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quinta-feira, 27 de junho de 2013

Um partido acorrentado

Por Sheila Sacks

Assim fomos abrindo aqueles mares, Que geração alguma não abriu (do Lusíadas, de Luís Vaz de Camões - século 16)

O “grito das ruas” ou a onda de passeatas que estourou em junho de 2013 - a partir de uma convocação do Movimento Passe Livre que briga pela tarifa zero para o transporte coletivo - vem empurrando o governo do PT a uma revisão de seu comportamento político e a uma inevitável mea culpa em relação a sua postura e ações.

Há dez anos no poder, o partido se embrenhou em um processo de mudança estética e edulcorada, perdendo a autenticidade e a sua cara original para marqueteiros ilusionistas que criaram um arremedo ficcional de um Brasil satisfeito e acomodado pela aquisição de alguns poucos bens de consumo. Essa ficção foi naturalmente acolhida pela mídia em seus espaços publicitários na imprensa, rádio e TV, com repercussões ufanistas na área de notícias numa espécie de troca de gentilezas pelas verbas federais injetadas nos meios de comunicação. Isso ajudou, e muito, no distanciamento e desvinculação do governo do PT das reais aspirações da população.

Em nome da tal governabilidade, o Partido dos Trabalhadores injetou botox e outros elementos estranhos e artificiais em sua musculatura facial, transformando-a em uma caricatura patética e irreconhecível. Com uma penca de siglas políticas pendurada em seu pescoço, o colar de falsos brilhantes se mostrou, na prática, uma eficiente corda para enforcados. Assim, o PT aterrissou em 2013 acuado e desfigurado, tomado por invasores, esses sim, bastante à vontade na cidadela conquistada. A toxina botulínica introduzida pelas siglas e figuras alienígenas presentes no governo do PT deformou e paralisou a força e a expressão do partido perante o distinto público que, durante décadas, acompanhou e aplaudiu a difícil trajetória daqueles que tinham o propósito de mudar o Brasil.

Retorno as origens

Como o mito grego de Prometeu acorrentado, o PT teve seu fígado devorado diariamente por grupos políticos alheios a sua ideologia, focados em interesses individuais, mas estrategicamente (ou perversamente) assentados em seu bloco de apoio parlamentar. As poucas horas noturnas que sobravam para o partido se recompor  - porque os políticos também dormem - mostraram-se lamentavelmente insuficientes para a sua regeneração. Perdeu-se o singular “animus” original da sigla.

Enfim, o estrago está feito e a bomba posta no colo da presidenta, em Brasília, com os grupos ditos aliados e os oposicionistas (sim, existem partidos de oposição) dando tratos à bola para saírem à francesa ou pelo menos ilesos desse gigantesco imbróglio popular para o qual contribuíram com uma inegável cota colaborativa.

Alvo preferencial das centenas de análises políticas que tentam identificar e rotular as manifestações e em paralelo demonizar o governo, a ala palaciana do PT deve estar vivenciando o paradoxo de ter que engolir em seco em sua vontade de soltar a voz. A hora seria propícia para uma volta às origens e um salto ao futuro, rasgada a máscara burlesca bordada por uma veterana classe de políticos “amigos” que nunca se ausentou do poder. O momento e as condições democráticas estão a requerer um pacto com a sociedade, essa sim, a parceira e companheira incondicional de um governo batizado pelas urnas.

A hora pediria, de forma ousada, um encontro cara a cara, sem maquiagem e firulas marqueteiras; um dizer dos desafios e das dificuldades de comandar uma máquina administrativa eivada de vícios, onde a competência do funcionalismo de carreira muitas vezes sucumbe sob o poder dos caciques externos sem compromissos com a coisa pública; e de expor, com transparência e alma lavada, as pressões intoleráveis exercidas pelos infames profissionais da política que rondam os gabinetes com suas exigências e falsos afagos.

Porém, talvez essa etapa da história já tenha sido atropelada pelo correr dos acontecimentos, e prováveis revelações, ensinam os tempos recentes, somente trazem desassossego a quem as pronuncia. Então, o que sobra para um governo estimulado pelo “grito” das ruas é o exercício da destreza e a determinação de seus comandantes no içar das velas e no navegar pelos mares revoltos dessa imensidão de país, conscientes e preparados para as prováveis tempestades que se avizinham.

Em tempo: em um piscar de olhos, o Brasil se tornou um país de analistas políticos. Todos palpitam sobre as manifestações populares e os rumos da democracia brasileira. Mas quem faz a festa, abarrotando os jornais e as telinhas de TV de opiniões acadêmicas, são mesmo os grandes conglomerados de mídia que, com outras prioridades pipocando na mesa do governo, comemoram o provável adiamento do projeto de regulamentação do setor. Um bicho papão que vem aterrorizando, já há algum tempo, o assim denominado quarto poder da República.