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terça-feira, 3 de junho de 2025

Papa Leão XIV quer fortalecer o diálogo inter-religioso e envia carta a rabinos

/  Sheila Sacks  /

Em carta ao rabino americano Noam Marans, datada de 8 de maio, dia de sua eleição como pontífice, o papa Leão XIV expressou sua intenção de fortalecer os laços da Igreja Católica com a comunidade judaica.

Marans é diretor de Assuntos Inter-religiosos do Comitê Judaico Americano (AJC, na sigla em inglês) e esteve com o novo papa no Vaticano, em 19 de maio, um dia depois de sua posse.

Na mensagem, o papa escreveu: “Confiando na assistência do Todo-Poderoso, comprometo-me a continuar e fortalecer o diálogo e a cooperação da Igreja com o povo judeu no espírito da declaração do Concílio Vaticano II Nostra Aetate”.

Igual mensagem o novo papa enviou para ao rabino-chefe de Roma, Ricardo Di Segni, comunicando sua eleição como novo pontífice e se comprometendo a fortalecer os laços entre as duas religiões, citando também a declaração conciliar Nostra Aetate.

Promulgada em 28 de outubro de 1965, sob o pontificado do papa Paulo VI, Nostra Aetate é um documento oficial que reformulou inteiramente o relacionamento da Igreja com a religião judaica. Otimista, Marans considerou um bom presságio para a relação entre católicos e judeus a eleição de um papa nascido nos Estados Unidos. Ele lembrou que o sucesso das relações católico-judaicas pós Nostra Aetate “é demonstrado mais claramente nos Estados Unidos do que em qualquer outro lugar”.

Em uma mesa redonda com jornalistas, ele falou da importância e do significado da iniciativa do papa que demonstrou uma atitude positiva quanto a essa questão logo no início de seu papado, “e não três anos depois, o que seria outra coisa”, segundo a sua opinião. O rabino informou ainda que recebeu uma carta personalizada do papa convidando-o para a missa de posse papal.

As informações foram divulgadas pelo site católico em inglês Crux (22/5/2025), sediado no Colorado, especializada em notícias sobre o Vaticano e a Igreja Católica.

Roma judaica

O tema também teve destaque no site Angelus, da comunidade católica de Los Angeles, que já a partir do título “Papa promete diálogo fortalecido com os judeus” reforça a disposição do papa Leão XIV para o diálogo com as lideranças judaicas (em 13/5/2025).

A matéria foca, essencialmente, na comunidade judaica de Roma e revela que o Leão XIV enviou uma mensagem pessoal ao rabino-chefe de Roma, Ricardo Di Segni, comunicando sua eleição como novo pontífice e se comprometendo a fortalecer os laços entre as duas religiões. Di Segni esteve presente no Vaticano na inauguração do pontificado, em 18 de maio, e disse que “acolheu com satisfação e gratidão as palavras que lhe foram dirigidas pelo novo papa.”

A comunidade judaica de Roma é a mais antiga do mundo ocidental, remontando ao século II, antes da Era Comum. Cerca de 27.300 mil judeus vivem na Itália, a maioria (15 mil) em Roma, de acordo com União da Comunidade Judaica Italiana (UCEI, na sigla em italiano).

A reportagem também lembra que em 2010, quando o Papa Bento XVI visitou a sinagoga de Roma, a equipe do Museu Judaico da cidade apresentou uma exposição de painéis decorativos feitos por artistas judeus dos séculos 17 e 18 que marcavam a inauguração dos pontificados dos papas Clemente XII, Clemente XIII, Clemente XIV e Pio VI.

Raízes espirituais

Em Israel, o jornal Jerusalem Post, em sua plataforma on-line, publicou um artigo assinado pelo embaixador Ilan Mor (24.5/2025), enaltecendo a vontade do novo papa de estreitar as relações com os judeus. Comentando a carta de Leão XIV ao rabino americano Mars, o embaixador escreve: “Esta carta inscreve-se na tradição de um ponto de virada histórico iniciado com a Nostra Aetate. Neste documento histórico, a Igreja Católica rejeitou explicitamente, pela primeira vez, a doutrina da culpa coletiva judaica pela crucificação de Jesus. Também enfatizou as profundas raízes espirituais do cristianismo no judaísmo e apelou ao diálogo respeitoso, tornando-se um divisor de águas na relação entre as duas religiões.”

Para o embaixador, o documento papal de 1965 não foi uma reavaliação apenas teológica, mas também uma resposta moral ao Holocausto e à necessidade de confrontar a culpa histórica, preparando o cenário para décadas de reaproximação.

O texto ressalta o estabelecimento de relações diplomáticas entre o Vaticano e Israel em 1993, a visita histórica do Papa João Paulo II a Israel, em 2000, e as visitas subsequentes de seus sucessores que aprofundaram esse relacionamento. Também cita outro trecho da carta do papa.  “Nestes tempos desafiadores, nós, como comunidades de fé, somos especialmente chamados a construir pontes em vez de erguer muros. Nossa herança compartilhada nos obriga ao respeito mútuo e ao diálogo sincero.”

Mor, que foi embaixador de Israel na Hungria e na Croácia, disse que o novo papa já anunciou a criação de uma comissão conjunta para desenvolver medidas concretas contra o aumento global do antissemitismo. Nos festejos de sua posse se encontrou com o presidente Isaac Herzog que o convidou para visitar Israel.

De acordo com o embaixador, tendo nascido e criado nos Estados Unidos, “uma sociedade onde a diversidade religiosa é uma realidade”, o novo papa entende o diálogo inter-religioso não como uma exceção, mas como a norma. “Essa perspectiva pode ajudar a aprofundar o intercâmbio judaico-católico em um mundo cada vez mais polarizado – não como um exercício teológico abstrato, mas como uma missão compartilhada no combate ao antissemitismo, ao racismo e à intolerância religiosa.”

Filho de sobreviventes do Holocausto, Mor, de 70 anos, transcreve as palavras de Leão XIV, sublinhando que “de Roma, um sinal foi enviado, não apenas ao mundo judaico, mas a todos os que acreditam no poder do diálogo, quando há vontade e compreensão”. Diz o papa: “A dignidade humana é indivisível. Quem denigre uma pessoa por causa de sua religião, origem ou crenças viola princípios fundamentais que são sagrados tanto para cristãos quanto para judeus.”

Comunidades unidas

Presente no primeiro encontro do novo papa com representantes de outras religiões, realizado no Vaticano (19/5), o rabino Mark Dratch, presidente do Comitê Judaico Internacional para Consultas Inter-religiosas (IJCIC, na sigla em inglês), se mostrou confiante no pontificado de Leão XIV. A plataforma Vaticano News, portal oficial de notícias da Santa Sé, reportou a audiência e as palavras do rabino. “Estamos ansiosos para desenvolver nosso relacionamento com o Papa Leão e fortalecer os laços entre as comunidades judaicas e católicas, não apenas no nível da liderança, mas também entre os fiéis de nossas congregações, para que as pessoas em nossas comunidades se conheçam e se apreciem mutuamente”, falou Dratch.

O religioso lembrou ainda que “desde a Nostra Aetate, a relação entre o mundo católico e o judaico evoluiu positivamente em várias direções, em termos de fraternidade, respeito e compreensão mútua”.

Por fim, mostra-se promissor, além de solidário e fraterno, o discurso de Leão XIV na celebração inaugural do meu ministério como Bispo de Roma, ao se dirigir aos representantes de outras igrejas e de outras religiões, conforme transcrição divulgada pelo Vaticano. O novo papa dirigiu uma saudação especial a quem chamou “de nossos irmãos e irmãs judeus”. Disse o papa: “Devido às raízes judaicas do cristianismo, todos os cristãos têm uma relação especial com o judaísmo. A Declaração conciliar Nostra Aetate sublinha a grandeza do patrimônio espiritual partilhado por cristãos e judeus, encorajando o conhecimento e a estima recíprocos. O diálogo teológico entre cristãos e judeus, que é sempre importante, eu tomo-o muito a peito. Mesmo nestes tempos difíceis, marcados por conflitos e incompreensões, é necessário prosseguir com coragem este nosso precioso diálogo.”

terça-feira, 20 de maio de 2025

Envelhecimento das populações impacta economias que ainda têm de lidar com desastres climáticos e guerras

 /  Sheila Sacks  /

 ... e os seus dias serão cento e vinte anos (Gênesis 6:3)

 Em recente artigo no jornal britânico The Guardian, o economista e professor da London Business School, Andrew John Scott, alerta que as economias das nações devem estar preparadas para a mudança demográfica que já está ocorrendo no mundo.

 Autor do livro "The Longevity Imperative: Building a Better Society for Healthier, Longer Lives" (O Imperativo da Longevidade: Construindo uma Sociedade Melhor para Vidas Mais Longas e Saudáveis), publicado em 2024, Scott afirma que os sistemas de saúde, educação e, principalmente, de trabalho precisam ser revistos diante desse novo cenário. Em dezembro de 2020, a Assembleia Geral das Nações Unidas já havia declarado o período de 2021 a 2030 como a Década do Envelhecimento Saudável, com destaque para quatro iniciativas: mudar a forma de ver o idoso; capacitar e integrar; prover serviços de saúde integrados; e promover cuidados de longa duração.

 O Fundo Monetário Internacional (FMI) já fez um alerta de que o avanço da idade média das populações representa um desafio direto ao crescimento global e à estabilidade fiscal de muitos países. Em seu mais recente relatório “Panorama Econômico Mundial” (World Economic Outlook - WEO), divulgado em abril, a instituição considerou o momento atual crítico, apontando para uma desaceleração do crescimento global.

Segundo o Fundo, as políticas precisam ser calibradas para reduzir os desequilíbrios internos e externos, com a criação de reservas financeiras que promovam o envelhecimento saudável. Projeções indicam que o envelhecimento pode reduzir a taxa de crescimento global em até 0,6% ao ano, pressionando os sistemas previdenciários. Um impacto nos gastos públicos que se somadas às guerras e crises climáticas poucas economias irão suportar.

 Um exemplo é a Ucrânia em guerra que precisará de investimentos aproximados de 486 bilhões de dólares na próxima década para a recuperação e reconstrução do país, assim estima o FMI.  Nos Estados Unidos, os desastres climáticos causam prejuízos de 150 bilhões de dólares, em média, anualmente. No Brasil, as inundações do Rio Grande do Sul, no ano passado, custaram aos cofres públicos  112 bilhões de reais, conforme dados do governo federal.

 Faixa de cem anos cresce

De acordo com a ONU, a faixa etária que mais cresce atualmente é justamente a que abrange as pessoas de 100 anos.  “Em 1950, estimava-se que havia 14 mil pessoas centenárias, enquanto hoje são quase 750 mil, com projeção de quase 4 milhões até 2054”, escreve o economista inglês, também autor do best-seller “The 100-Year Life” (2021), com mais de 1 milhão de exemplares publicados em 15 idiomas. Por sua vez, órgãos especializados como The American Academy of Actuaries, nos Estados Unidos, e Office for National Statistics, na Inglaterra, afirmam que 1 em cada 6 americanos irão viver até os 100 anos, e que a maioria dos bebês ingleses vão passar dos 90 anos.

 Scott observa que “o número de anos que provavelmente viveremos aumentou mais do que o número de anos que provavelmente permaneceremos saudáveis”, e balancear essa equação é fundamental para uma existência longa e proveitosa. Para isso, em princípio, é necessário seguir as receitas de bom senso já conhecidas pela maioria das pessoas, mas nem sempre levadas a sério, como boa alimentação e sono, mais exercícios e respeitar as recomendações médicas.

 Mas, a autodisciplina não é tudo. Na avaliação de Scott, “felizmente, envelhecer bem está se tornando uma indústria, e podemos esperar apoio do progresso tecnológico e científico e de mudanças nas políticas governamentais”. Se em séculos anteriores doenças como a peste, varíola e cólera, por exemplo, matavam as pessoas ainda jovens, agora, a principal causa das doenças e mortes está relacionada ao envelhecimento.

 Diante desse cenário que se avizinha, governos precisam se preparar para os anos extras que as pessoas vão acumular. Um desafio que já pauta as agendas de administradores, empresas e serviços públicos responsáveis em atender as demandas dessa parcela da população. E uma das preocupações mais visíveis e discutidas se concentra no pagamento de aposentadorias e pensões para os trabalhadores  diante da perspectiva concreta de maior longevidade.

 Então, viver mais pode exigir trabalhar mais para manter o mesmo padrão de qualidade de vida. Scott acredita que somente aumentar a idade da aposentadoria, como muitos países estão procedendo, não resolveria o problema. “Precisamos de mudanças que nos ajudem a trabalhar por mais tempo, e não apenas nos obriguem a fazê-lo”, considera.

 Ele acredita que é preciso criar uma estrutura de trabalho mais flexível, com mudanças e transições de carreira mais frequentes  no sentido de que a ocupação vai prolongar nossa vida profissional e não sobrecarregá-la. O objetivo seria oferecer um tempo para requalificar e melhorar a saúde, cuidar da família, alternando entre trabalho em tempo integral, meio período ou, simplesmente, sem jornada.

 Para isso é preciso ter em mente a “compreensão da biologia do envelhecimento”, que são os processos que diminuem lentamente os componentes físicos do nosso corpo. “Desacelerar esses processos reduziria substancialmente a diferença entre a expectativa de vida saudável e a expectativa de vida”, reforça. Mesmo assim, mudanças amplas nos esperam no futuro em relação aos sistemas de saúde, porque atualmente o foco é intervir quando uma doença já está em um estágio de afetar negativamente nossa vida.

 Ciência na vanguarda

Com a ascensão da Inteligência Artificial (IA) e do big data (processo de análise e interpretação de um grande volume de dados), a gerociência  estará mais presente e atuante na identificação e prevenção de doenças, rastreando suas genéticas e acelerando na inovação dos medicamentos.

 Hoje, chegar aos 115 anos é um feito que entra no livro dos recordes. A britânica Ethel Caterham, nascida em 1909, ao completar essa idade em 2025, e após a morte da freira brasileira Inah Canabarro Lucas, em 30 de abril, aos 116 anos, recebeu o título da pessoa mais velha do mundo pela Gerontology Research Group, organização que pesquisa para Guinness World Records. Ela atribui sua longevidade a maneira como encara as situações. “Com calma, nos altos e baixos, e fazer o que gosta”.  

 Mas, somente uma atitude serena e positiva diante da vida não é garantia de longevidade. Em março de 2024, a então mulher mais velha do mundo, Maria Branyas Morera, ao comemorar seus 117 anos, disse que “a sorte e a boa genética” a tinham levado a esse patamar de idade. Alguns meses depois de ela falecer, cientistas divulgaram que realmente a genética ajudou em sua longevidade.

 Um estudo do microbioma e do DNA de Branyas, conduzido ainda em vida, determinou que “os genes que ela herdou permitiram que as suas células se sentissem e se comportassem como se fossem 17 anos mais jovens”. Também foi pesquisado que, no seu caso, as bactérias presentes no intestino e que são fundamentais para a boa saúde correspondiam as de uma criança. “Os microrganismos são essenciais para determinar não apenas a composição metabólica do nosso corpo, mas também a inflamação, a permeabilidade intestinal, a cognição e a saúde óssea e muscular", explicam os cientistas no estudo realizado. Foi observado também que Branyas ingeria yogurte três vezes ao dia.

 Políticas inclusivas

 Um dos países que mais têm investido em ambientes favoráveis aos idosos é o Japão, que tem a maior população centenária do mundo. Somam 95.119 pessoas, de acordo com o censo do país divulgado em outubro de 2024, um aumento de 2.980 em relação ao ano anterior, a maioria composta de mulheres (83%).  

 A política a favor do idoso,  informa a plataforma Nipon.com, teve início no século passado, em 1963, com a promulgação da Lei de Bem-Estar Social para Idosos. Na época, havia 153 japoneses centenários. Esse número ultrapassou mil, em 1981, e chegou a 10 mil em 1998, e desde então vem aumentando continuadamente.

 Em dezembro do ano passado a BNN Blomberg divulgou que as maiores corretoras de valores do Japão estavam aumentando os salários e benefícios para os trabalhadores que atingiam a idade da aposentadoria, com intuito de reter as pessoas capacitadas. Se, em anos passados, funcionários com mais de 60 anos enfrentavam uma queda acentuada no salário ao serem readmitidos, além de serem relocados para funções menos importantes, agora a situação melhorou. A reportagem citava bancos e instituições financeiras japonesas que estavam promovendo ou planejavam implementar vantagens salariais de até 40%, ampliando benefícios sociais com foco nos funcionários de mais de 60 anos.

 Na Inglaterra, pessoas que trabalharam mais de 30 anos em escritórios fechados prosseguiam ativas, mas de outra maneira. Reportagem mostrou que atualmente exercem atividades de guardas florestais em parque públicos, agentes comunitários em programas sociais ao ar livre, recepcionistas em fazendas recebendo colegiais  e gestores de zoológicos, entre outras atividades. Todos se declarando mais felizes em seus novos empregos (The Guardian, 18/5/2025).

 Sem reserva financeira

 No Brasil, uma série de reportagens da Gazeta do Povo, de Curitiba, sobre o envelhecimento populacional no país, revelou o despreparo da sociedade  quando se trata de matéria financeira.  A baixa capacidade de poupança (14,5% do PIB no fim de 2024) e de investimentos financeiros (apenas 37% dos brasileiros afirmaram que realizaram aplicações financeiras), segundo o IBGE, é agravada pela apuração de que 82% das pessoas não aposentadas ainda não iniciaram uma reserva financeira para a velhice. Se, em 2023, a intenção de poupar para a velhice era de 58% dos entrevistados, em 2024, o percentual baixou para 53%.

 Lembrando que em duas décadas a proporção da população de idosos no Brasil duplicou, saltando de 8,7% para 15,6% e que a estimativa do IBGE é que atinja 38% (pessoas acima dos 60 anos) em 2070.

 Para piorar, reportagem recente na mídia revelou que mais de 70 milhões de brasileiros, o equivalente a 42% de pessoas adultas no país, estão inadimplentes (Veja Negócios, em 18/5/2025).

 Aposentadoria baixa

 Informação divulgada pelo próprio INSS mostra que 70% dos pagamentos previdenciários feitos pelo instituto são de até um salário-mínimo (R$ 1.831), totalizando 28,5 milhões de pessoas. Valor muito aquém do necessário para uma sobrevivência digna. Os que ganham acima do mínimo somam 12,2 milhões e o teto previdenciário só atinge 10,6 mil (R$ 8.157,41). No total, o INSS paga 40,7 milhões de benefícios previdenciários e assistenciais.

 Outro registro preocupante diz respeito à produtividade no trabalho. Dados do FGV Ibre apontam que entre 1981 e 2024 o aumento da produtividade foi de 0,5% ao ano, e que nos últimos cinco anos foi ainda menor (0,3%).

 Prosseguindo nesse ritmo, o país terá de fazer malabarismos para continuar a pagar aposentadorias e prover o SUS de recursos, garantem os especialistas. Em 2024, as despesas com a previdência somaram  R$ 938,5 bilhões, quase 30 bilhões a mais do que foi planejado. Para 2025, o governo já projeta um déficit de R$ 328 bilhões.  

 Nos Estados Unidos, em 2024, a despesa previdenciária que beneficia 68 milhões de pessoas atingiu a cifra de 1.52 trilhão de dólares, 22,4% do orçamento federal. Dados da União Europeia de 2023 atestam que os gastos com proteção social chegaram a 3.309 bilhões de euros, variando de 8,1% a 25% do PIB (produto interno bruto) dos países que compõem o bloco.

 Já a despesa total da previdência brasileira está em 14,5% do PIB, incluindo INSS (8%), programas sociais e pagamento de servidores públicos e militares. A percentagem, de acordo com analistas, equivalente a de países que têm uma população idosa três vezes maior, como a França, Portugal e Grécia.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Comunidade católica de Jerusalém terá um representante no conclave que vai escolher o papa

/ Sheila Sacks /


Nomeado cardeal  pelo papa Francisco, em 30 de setembro de 2023, o italiano Pierbattista Pizzaballa é o Patriarca Latino de Jerusalém, desde 2020, e completou exatos 60 anos em 21 de abril, data do falecimento do papa.

Sua nomeação para cardeal aconteceu uma semana antes do ataque do Hamas, na fronteira sul de Israel, que provocou mais de 1.200 mortos e o sequestro de 251 pessoas. Em 17 de outubro, depois de convocar um dia de oração e jejum pela paz na Terra Santa , o cardeal Pierbattista se ofereceu  em troca da libertação das crianças israelenses reféns do grupo terrorista.

De acordo com o portal Vaticano News (16.10.2023), o cardeal, em entrevista on-line com jornalistas, “não hesitou em declarar que está pronto para se oferecer pessoalmente em troca das crianças que estão atualmente nas mãos do Hamas. − Se isso puder trazer liberdade, trazer essas crianças de volta para casa, não há problema. De minha parte, disponibilidade absoluta".

Em outra entrevista ao mesmo portal, alguns meses antes de se tornar cardeal, diante de algumas ações de intimidação praticadas pela ala mais extremista do judaísmo que questiona a presença de cristãos em locais que consideram de um Israel bíblico, Pierbattista ressaltou a posição do presidente Isaac Herzog. “O presidente do Estado de Israel é muito ativo e falou muito claramente, publicamente, contra isso.” Também isentou a sociedade do país por esse tipo de evento.A grande maioria da população judaica israelense, mesmo a religiosa, não tem nada a ver com isso. Nos últimos meses, também vimos muitos rabinos escreverem e falarem publicamente contra esses fenômenos.”

Em resposta a uma suposta “perseguição” que poderia estar ocorrendo aos cristãos na Terra Santa, foi incisivo. “Não. Quando falamos de perseguição, penso no que o autodenominado Estado Islâmico (EI) fez na Síria e no Iraque. Não estamos nessa situação. Há problemas, com certeza, mas não estamos sendo perseguidos.”

Manifestando esperança em um futuro mais tranquilo, Pierbattista assim se expressou. “Sempre há motivos para ter esperança, porque essas situações também criaram reações fortes, muitas vezes muito mais fortes na sociedade israelense, até mesmo religiosas, mais frequentemente do que entre os cristãos, e acredito que essa consciência de um problema na sociedade israelense dará frutos com o tempo.”

Currículo


Nascido na pequena cidade Cologno al Serio , na região de Lombardia, norte da Itália, Pierbattista  entrou para a Ordem dos Frades Menores ( franciscanos) aos 19 anos. Em 1990, recebe o título de bacharel em Teologia pelo Studio Teológico S. Antonio, em Bolonha, e é ordenado sacerdote no mesmo ano, em 15 de setembro, aos 25 anos. Logo em seguida parte para Jerusalém onde em 1993 obtém  a licenciatura em Teologia com especialização bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum.

Estuda as línguas hebraica e semítica na Universidade Hebraica  de Jerusalém e depois leciona  hebraico bíblico na Faculdade Franciscana de Ciências Bíblicas e Arqueologia, em Jerusalém. Foi responsável pela tradução do Missal Romano e de textos litúrgicos para o hebraico, que fala fluentemente, além do árabe e do inglês.  

Em 1999, torna-se  primeiro assistente geral do auxiliar do Patriarca Latino de Jerusalém, com sede na Basílica do Santo Sepulcro, e, em seguida, vigário paroquial para a comunidade católica de língua hebraica. Posteriormente, é nomeado superior do Convento dei Santi Simeone e Anna, também em Jerusalém.

Em 2004, é eleito para o cargo de Custódio da Terra Santa e Guardião do Monte Sião, sendo confirmado por 12 anos consecutivos, até 2016, quando é indicado para Administrador Apostólico do Patriarcado de Jerusalém dos Latinos, e consagrado Arcebispo e Pró-Grão-Prior da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém. Em 24 de outubro de 2020 o papa Francisco o nomeia oficialmente Patriarca Latino de Jerusalém, após 40 anos da função ser ocupada por prelados árabes.

Em julho de 2023, por ocasião do anúncio do papa sobre o cardinalício na Terra Santa,  Pierbattista Pizzaballa interpreta a nomeação como um "sinal de atenção da Igreja de Roma para com a Igreja Mãe, a Igreja de Jerusalém ".

Comunidade

Vivem atualmente em Israel 180,3 mil  cristãos, sendo 79% de árabes israelenses residentes no norte, principalmente nas cidades de Haifa e Nazaré. Os cristãos não árabes estão em Tel Aviv e Jaffa.  Em Jerusalém são  13 mil. O número de igrejas católicas é de 103. Os dados foram publicados pelo Escritório Central de Estatísticas de Israel, em dezembro de 2024, e reportados pelo site Christian Media Center (14.01.2025).

Um ano após o ataque do Hamas, reportagem do Vaticano News (7/10/2024) divulgou a reunião anual das comunidades católicas de língua hebraica de Israel orando pela paz no Mosteiro de "Nossa Senhora da Arca da Aliança", em Kiryat Ye'arim. Em entrevista ao portal, o padre Piotr Żelazko, vigário patriarcal de São Tiago, que cuida das comunidades eclesiais em Israel, lembrou que  o sofrimento não tem nacionalidade. “É muito difícil aqui em Israel. Rezamos pelas vítimas desta violência sem precedentes que vimos em 7 de outubro do ano passado e lembramos quanta violência sofremos."

 A matéria cita o ano novo judaico, o Rosh Hashaná, celebrado naquele mês, e destaca as “conexões com as raízes hebraicas” das comunidades católicas no país. “As comunidades católicas de língua hebraica que vivem em Israel são únicas na sua profunda ligação com a cultura e a língua hebraica, que une católicos de diversas origens na encruzilhada do cristianismo e do judaísmo. Eles celebram a sua fé cristã em hebraico na profunda ligação entre o cristianismo e o judaísmo”, conclui o artigo assinado pelo padre Paweł Rytel-Andrianik, professor na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma, e colaborador da Rádio Vaticano e do portal Vaticano News, ambos órgãos informativos oficiais da Santa Sé.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Um sentido para a vida – Revisitando Viktor Frankl

Hoje aos homens é concedido confrontar-se com realidades que antes confrontavam somente no leito de morte (Ernst Bloch, filósofo)

/ Sheila Sacks /


Em 2023, um livro escrito em 1946, traduzido em 52 idiomas, best-seller mundial, ganhou uma tradução especial em português voltada para jovens leitores. Trata-se da obra “Em busca de Sentido – Um psicólogo no campo de concentração”, do médico e professor de Psiquiatria na Universidade de Viena, Viktor Frankl (1905-1997).

Com elementos que beiram ao gênero de literatura de autoajuda, pela ênfase à psicologia virtuosa da vontade pessoal e da força do espírito para superar as adversidades, o livro de Frankl traz a mensagem de que ao indivíduo cabe procurar um sentido e uma missão na vida. Uma visão que caminha em rumo diverso a de seu ilustre conterrâneo Sigmund Freud (1856-1939), com quem manteve correspondência e conheceu pessoalmente.

 Em uma conferência em Viena, Frankl reconheceu o fato e se justificou: “É verdade que Freud escreveu que ‘no momento em que alguém pergunta sobre o sentido ou o valor da existência, está doente’, mas eu penso que é nesse momento que a pessoa manifesta sua humanidade. É um empreendimento humano o interrogar sobre um sentido para a vida, e cabe perguntar se tal sentido é alcançável ou não.”

 Quase oitenta anos depois do lançamento da obra, que também enfatiza o valor e o sentido do sacrifício em qualquer situação, as teses de Frankl e Freud estranhamente se interagem. Isso porque em uma época na qual o sentido da vida para uma fatia da humanidade se centraliza em matar ou se imolar em sacrifício às causas associadas ao radicalismo religioso e político, a presunção de Freud torna-se cabível principalmente em relação às pessoas que aderem ao terror. A procura de uma razão para viver não é uma condicionante à busca do bem e se manifesta, de um modo geral, a partir de um desajuste pessoal que, mais adiante Frankl classificaria de “vazio existencial”.

 Mas, apesar das concepções de Frankl não entusiasmarem Freud nem tampouco a outro gigante da psicologia com quem manteve contato, o também austríaco Alfred Adler (1870-1937, que defendia a ideia de que o indivíduo é motivado mais pelas expectativas do futuro do que por suas experiências do passado), sua obra de estreia e as demais que se seguiram (escreveu 39 livros) receberam elogios e palavras de incentivo de líderes religiosos do porte do Papa Paulo VI, que o convidou para um encontro no Vaticano, em 1970. Seus livros também foram traduzidos para o árabe e o persa, sendo editados no Egito, Irã e Turquia, de populações muçulmanas.

Livro do século

 Em 1991, uma pesquisa realizada entre os leitores dos Estados Unidos apontou os 10 livros que mais influenciaram e fizeram a diferença em suas vidas. No topo da lista não houve surpresa: a Bíblia continuava liderando com facilidade (fato que se repete até os dias de hoje nos EUA). A consulta, conduzida pela prestigiosa instituição norte-americana “Library of Congress” - a maior biblioteca do mundo com um acervo de mais de 35 milhões de livros e outros impressos -, em parceria com o Clube do Livro, também consagrou o livro escrito por Frankl (‘Man’s Search for Meaning’, na edição em inglês).

 Uma escolha que se repetiu anos mais tarde, em 2000, no Japão, com os leitores do Yomiuru Shimbun, de Tóquio, o jornal de maior tiragem diária do mundo (10 milhões de exemplares), que listaram o livro de Frankl como um dos 10 mais importantes do século 20.

O autor tinha sobrevivido a três longos e sofridos anos em quatro campos de concentração, acompanhado de um caderno de anotações que serviu de base para descrever a sua terrível experiência e a de outros companheiros sob a ótica de um psicólogo. Publicado pela primeira vez em Viena, o livro de pouco mais de cem páginas, escrito em nove dias, trazia uma mensagem estimulante já a partir do título: “Trotzdem ja zum Leben sagen” (Diga sim à vida, de qualquer maneira, tradução livre do alemão). Espantoso para quem acabara de perder seus entes queridos de modo tão bárbaro: o pai, no campo de Theresienstadt (República Tcheca); a mãe e o irmão caçula, em Auschwitz (Polônia); e a esposa grávida, em Bergen-Belsen (Alemanha).

 Ao longo da narrativa, Frankl detalha situações inimagináveis de desumanidade e de degradação física, experimentadas por prisioneiros de todas as idades, inclusive crianças, no campo de Auschwitz, e analisa que todo ser humano submetido àquelas condições em pouco tempo irá apresentar um estado de espírito anormal o que não deixaria de ser uma reação psicológica “normal”. E lembra a frase do poeta e filósofo Gatthold Ephraim Lessing (1729-1781), mestre do Iluminismo: “Quem não perde a cabeça com certas coisas é porque não tem cabeça para perder.”

Frankl recorre a pensamentos de filósofos, poetas e escritores nas suas descrições dos cotidianos quadros sórdidos e terrificantes que compunham o dia a dia daquele exército deplorável de condenados. A sublimação do sofrimento é lembrada na afirmação do russo Dostoievsky (1821-1881) que dizia temer apenas uma coisa na vida: não ser digno de seu próprio tormento. Daí a importância das denominadas “alegrias miseráveis” que inoculavam um valioso fôlego espiritual nos prisioneiros despojados de todos os seus pontos de equilíbrio. “Nós éramos gratos ao destino quando ele nos poupava de sustos. Já ficávamos contentes quando à noite podíamos catar os piolhos do corpo antes de nos deitar.” Uma felicidade no sentido negativo de Schpenhauer (filósofo alemão do século 19) ou uma isenção de sofrimento em sentido muito relativo, segundo Frankl.

 Arte, política e religião

 Usada pelos prisioneiros como uma valiosa tábua de salvação contra a apatia, o desânimo e a loucura, a arte nos campos de concentração está presente nas narrativas da maioria dos livros, documentários e filmes sobre o tema, compondo, juntamente com o material salvo da hecatombe, um considerável legado cultural, se o termo é aplicável em relação à tragédia do Holocausto. Sessões de música, poesia, teatro e até de humor aconteciam com o beneplácito da guarda nazista adestrada contra possíveis focos de rebeliões. Os sentimentos de inconformismo ou revolta, canalizados para um escoadouro fictício de sonhos e fantasias, mantinham os prisioneiros sob controle, proporcionando uma sensação de bem estar, ainda que fugaz e ilusória. Valia “tudo para esquecer”, atesta Frankl.

Outras áreas de interesse que movimentavam o cotidiano dos campos eram a política e a religião. ”Em primeiro lugar, a política, o que não é de surpreender e, em segunda posição a religião, o que não deixa de ser notável”, conta. “Todos aqui discutem política quase sem parar, mesmo que se trate de ouvir sequiosamente os boatos infiltrados e passá-los adiante. Quanto à religião, o impressionante eram os cultos improvisados nos cantos de algum barracão ou num vagão de gado, escuro e fechado, no qual éramos trazidos de volta após o trabalho, cansados, famintos e passando frio em trapos molhados.” Médico psiquiatra, Frankl afirma que se manteve fora de privilégios. “Não é sem orgulho que digo não ter sido mais que um prisioneiro comum. Nada fui senão o simples nº 119104.”

Junto aos pais

Em sua autobiografia, publicada em 1995, Frankl relata como teve a oportunidade de escapar ao regime nazista: “Eu esperei alguns anos até obter o visto de imigração para os Estados Unidos. Finalmente, um pouco antes do ataque a Pearl Habor (07.12.1941), fui convidado a ir à embaixada para pegar o meu visto. Aí então, eu hesitei, pois como poderia deixar meus pais para trás? Eu já imaginava qual seria o destino deles: deportação para um campo de concentração. Poderia eu dizer adeus e deixá-los entregues a própria sorte? O visto era pessoal, exclusivo para a minha pessoa”. 

 À época, Frankl tinha 36 anos e era diretor do setor de Neurologia do Hospital Rothschild, tendo trabalhado antes, por quatro anos, no Hospital Geral de Viena, no tratamento de pacientes com tendências ao suicídio. Ele conta que quando chegou em casa naquele dia, encontrou o pai, em lágrimas: “Os nazistas atearam fogo na sinagoga”, disse-me, mostrando um pedaço de mármore que ele conseguira salvar. Na peça estava gravada, em dourado, uma única letra hebraica, justamente a letra inicial do quarto Mandamento: Honra teu pai e tua mãe. Diante disso, Frankl telefonou para a embaixada americana e cancelou o visto. “Talvez a decisão que eu tomei já estivesse comigo há muito tempo, e na realidade somente escutei o eco da voz de minha consciência”, afirmou.

Ponto de vista

O jornalista e escritor norte-americano Matthew Scully, mais conhecido pela sua função de speechwriter (redator de discursos) do ex-presidente George W. Bush, observa que Frankl publicou “Em Busca de Sentido” um ano antes do surgimento de “O Diário de Anne Frank” (1947). Ambos os livros ganharam o mundo, mas os autores tiveram destinos distintos. “No caso de Frankl, a sorte o conduziu para uma direção diferente. Depois da perda da esposa no Holocausto, ele casou-se novamente, escreveu dezenas de obras, criou um método de psicoterapia, construiu um instituto em Viena que leva o seu nome, deu palestras ao redor do mundo, e permaneceu vivo para ver o seu livro ser traduzido para dezenas de idiomas.” 

No encontro que teve com Frankl, em Viena, em abril de 1995, o jornalista falou de sua surpresa pelo livro não ser, pelo menos, o segundo mais lido na biblioteca do Museu do Holocausto, em Washington, onde “O Diário de Anne Frank” ainda reina absoluto (35 milhões de cópias em 67 idiomas). Frankl atribuiu o fato ao tom conciliatório que sempre adotou em suas mensagens e que desagradava a muitos: “Em todo o meu livro Em Busca de Sentido você não vai encontrar a palavra ‘judeu’. Eu não acentuei a minha condição de judeu e nem de ter sofrido como um judeu”, afirmou.

Na entrevista, publicada pela revista americana First Things, Frankl fez questão de igualar a sua dor à de qualquer outro ser humano submetido a uma situação de horror. “Sou 100% contra a tese de culpa coletiva”, enfatizou. “Parto do fundamento de que a culpa, a priori, é individual.” Reforçando essa posição, Frankl já havia dito, em outra ocasião, que mesmo nos estreitos limites de um campo de concentração, ele somente encontrara dois gêneros de pessoas: as decentes e as sem decência. “Nenhuma sociedade está imune aos dois, portanto, havia no campo guardas decentes e prisioneiros, sem decência, notadamente os capos (prisioneiros que dispunham de prerrogativas especiais) que insultavam e torturavam os seus próprios companheiros em troca de vantagens pessoais.”

 Escondendo o inimigo

O antropólogo Richard A.Shweder, escritor, professor e presidente do Comitê de Desenvolvimento Humano da Universidade de Chicago, destaca o fato de que Frank surpreendeu o mundo ao afirmar que o espírito humano encontrava maneiras de alcançar a dignidade mesmo na lama de Auschwitz. “Ele argumentava que um prisioneiro tornava-se digno ou não a partir de uma decisão própria interior, e não somente em consequência das condições do campo.” Para Frankl, ninguém melhora ou evolui enxergando-se como vítima. Cada pessoa é capaz de se sobrepor a situações degradantes, “já que a saúde mental está relacionada com as decisões e não com as condições”.

Um fato ilustra esse ponto de vista. Quando os aliados libertaram os campos de concentração, duas prisioneiras judias sobreviventes do Holocausto esconderam um oficial da SS (Schutzstaffel, a tropa nazista de Hitler) de nome Hoffman, e só concordaram em entregá-lo às autoridades com a condição de que ele não fosse maltratado. Frankl foi testemunha no julgamento e durante algum tempo manteve correspondência com o oficial tentando confortá-lo, já que o homem vivia atormentado por sua participação na barbárie nazista.

Conselhos para se manter vivo

Frankl também lembra em seu livro uma das primeiras recomendações que, recém-chegado a Auschwitz, recebeu de um prisioneiro veterano: “Não tenha medo! Não se amedronte com as seleções! Mas uma coisa eu peço para você... faça a barba diariamente, mesmo que tenha de usar um fragmento de espelho... mesmo que tenha que dar o seu último pedaço de pão para isso. Você ficará com uma aparência mais jovial e o ato de se barbear dará a sua face mais rubor. Se quiser sobreviver, só existe um jeito: Mostre-se saudável para o trabalho.”

Já nos momentos de intensa frustração, recorda Frankl, o artifício era orientar os seus pensamentos para as coisas mais triviais, como por exemplo achar um pedaço de arame para substituir o cadarço podre de um sapato. Ele também se forçava a pensar acerca do futuro, após a libertação. Anos depois, nas diversas universidades onde lecionou – entre elas a de Harvard – Frankl sempre enfatizava aos seus alunos que cada pessoa deve ir ao encontro de sua missão. “O homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido da vida. Por isso é preciso trabalhar por algo além de si mesmo.”

Indicado ao Nobel da Paz

Vitor Frankl foi professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Medicina de Viena até 1990, quando se aposentou aos 85 anos (ele também praticava o alpinismo e tirou o seu brevê de piloto de aeroplano aos 67 anos). Doutor em Filosofia, Frankl recebeu o título de “Doutor Honoris Causa” em 29 universidades de todo o mundo, entre elas, as federais do Rio Grande do Sul (1984) e de Brasília (1988).

Membro honorário da Academia Austríaca de Ciências e Cidadão Honorário de Viena, Frankl proferiu palestras em mais de 200 faculdades nas principais cidades do mundo e foi considerado pelo “American Journal of Psychiatry”, o mais importante pensador desde Sigmund Freud e Alfred Adler. A Logoterapia ou Análise Existencial - método psicológico criado por ele - é conhecida como “A Terceira Escola Vienense de Psicoterapia” (a primeira é a Psicanálise Freudiana e a segunda é a Psicologia Individual de Adler). Em 1985 recebeu “The Oskar Pfister Prize”, prêmio máximo da “American Society of Psychiatry”, e teve seu nome proposto para o Nobel da Paz pela “The Milton H. Erickson Foudation”, entre outras entidades.

Lembrando a visita que fez a Frankl em um hospital de Viena, poucos meses antes de seu falecimento, ocorrido em 2 de setembro de 1997, o escritor e doutor em psicologia Jeffrey K.Zeig - idealizador do ciclo de seminários internacionais “Evolution of Psychotherapy Conferences”, que teve em Frankl um dos seus participantes mais ilustres - buscou uma frase do romancista e filósofo francês Albert Camus, na sua obra póstuma “O primeiro homem”, para definir a personalidade de seu mestre: “Existem pessoas que justificam o mundo, que ajudam os outros somente com a sua presença.” A citação veio a propósito da insistência de Frankl em manter uma linha de telefone aberta para atender pessoas de tendências suicidas, mesmo doente e hospitalizado. Até o final de seus dias, Frankl recebia em média mais de 20 cartas diárias de pessoas que se diziam salvas após a leitura de seu livro.    

sexta-feira, 21 de março de 2025

Relatório sobre as maiores organizações criminosas da América Latina e Caribe inclui grupos do Brasil

 / Sheila Sacks /


Elaborado pela ONG InSight Crime e com o apoio financeiro da União Europeia(UE) foi lançado em fevereiro a publicação digital El Pacto2.0 que investiga e mapeia as maiores organizações criminosas da América Latina e Caribe e suas conexões com o continente europeu.

Segundo o informe o aumento da produção de cocaína gerou US$ 25 bilhões extras em lucros para o crime organizado transnacional em 2024, e apesar de outros ilícitos é a cocaína que sustenta o crime organizado na América Latina, sendo também o seu maior acelerador.  

Foram classificadas e investigadas as 28 redes criminosas mais ativas e relevantes que representam alto risco para os países da região. No Brasil, três grupos foram analisados em suas estruturas e atividades.

Apresentado por Jeremy McDermott e Steven Dudley - fundadores da ONG, o relatório de mais de cem páginas teve a cooperação da EMPACT (European Multidisciplinary Platform Against Criminal Threats)  e está disponível na Internet para leitura e conhecimento. Os autores são veteranos  pesquisadores  sobre organizações criminosas, autores de vários livros sobre o tema e com dezenas de artigos publicados na imprensa internacional.

A InSight Crime, criada em 2010, é uma organização de jornalismo investigativo e pesquisas, com sedes em Washington e Bogotá. Tem uma equipe de 50 profissionais pós-graduados em diversas áreas trabalhando nas Américas e Europa no sentido de aprofundar o debate sobre o crime organizado e a segurança do cidadão.  

Ameaça global

Na introdução, o estudo alerta para o crescimento das conexões entre as redes criminosas latino-americanas e europeias, principalmente as que lidam com o tráfico de drogas, ouro e de pessoas, e o fortalecimento dessa aliança que se constitui uma ameaça global em nível de geopolítica. Diferente dos anos 1980, os grandes cartéis agora operam com subcontratações de grupos para funções ou fases específicas, ajustando-se e garantindo a não interrupção do fluxo de ilícitos quando pressionados ou atacados por Forças de Segurança.

É fato que as organizações criminosas usam estruturas de corporações legais para ocultar as operações ilícitas e lavagem de valores. De acordo com a Europol, agência europeia de cooperação policial para combate ao crime e terrorismo, de 2021 a 2024 subiu de 71% para 86% a percentagem de empresas fantasmas criadas por esses grupos criminosos que operam na Europa.

Em relação aos países da América Latina e Caribe, essas redes criminosas representam a maior ameaça à democracia na região, segundo os autores do relatório. Isso porque se utilizam da corrupção e do suborno para se introduzirem na estrutura do Estado e são o principal motor de homicídios e de abusos contra os direitos humanos. Prejudicam o desenvolvimento e a estabilidade econômica, distorcem as economias, afastam os investimentos e afetam o financiamento internacional na região.

Ilícitos no Brasil

No mapa do crime, o Brasil aparece com três organizações criminosas: Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV) e “Tren de Aragua”, originária da Venezuela e presente também no Paraguai, Bolívia, Chile, Peru e Colômbia. Mas, conforme estudo divulgado em 2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) são 72 facções criminosas que operam no país, provocando com sua carteira de ilícitos prejuízos estimados em 453,5 bilhões de reais. O Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, vindo depois dos Estados Unidos.

O relatório faz um histórico sobre cada organização criminosa, detalhando sua geografia e atividades ilícitas. Sobre o PCC, que ocupa duas páginas, é informado que a “sede” fica em São Paulo e que surgiu nos anos 1990, através de detentos em presídios como grupos de autoproteção. O informe, que detalha as atividades da organização e a atuação-resposta do Estado, destaca que 30 mil homens fazem parte de sua estrutura. Sobre a conexão que mantém com outras redes internacionais, são apontados o Cartel de Sinaloa, do México (considerado pelo governo dos Estados Unidos o maior e mais poderoso cartel de tráfico de drogas do mundo), a Ndrangheta italiana, da Calábria, e a máfia albanesa que opera na Albânia, no sudeste da Europa.

Sobre o Comando Vermelho (CV), os autores relatam que o grupo surgiu nos anos de 1970 em um presídio no Rio de Janeiro, da união de criminosos com militantes da esquerda presos pela ditadura militar (1964-1985). Revelam que em 2002 o CV chegou a formar uma aliança com o PCC, mas que essa situação se desfez em 2016.

No entanto, artigo posterior ao relatório, divulgado pelo mesmo InSight Crime, em 21/2/2025, revela a recente trégua entre o PCC e o PV, após uma década de conflitos. O objetivo seria flexibilizar as regras do sistema prisional brasileiro e atuar em conjunto nas duas principais rotas de tráfico do país: a rota caipira, que começa na Bolívia e vai até o porto de Santos, e de lá para Europa e África; e a rota do Solimões, que transporta drogas pela floresta amazônica, através dos rios Solimões e Amazonas.

 Centrado no Rio, o Comando Vermelho já atua em diversos outros estados com uma série de atividades. Os pesquisadores chamam a atenção para o fenômeno das milícias que não recebem igual repressão exercida pela polícia em relação aos traficantes. O Brasil é uma das principais rotas de trânsito da cocaína em direção à Europa, e a Colômbia é o maior produtor de cocaína do mundo. Em 2023, a produção naquele país teve um aumento de 53%  em relação a 2022, alcançando 2.664 toneladas, conforme relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, Unodc.

O terceiro cartel citado em terras brasileiras é o Tren de Aragua que nasceu em uma penitenciária da Venezuela. Com um fluxo migratório que tem chamado a atenção de especialistas, a organização está presente em vários países da América Latina, inclusive no Brasil. Possui 4 mil membros. A organização pratica contrabando, tráfico de drogas, extorsão e sequestro. É responsável principalmente pelo tráfico de migrantes para a América do Sul. Em 2024, face à crescente preocupação com o potencial de ameaça do grupo, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos designou o Tren de Aragua como uma organização criminosa transnacional.

Cartéis na Europa

Em relação à União Europeia, formada por 27 países, a Europol em seu Informe 2024 (Decoding the EU’s Most Threatening Criminal Networks) identificou 821 redes criminosas de alto risco que operam no continente e que dispõem de 25 mil membros. Suas atividades envolvem tráfico de drogas e armas, fraudes, delitos contra a propriedade, tráfico de migrantes, falsificações, ciberdeliquência, crimes contra o meio ambiente e extorsão.

Os países com maior incidência de grupos e ações criminosas (segundo a Global Initiative Against Transnational Organised Crime - GITOC) são, pela ordem: Rússia, Ucrânia, Itália, Sérvia, Montenegro, Espanha e Bielorrúsia.

Na América Latina e Caribe, a Colômbia lidera o ranking, seguida do México, Paraguai, Equador, Honduras, Panamá, Brasil e Venezuela. De acordo com relatório de 2024 do Unodc, o número de pessoas que usam drogas aumentou para 292 milhões de usuários.

Em termos de crimes financeiros globais, o Relatório Nasdaq 2024 (Global Financial Crime Report) estima que em 2023 mais de três trilhões de dólares em fundos ilícitos fluíram através do sistema financeiro global servindo para atividades de lavagem de dinheiro e outros crimes destrutivos, incluindo US$ 782,9 bilhões em atividades de tráfico de drogas, US$346,7 milhões em tráfico de seres humanos e US$11,5 milhões em financiamento do terrorismo. Além disso, as perdas por golpes fraudulentos e esquemas de fraude bancária totalizaram US$485,6 milhões provocando uma série de danos devastadores em todo o mundo.

Diretora executiva da Europol desde 2018,  Catherine De Bolle, natural da Bélgica, chama a atenção para o novo DNA do crime organizado. “As redes criminosas evoluíram para empresas criminosas globais, movidas pela tecnologia, explorando plataformas digitais, fluxos financeiros ilícitos e instabilidade geopolítica para expandir sua influência. Elas estão mais adaptáveis e mais perigosas como jamais estiveram.”

 

quinta-feira, 6 de março de 2025

Covid-19/ano 5: pesquisas apontam novos vírus com risco pandêmico

/ Sheila Sacks /

Em fevereiro, um estudo publicado por cientistas chineses na revista científica americana Cell provocou turbulência nos mercados financeiros mundiais, inclusive no Brasil, com aumento do preço do dólar e queda na rentabilidade das ações.

A descoberta de um novo coronavírus com capacidade de infectar humanos, semelhante ao vírus SARS-CoV-2 causador da Covid-19, e seu forte potencial de disseminação ganharam repercussão midiática principalmente nos meios digitais.

Segundo a plataforma UOL, cientistas do Laboratório de Guangzhou (em conjunto com o Instituto de Virologia de Wuhan- WIV) constataram que o novo coronavírus (HKU5-CoV-2) contaminou tecidos pulmonares e intestinais cultivados artificialmente com células humanas. No entanto, eles também atestaram que o vírus ainda não foi detectado em humanos, e provém da mesma linhagem do merbecovirus causador da Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), que tem algumas características similares com a Covid-19, mas menos agressivo. Para esse vírus ainda não existe vacina.

A notícia veiculada numa sexta-feira, 21 de fevereiro, não atravessou o fim de semana e se perdeu em meio a eventos posteriores como o bate-boca de Zelensky, da Ucrânia, com o presidente Donald Trump na Casa Branca, e no caso de mídia nacional, a corrida do filme brasileiro ao Oscar e os preparativos para o Carnaval.

Mas, ressalva seja feita, um dia após o término dos festejos, uma matéria na plataforma digital do jornal Estado de São Paulo (5/3/2025) procurou tranquilizar os leitores afirmando que o novo vírus descoberto, o HKU5-CoV-2, “não está adaptado a seres humanos”. Pesquisadores brasileiros consultados classificaram a descoberta como “um trabalho de vigilância” e explicaram que o estudo em questão, apesar de mostrar “que há afinidade entre a proteína S do novo vírus de se conectar a células humanas”, não concluiu que isso significaria que o vírus tem capacidade de infectar o organismo humano.  

Em contrapartida, The Economic Times alerta que cientistas temem que experimentos arriscados com esse vírus, que incluem até “camundongos humanizados”, resultem em outro surto. Simon Clarke, especialista em microbiologia celular na Universidade de Reading, no Reino Unido, considerou a notícia inquietante, visto que a descoberta de outro coronavírus de morcego que consegue se introduzir em células humanas e animais, desbloqueando-as da mesma forma que a Covid-19, sugere um maior grau de transmissão. Também a relação genética do vírus com o coronavírus da MERS, conhecido por sua alta taxa de mortalidade, amplifica ainda mais as preocupações sobre potenciais implicações para a saúde.

No final de janeiro, o novo diretor da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), John Ratcliffe, divulgou relatório do órgão considerando muito provável que a pandemia da Covid-19 tenha se originado de vazamento em um laboratório na China, o WIV, que realizou pesquisas arriscadas com vírus turbinados. A descoberta do HKU5-CoV-2, no mesmo instituto da China, reacende os debates sobre a segurança laboratorial e as origens das pandemias, pondo em foco o papel da pesquisa virológica de alto risco na prevenção ou potencialmente na precipitação dessas infecções globais.

Pós pandemia

O novo vírus se junta à Covid-19 e dezenas de outros com potencialidade de infectar humanos e provocar pandemias descobertos por cientistas. Uma lista de 30 patógenos que já provocaram surtos, principalmente na Ásia e na África, foi divulgada em agosto de 2024 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e dentre eles estão a Mers, transmitida por dromedários infectados; a CCHF (febre hemorrágica da Crimeia-Congo), propagados por carrapatos; Ebola, oriunda de morcegos e com taxa de mortalidade de 90%; Febre de Lassa, transmitida por ratos; Niphan, cujo contágio se dá em contato com porcos doentes e carne contaminada; a SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave); e, o Zika, transmitido pela picada do mosquito.

Em recente reportagem (1/3/2025), o jornal britânico The Guardian  marcou os cinco anos pós pandemia com uma matéria de consulta a especialistas de áreas diversas sobre os efeitos e consequências da Covid-19. Alguns lembraram que catástrofes de qualquer tipo alimentam reflexões sobre a condição humana e a necessidade de repensar a relação entre o indivíduo e o coletivo. Foi assim com o terremoto de Lisboa em 1775, que abalou os alicerces filosóficos e a pandemia de gripe de 1918-19 que forçou as pessoas a ter uma maior relação com a natureza.

A professora universitária Laleh Khalili, especialista em transportes, contou que a pandemia fez com que mais de 400 mil marinheiros ficassem confinados nos navios por mais de 22 meses, “vagando pelos mares do mundo”, já encerrados os contratos. Lembrou que em terra os entregadores de alimentos e mantimentos, enfermeiros e motoristas de ônibus foram os mais afetados pela Covid-19.

Comercialmente, de acordo com Khalili, a pandemia ajudou a acelerar o ambiente hoje instituído de guerra tarifária entre os Estados Unidos de Trump contra a China e outros parceiros. As características comuns do capitalismo - que são a deslocalização da indústria, a terceirização de mão de obra e os custos exorbitantes do transporte - foram exacerbadas pela Covid-19, diz a professora, que admite uma nova era comercial entre os países.

Educação e saúde

Sociólogo e economista político, William Davies destaca que com a pandemia o ensino on-line tornou a educação mais pulverizada e mecânica. A sala de aula e o campus foram substituídos pelo quarto e esse afastamento social devido aos lockdowns (confinamentos) resultou em legados de saúde mental que não privilegiam a frequência presencial e a ambiguidade do espaço social.

Na área de saúde pública, a especialista Devi Sridhar destaca que mais de 230 mil pessoas perderam a vida no Reino Unido com a Covid-19 e é sempre uma preocupação pensar que algo parecido possa se repetir. Ela alerta que a gripe aviária (cepa H5N1) está se espalhando pelos Estados Unidos (também já tem registro na Argentina) infectando pássaros, aves (principalmente galinhas: 20 milhões mortas e 13,2 milhões abatidas) e rebanhos de gado (cerca de 900).

Em sua opinião, se a doença atingir os humanos e tiver uma alta taxa de letalidade, as pessoas agora naturalmente irão se isolar em suas casas, sem que os governos precisem pedir ou impor regras (em janeiro foi confirmada a primeira morte de uma pessoa pela gripe aviária e 68 humanos já foram infectados). Então é preciso se preparar, em termos de resiliência, para enfrentar possíveis doenças pandêmicas, investir em ciência e especialmente em programas de vacinação. A amnésia coletiva é a resposta errada à Covid-19, afirma a especialista.  E a Covid longa – reconhecida pela OMS desde outubro de 2021- está a nos lembrar da doença, com milhares de casos de pessoas que, passados cinco anos, ainda sofrem de fadiga, muitas vezes incapacitante, problemas renais, falta de ar, tosse persistente e dor no peito.

Um estudo realizado pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Escola Paulista de Medicina, em 2021, mostrou que 36% dos pacientes que tiveram sintomas graves de Covid-19 acabaram desenvolvendo lesão renal aguda (LRA).

Histórico

Em 31 de dezembro de 2019, a OMS foi notificada sobre casos de uma "pneumonia de origem desconhecida" na cidade chinesa de Wuhan. Era o primeiro alarme da existência da Covid-19. Em 30 de janeiro de 2020, a doença era declarada emergência internacional e em 11 de março a OMS a configura como pandemia. No Brasil, as primeiras mortes pelo vírus também ocorreram em março de 2020 e até 2023 o vírus já tinha matado 710 mil pessoas, número inferior apenas aos Estados Unidos com 1,2 milhão de óbitos.  

A OMS totaliza que a pandemia contaminou 777 milhões de pessoas e ocasionou 7 milhões de mortes, embora considere que o número real de mortes seja até três vezes superior ao estimado e ultrapasse os 20 milhões.

Em 2024 ainda foram registrados 70 mil mortes pela Covid-19 e três milhões de casos em todo o mundo. Matéria recente do G1 (27/2/2025) chama a atenção para o aumento de casos de Covid-19 no estado do Amazonas, entre 27 de janeiro e 24 de fevereiro deste ano.  Foram 97 casos, sendo cinco óbitos, um aumento de 177% em relação ao período anterior.

De acordo com a plataforma UOL (27.02.2025) somente neste início de ano o Brasil somou mais de 108 mil casos e 511 mortes por Covid-19. Segundo a secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde o vírus é a maior causa das síndromes respiratórias graves e representa 48% das notificações, principalmente em idosos, e 87% das mortes.

Em face desses números, o Ministério da Saúde divulgou que a imunização contra a Covid-19 agora faz parte do Calendário Nacional de Vacinação, priorizando pessoas a partir de 60 anos que receberão uma dose da vacina a cada seis meses. A mudança também irá favorecer gestantes e crianças de 6 meses a menores de 5 anos.

Vírus permanece

A especialista da OMS Maria Van Kerkhove, epidemiologista que lidera a resposta da agência à doença desde 2020, chama a atenção para o fato que a Covid-19 não desapareceu. "Ainda temos cerca de 4 mil mortes por mês, mas muitos países não informam os dados à OMS. Apesar de não estarmos na mesma situação de 2020, 2021 ou 2022, o vírus veio para ficar”, alerta.

A OMS trabalha há três anos para aprovar um tratado internacional sobre preparação contra futuras pandemias com o objetivo de operacionalizar os países para futuros agentes infecciosos com potencial pandêmico, sejam novos coronavírus ou qualquer outro agente ainda desconhecido, apelidado de "doença X". Entretanto, a assinatura do tratado sofre resistência dos países nas questões comerciais de distribuição de vacinas, tratamentos e testes de diagnóstico e quebras de patentes.

"As pessoas querem jogar a covid para o passado, fingir que nunca aconteceu porque foi traumático, mas isso impede que nos preparemos para o futuro", afirma Kerkhove.

Nesse início de 2025, já foi constatado um surto de Metapneumovírus humano (HMPV) na China, que tem causado infecções respiratórias, especialmente entre crianças e idosos. Da mesma família do Vírus Sincicial Respiratório (VSR) pode evoluir para uma forma grave, levando à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). A ausência de vacinas ou antivirais específicos para esse vírus é um fator preocupante. Aqui no Brasil, no final do ano passado, uma criança morreu no Paraná depois de contrair o vírus, e em janeiro deste ano o estado do Amazonas registrou dez casos de Metapneumovírus.

Mpox

Ainda em fevereiro a OMS manteve o status da Mpox, do gênero Orthopoxvirus (antes conhecida como varíola-dos-macacos ou monkeypox), como emergência de saúde pública internacional. Desde agosto de 2024 até o início de 2025, vários casos foram registrados fora do continente africano. No Congo, neste período, o vírus provocou 147 mortes e mais de 15 mil casos confirmados.

Identificada em 1970, a doença ficou muitos anos restrita a uma dezena de países africanos, mas em 2022 começou a se espalhar para o resto do mundo. De acordo com a OMS, de janeiro de 2022 a dezembro de 2024, foram confirmados 124 mil casos e 272 mortes pela doença em 128 países. Os sintomas incluem, além das erupções cutâneas, febre alta, dor de cabeça e cansaço. Em janeiro, no norte da França, foi detectada a contaminação por uma variante mais agressiva da Mpox, identificada como Clado 1b, em uma pessoa que teve contato com outra que esteve na África. Na China, a contaminação se deu em um viajante que regressou do Congo e no Brasil, no início de março foi confirmada em uma mulher internada em São Paulo.

Segundo a Agência Fiocruz de Notícias, em seu informe divulgado em 21de fevereiro, o Brasil é um dos países mais afetados pelo Mpox, contabilizando mais de 13 mil casos desde 2022, sendo cerca de 2 mil em 2024 e aproximadamente cem nesse início de 2025. Dezesseis mortes foram confirmadas no país. Atualmente existem duas vacinas contra o Mpox, uma proveniente de laboratório da Dinamarca e a segunda fabricada nos Estados Unidos.

O vírus Dengue (DENV) também tem feito estragos no Brasil e desde fevereiro do ano passado a vacina é encontrada nos postos públicos de saúde.  Do gênero Orthoflavivirus, com quatro sorotipos conhecidos, o vetor é a fêmea do mosquito Aedes aegypti (significa ‘odioso do Egito’).

Em 2024 foram mais de 6,6 milhões de casos prováveis de Dengue e mais de 6 mil óbitos. Nesse início de ano já foram registrados 52 mortes e outras 256 estão em investigação. O médico epidemiologista Alexandre Naime, da Sociedade Brasileira de Infectologia, acredita que pelo histórico de 2024, que totalizou mais casos de dengue do que os últimos oito anos somados, 2025 promete quebrar todos os recordes do ano passado.

Em relação à Chikungunya e ao Zika Vírus, doenças também transmitidas pelo Aedes aegypti, ainda não existem vacinas. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2024 a Chikungunya afetou 261 mil pessoas e matou 196, com 177 mortes em investigação.