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sexta-feira, 13 de setembro de 2013

As mil e uma histórias de uma sinagoga na Croácia

Em Dubrovnik, no sul do país, casa de orações resistiu ao terremoto de 1667, a dois conflitos mundiais e à guerra na Croácia nos anos de 1990

 /  por Sheila Sacks  / atualizado em 2021



Em meio a lojas de comestíveis, quinquilharias e souvenirs em uma das muitas ruelas estreitas tomadas por escadarias de pedras desalinhadas que levam as partes mais altas da cidade amuralhada de Dubrovnik, uma porta de carvalho anuncia em letras douradas a existência de uma sinagoga e do “Zidovsky Muzej”, um espaço com peças de seu acervo. Trata-se da mais antiga sinagoga sefardita em atividade no mundo e a segunda mais antiga da Europa (a de Praga é do final do século 13), estabelecida em 1352 e reconhecida formalmente em 1408.

Situado na Zudioska ulica (rua dos judeus), nº 5 - no antigo gueto judaico que se expandiu por conta da chegada dos judeus da Península Ibérica (sefarditas) expulsos da Espanha (em 1492) e posteriormente de Portugal (1496) -, o estreito sobrado de pedra branca abriga na parte superior a silenciosa sinagoga da Idade Média e no térreo uma sala com objetos religiosos. O pequeno museu abriga manuscritos do século 14, pergaminhos da Torá, menorás de prata e um tapete do século 13. Uma senhora de semblante distante cobra 25 kunas (na época, cerca de 12 reais) pelo ingresso e avisa que estão proibidas fotos na visita que transcorre breve e um tanto melancólica.

No interior da sinagoga, remodelada em meados do século 17 em um estilo barroco que contrasta com suas origens medievais, pesados móveis de madeira escura e ornamentos de prata abarrotam o pequeno recinto. Pelas janelas que se abrem para um paredão de pedra que os dedos parecem alcançar ,apenas uma solitária réstia de claridade recorta de luz um canto do comprido banco de madeira que se estende por toda a parede. É difícil imaginar que o lugar possa reunir mais de 30 pessoas com o mínimo de conforto. No entanto, o local agora recebe alguns turistas curiosos, de bermudas e sandálias, que exaustos pelo calor do verão e do ritmo das caminhadas aproveitam para recuperar o fôlego, apreciar as peças antigas,  falar ao celular e até tirar um cochilo naquele ambiente sossegado e recluso.

Cercada por muralhas e banhada pelo mar Adriático, a cidade velha de Dubrovnik – do croata dubrava que significa bosque de carvalhos - fica no extremo sul do país e foi fundada no século 7. Alguns historiadores, porém, contestam essa versão devido a descobertas arqueológicas que mostram vestígios de construções e utensílios da época grega, antes da era comum. A cidadela tem seus imóveis e fontes preservados nos mesmos moldes do século 13, com apenas duas entradas para a esplanada principal e não mais de 4 mil residentes.  Em 1929, em visita à cidade, o dramaturgo nascido na Irlanda George Bernard Shaw (1856-1950), encantou-se com o cenário: “Se querem ver o paraíso na terra, venham a Dubrovnik”, declarou. Nos últimos anos o turismo aumentou e a cada verão 9 milhões de turistas visitam a Croácia (quase o dobro de sua população), grande parte se direcionando para essa estância da ensolarada região da Dalmácia, declarada Patrimônio Mundial da Unesco em 1979 (a moderna Dubrovnik tem 43 mil habitantes).

Gueto é estabelecido em 1546

Os historiadores registram que a sinagoga de Dubrovnik remonta ao início do século 15, mas há registros da presença de um médico judeu contratado pela administração da cidade em 1326 e de comerciantes itinerantes em 1368. Na época, Dubrovnik era conhecida pelo nome italiano de Ragusa (rocha, no antigo idioma romano), constituindo-se em um importante porto comercial que mantinha ligações com as cidades da costa leste da Itália e da bacia do Mar Egeu onde existiam comunidades judaicas. Os judeus eram tolerados como comerciantes transitórios na região que esteve sob o governo da República de Veneza de 1205 a 1358, quando enfim conquistou a sua independência e passou a ser uma cidade-estado (Dubrovnik fica a duas horas de barco de Veneza).

A comunidade judaica local teve um aumento significativo com a chegada dos judeus em fuga da Espanha e de Portugal, no final do século 15, muito deles a caminho da Turquia, mas que acabaram se instalando em Dubrovnik. Anos antes do édito de expulsão (1492), os reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela já haviam instituído em 1478 o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição na Espanha para oficializar a conversão forçada de judeus e mouros. Em Portugal, a ordem de expulsão dos judeus do país se deu em 1496, e foi assinada pelo rei D.Manuel I.

Em 1546, com o crescimento da população judaica – formada inclusive por marranos (judeus convertidos que exerciam o judaísmo secretamente) e cristãos-novos - as autoridades permitem o assentamento dos judeus no extremo noroeste da cidade amuralhada, estabelecendo o gueto na  Zudioska ulica com um pórtico que o separava das demais moradias. Entretanto os judeus que não queriam permanecer confinados e seguiam para fora das muralhas se viam pressionados à conversão pela Igreja Católica.

Tempos difíceis e catástrofe

Nos 450 anos como cidade independente (em 1808 foi conquistada por Napoleão) houve muitos episódios de perseguições, execuções, livros judaicos queimados em praças públicas e principalmente leis restritivas como as que impediam os judeus de adquirirem terrenos ou casas. Mas, muitos se voltaram para o comércio marítimo, investindo em navios e importando lã e especiarias do Oriente. Outros se tornaram exímios artesãos, conceituados médicos e intérpretes, dado o seu conhecimento de línguas. Porém um expressivo contingente de marranos se deslocou para a região vizinha que corresponde a atual Bósnia-Herzegovina predominantemente muçulmana.

Ainda nesse período, em 1667, ocorre um terremoto de graves proporções que atinge Dubrovnik, destruindo grande parte de seus prédios e vitimando 5 mil moradores, dentre eles muitos judeus. A sinagoga atingida pela catástrofe também precisou ser restaurada. Cem anos depois, 218 judeus viviam na cidade que tinha uma população de 6 mil habitantes.

A partir da conquista de Napoleão e nos próximos sete anos em que Dubrovnik esteve sob o governo francês, os judeus alcançam a igualdade jurídica, com a anulação das medidas restritivas impostas pela administração anterior. Porém em 1815, quando a cidade passa a pertencer ao Império Austro-Húngaro, novas sanções são impostas aos judeus de Dubrovnik. Passados 50 anos, as sanções já estão suspensas e os judeus são autorizados a comprar imóveis, a exercerem uma gama variada de profissões e a usufruírem plenos direitos jurídicos. Em 1830 a sinagoga de Dubrovnik conta com 260 filiados.

Judeus croatas morrem em campos de concentração

Antigo gueto judeu
Na 2ª Grande Guerra Dubrovnik cai nas mãos do exército italiano fascista. Em abril de 1941 a Croácia estabelece um estado independente pró-nazista que abrange as regiões onde hoje ficam as repúblicas da Bósnia e parte da Sérvia. Quarenta mil judeus viviam nesse conglomerado, restando nove mil após a guerra (perto de 3 mil foram enviados para o campo de Auschwitz). Os judeus de Dubrovnik, em torno de 87, procuram refúgio nas ilhas do arquipélago Elafiti, no mar Adriático, a uma hora de barco da cidade. Ao final do conflito, 28 deles morrem no Holocausto e a maioria dos que sobrevivem imigra para Israel, Estados Unidos e América do Sul.

Atualmente contam-se cerca de menos de 50 judeus em Dubrovnik e em torno de 1.700 em toda a Croácia, a grande totalidade residindo na capital Zagreb. No início da década de 1940 somavam 25 mil. Com a invasão nazista e a instalação do governo fascista na Croácia, a comunidade judaica existente foi dizimada e dentre os que sobreviveram ao Holocausto – cerca de 5 mil - muitos renunciaram a sua cidadania para se estabelecerem em Israel, a partir de 1948, quando a terra milenar se torna um estado soberano.

Sinagoga é atingida por foguetes

Durante a guerra dos croatas contra os sérvios (1991/1992) pela independência da Croácia da antiga Iugoslávia, Dubrovnik foi cercada e a sinagoga teve suas janelas e telhados destruídos pela ação de foguetes e granadas. O prédio também sofreu abalo em sua estrutura e parte do acervo histórico foi então levado para os Estados Unidos. Em 1998, após decisão judicial, as peças são devolvidas. Uma Torá originária da Península Ibérica e um tapete árabe ofertado pela rainha Isabel da Espanha a seu médico judeu, ambos do século 13, são os objetos considerados mais valiosos. 

Em 2003, o então presidente de Israel Moshe Katsav em visita à Croácia conhece a sinagoga, cuja recuperação só se concluiu em 1997. Desde então, com o incentivo do governo croata, o intercâmbio turístico entre Israel e Dubrovnik foi incrementado com voos semanais fretados nas temporadas de verão. 
A partir de 2011 o turismo israelense à Croacia aumentou, contabilizando 35 mil turistas anuais, e em 2017 esse número chegou a mais de 55 mil visitantes  vindos de Israel. 

Um fato que merece menção no histórico da restauração da sinagoga é o empenho solidário de um casal católico no processo. Em 1996, Otto e Jeanne Reusch após visitarem o templo resolvem se engajar nos esforços de coletar doações para a fundação instituída em 1992, em Washington, com o intuito de reconstruir a sinagoga, a “Rebuild Dubrovnik Foundation”. Em pouco tempo arrecadam 35 mil dólares e um ano depois retornam a Dubrovnik e participam da reinauguração da sinagoga.

Depois da guerra

A Kehilat (congregação) de Dubrovnik foi liderada pelo rabino Baruch Salamon até maio de 1943 quando o religioso foi enviado a um campo de concentração e depois executado. A guarda da casa de orações ficou então com a família Tolentino que diante da ofensiva nazista escondeu entre amigos croatas os objetos religiosos e de cerimonial da sinagoga que depois da guerra foram devolvidos à sinagoga.

Em 1992, novo contratempo: os rolos da Torá, os ornamentos de prata e cobre e outros objetos valiosos da sinagoga são despachados para os EUA por conta da guerra na Croácia. Na época líder da comunidade judaica, Michael Papo considerou mais seguro liberar o acervo sagrado para bem longe do conflito com receio de sua destruição ou de uma possível falta de cuidado, por parte dos judeus de Dubrovnik, na sua preservação. Em 1998, vivendo em Nova York, Papo defendeu a iniciativa afirmando que os casamentos fora da tradição judaica tinham devastado o pouco de religiosidade que havia restado na comunidade, "a tal ponto que o seu sucessor não seria um judeu conforme prescreve a lei judaica - Halachá". .Entretanto, a Suprema Corte do estado de Nova York neste mesmo ano determinou o retorno dos pergaminhos a Dubrovnik, entendendo que até as pequenas comunidades judaicas merecem conservar os seus tesouros religiosos.

Uma questão que divide opiniões, já que muitas organizações judaicas temem o desaparecimento desses objetos ou sua exposição em ambientes profanos face à progressiva marcha de assimilação dessas comunidades. Por outro lado, estudiosos de história e documentação, principalmente os que se dedicam ao registro das comunidades judaicas da Idade Média na Europa central e oriental, argumentam que a transferência dos objetos religiosos para os EUA e Israel contribuem para a total extinção dessas comunidades, afastando-as de seu passado e negando-lhes um possível futuro.

“Sinagoga sem judeus”



A esse respeito, as denominadas “sinagogas sem judeus” podem se inserir, sob uma perspectiva mais ampla, na classificação de “monumentos emblemáticos",  ou seja, aquelas construções que à parte a sua arquitetura física e o ambiente muitas vezes adverso representam momentos determinantes da história humana e dos quais são exemplos notórios os antigos campos de extermínios nazistas como o de Auschwitz. 

O escritor cristão esloveno Boris Pahor, de 107 anos, o mais velho sobrevivente do Holocausto, observa que a preservação desses lugares tem a valia de “dar continuidade à presença dos mortos no mundo dos vivos”. Mas, em seu livro “Necrópole”, o autor, que vive na Itália,  também externa sua preocupação quanto aos sentimentos e as imagens que possam surgir nas mentes dos turistas que seguem o guia em suas explicações. Isso porque Pahor, a partir de uma visita a um dos campos de concentração onde foi prisioneiro dos nazistas, notou a falta de “familiaridade” e talvez até de consciência do grau de degradação e de infâmia a que foram submetidos, sem piedade, milhões de seres humanos.

Uma observação válida aplicável a todos os “monumentos” exaustivamente visitados por legiões de turistas, como no caso da pequena sinagoga de Dubrovnik. Entretanto, mantê-la aberta aos turistas - mesmo sem a presença cotidiana de judeus e dos rituais diários judaicos  - garante a sua sobrevida e areja os seus aposentos. E mais: inspira momentos mágicos de reflexão e um retorno à ancestralidade, numa espécie de conexão suprarreal para além do mundo físico e limitado. Experiências e instantes atemporais percebidos em vários desses “monumentos” judaicos que desafiam as regras das dimensões universais, reinventando uma memória cósmica onde o passado e os mortos se fazem presentes acalentando a nem sempre fácil jornada dos viventes na terra.


Fontes :
Steve Rodan: “Dubrovnik’s question: Does a synagogue need Jews?” (JweeKly.com /1998)
Rivka e Ban-Zion Dorfman: “Synagogues Without Jews” (Philadelphia: Jewish Publication Society/2000)
United States Comission for The Preservation of America’s Heritage Abroad: “Jews Heritage sites in Croatia-Preliminary Report” /2005)
Arthur Wolak: “A visit do Jewish Dubrovnik” (The Jerusalem Post/ 2008)
David Pessoa Carneiro: “Memórias da Guerra” (O Globo/2013)
Community in Croacia -  The World Jewish Congress (2020) 

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O violino mágico (cenas de um filme polonês)

por Sheila Sacks

Há quase 5 décadas, em 19 de agosto de 1965, encerrava-se em Frankfurt, na Alemanha, o chamado Julgamento de Auschwitz. O processo durou dois anos e 22 ex-guardas da Gestapo que atuaram no campo nazista de extermínio, na Polônia, foram julgados por cumplicidade ou homicídio. Seis deles foram condenados à prisão perpétua por assassinato. As câmaras de gás de Auschwitz funcionaram de 1942 a 1944, matando mais de 1 milhão de judeus.


Ontem eu vi
“A Passageira”
de Andrzej Munk,
prenhe de horrores
trazidos do campo cão
de Auschwitz.
 Da tela suspensa
a imagem cinzenta explodiu.
Vi gente marcada, medrosa e acuada,
gente cercada de olhos farpados
e botas de grosso calibre.

Ontem eu vi um desfile singular,
gente condenada, maltratada,
marchando calada,
os olhos secos, semblantes marcados.
Gente que olhava pra mim
sem um pedido sequer.
Faces lívidas de frio e cansaço.

Na sala escura
entre poltronas vazias,
eu assisti contrito
o aflorar das feridas.
Vi, entre surpreso e aflito
a tela se abrir em clareiras
e as imagens em cadeia
afrontarem as barreira
do tempo e da sensatez.

Ontem eu vi
na cinemateca do bairro,
amontoado de ossos,
dentes arrancados e aros de óculos.
Sapatos de solas furadas,
meias rasgadas
tudo ao meu lado
restos de histórias
empesteando a sala
encharcando o espaço
de espanto e horror.

Me vi sem bússola ou mapa
em uma ilha assombrada,
porto macabro de um povo
posto à deriva pelo vil preconceito.
Altar infame e maldito
dos cavaleiros do apocalipse.

Pelos alto-falantes
do campo de Auschwitz,
ontem eu ouvi a terrível sinfonia
de soluços e gemidos.
De onde vinham tais sons,
da tela ou de um tempo
urdido nas sombras?

Ao meu lado o carrasco batia,
gritava e bramia
seis mil anos de ódio,
seis mil anos de ira.

De repente
tal qual um súbito clarão,
o raio riscou a sala
do teto ao chão.
Parecia que vinha do céu,
ou quem sabe? das longínquas
fronteiras da razão.
A multidão olhou para o alto
E sem sentir,
afrouxou o passo.

Na tela a imagem inchou,
criou corpo, peso e coragem,
adentrou pela sala e puxando-me de lado,
me fez personagem.



Ontem eu vi,
ouvi e senti
o solo do violino mágico.
Qualquer coisa tão doce e delicada
que a multidão condenada
suspirava em arpejos, acordes
e staccatos.
Na fria madrugada
só a suave melodia
servia de meia e sapato.

Também eu,
junto à multidão condenada
acompanhei a caminhada
do violino encantado.

Maltrapilho e despojado
pela estrada enlameada
eu o segui,
sem ao menos me importar
com a vingança do carrasco.

Ontem,
anteontem
ou hoje?
Quando foi afinal
no cinema
eu vi.

(O cineasta polonês Andrzej Munk morreu aos 39 anos em um acidente de carro durante as filmagens de “A Passageira”. O filme iniciado em 1961 foi concluído por seus assistentes e lançado em 1963. A história mostra uma ex-carcereira da Gestapo em Auschwitz que ao retornar de navio à Europa, na década de 1960, crê reconhecer uma antiga prisioneira levada à câmara de gás. Aí têm início as suas lembranças do campo da morte e da triste melodia do violino mágico: o adágio do Concerto nº 2 de Bach.)

domingo, 21 de julho de 2013

Ovnis: da ficção à notícia

Por Sheila Sacks

Preconceito e informações seletivas tornam a mídia ausente na apuração de fatos relacionados a fenômenos ufológicos
Publicado no site do "Observatório da Imprensa"

“A abordagem da imprensa e da maioria da mídia (acerca da ufologia) é um fracasso total” (Rubens Junqueira Villela, cientista e primeiro brasileiro a pisar no polo Sul).

Recentemente (maio de 2013), a BBC News veiculou matéria que tangencia um tema que a mídia em geral ignora ou enfoca de forma curiosa talvez por entendê-lo fantasioso. Trata-se de uma ocorrência relacionada à aparição de Ufos (unidentified flying objects) ou Ovnis (objetos voadores não identificados), termo utilizado no Brasil.

A notícia comentava o relatório da firma britânica UK Airprox Board, especializada em segurança de voos e incidentes aéreos, que analisou um episódio acontecido em 2 de dezembro de 2012, quando um avião de passageiros por pouco não colidiu com um objeto não identificado.

O avião em questão, um Airbus A320, preparava-se para aterrissar no Aeroporto Internacional de Glasgow, na Escócia, quando o piloto e os tripulantes viram um objeto à frente aparecer repentinamente e passar embaixo da aeronave, a uns dez segundos de distância, segundo o comandante. Porém, o radar não teria detectado nenhum tipo de aeroplano naquele momento, e imediatamente após o incidente foi iniciada uma busca na região sem resultados. Em um trecho da conversa registrada entre o controlador de voo, na torre de monitoramento, e o piloto do avião, logo após a passagem do objeto, este afirma “não ter certeza do que é (o objeto)”, e acrescenta que “sem dúvida é bem grande, e é azul e amarelo”.

A investigação não conseguiu determinar o tipo de objeto descrito, apesar de descartar a possibilidade de ser outra aeronave ou um balão meteorológico. No seu parecer final, a UK Airprox Board admite que as fontes de vigilância disponíveis não obtiveram êxito em rastrear nenhuma atividade que correspondesse àquela narrada pelo piloto do A320, ainda que as condições meteorológicas fossem consideradas favoráveis para a observação. Mais um entre milhares de incidentes aéreos não conclusivos ou mal explicados que a mídia se exime em apurar mais profundamente, limitando-se apenas a reportá-lo.

Governo Blair investigava Ovnis

Desde 2003, o governo britânico vem disponibilizando ao público e à mídia documentos ufológicos - antes catalogados sob a rubrica de secretos e ultrassecretos - que podem ser consultados em seu Arquivo Nacional (The National Archives - TNA). Esse acesso foi ampliado a partir de 2008 com a incorporação de novos arquivos, agora também disponíveis na internet.

Em um desses lotes abertos à consulta pública em 2012 é descrito o trabalho de agentes do Projeto UFO (UFO Desk), no período de governo do Primeiro Ministro Tony Blair (1997 a 2007), que tinham a tarefa de produzir informes diários sobre óvnis para o ministério da Defesa (MOD). Cabia ao setor acompanhar os relatos e as investigações sobre possíveis “avistamentos”, gerenciar os pedidos de consulta de dados pela mídia e pesquisadores, e manter contato com ufólogos. Um serviço assinalado como “o mais estranho da administração pública inglesa” pelo jornalista e pesquisador David Clarke, responsável pela catalogação e liberação dos arquivos UFO no TNA.

Segundo Clarke, a partir de 2005 com a implementação da Lei de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act-FOIA) em todos os patamares de governo, a pressão de vários segmentos da sociedade para a divulgação dos registros oficiais sobre óvnis se acentuou e o tema foi um dos mais solicitados ao MOD para consultas. Na ocasião, o subsecretário de Estado de Defesa Tom Watson confirmou que os arquivos UFO eram os tópicos mais requisitados para liberação, seguidos das consultas sobre recrutamento, investigações funcionais e eventos históricos como a Segunda Grande Guerra e o conflito das Malvinas.

Margareth Thatcher e o Roswell inglês

Mas, apesar da liberação dos documentos - antes mantidos sob sigilo militar - um antigo funcionário do MOD, Nik Pope, que dirigiu o UFO Desk na década de 1990 e deixou o ministério em 2006, revelou que os nomes de muitas pessoas ficaram ininteligíveis para mantê-las propositadamente no anonimato e que os arquivos somente receberam o nada consta após uma análise minuciosa e a certeza de que não se constituíam ameaça à segurança nacional. Ainda assim, determinados arquivos foram retidos de acordo com as exceções estipuladas pela FOIA.

Para Pope, o mais relevante nesses registros diz respeito à segurança aérea, porque existem muitos relatos de incidentes onde aviões comerciais por muito pouco não se chocaram com objetos não identificados. Contudo, em 2009 a divisão UFO foi desativada pelo MOD que entendeu que os milhares de “avistamentos” narrados pelo público não tinham valor militar. Entretanto, o especialista acredita que o MOD continuará de forma não oficial monitorando radares e “avistamentos” relatados por pilotos militares e da aviação civil.

Um desses relatos ficou conhecido como o caso Roswell inglês, em alusão ao famoso incidente ufológico que teria ocorrido em 1947, na cidade de Roswell, no noroeste dos Estados Unidos, envolvendo a queda de um Ovni, fato negado pelas autoridades militares americanas. Na Inglaterra, no início do governo de Margaret Thatcher, na década de 1980, o “avistamento” de “luzes inexplicáveis” pairando sobre a Floresta Rendlesham – de acordo com o memorando de 13 de janeiro de 1981, assinado pelo subcomandante da base da Força Aérea Britânica (Royal Air Force – RAF) de Bentwaters, tenente-coronel Charles Halt - também foi considerado “não significativo para a Defesa”. O incidente que envolveu “avistamentos” de Ovnis se estendeu por quatro dias, em dezembro de 1980, e foi presenciado por dezenas de militares. Na época, as bases de Bentwaters e Woodbridge, no leste da Inglaterra, estavam sendo usadas pela Força Aérea dos Estados Unidos.

Por ocasião da morte de Margaret Thatcher, em abril deste ano, David Clarke lembrou que o desaparecimento da Dama de Ferro iria privar os ufólogos, definitivamente, de uma certeza sobre o real conhecimento da ex-primeira ministra sobre o incidente da Floresta Rendlesham. Ele contou que, em 1997, durante uma festa de caridade em Londres, Thatcher teve um encontro casual com a jornalista e ufóloga inglesa Georgina Bruni (1947-2008), e proferiu uma frase que intrigou a jornalista. Diante da pergunta sobre o fenômeno dos Ovnis e de sua tecnologia avançada, Thatcher teria respondido: “Você não pode dizer as pessoas” (You can’t tell the people). A afirmação acabou se transformando no título do livro que Bruni publicou em 2000 sobre suas investigações acerca do episódio de Rendlesham Forest.

Wikileaks e os documentos sobre ufos

Outra liberação de documentos ufológicos bastante aguardada por estudiosos desses fenômenos e ignorada pela mídia viria da parte de Julian Assange e de seu site Wikileaks. Em 3 de dezembro de 2010, após a publicação de mais de 250 mil telegramas diplomáticos sigilosos das embaixadas dos Estados Unidos em todo o mundo, o australiano respondendo às perguntas dos leitores do jornal britânico The Guardian confirmou que nos documentos secretos ainda não divulgados (700 mil já tinham sido publicados) existiam referências a Ovnis. Entretanto, dois meses depois, Assange admitiu em comunicado que suas afirmações sobre registros ufológicos foram superdimensionadas.

Mas, em abril deste ano, ao divulgar 1,7 milhão de documentos diplomáticos do tempo de Henry Kissinger, quando este era secretário de Estado dos EUA (1973-1977), o Wikileaks também liberou 21 telegramas que continham referências a ocorrências ufológicas. Em um deles, enviado da embaixada dos EUA em Gana, na África, a Washington, em novembro de 1973, há o registro de como o espaço aéreo havia sido violado por Ovnis, os quais se afirmavam não correspondiam a aeronaves comerciais convencionais.

Porém o registro secreto mais surpreendente sobre o tema partiu de um órgão científico federal – The Bureau of Oceans and International Environmental and Scientific Affairs (OES) – do Departamento de Estado norte-americano. Criado em 1974 pelo Congresso dos EUA para atuar na política externa em relação às mudanças climáticas, energias renováveis e situações dos oceanos e dos polos, o bureau também lida com a questão espacial e a exploração do espaço através de um escritório próprio, o “Office of Space and Advanced Technology”. No documento divulgado pelo Wikileaks, datado de 26 de março de 1975, o OES enviava um informe com o seguinte título: “Arrangements to welcome extraterrestrial life forms to the US” (Normas para dar boas-vindas a formas de vida extraterrestres pelos Estados Unidos, em tradução livre).

Ministério da Defesa recebe ufólogos

Assange está refugiado na embaixada do Equador em Londres desde junho de 2012, e um de seus mais importantes informantes, o soldado norte-americano Bradley Manning, analista de inteligência, pode ser condenado à prisão perpétua nos EUA. De acordo com o ex-senador pelo estado do Alasca, Mike Gravel, que em 2008 concorreu à indicação do Partido Democrata para a candidatura à Presidência dos EUA, a Casa Branca tem ajudado a acobertar a verdade sobre ufos. Em um painel sobre o tema, em Washington, na primeira semana de maio deste ano, ele culpou a mídia e o governo pelo acobertamento dos fatos. “O que estamos enfrentando aqui, por parte da imprensa e também do governo, é um esforço para marginalizar e ridicularizar as pessoas que possuem algum conhecimento específico.” Gravel revelou que os “relatos mais fortes” sobre Ufos vêm justamente de ex-oficiais militares.

Por aqui, um encontro inédito reuniu ufólogos e representantes do Ministério da Defesa, em Brasília, em abril deste ano, onde se determinou que todos os documentos sobre o assunto sob a responsabilidade do Exército, Marinha e Aeronáutica fossem tornados públicos, como estabelece a Lei de Acesso à Informação - LAI (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011). A disposição do governo foi comemorada pelo ufólogo Ademar José Gevaerd, editor da revista UFO, presente ao encontro, que classificou a reunião de “histórica e sem precedentes em todo o mundo”. Além da promessa de manter um canal de comunicação permanente com os estudiosos dos fenômenos ufológicos, os militares que participaram da reunião revelaram que o maior número de requerimentos de informações ao órgão, a partir da regulamentação da LAI, em 16 de maio de 2012, tinha os óvnis como ponto de interesse, uma surpresa para os próprios ufólogos.

Falando ao repórter Pedro Peduzzi, da Agência Brasil, Gevaerd destacou que as autoridades afirmaram que o ministro da Defesa Celso Amorim respeita a ufologia e o trabalho dos ufólogos. O ministério garantiu ainda que pretende levar adiante a ideia de estabelecer um canal permanente de comunicação com a Comissão Brasileira de Ufólogos (“Ministério da Defesa e ufólogos abrem canal para troca de informações sobre óvnis”, em 19.04.2013). A Agência Brasil, portal público de notícias gerido pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), produz notícias para mais de 8 mil veículos de comunicação em todo o país, com um alcance de 20 milhões de leitores.

A maior reportagem de todos os tempos

Entretanto, a disponibilização de documentos sigilosos sobre operações militares envolvendo “avistamentos” de Ovnis pode esbarrar em obstáculos. O coronel da Aeronáutica Alexandre Emílio Spengler, responsável pelo Serviço de Informações ao Cidadão do Ministério da Defesa admitiu que alguns documentos foram extraviados e outros destruídos, já que o decreto 79.099 de 1977 permitia a destruição de documentos sigilosos. Quanto aos pedidos de informações negados (até o momento), Spengler explicou que muitos documentos ainda estão sob sigilo pelo fato de envolverem assuntos relacionados à segurança nacional, classificados como secretos ou ultrassecretos.

Para o pesquisador e cientista Rubens Junqueira Villela, de 83 anos, antigo professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP) e participante do Programa Antártico Brasileiro, a vida é um fenômeno universal e ela não está isolada ou ilhada, e sim interconectada pela própria tessitura do universo. Com mais de uma dezena de viagens ao polo Sul, ele presenciou, em 1961, um “avistamento” na Antártida a bordo do navio quebra-gelo “Glacier” da Marinha dos EUA, com outros membros da tripulação. O fato foi registrado por organizações científicas internacionais da época como o GEPA (Groupement d’Etude dês Phénomènes Aériens), da França, e o NICAP (Nacional Investigations Committee On Aerial Phenomena), dos EUA.

Em entrevista ao site Ufovia, em 2010, Villela criticou a maneira como a mídia encara a ufologia. “Com raríssimas exceções, os profissionais destes meios são incapazes de uma abordagem objetiva, investigativa e isenta de preconceitos. Simplesmente estão perdendo a maior reportagem de todos os tempos!”

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Um partido acorrentado

Por Sheila Sacks

Assim fomos abrindo aqueles mares, Que geração alguma não abriu (do Lusíadas, de Luís Vaz de Camões - século 16)

O “grito das ruas” ou a onda de passeatas que estourou em junho de 2013 - a partir de uma convocação do Movimento Passe Livre que briga pela tarifa zero para o transporte coletivo - vem empurrando o governo do PT a uma revisão de seu comportamento político e a uma inevitável mea culpa em relação a sua postura e ações.

Há dez anos no poder, o partido se embrenhou em um processo de mudança estética e edulcorada, perdendo a autenticidade e a sua cara original para marqueteiros ilusionistas que criaram um arremedo ficcional de um Brasil satisfeito e acomodado pela aquisição de alguns poucos bens de consumo. Essa ficção foi naturalmente acolhida pela mídia em seus espaços publicitários na imprensa, rádio e TV, com repercussões ufanistas na área de notícias numa espécie de troca de gentilezas pelas verbas federais injetadas nos meios de comunicação. Isso ajudou, e muito, no distanciamento e desvinculação do governo do PT das reais aspirações da população.

Em nome da tal governabilidade, o Partido dos Trabalhadores injetou botox e outros elementos estranhos e artificiais em sua musculatura facial, transformando-a em uma caricatura patética e irreconhecível. Com uma penca de siglas políticas pendurada em seu pescoço, o colar de falsos brilhantes se mostrou, na prática, uma eficiente corda para enforcados. Assim, o PT aterrissou em 2013 acuado e desfigurado, tomado por invasores, esses sim, bastante à vontade na cidadela conquistada. A toxina botulínica introduzida pelas siglas e figuras alienígenas presentes no governo do PT deformou e paralisou a força e a expressão do partido perante o distinto público que, durante décadas, acompanhou e aplaudiu a difícil trajetória daqueles que tinham o propósito de mudar o Brasil.

Retorno as origens

Como o mito grego de Prometeu acorrentado, o PT teve seu fígado devorado diariamente por grupos políticos alheios a sua ideologia, focados em interesses individuais, mas estrategicamente (ou perversamente) assentados em seu bloco de apoio parlamentar. As poucas horas noturnas que sobravam para o partido se recompor  - porque os políticos também dormem - mostraram-se lamentavelmente insuficientes para a sua regeneração. Perdeu-se o singular “animus” original da sigla.

Enfim, o estrago está feito e a bomba posta no colo da presidenta, em Brasília, com os grupos ditos aliados e os oposicionistas (sim, existem partidos de oposição) dando tratos à bola para saírem à francesa ou pelo menos ilesos desse gigantesco imbróglio popular para o qual contribuíram com uma inegável cota colaborativa.

Alvo preferencial das centenas de análises políticas que tentam identificar e rotular as manifestações e em paralelo demonizar o governo, a ala palaciana do PT deve estar vivenciando o paradoxo de ter que engolir em seco em sua vontade de soltar a voz. A hora seria propícia para uma volta às origens e um salto ao futuro, rasgada a máscara burlesca bordada por uma veterana classe de políticos “amigos” que nunca se ausentou do poder. O momento e as condições democráticas estão a requerer um pacto com a sociedade, essa sim, a parceira e companheira incondicional de um governo batizado pelas urnas.

A hora pediria, de forma ousada, um encontro cara a cara, sem maquiagem e firulas marqueteiras; um dizer dos desafios e das dificuldades de comandar uma máquina administrativa eivada de vícios, onde a competência do funcionalismo de carreira muitas vezes sucumbe sob o poder dos caciques externos sem compromissos com a coisa pública; e de expor, com transparência e alma lavada, as pressões intoleráveis exercidas pelos infames profissionais da política que rondam os gabinetes com suas exigências e falsos afagos.

Porém, talvez essa etapa da história já tenha sido atropelada pelo correr dos acontecimentos, e prováveis revelações, ensinam os tempos recentes, somente trazem desassossego a quem as pronuncia. Então, o que sobra para um governo estimulado pelo “grito” das ruas é o exercício da destreza e a determinação de seus comandantes no içar das velas e no navegar pelos mares revoltos dessa imensidão de país, conscientes e preparados para as prováveis tempestades que se avizinham.

Em tempo: em um piscar de olhos, o Brasil se tornou um país de analistas políticos. Todos palpitam sobre as manifestações populares e os rumos da democracia brasileira. Mas quem faz a festa, abarrotando os jornais e as telinhas de TV de opiniões acadêmicas, são mesmo os grandes conglomerados de mídia que, com outras prioridades pipocando na mesa do governo, comemoram o provável adiamento do projeto de regulamentação do setor. Um bicho papão que vem aterrorizando, já há algum tempo, o assim denominado quarto poder da República.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Cativeiro de soldado israelense inspira séries de TV

Por Sheila Sacks


Histórias reais muitas vezes tornam-se incríveis enredos para fantásticos roteiros cinematográficos ou mesmo séries de televisão. O escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011) na introdução do seu livro “O imaginário Coletivo” destaca que por trás de muitas notícias esconde-se uma história pedindo para ser contada. “É a história virtual que complementa ou amplia a história real”, assinala Scliar que por mais de 15 anos escreveu textos ficcionais para o caderno “Cotidiano” da Folha de São Paulo tendo como base as reportagens do jornal.

Fonte de inspiração para a série de TV israelense Hatufim (“Sequestrado”, em hebraico), a história de Gilad Shalit, capturado pelo grupo radical Hamas que o manteve prisioneiro por mais de cinco anos, traz ingredientes psicológicos interessantes capazes de provocar desdobramentos e mudanças de ordem pessoal, religiosa e política nos principais envolvidos no episódio.

Shalit era um soldado israelense de 19 anos quando em 25 de junho de 2006 militantes palestinos ligados ao Hamas atacaram o posto militar onde servia na fronteira com a Faixa de Gaza e o levaram. Durante o tempo em que esteve desaparecido a incerteza sobre o seu destino – se estava morto, ferido ou continuava vivo – não impediu que sucessivas campanhas por seu regresso ganhassem espaço e força em Israel e em outras partes do mundo.

Em 2010, os pais de Shalit acompanhados por ativistas empreenderam uma marcha de 12 dias, da Galileia a Jerusalém, onde permaneceram acampados por mais de um ano em frente à residência do primeiro-ministro Benjamim Netanyahu para pressionar o governo a assumir um acordo que trouxesse o soldado de volta.

A libertação de Shalit ocorreu em 18 de outubro de 2011, no Egito, após um acordo entre o governo de Israel e o Hamas. Foram soltos 1.027 prisioneiros palestinos, 280 deles condenados à prisão perpétua pela morte de civis israelenses. Falando à TV egípcia, pouco antes de retornar a Israel, Shalit mostrou-se confiante de que a libertação de centenas de prisioneiros em troca de sua vida pudesse contribuir para a paz entre israelenses e palestinos.

Seriado antecipa desfecho que comoveu a nação

Levando a assinatura de Gideon Raff – um roteirista e diretor de filmes de 40 anos, nascido em Jerusalém e que estudou cinema em Los Angeles -, o seriado Hatufim ou Prisioners of War (“Prisioneiros de Guerra”, título em inglês) teve seus primeiros 10 episódios exibidos pela TV israelense em 2010, entre março e maio. No mesmo ano foi escolhida como a melhor série dramática pela Israeli Academy of Film and Television, instituição que reúne 750 representantes da indústria de TV e cinema do país.

Curiosamente, apesar do sucesso e das críticas positivas, a segunda temporada da série, com 14 capítulos, só foi produzida e apresentada dois anos depois, nos últimos meses de 2012, a reboque do seriado norte-americano Homeland, baseado na criação do próprio Raff, e que arrebatou os mais importantes prêmios da TV americana: os troféus Emmy (2012) e Globo de Ouro (2013), ambos como a melhor série dramática.

Embora explorando o tema do retorno à pátria de militares capturados pelo inimigo, as séries Hatufim e Homeland têm histórias e personagens diferentes. Na primeira, são dois os soldados que regressam a Israel após 17 anos de cativeiro no Líbano em mãos de extremistas islâmicos. A série se inicia com a troca dos soldados por terroristas presos em Israel acusados de um atentado a bomba que matou dezenas de pessoas. Os israelenses voltam com os restos mortais de um terceiro militar morto em uma sessão de tortura e a partir daí a história gira em torno das dificuldades dos personagens em superarem o trauma do cativeiro e se adaptarem a um novo cotidiano. Também avaliações psicológicas revelam discrepâncias em seus relatos e uma investigação é iniciada para descobrir o que eles possam estar escondendo.

No roteiro desenvolvido por Howard Gordon e Alex Gansa para a plateia norte-americana, o protagonista é um oficial dos EUA que se acredita morto no Iraque, após ser capturado pela al Qaeda, e que retorna ao país oito anos depois de seu sumiço. Resgatado do cativeiro é saudado como herói pela população, mas surgem suspeitas em órgãos de segurança de que ele faça parte de uma célula terrorista que planeja um ataque em solo americano.

Em janeiro de 2013, ao receber o prêmio de melhor atriz por seu trabalho em Homeland, a novaiorquina Claire Danes, que protagoniza uma agente da CIA, declarou que a série é uma das favoritas do presidente Barack Obama. “Isso deixa claro a relevância do trabalho. A história fala da ansiedade e do desassossego que vivemos como sociedade, em uma nova era onde não está claro quem é o inimigo”, disse. Dentro dessa percepção, o atentado ocorrido na maratona de Boston, em 15 de abril, que resultou na morte de 3 pessoas e teve 264 feridos, muitos deles com mutilações e queimaduras, é um exemplo trágico dessa nova realidade. Os autores do crime, os irmãos Tsarnaev nascidos na Chechênia, viviam nos EUA e eram cidadãos americanos.

Esse tema, aliás, do inimigo que está entre nós, em nossa casa, tem mexido com a cabeça de roteiristas mundo afora. Em 2013, a franquia de Hatufim ganhou novos espaços e o seriado vai ser produzido na Rússia e no México, com histórias adaptadas as suas realidades.

No cativeiro, Shalit ouviu rádio e assistiu TV

Mas, voltando a Shalit, seis meses depois de sua volta ele se desligou oficialmente do exército israelense e logo em seguida tornou-se colunista esportivo do jornal Yediot Aharanot, o mais lido do país. Em seu primeiro artigo, Shalit contou que o amor pelos esportes o ajudou a suportar os anos de cativeiro e foi capaz de prover alguma conexão pessoal com seus captores. Fã de futebol e basquete, ele acompanhava os jogos dos times israelenses através da rádio e os campeonatos das ligas europeias nos canais de TV árabes. “Engajar-me no esporte me deu força para não desistir”, escreveu. Era uma espécie de pausa temporária da realidade ao meu redor.” E acrescenta: “Nas conversas acerca dos jogos, o denominador comum era o esporte. Sobre política eu nunca concordei em falar com eles.”

Em outubro de 2012, para marcar um ano da libertação do ex-refém, a TV israelense (Canal 10) exibiu um documentário a partir de alguns relatos pinçados na imprensa. A correspondente para o Oriente Médio da BBC, Yolande Knell, comentando o conteúdo do documentário, observou: “Em um trecho, Shalit revela que para lidar com a ansiedade e o tédio do cativeiro ele desenhava mapas de sua cidade natal Mitzpe Hilla, para lembrar, imaginar os lugares. Disse que tentava ser otimista e se focar nas pequenas e boas coisas que tinha, e que seus sequestradores o alimentavam bem, jogavam xadrez e dominó e quase nunca o agrediam. Podia assistir a notícias na televisão em árabe, e depois acabou ganhando um rádio onde podia ouvir estações israelenses. E que, às vezes, assistia junto aos sequestradores os programas de esportes e filmes na TV.”

Operação militar matou planejador do sequestro

Um mês depois da apresentação do documentário, em 14 de novembro, o comandante das Brigadas Izz el-Deen al-Qassam (braço armado do Hamas), Ahmed al-Jabari, 52 anos, morreu durante uma operação militar israelense na cidade de Gaza. O carro que dirigia foi atingido por um projétil seletivo e se incendiou. Jabari foi o carcereiro de Shalit e gerenciou toda a operação de custódia do prisioneiro, transportando-o por cinco anos para diferentes esconderijos até a sua libertação. Inclusive esteve presente na entrega de Shalit para os intermediários egípcios em Rafah, na fronteira com o Sinai, em uma das poucas vezes em que apareceu em público.

Nascido em Gaza, Jabari foi do grupo palestino Fatah e depois se ligou ao Hamas, financiando e dirigindo atentados terroristas contra Israel. Ele planejou o ataque suicida a um ônibus em Kfar Darom, na faixa de Gaza, que matou 7 soldados israelenses e um civil, em 1995. Por ocasião da Segunda Intifada, o período de 2000 a 2006 marcado por sucessivos confrontos entre militantes palestinos e forças israelenses na Cisjordânia e Faixa de Gaza, Jabari direcionou vários ataques a bomba contra Israel, matando centenas de civis. Foi também o responsável pela escalada de ataques com foguetes de forte poder destrutivo às cidades israelenses densamente povoadas como Ashkelon, Ashdod e Beersheva, no sul do país. Somente em 2012, mais de 800 foguetes de médio e longo alcances foram disparados pelo Hamas contra o território israelense e a operação militar “Pilar Defensivo”, na qual Jabari foi morto, teve o propósito de eliminar os locais de treinamento e de lançamentos desses foguetes.

Sem sentimento de vingança

Com a morte de Jabari, o semanário alemão Der Spigel – um dos mais importantes da Europa com circulação semanal de 900 mil exemplares – enviou seu jornalista político Dieter Bednarz para uma entrevista com Shalit em Israel. O encontro se deu na Galileia, na casa de dois pavimentos onde o ex-prisioneiro reside com os pais. O repórter alemão conta que Shalit disse não ter percebido a presença de Jabari ao seu lado no dia da libertação. “Eu só olhava para frente, não para o lado ou para trás”, justificou. Contudo, fotos publicadas na mídia mundial mostram Jabari e Shalit juntos, lado a lado, de uma forma que fica difícil supor que ambos jamais se comunicaram.

Sobre os anos de cativeiro, segundo o repórter, Shalit se mostrou hesitante, parecendo lutar com cada frase que pronunciava. Ele revelou que não sentiu satisfação quando soube da morte de Jabari porque nem mesmo conhecia a pessoa. Mais adiante, o repórter assinala uma frase dita por Shalit que o impressionou: “The killing has to stop” (“a matança tem que parar”, em tradução livre).

Na reportagem, Bednarz destaca que após essa mensagem a conversa foi interrompida pelo pai de Shalit, com a alegação de que o filho precisava ser deixado em paz, pois não é uma figura pública (“the boy needs to be left alone. Gilad isn”t a public figure”). Para o jornalista, Shalit não demonstrou sentimentos de vingança, apesar dos anos de cativeiro e da provação pela qual passou. No dia da entrevista, destacou Bednarz, sua ansiedade era para assistir na TV uma partida de futebol entre os times ingleses do Arsenal e Tottenham.

Meses antes, Shalit tinha estado no set de Homeland, em Jaffa, cuja produção filmou algumas cenas em Israel, sendo fotografado ao lado de Claire Danes.

Biografia inédita a caminho

Mas, ainda que Shalit procure se manter afastado das questões políticas e tente viver uma vida normal, situações ocorrem em que ele se vê envolvido de alguma forma com seu passado. Foi o que ocorreu na Catalunha, em 2012, quando resolveu assistir a um jogo entre os times do Barcelona e do Real Madri e houve manifestações contra a sua presença no estádio. Segundo Shalit, ele foi acompanhado por uma equipe de segurança em função das ameaças de protesto por grupos pró-palestinos.

O incidente causou constrangimento ao clube e a direção do Barcelona emitiu uma nota afirmando que não convidou Shalit para o jogo, apenas aceitou seu pedido para ver uma partida durante a visita que faria a cidade. O clube ainda informou que esse procedimento foi estendido a três representantes palestinos.

Enfim, vai ser difícil Shalit se desprender de um passado que mobilizou uma nação durante meia década e que envolveu decisões políticas delicadas e embaraçosas, como a libertação de mais de mil presos palestinos, muitos deles autores confessos de crimes de terrorismo que resultaram em mortes de civis.

Em outubro próximo, por ocasião do segundo aniversário de sua libertação, três jornalistas investigativos prometem lançar um livro sobre o ex-prisioneiro do Hamas, com base em documentos e material inédito. As pesquisas foram iniciadas no ano passado e vão incluir informações até então não publicadas por questões de segurança, gravações e depoimentos dos pais e do próprio Shalit. Um indício de que a história de Shalit ainda guarda muitos segredos que talvez não se revelem totalmente nesse primeiro livro. De qualquer maneira, o tema já se mostrou um prato cheio em se tratando de tensão psicológica, conflitos morais e situações-limite, componentes dramáticos que acompanham um militar em seu retorno à pátria após um punhado de anos convivendo com a realidade e a verdade do inimigo.