de guerra. Seu livro The Gun: The AK-47 and the Evolution of War é de 2010.

 Escrevendo para o jornal The New York Times, Chivers lembra que o AK-47 é pivô de crimes espetaculares que impactaram o mundo. “A lista remonta há décadas: a morte dos atletas israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972; a tomada de uma escola em Beslan, Rússia, em 2004; os ataques em Mumbai, Índia, em 2008; o ataque a um shopping center em Nairóbi”, destaca o jornalista. Ele afirma que a disseminação do fuzil mudou a guerra moderna. “À medida que os governos comunistas repassavam os kalashnikovs para aliados e terceiros, os rifles assumiram um papel inesperado: niveladores de campo de batalha.”

Entre os fatos históricos nos quais o AK-47 teve papel preponderante estão a Guerra do Vietnã, com os guerrilheiros vietcongues utilizando a arma na selva contra os americanos. “Guerrilheiros armados com kalashnikovs lutavam de igual para igual contra soldados de infantaria de uma superpotência”, assinala Chivers. Por sua vez, nos anos 1980, forças americanas e paquistanesas treinavam combatentes islâmicos a usar o AK-47 na guerra para expulsar as forças soviéticas do Afeganistão.

No campo do terrorismo moderno, coube ao AK-47 inaugurar “a era do terrorismo kalashnikov”.  Chievers cita como exemplo o atentado à Vila Olímpica de Munique onde estava a equipe israelense, assistido globalmente, ao vivo, pela TV. Alerta que os governos têm feito pouco para deter a proliferação desse tipo de arma, que escapou do controle das autoridades constituídas. “O kalasnikov deixou de ser uma ferramenta do estado ou da ideologia comunista. Criado para fortalecer estados autoritários, o AK-47 ganhou credibilidade fora da lei se transformando em símbolo de revolta, contragolpe, crime e jihad islâmico”, conclui.

O exemplo mais recente do uso do AK-47 foi o ataque do grupo terrorista Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023, com 1.200 mortos e 251 sequestrados levados como reféns para Gaza. A plataforma de notícias CNN entrevistou especialistas em armamentos que identificaram o fuzil como uma das armas utilizadas no atentado (‘Foguetes caseiros e AK-47 modificados: uma visão do arsenal mortal do Hamas’, em 14.10.2023).

“Letal, fácil de usar e de encontrar, é o fuzil de assalto preferido dos grupos militantes” afirma a reportagem sobre o AK-47. Especialistas observam que muitos fuzis foram modificados, incluindo a remoção de equipamentos para tornar as armas mais leves e fáceis de usar.

A CNN também destaca um vídeo publicado no canal do Hamas no Telegram, onde terroristas invadem um posto militar israelense, a maioria portando fuzis AK-47. Segundo a matéria, eles disparam contra um tanque israelense e mantêm civis sob a mira de armas.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Livro sobre a maçonaria que adiantava fim da globalização ainda atrai leitores

/ Sheila Sacks /

No final de abril, após o falecimento do papa Francisco e poucos dias antes do início do conclave para a eleição do novo pontífice, a mídia mundial começou a divulgar os nomes dos candidatos cotados para o cargo, segundo especialistas do tema.

Dentre os nomes aventados para a sucessão, os de dois cardeais italianos foram dos mais mencionado em várias listas: Pietro Parolin, secretário de estado do Vaticano, e Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha. Nos resumos de suas biografias, divulgados pela mídia e que correram o mundo, são citadas as “relações amigáveis” dos então “"papabili" com o filósofo e Grão-Mestre do Grande Oriente da Itália, Giuliano Di Bernardo ( que ajudou Parolin, em 2019, ‘a resolver um problema que teve com o governo chinês’) e, tratando-se de Zuppi, sua amizade com o escritor, filósofo e Gão-Mestre  do Grande Oriente Democrático, Gioele Magaldi, autor de “Massoni. Società a responsabilità illimitata. La scoperta delle Ur-Lodges” .

Publicado em 2014, o livro causou polêmica e questionamentos na Itália com revelações sobre a maçonaria, suas ligações com líderes mundiais e o fim do pacto pela globalização. Mais de uma década depois, a obra ainda provoca curiosidade nos leitores que postam comentários e avaliações, em sua maioria positivos, nas diversas plataformas internacionais de venda de livros ou de e-books. 

De acordo com a plataforma de notícias UOL, Magaldi afirmou, em 2010, que “Zuppi conhecia o mundo do Vaticano bem e que o estimava”. Também destacou que “ele seria um excelente Papa" (‘Conclave: conheça os cardeais considerados favoritos ao posto de papa’, em 27/4/2025). Relato semelhante  também integra a biografia de Zuppi divulgada pela plataforma on-line do projeto The College of Cardinals Report, formada por jornalistas católicos, e está registrado na página da Wikipedia, que cita como fonte uma entrevista de Magaldi à agência de notícias italiana  Adnkronos.

Livro revela poder das superlojas

Traduzido para o espanhol em 2017 (Masones: Todos sus secretos al descubierto),  o livro teve a parceria da escritora e jornalista política  Laura Maragnani, autora de dezenas de artigos publicados pelas revistas italianas Panorama e Europeo.

Face às revelações explosivas, Magaldi conta que lhe foi oferecido dinheiro e cargos para que não publicasse o livro. Também sofreu ameaças, mas, segundo ele, “diante de um mundo mais brutal e sanguinário”, achou necessário divulgar a sua pesquisa. Na opinião de Magaldi, a única ideologia ainda não totalmente implantada no planeta é justamente a democracia.

Com 672 páginas, a obra expõe a existência de um nível superior de elite internacional maçônica, abrigada em 36 superlojas  - as ‘ur-lodges’ - secretas e transnacionais,  divididas radicalmente em conservadoras e progressistas, que reúnem maçons e líderes não iniciados, dos mais altos escalões da política mundial, das finanças, da mídia, das forças armadas, serviços secretos, juízes, intelectuais, artistas e lideranças eclesiásticas.

Essas centenas de personalidades conhecidas mundialmente, dos mais variados matizes políticos e até fundamentalistas, se encontram nesses santuários secretos que Magaldi também nomina, um a um, e atuam independentemente de seus próprios países em qualquer tomada de decisão relacionada a questões globais.  Conforme o autor, as superlojas ditam as suas condições às estruturas subjacentes de instituições como a União Europeia, o FMI, Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e o Clube Bilderberg , entre outros.

São esses núcleos que influenciam fortemente os principais acontecimentos geopolíticos e a ordem financeira mundial, aí compreendendo as crises econômicas, as guerras, revoluções políticas e até ataques terroristas. Magaldi afirma que as “ur-lodges” foram as verdadeiras protagonistas da história do século 20 e prosseguem em sua trajetória dando as cartas subterraneamente no cenário global. Políticas públicas e programas econômicos regionais são direcionados e monitorados por essa rede transnacional de poder, afirma o autor.

Abrindo parênteses para assinalar que, tratando-se de comércio global, a era Trump reforça a sensação de que a globalização está tendo uma ruptura visível. Em 2020, prenunciando essa nova fase, editorial do jornal italiano Corriere della Sera, já advertia,  em sua edição de de 1/11: “Se il presidente Trump vince di nuovo significa che gli Stati Uniti sono cambiati e gli amici dovranno prenderne atto (‘Se o presidente Trump vencer novamente, significa que os Estados Unidos mudaram e seus amigos terão que tomar nota’, em tradução livre). Trump perdeu em 2021, mas ganhou em 2025.

Pacto pela globalização

Magaldi escreve que a primeira superloja, a “Thomas Paine”, foi instalada em Londres, em 1849, e depois muitas foram criadas a partir do término da segunda Grande Guerra (1939-1945).

Em 1981, e por vinte anos, as “ur-lodges”  promoveram uma paz interna de onde surgiu a globalização. Esse elo foi rompido com os atentados terroristas em 11 de setembro de 2001, que atingiram as torres gêmeas do World Trade Center (WTC), em Nova York, e o prédio do Pentágono, sede do Departamento de Defesa dos EUA, em Washington. Desde então, adverte Magaldi, se trava uma guerra subterrânea que mexe com o destino do Ocidente. Uma das superlojas, assinalada pelo autor como “a loja da vingança e do sangue”  é a “Hathor Pentalpha”, da qual fazia parte Bin Laden, morto em 2011. Grupos terroristas como a Al-Qaeda e ISIS (Estado Islâmico), e suas ligações com as superlojas são citados no livro.

O autor também critica a mídia que, no geral, confunde as causas com os efeitos ou se concentra em fatos secundários, mirando grupos e conglomerados econômicos, dissimulando um cenário que não é o real. Daí a publicação do livro, segundo Magaldi, centrado nas superlojas e na dinâmica de suas articulações e ações por trás do renascimento da Europa, depois da 2ª Grande Guerra, chegando aos escabrosos e significativos eventos da década inicial do século 21, como atentados terroristas e guerras localizadas.

Acesso aos arquivos

Durante quatro anos Magaldi pesquisou e analisou seis mil documentos e arquivos originários dessas ”ur-lodges” aos quais teve acesso, em países diversos, com o apoio de quatro eminentes protagonistas do establishment maçônico mundial que permanecem ocultos no livro.  Para garantia pessoal, cópias desse material compilado e fotografado pelo autor foram colocadas sob a custódia de advogados em Londres, Paris e Nova York.

No livro, Magaldi aborda o “back office” das superlojas nos diferentes eventos mundiais dos últimos trinta anos do século 20, como a liquidação da União Soviética, a integração política e econômica da Europa, a reunificação da Alemanha, a ascensão de Margareth Thatcher no Reino Unido e o fim da Operação Condor com a democratização da Argentina. Também cita o atentado ao papa João Paulo II em 1981, na Praça São Pedro, no Vaticano.

No que toca ao conflito de Israel com os palestinos, ele escreve que a solução se dará à medida que expoentes moderados dos grupos Al-Fatah e da OLP se integrem aos círculos maçônicos internacionais. A elite árabe também faz parte das superlojas, escreve  Magaldi, com citações a príncipes sauditas, líderes iranianos, o sultão de Omã e os emires do Bahrein e do Catar.

Na lista dos líderes mundiais vivos integrantes das superlojas estão Emmanuel Macron,  Barack Obama, Vladimir Putin, Angela Merkel, Christine Lagarde, George  W. Bush, Bill Clinton, Dick Cheney, Tony Blair, Condoleezza Rice, Nicolas Sarkozy, François Hollande, Tayyip  Erdoğan e Bill Gates,  entre tantos outros citados na obra.

Em relação aos que já morreram, estão listados Silvio Berlusconi, John Kennedy, Martin Luther King, papa João XXIII, Nelson Mandela, Antônio Salazar, Franklin Roosevelt, Deng Xiaoping, David Rockefeller,  Gerald Ford, Henry Kissinger, George Bush (fundador da superloja ‘Hathor Pentalpha’), Abu Bakr Al- Baghdadi, Salvador Allende, Josef Stalin, Isaac Rabin, Golda Meir, Vladimir Lenin, Augusto Pinochet, Tancredo Neves, Raúl Alfosín, Hugo Chávez, Gianni Agnelli, Margareth Thatcher, Zygmunt Bauman, Moshe Dayan, John Keynes e Mahatma Gandhi, entre outros.

Figuras históricas também são lembradas como Simon Bolívar, José de San Martín, José Martí e Guiseppe Garibaldi, maçons que mudaram a trajetória dos países da América Latina.

O “Papa Bom”

Conhecido como o ‘Papa Bom’, pela simplicidade, humildade e calor humano, João XXIII teve um pontificado breve, de 1958 a 1963. Nascido na província de Bérgamo, no norte da Itália, Magaldi  relata que como arcebispo em Istambul, Angelo Giuseppe Roncalli teve sua primeira iniciação maçônica na “ur-lodge Ghedullah”, em 1940, comprometida com o estudo da Cabalá, a milenar tradição mística judaica.

Em 1949, em Paris, recebeu sua segunda iniciação na “ur-lodge” progressista “Montesquieu”. Em 1950, foi iniciado oficialmente como irmão na Ordem Rosacruz.

Os dados detalhados  sobre essas afirmações se baseiam em uma ampla documentação arquivada na superloja “Ghedullah”. De acordo com Magaldi, a eleição de Roncalli como papa, em 28 de outubro de 1958, foi comemorada pelos maçons, individualmente, e pelas superlojas.

Encontro final

Em uma das resenhas sobre o livro de Magaldi, assinada por Marco Moiso, do círculo do autor, fica-se sabendo que o último capítulo da obra relata o encontro de quatro cardeais maçônicos que não têm seus nomes revelados.

Eles estão à vontade para falar das experiências vividas e expor o papel catalisador dessas superlojas no cenário mundial. São maçons de idade avançada, muitos ricos, aristocratas, fundadores de várias “ur-lodges”. Um deles com raízes americanas e britânicas, um franco-alemão, um árabe-islâmico e outro do Extremo Oriente.

Entre os vários temas, os quatro conversam sobre o pacto que uniu as superlojas pela globalização. E o representante americano da maçonaria neoaristocrática, expõe, sem papas na língua, as táticas adotadas ao longo do tempo para impor padrões de uniformização global nas políticas econômicas dos países.

Diz ele, textualmente: “Para fazer as pessoas aceitarem essas reformas idiotas e impopulares, você deve assustá-las como faria com as crianças”. Uma afirmação despida de qualquer disfarce moral e que faz sentido diante da “network” draconiana de programas governamentais econômicos impostos às populações globalizadas que restringem ganhos sociais, independente dos países que os adotam.

Em 2015, Magaldi fundou o Movimento Roosevelt na cidade de Perugia, com a participação de 500 membros. A organização, em sua página na Internet, afirma que defende uma sociedade justa contra “impulsos neo-oligárquicos comprometidos com a redução dos direitos humanos, do estado de bem-estar social e da democracia”. Em seu plano de ação, o Movimento defende uma sociedade social-liberal, de acordo com as quatro liberdades enunciadas por Franklin Delano Roosevelt, presidente americano de 1933 a 1945, em seu discurso sobre o após-guerra: liberdade de expressão, liberdade religiosa, liberdade de viver sem penúria e liberdade de viver sem medo.