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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Em Israel não existe gente comum

por Sheila Sacks

O jornalista Clóvis Rossi, colunista da Folha de São Paulo, conta que quando foi escalado pelo jornal para cobrir as eleições em Israel, nos idos de 1996, ele primeiro resolveu ter contato com as pessoas comuns, antes de procurar autoridades e políticos, para sentir o clima eleitoral no país. Na época já existia o que ele chamou de salas de conversações eletrônicas, no caso um desses chats frequentados somente por israelenses.

Ao explicar que queria conversar com gente comum sobre as eleições, não demorou muito para receber uma resposta curta e grossa que deixou o jornalista pasmo: “Em Israel, não há pessoas comuns”. Rossi confessa que na hora chegou a ficar com raiva da arrogância de seu interlocutor virtual, mas depois entendeu que talvez aquela inusitada afirmação tivesse a sua razão de ser. Na visão do jornalista, Israel é realmente um país com características inéditas no planeta porque reúne a maior concentração de história e religiosidade do mundo cercada por uma das maiores concentrações de força militar. Segundo Rossi, uma das coisas que mais o fascina em Israel é justamente a presença de todas as religiões monoteístas que pregam a paz terem alguns de seus maiores símbolos sempre cercados pelos símbolos da guerra.

Essa historinha está no prefácio de “Israel, Terra em Transe: Democracia ou Teocracia”, da jornalista Guila Flint, correspondente da BBC Brasil em Israel, em parceria com a socióloga Bila Grin Sorj, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). O livro é um apanhado de 16 entrevistas realizadas com intelectuais, religiosos, laicos, judeus e árabes que vivem em Israel e aborda aspectos do fundamentalismo judaico que turbinam a vida política israelense. Publicado em 2000, os depoimentos contidos no livro, muitos deles surpreendentes e polêmicos, não perderam a sua contemporaneidade.

Sem uma Constituição escrita

Conforme explicam as autoras, Israel é um país sem uma Constituição escrita, porque à época do primeiro Parlamento,em 1949, os partidos religiosos se opuseram à adoção de uma Constituição, argumentando que o povo judeu tem apenas uma lei suprema, a Torá (o Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia antiga). Dessa forma, o Parlamento (Knesset) tem poderes quase ilimitados e funciona, de fato, como uma assembleia constituinte permanente que edita leis que podem ser, contudo, facilmente modificadas. A bancada dos religiosos no Parlamento aumentou consideravelmente desde a fundação de Israel, passando de 16 para 30 representantes, 25% da totalidade dos parlamentares.

A importância e a força da religião no estado judeu tem gerado situações de conflitos e impasses entre grupos ultraortodoxos e seculares, geralmente encaminhados à decisão da Suprema Corte, órgão que funciona como uma espécie de guardião dos valores democráticos, com ênfase na proteção dos direitos humanos. Conciliar os diversos interesses, posições e pensamentos da complexa sociedade israelense - moderna, participativa e tradicionalista – é sempre um grande desafio que, ao longo dos anos, tem sido enfrentado a contento face aos sólidos princípios de justiça e liberdade que norteiam as decisões judiciais. A complexidade das respostas dos entrevistados e a diversidade de seus pontos de vista expressos de maneira incisiva demonstram essa heterogeneidade de pensamentos que é, afinal, a marca da nação judaica: a controvérsia levada ao extremo.

Afinidades com a população árabe

Assim ficamos sabendo que Uri Avnery, 88 anos, jornalista que trabalhou nos jornais mais importantes do país, como o Haaretz e Maariv, ex-parlamentar, membro do mítico Irgun (resistência armada judaica que combateu os ingleses durante o Mandato Britânico na Palestina, de 1931 a 1948) e fundador do movimento “Gush Shalom” (Bloco da Paz), se declara muito mais próximo de um cidadão árabe de Israel (em seus ideais e nacionalismo, ainda que em campos diferentes) do que de um cidadão ultraortodoxo judeu (haredi), de Jerusalém. Ele é autor do livro "Meu amigo, o inimigo" que narra seus encontros com Yasser Arafat e outros líderes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).

Em agosto de 2002, em entrevista à revista inglesa New Internationalist (action for global justice), Avnery lembrou de seu passado de luta armada para a instalação do estado de Israel. Quando questionado sobre a sua posição em relação aos ataques suicidas e os atentados à bomba praticados por grupos palestinos radicais contra civis israelenses, ele retrucou: “Você não precisa me dizer o que é terrorismo. Eu fui terrorista. E quando se está envolvido com movimentos de libertação se lida com a intransigência, a brutalidade e um diferente conjunto de valores", justificou.

Ainda atuando na vida pública israelense, o combativo jornalista, que já sofreu várias ameaças de morte e foi vítima de um atentado em 1975 que o deixou gravemente ferido, tem seus artigos traduzidos para o português e republicados pelo site "Vermelho", do Partido Comunista do Brasil (PcdoB).

Outro entrevistado é Haim Hanegbi, 76 anos, antigo jornalista e ativista político (um dos líderes do extinto movimento comunista e antissionista Matzpen), oriundo de família ortodoxa, neto de rabino e cuja família emigrou da Espanha para Hebron, a Cidade dos Patriarcas, à época da Inquisição. Desde 1996 sob a administração da Autoridade Palestina, Hebron fica a 10 quilômetros de Jerusalém e abriga os túmulos de Abraão, Isaac e Jacó. Há três mil anos, David foi ungido rei de Israel nessa cidade e lá reinou por sete anos até estabelecer Jerusalém como capital do reino.

Muito identificado com os costumes e o modo de viver dos árabes, Hanegbi culpa o sionismo pela extinção das antigas comunidades judaicas do mundo árabe, como as de Damasco, Cairo, Alexandria, Bagdá, Marrocos e Casablanca. A criação do estado de Israel e as guerras advindas deste fato histórico desencadearam uma onda de perseguições aos judeus nascidos e estabelecidos, há várias décadas, no mundo muçulmano, ocasionando o esfacelamento desses núcleos que viviam integrados e adaptados aos costumes e as culturais locais.

Estado democrático e judaico

Para Avraham Burg, do Partido Trabalhista, por três vezes eleito parlamentar e presidente da Agência Judaica Mundial (1995-1999), é preciso separar a religião e o estado. “Pessoalmente, creio que seria necessário acabar com a participação que a religião tem na estrutura do governo de Israel e reposicionar a religião e o judaísmo, que passariam a fazer parte da cultura, parte da responsabilidade individual, em vez de estarem sujeitos a elementos coercitivos do estado.”

Por sua vez, o professor de pensamento e filosofia judaica da Universidade Hebraica de Jerusalém, Moshe Halbertal, 54 anos, acredita que qualquer tentativa de definir o judaísmo através de uma legislação fará com que os judeus de várias partes do mundo sintam que esta não é sua casa. Isso porque, na sua concepção, existem diferenças profundas entre os judeus sobre o judaísmo. Para ele “Israel precisa decidir basicamente se deseja ser a casa dos judeus ou se pretende ser um estado judeu”.

Defendendo a integração estado-religião, a jornalista Bambi Sheleg, 43 anos, de uma família de judeus religiosos e sionistas, acredita que a comunidade não-religiosa em Israel perdeu muitos de seus ideais. “O sionismo religioso considera o retorno a Sion a verdade histórica mais importante. Mas em função disso também será necessário aceitar os valores da modernidade? É essa a grande questão.” Participando de grupos que se reúnem para ler a Torá, Sheleg vê o estado de Israel democrático e judaico ao mesmo tempo. “O estado de Israel é uma anomalia histórica, deve incluir esses dois valores, caso contrário deixará de existir.”

Indo mais longe, ela insiste que os israelenses devem ter consciência de onde vieram e para onde estão se dirigindo "pois o estado de Israel não foi criado para fornecer empresas para desenvolver alta tecnologia para os EUA. Não foi esse o sonho de retorno a Sion". E conclui: - Em minha opinião, é muito importante que Israel seja um país que tenha compaixão, que tenha um comportamento digno em relação aos trabalhadores estrangeiros, aos árabes, e a todos aqueles que chegam de outras regiões.

Esse aliás é o cerne da questão, segundo Clovis Rossi: “Na batalha entre religiosos e laicos, as armas são os argumentos e argumentos não se medem em calibres, não atingem o corpo, visam a alma – e aí tudo fica muito mais complexo.” Daí que ao término das 357 páginas do livro e diante do monumental “desfile” de personagens e argumentos, Rossi dá a mão à palmatória e se rende à afirmação julgada pretensiosa, em um primeiro momento: - Em Israel, não há pessoas comuns.

Observação:
Atualmente vivem em Israel mais de 120 mil judeus negros da Etiópia. Também existem outras comunidades de judeus negros, como os Black Hebrews, que vieram dos Estados Unidos. Judeus asiáticos, principalmente chineses, têm emigrado para Israel.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Lição de cidadania:portal do governo publica matérias desfavoráveis (ao governo)

por Sheila Sacks

Notícia alvissareira: o site governamental Portal ClippingMP (do Ministério do Planejamento), implantado na era Lula, tem se mantido intacto em sua saudável originalidade nesses primeiros seis meses do governo de Dilma Rousseff. Exemplo singular de um espaço institucional livre e democrático que expõe com uma generosidade inusitada as notícias desfavoráveis e as opiniões críticas mais relevantes registradas pelos mais influentes jornais e revistas do país (muitas delas só possíveis de serem lidas mediante a compra das publicações), o portal se constitui em uma pujante lição de democracia ao alcance de todos os brasileiros.

A disponibilização diária de uma qualificada listagem de textos, incluindo matérias de capa, economia, colunas, artigos e editoriais das mais variadas tendências políticas, eximida das omissões e exclusões intencionais tão a gosto de 99% dos sites oficiais de estatais, prefeituras e governos estaduais, é um balde de água fria sobre os jornalões que insistem em apregoar a suposta ojeriza do ex-presidente Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT) pela imprensa em geral.

A facilidade no acesso à leitura e a praticidade na impressão das matérias são itens a destacar em face da lerdeza de muitos sites jornalísticos tomados por grandes imagens que demoram a se materializar, interferindo e atrasando a apresentação do texto que vem a reboque. Um exercício de paciência que não combina com a estreita margem de tempo que a maioria das pessoas tem, no seu dia-a-dia, para se manter atualizada.

Fatiar reportagens em capítulos

A suposta falta de interesse da imprensa em divulgar as iniciativas e eventos considerados positivos pelos governos e entidades públicas municipal, estadual e federal, costuma levar seus dirigentes a elaborar mecanismos próprios de irradiação de notícias, valendo-se de múltiplos expedientes como a inserção de publicidade institucional nos veículos de comunicação, a inclusão de “notinhas” em colunas, o adiantamento de pautas exclusivas para editores e articulistas e a criação de sites que abrigam os incansáveis releases em sua função básica de detalhar as diversas atividades desenvolvidas pela administração pública e os serviços disponíveis para a população.

É voz corrente que a atenção e o interesse da imprensa passam longe dessas informações oficiais, sempre focados em repercutir denúncias de falcatruas, obras superfaturadas, nepotismo, tráfico de influências e outras mazelas recorrentes na esfera pública. Filho dileto das redações, o jornalismo investigativo, com a sua tática cruel de fatiar as reportagens em capítulos estarrecedores, é hoje uma das armas mais eficientes e letais na missão de expor, à luz dos holofotes e às vistas da sociedade distraída, as maracutaias e os crimes de lesa pátria acertados no bar da esquina, à beira da piscina ou via celular (se bem que, em muitos casos, assim como as denúncias surgem e se ampliam no correr dos dias, elas se evaporam, repentinamente, e nas semanas e meses subsequentes o tema em questão sequer volta a ser ventilado).

Jogando por terra preconceitos

No Portal ClippinMP o cidadão brasileiro tem a oportunidade de acompanhar as reportagens investigativas que sacodem, de tempos em tempos, a letargia reinante e descobrir o que pensam e dizem os mais importantes formadores de opinião acerca do governo de Dilma e do ex-presidente Lula. Retrato da grande imprensa nacional, o site apresenta uma maior quantidade de matérias críticas e desfavoráveis às ações e às personalidades públicas que habitam a capital federal. O que espanta, tratando-se de um site oficial, é a correção e a transparência na exibição de artigos e editoriais contundentemente contrários à presidente Dilma e sua equipe de governo, algo pouco provável de ocorrer até em nações com uma larga tradição democrática. Descartados países do Cone Sul como Venezuela e Equador, onde jornais de oposição são fechados e jornalistas impedidos de trabalhar.

Enfim, enquanto os brasileiros puderem dispor de um site oficial de notícias de tamanha qualidade e integridade – que joga por terra os preconceitos que ainda animam grande parte da mídia em se tratando do núcleo governamental e suas relações com a imprensa – não será demais nem exagerado ou estapafúrdio proclamar, parafraseando Lula em seus rompantes juvenis, que nunca, jamais, em tempo algum, na história do Brasil se viu coisa assim...

( o artigo foi reproduzido no site da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (SECOM), em 27.07.2011, no link Sala de Imprensa-clipping)

Nota: O Portal em questão, infelizmente, foi extinto no ano seguinte.


terça-feira, 28 de junho de 2011

Primavera Árabe: As ambiguidades do governo brasileiro

por Sheila Sacks

Ao se declarar contra o apedrejamento de mulheres no Irã, logo após assumir a presidência em janeiro, e se alinhar a favor do envio de um relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) àquele país para apurar denúncias de violações de direitos humanos, a presidenta Dilma Rousseff ouriçou os comentaristas políticos e editorialistas dos grandes jornais, que imediatamente enxergaram uma mudança de rumo na política externa brasileira.

A ducha de água fria veio com a posição do Planalto em negar à ativista iraniana Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz em 2003, uma audiência pessoal com a presidente Dilma. Uma das principais vozes de oposição ao regime de Mahmoud Ahmadinejad, a advogada e ex-juíza, de 63 anos, que vive exilada na Inglaterra desde 2005, esteve em Brasília, no início de junho e, diante da impossibilidade de ser recebida pela presidente brasileira, se absteve de se encontrar com o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia, indicado para atendê-la. Ainda em Brasília, no plenário da Câmara dos Deputados, Shirin passou por novo constrangimento ao falar sobre os maus tratos, perseguições religiosas e prisões arbitrárias no Irã para uma pífia plateia de menos de dez parlamentares.

Dias depois, em Genebra, durante a conferência mundial da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os ministros do Trabalho do Brasil, Carlos Lupi, e do Irã, Abdolreza Sheikholeslami, anunciaram um plano de cooperação visando à implementação no país persa de projetos de capacitação de trabalhadores e de programas similares ao Bolsa Família e Brasil sem Miséria. O objetivo seria evitar a repetição do cenário de crise social – com milhões de pessoas sem trabalho – que fermentou a derrubada dos governos da Tunísia e do Egito. A pedido do Irã, o governo brasileiro irá desenvolver iniciativas que possibilitem a criação de mais de 2 milhões de empregos no Irã e promover ações sociais que aliviem o impacto do embargo econômico e comercial que lhe é imposto pela ONU. “Nós falamos com todos os países e vamos cooperar com quem nos peça cooperação, incluindo o Irã”, justificou Lupi.

“É o cumprimento de uma lei internacional”

Desde a eleição de 2009 que reelegeu Ahmadinejad, o regime islâmico tem perseguido e encarcerado dissidentes, ativistas de direitos humanos, líderes religiosos, advogados e jornalistas. Atualmente 26 profissionais da imprensa permanecem presos pelo regime de Ahmadinejad. Em abril, o jornalista e professor de Ciências Políticas Ahmad Zeidabadi, detido há dois anos, foi homenageado com o Prêmio Guillermo Cano World Press Freedom, concedido pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), por sua “coragem excepcional, resistência e compromisso com a liberdade de expressão, democracia, direitos humanos, tolerância e humanidade”. Editor do jornal Azad e colaborador da BBC de Londres, Zeidabadi foi condenado a seis anos de prisão, mais cinco de “exílio interno” e proibido de exercer a profissão para o resto da vida, acusado de conspirar contra o governo.

Em relação à Líbia, a decisão da diplomacia brasileira de se juntar aos demais membros do Conselho de Segurança da ONU – formado por 15 membros, sendo cinco permanentes e dez temporários – na aprovação de uma resolução votada em fevereiro que impunha sanções à Líbia de Kadafi, também contribuiu para fomentar editoriais e artigos sobre o novo posicionamento da presidente Dilma e do Itamaraty no cenário internacional.

Muitos se animaram com a publicação no Diário Oficial da União do decreto determinando as sanções da ONU à Líbia (embargo à venda de armas, congelamento de bens e proibição da entrada de parentes de Kadafi). Assinado em 15 de abril por Michel Temer, presidente em exercício, o documento não se constituiria em uma iniciativa isolada do Brasil, e sim, atenderia à Resolução nº 1.970, aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, dois meses antes. “É o mínimo de cumprimento de uma lei internacional”, afirmou na ocasião ao jornal Correio Braziliense o especialista em Oriente Médio Márcio Scalércio, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Segundo ele, ao publicar a medida o Brasil simplesmente acatou a determinação do Conselho.

Minas brasileiras na Líbia

É importante observar que na votação da Resolução nº 1.973, desse mesmo Conselho, em 17 de março, o Brasil se absteve de votar contra a Líbia, posicionando-se ao lado da China, Rússia, Índia e Alemanha. A medida impôs uma zona de exclusão aérea sobre o país, autorizando o uso da força para suspender voos sobre o território líbio. A resolução foi aprovada por maioria (10 votos) e, três dias depois, o presidente americano Barack Obama, ainda em território brasileiro, autorizou os ataques das forças aliadas contra o regime de Kadafi. A reação diplomática brasileira veio logo depois em forma de um comunicado do Itamaraty lamentando as mortes ocorridas pelos bombardeios, reiterando sua solidariedade com o povo líbio, criticando o uso da força pela coalização internacional e pedindo “um cessar-fogo efetivo”. Posição reforçada na reunião de cúpula dos Brics – grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – ocorrida em abril na China, com a presença da presidente Dilma Rousseff. A declaração conjunta divulgada ao final do encontro condenou o uso da força na Líbia e novamente apresentou propostas de reforma do Conselho de Segurança da ONU.

Uma semana depois da reunião dos Brics, a missão do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU enviada à Líbia concluiu que pelo menos 10 mil pessoas morreram no país desde o início da revolta contra Kadafi. O chefe da delegação, Cherif Bassioun, afirmou que foram encontrados indícios de crimes de guerra, com ataques a civis e a missões humanitárias. Por outro lado, Jacob Zuma, presidente da África do Sul e membro do Conselho da União Africana, em visita ao ditador líbio, em Trípoli, manifestou seu repúdio aos ataques da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ao país. Em telefonema posterior à presidente Dilma, o sul-africano pediu apoio do Brasil para uma articulação no Conselho de Segurança da ONU no sentido de encontrar uma saída política para a crise na Líbia. Na conversa, que durou cerca de 10 minutos, de acordo com o porta-voz da Presidência Rodrigo Baena, os dois presidentes se mostraram preocupados com os ataques aéreos contra a Líbia, que estariam indo além da resolução aprovada pela ONU, provocando “impactos negativos na população civil das ações das políticas ocidentais”.

Na mesma época, a principal organização de combate ao uso das minas terrestres, a International Campaign to Ban Landmines (ICBL), prêmio Nobel da Paz de 1997, constatou a presença de minas de fabricação brasileira sendo utilizadas pelo regime de Kadafi contra os rebeldes. Em carta ao ministro Antônio Patriota, a diretora da ONG Kasia Derlicka pediu explicações sobre o fato, lembrando a condição do Brasil de signatário do Tratado de Ottawa, posto em vigor em 1999, que proibiu a fabricação, uso e venda de minas “antipessoal”. A instituição pediu ainda que o Brasil condene o uso de minas e exija a sua suspensão (segundo a assessoria do ministro, o Brasil não exporta mais esse tipo de artefato, em respeito ao tratado, mas mantém estoque do armamento, parte dele usado pelo Exército em exercícios militares).

Missão para investigar tortura e execuções

O emprego de métodos cruéis para calar vozes discordantes é comportamento-padrão no regime Kadafi. Em 1996, o ditador foi responsável por um dos crimes mais brutais que atingiram a sociedade líbia. Trata-se do massacre na prisão de Abu Salim, onde 1.167 pessoas supostamente opositoras do governo foram assassinadas em poucas horas pelos soldados do regime. Com depoimentos e provas suficientes para condenar Kadafi em uma corte internacional por crime contra a humanidade, o ativista de direitos humanos e advogado das famílias das vítimas Fathi Terbil conta que os corpos das vítimas foram jogados em buracos e cobertos com cimento. Um dos poucos sobreviventes da chacina, o engenheiro Issa el-Bira, revelou que centenas de presos foram forçados a sair para o pátio enquanto atiradores os matavam de cima dos telhados.

Iniciada em março, a revolta popular na Síria contra o regime de Bashar Assad já contabiliza 1.200 mortes e 10 mil presos qualificados pelo governo como “sabotadores”. O presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas, Joseph Deiss, frente a sinais de que o Brasil não estaria disposto a apoiar uma resolução de condenação no Conselho de Segurança contra a repressão e atrocidades cometidas contra civis e as mais de mil mortes promovidas pelas forças sírias, deslocou-se até Brasília para uma reunião com a presidente Dilma e o chanceler Patriota. Na visita, ocorrida em 20 de junho, Deiss tentou sensibilizar o governo brasileiro a votar a favor da resolução que prevê, entre outros tópicos, a implantação de reformas políticas no país, a libertação de prisioneiros e o fim da violência contra os opositores. Entretanto, a posição brasileira – que coincide com as da Rússia e China – é de que possíveis ações militares tenderiam a piorar ainda mais a situação. “ASíria é um país central, quando se leva em conta a estabilidade no Oriente Médio”, afirmou Patriota em entrevista na ONU. “A última coisa que gostaríamos é contribuir para exacerbar as tensões no que pode ser considerada uma das regiões mais tensas de todo o mundo.”

Esse posicionamento do Brasil tem intrigado diplomatas dos Estados Unidos, Reino Unido e França, países membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Um deles se mostrou decepcionado e explicou: “Tivemos até mesmo a preocupação de não colocar nenhum trecho que pudesse dar chance para uma intervenção externa na Síria. Mas parece não ter sido suficiente para convencer os brasileiros”, disse. Em abril, o Brasil votou favoravelmente no CDH pelo envio a Damasco de uma missão para investigar violações de direitos humanos no país, principalmente tortura e execuções. Dois meses depois, observadores da ONU foram impedidos de entrar na Síria.

Exportações para o Egito cresceram 135,7%

Mesmo assim, o governo de Assad pediu o apoio do Brasil para a sua pretensão de concorrer a uma vaga no CDH. Diplomatas sírios acreditavam na influência do voto brasileiro para mudar a posição de outros países. Mas, uma semana antes da votação a Síria retirou a sua candidatura. Membro da entidade desde 2008, o Brasil encerrou seu mandato em maio, quando 15 das 47 cadeiras do Conselho foram renovadas. Em março, a Assembleia-Geral da ONU já havia decidido pela suspensão da Líbia no CDH, com voto favorável do Brasil.

Uma das mais significativas áreas de comércio do Brasil no norte da África e principal destino das exportações brasileiras para aquele continente, o Egito pós-Mubarak foi alvo de uma visita do ministro Antônio Patriota em maio. Parceiro extra-regional do Mercosul, assim como Israel, o país de 80 milhões de habitantes abriga a sede da Liga dos Países Árabes e é considerado pelo Itamaraty como um interlocutor de grande influência no mundo árabe. Segundo a nota nº 179, divulgada no site do Itamaraty em 6 de maio, o Egito “tem envolvimento crescente nas negociações relativas à questão israelo-palestina, do que é demonstração a assinatura, no Cairo, no último dia 4/6, do acordo de reconciliação entre o Fatah e o Hamas, além de outros 11 grupos políticos palestinos.”

Apesar das revoltas populares e da derrubada do governo de Mubarak, as exportações para o Egito cresceram 135,7% nos três primeiros meses de 2011 em relação a igual período de 2010, alcançando a média diária de 8,5 milhões de dólares. Para a Tunísia, país que inaugurou os confrontos de rua contra os regimes autoritários árabes, culminando com a queda do ditador Zine Ben Ali, as exportações brasileiras aumentaram ainda mais, cerca de 408,2%, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Na Argélia, país árabe que também enfrenta distúrbios, a compra de mercadorias do Brasil teve um crescimento de 218,81%.

Liderança geopolítica
Em setembro, quando a primavera se anunciar no Cone Sul, Dilma estará em Nova York para a abertura da Assembleia Geral da ONU. O secretário-geral, Ban Ki-Moon (reeleito para o cargo por mais quatro anos), no encontro que teve com a presidente brasileira no Palácio do Planalto, em 16 de junho, lembrou que Dilma será a primeira mulher a abrir o debate geral daquela entidade. Em nota, ao cumprimentar o sul-coreano pela votação, o Itamaraty ressaltou algumas prioridades do governo brasileiro no campo político internacional: a reforma do Conselho de Segurança da ONU, a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e a busca de uma solução política para as crises que atingem o Norte da África e o Oriente Médio.

Sabendo-se que líderes palestinos apoiados por países árabes já preparam um plano de mobilização para pedir o reconhecimento da ONU na sessão anual de sua Assembleia Geral de um estado palestino delimitado pelas fronteiras de 1967, e que o Brasil, compartilhando espaço com países que incitam o ódio ao Estado de Israel, já reconheceu essas fronteiras em dezembro de 2010, é pouco provável que haja qualquer alteração, por parte da presidente brasileira, das diretrizes já assumidas acerca desse e demais temas que envolvem os conflitos no mundo árabe e o terrorismo praticado por grupos político-religiosos da região. Ainda que a grande imprensa distingue o compromisso da presidente com a questão dos direitos humanos, a visão ideológica e as aspirações brasileiras por uma liderança geopolítica regional e terceiro-mundista – sinalizadas pelo partido a qual está ligada – acabam por estreitar e dogmatizar seu campo de ação. Para desalento das editorias e dos articulistas políticos que insistem em repaginar o perfil de Dilma, creditando supostos pontos de vista e opiniões que mais adiante não se confirmam.

As fotos mostram manifestações de rua em Bahrein, Síria e Egito, no que a imprensa mundial chamou de Arab Spring - Primavera árabe, ou a luta desses povos pela democracia. Contudo, tanto na praça Tahir quanto em outras ruas e praças do mundo árabe, bandeiras de Israel foram queimadas, justamente de um país que é uma das poucas democracias da região.

domingo, 5 de junho de 2011

Os super-heróis do Serviço Público

Os desafios diários dos jornalistas que trabalham em Assessorias de Comunicação

por Sheila Sacks
publicado nos portais da Associação dos Servidores do Tribunal de Justiça(Assestjsp) e da Federação das Entidades de Servidores Públicos de São Paulo(FESPESP).


Já há alguns anos, as páginas dos jornais que estampam as reclamações de leitores sobre os mais variados assuntos têm público certo e cativo, que tende a crescer. Da mesma forma, o rádio, a TV e a internet somam espaços particularizados para as denúncias de serviços não executados ou malfeitos, promessas descumpridas, produtos danificados, deslizes no atendimento e omissão danosa de regras, prazos e acordos. Ciente e consciente de sua respeitável posição de cliente, usuário, consumidor, comprador e pagante, o cidadão brasileiro encontra na mídia – entendida como os meios de comunicação de massa – um eficiente canal para dragar e escoar, a céu aberto, as solicitações, reclamações e relatos dessas pendengas que aborrecem e tumultuam o cotidiano de qualquer ser humano.

Mas é na área do serviço público que o cidadão brasileiro está tendo a oportunidade de recorrer, mais assiduamente, aos préstimos da mídia, sempre atenta aos problemas urbanos das cidades. Ainda que uma escola com goteiras, localizada em um bairro da periferia, não tenha o mesmo peso editorial de um cano que se rompe e inunda uma rua da Zona Sul do Rio de Janeiro, o reclamante sempre encontrará um espaço na rede midiática para expor, veicular, sensibilizar e transmutar um fato isolado e distante em um problema próximo e de interesse comum.

Fogo cruzado

É nessa hora que as assessorias de comunicação dos órgãos públicos afetados pelas ocorrências são instadas a desfazer ou deter o possível dano causado à imagem dos mesmos. O registro da imprensa, rádio e TV de crianças estudando em uma sala de aula com água escorrendo pelas paredes ou carteiras escolares molhadas tem um forte impacto emocional na população. Assim com o de uma importante via alagada e interditada ao trânsito; do desespero de moradores de baixa renda diante da demolição de seus casebres, ainda que erguidos irregularmente nas encostas; ou de idosos e crianças doentes enfileirados, durante horas, frente à entrada de postos de saúde e hospitais, aguardando atendimento.

A simples exposição do fato, que naturalmente incorpora o poder público como culpado da situação, muitas vezes estimula a mídia a se acercar do assunto, ampliando o seu foco com desdobramentos em matérias correlatas. Em sequência, as assessorias de comunicação são imediatamente bombardeadas pelos repórteres que urgem dar uma resposta, firme e precisa, aos seus leitores, telespectadores e ouvintes.

Às assessorias não basta se reportar e responder tecnicamente ao jornal que publicou o fato. Necessitam ir muito além da informação. Faz-se necessário, basicamente, corresponder positivamente às expectativas da comunidade escolar afetada (que se mobilizou para tornar o fato público), dos funcionários do órgão (engenheiros e técnicos que trabalham incansavelmente nessa área), da direção do órgão público atingido (profissionais capacitados nomeados para cargos de confiança), da sociedade atingida pela notícia e da própria mídia, que a cada dia torna-se mais competitiva e investigativa. Enfim, é preciso que os jornalistas que trabalham nessas assessorias se descubram portadores de habilidades muito especiais, tais quais os super-heróis das cultuadas HQs, para saírem totalmente ilesos desse fogo cruzado.

Informar é desestabilizar

O cuidado com o uso dos termos a serem inseridos nos releases é outra preocupação a rondar as assessorias. Um exemplo sobre o estrago que uma palavra pode causar a um profissional da comunicação é a polêmica que se instalou em torno do jornalista Luiz Lobo, da TV Brasil. Demitido da emissora, no início de abril de 2008, o profissional alegou que existia uma ordem do governo federal para que a palavra "dossiê" não fosse usada nos noticiários. Segundo Luiz Lobo, haveria na TV Brasil o que ele classifica de "um cuidado que vai além do jornalístico", interferindo na independência da emissora.

Na mesma época, em sua coluna diária em O Globo (20/4/2008), o jornalista Merval Pereira abordou essa questão da independência na transmissão das mensagens, dando voz e espaço a Régis Debray – amigo pessoal de Fidel Castro e Che Guevara nos anos 1960 –, hoje um especialista em "midialogia" (estudo das mídias). Para o filósofo, jornalista e professor francês, de formação marxista (passou três anos preso na Bolívia), existe uma diferença entre a comunicação e a informação. Para ele, os sistemas de comunicação trabalham mais com a comunicação do que a informação, já que a comunicação vive de seduzir o leitor ou o ouvinte. Essa sedução seria traduzida por uma espécie de mimetismo, onde as mídias em suas mensagens imitariam o pensar e o falar dos que recebem as notícias e vice-versa. Daí que a mídia, como um todo, seria sempre um reflexo de uma sociedade, repercutindo "os que os escutam e os que os lêem".

Em contrapartida, o ofício de informar seria bem mais difícil: "Informar alguém é sempre desestabilizá-lo, deixá-lo desconfortável, mexer com suas ideias já fixadas", explica Debray. Logo, caberia à informação o ônus de ser o diferencial, de se compor como uma mensagem dissociada a termos e expressões estigmatizantes, tendo como premissa os fatores da imparcialidade e da independência em relação ao público leitor. Essa, aliás, seria a função precípua das assessorias de comunicação da área pública: a de informar objetivamente, mantendo-se imune à tentação de repetir a lingüística utilizada pela grande mídia.

Múltiplas habilidades

De 1950, quando os primeiros cursos de Comunicação Social foram implantados no país, aos dias atuais, com as redes de comunicação transformadas em conglomerados poderosos e atuantes em todos os setores da vida humana, aumentou bastante a percepção, entre os profissionais e aqueles que estudam e pesquisam o fenômeno das mídias, da importância de se conhecer e entender o funcionamento dessa multifacetada engrenagem de massa, capaz de criar e destruir mitos e governos, fomentar idéias e teorias e até mudar o curso da história.

Profissionais formados na tradição das escolas de Jornalismo mais convencionais procuram se adaptar ao aparato e a tecnologia que as novas mídias impõem. Nas assessorias, o repasse de releases via e-mail já não é novidade. Folders e cartazes são elaborados utilizando-se da computação gráfica. A solicitação de vídeos ou CDs, com animação, sobre serviços realizados pelos órgãos e empresas (projetos, obras etc.) também está virando rotina, juntamente com o acompanhamento eletrônico diário do noticiário dos jornais, revistas, rádio e TV e a permanente atenção à mídia e à análise da temperatura social de suas mensagens, embutidas em notas, colunas e reportagens.

Atentas a essa perspectiva transformadora da comunicação, universidades como a Federal Fluminense (UFF), do Rio de Janeiro, e a de Campinas (Unicamp), em São Paulo, abriram cursos de estudos de mídia ou Midialogia, que visam à análise e discussão das diversas mídias, em seus contextos, códigos, linguagens e campos conceituais. Segundo o professor Adilson Ruiz, da Unicamp, "o midiólogo, na sua expressão mais pura, deverá ser um grande consultor de mídia para empresas de qualquer natureza, sejam elas da esfera pública ou privada". Estará preparado para opinar sobre som, fotografia, cinema, vídeo e computação gráfica, atuando na produção, realização e recepção desses produtos. Sem deixar de lado a formação no campo humanístico, estético e sociológico, base instrumental e técnica da expressão e item imprescindível para a construção de cada mídia específica (escrita ou audiovisual).

Portanto, para esse novo super-herói que já desponta no horizonte, vale indicar um proveitoso estágio em uma assessoria de comunicação social de um órgão público. Ainda o melhor lugar para um profissional exercitar suas múltiplas habilidades.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Estado, religião e mídia

por Sheila Sacks
Artigo publicado no site do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)
http://cnj.myclipp.inf.br/default.asp?smenu=ultimas&dtlh=171064&iABA=Not%EDcias&exp=

Trecho da matéria: "Nos regimes democráticos todos são livres para a prática de sua religiosidade, um direito constitucional que muitas vezes se confunde com outras formas de levar adiante o exercício da liberdade e da cidadania. Muitos resvalam nesse terreno escorregadio e pouco iluminado onde nem sempre é fácil manter uma autonomia que propicie conciliar a liberdade individual com a igualdade social, distinguir conceitos de pessoa e de comunidades, separar os valores éticos pessoais dos princípios públicos aceitáveis, compatibilizar os direitos individuais com o bem da sociedade.

Dadas as sutilezas que rondam o tema e a existência de uma legislação severa no que possa ser entendido como manifestação preconceituosa ou intolerância religiosa, raros são os profissionais da mídia que se animam em emitir algum tipo de opinião sobre o assunto, limitando-se ao registro das notícias e às declarações dos envolvidos. A lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, estipulou pena de reclusão de um a três anos, acrescida de multa, para quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

E frente à possibilidade de ferir suscetibilidades e dessa forma correr o risco de infringir, muitas vezes de forma incauta e ingênua, a delicada fronteira que separa o admissível do não aceitável, jornalistas e empresas de comunicação, sem abdicarem da liberdade de informação, se rendem à prudência e ao cuidado no trato das palavras e da composição das frases – incluso o uso providencial das aspas - quando a notícia combina vida pública e religiosidade."

domingo, 8 de maio de 2011

Vida pública,religiosidade e derivativos

por Sheila Sacks

“A guerra é contra o terror, e não contra o islamismo” (Barack Obama, ao anunciar a morte de Osama bin Laden, líder da al-Qaeda, em 01.05.2011)

Padres, pastores, rabinos e clérigos muçulmanos são os representantes naturais das incontáveis comunidades religiosas, maiores ou menores, instaladas em mais de uma centena e meia de países do globo terrestre. Pouco ou muito influentes, de acordo com a quantidade de seus seguidores, essas coletividades se inserem basicamente no contexto de regras e de leis emanadas e exercidas pelo poder do Estado.

Nos regimes democráticos todos são livres para a prática de sua religiosidade, um direito constitucional que muitas vezes se confunde com outras formas de levar adiante o exercício da liberdade e da cidadania. Muitos resvalam nesse terreno escorregadio e pouco iluminado onde nem sempre é fácil manter uma autonomia que propicie conciliar a liberdade individual com a igualdade social, distinguir conceitos de pessoa e de comunidades, separar os valores éticos pessoais dos princípios públicos aceitáveis, compatibilizar os direitos individuais com o bem da sociedade.

Imparcialidade sem renunciar as convicções religiosas

O Estado laico e pluralista não impõe nenhuma religião, respeita todas e se mantém imparcial diante de cada uma delas. A afirmação é do teólogo Leonardo Boff, 73 anos, doutor honoris causa em Política pela Universidade de Turim, na Itália. Para o ex-franciscano que vive em Petrópolis, professor emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), essa imparcialidade não significa desconhecer o valor espiritual e ético de uma confissão religiosa. – Ao entrar no campo político e ao assumir cargos no aparelho de Estado, não se pede aos cidadãos religiosos que renunciem as suas convicções religiosas. O único que se cobra deles é que não pretendam impor a sua visão a todos os demais nem traduzir em leis gerais seus próprios pontos de vista particulares, escreve Boff no site da Fundação Lauro Campos, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A laicidade, continua ele, obriga a todos a exercer a razão comunicativa, a superar dogmatismos em favor de uma convivência pacífica e diante dos conflitos buscar pontos de convergência comuns. Nesse sentido, conclui, a laicidade é um princípio da organização jurídica e social do Estado moderno (O Estado laico e pluralista e as igrejas, em 05.11.2010).
No caso de exposição de imagens e símbolos religiosos em repartições públicas brasileiras, fato observado principalmente nos fóruns e tribunais de Justiça, o Ministério Público Federal, seção São Paulo, ajuizou uma ação civil pública, em 2009, no sentido de retirar todos os símbolos religiosos afixados em locais de atendimento ao público nas repartições federais localizadas no estado. Na justificativa protocolada pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, é lembrado o princípio da laicidade estatal, a liberdade de crença e da isonomia, destacando que o símbolo religioso ostentado em local público demonstra uma “predisposição” para a religião que tal símbolo representa.

Tradição religiosa ainda é um fator influente nos julgamentos

Um ano depois, em agosto de 2010, essa ação foi indeferida pela juíza federal Maria Lúcia Lencastre Ursaia que decidiu, em caráter liminar, que a presença de símbolos religiosos em prédios públicos não ofende os princípios constitucionais da laicidade do estado nem da liberdade religiosa. Em seu despacho, a juíza considerou natural a presença de crucifixos em espaços públicos nacionais, dada a formação histórico-cultural cristã do povo brasileiro. Segundo ela, para os agnósticos ou pessoas de crenças diferenciadas, esses símbolos nada representam, “assemelhando-se a um quadro, escultura, adereços decorativos”. A magistrada ainda destacou, em sua exposição de motivos, um dado dos mais importantes: a de que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, qualquer proibição para o uso de qualquer símbolo religioso em qualquer ambiente de órgão do Poder Judiciário.

Em março de 2011, em prosseguimento a esse processo da Procuradoria Geral dos Direito dos Cidadãos, foi a vez do cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Odílio Scherer, testemunhar a favor da manutenção dos símbolos religiosos nas repartições públicas. Em depoimento no Tribunal Regional Federal, ele disse não acreditar que um determinado símbolo religioso possa ser ofensivo a quem não professa aquela fé, conforme alegação do autor do pedido da ação, o engenheiro Daniel Sottomaior Pereira, que se declara ateu: – O fato de a maioria da população ser católica (73%, de acordo com o censo de 2000), culturalmente justifica a presença desses símbolos cristãos, afirmou o cardeal. O religioso também considera legítimo o Estado custear a manutenção dos símbolos religiosos em suas repartições “em respeito aos anseios dos representados”.

Segundo a reportagem de Keila Cândido, publicada na revista Época, em 15.03.2011 (Dom Odilo depõe na Justiça Federal a favor dos crucifixos nas repartições públicas), apesar de o cardeal defender a exposição de crucifixos em locais nobres, como plenários, ou em áreas de atendimento ao público, como salas de espera e saguões de entrada, ele reconheceu que a presença de um símbolo muçulmano em um hipotético julgamento “poderia causar preocupação em virtude da inexistência de uma tradição muçulmana no Brasil”.

Pluralismo religioso no Tribunal do Rio

No Rio de Janeiro, o atual presidente do Tribunal Regional Eleitoral, o desembargador Luiz Zveiter, também provocou polêmica quando no exercício da presidência do Tribunal da Justiça do estado (2009/20010) mandou retirar o crucifixo que estava na sala principal do órgão e transformou a capela existente em um espaço de culto ecumênico. De ascendência judaica e Grão-mestre da Grande Loja Maçônica do Estado do Rio de Janeiro por dois mandatos (seu pai, Waldemar Zveiter é o atual Grão–Mestre pela terceira vez e foi ministro do Superior Tribunal de Justiça, de 1989 a 2001), a atitude de Zveiter agradou a maioria dos 25 desembargadores do Tribunal, muitos deles evangélicos e espíritas. A medida não atingiu os juízes dos tribunais que continuaram com autonomia para manter ou retirar as imagens referentes à sua religião.

No discurso de posse, Zveiter foi incisivo quanto a sua disposição de atender a um consenso geral: “A toga do Juiz deve ter o talhe da sociedade. Deve seguir o modelo querido pelo povo, de modo a expressar, em seus procedimentos, a justiça social.” Na ocasião a Arquidiocese do Rio se manifestou desfavoravelmente à providência adotada, dizendo que as medidas deveriam ser vistas com cautela para que não contribuíssem para a intolerância religiosa (revista Consultor Jurídico, de 03.02.2009).

Dois anos depois, uma outra situação do gênero passou despercebida pela grande imprensa, mas foi bastante noticiada pelos sites judaicos. Indicado pela presidente Dilma Rousseff, em fevereiro de 2011, para ministro do Supremo Tribunal Federal, o carioca de ascendência judaica, Luiz Fux, instalou um símbolo religioso judaico, a mezuzá (umbral, em hebraico), na porta de seu gabinete, em Brasília. Constituindo-se em um pequeno estojo que abriga em seu interior um pergaminho que contém duas passagens bíblicas manuscritas em hebraico, o artefato é colocado no umbral direito da porta com a função de proteger as pessoas que habitam aquele local e evitar infortúnios. Usado principalmente nas portas de entrada dos lares das famílias judaicas e em alguns estabelecimentos comerciais, a colocação desse símbolo religioso em uma dependência da mais alta Corte Jurídica do país provocou controvérsia entre os leitores da “Rua Judaica”, newsletter de Osias Wurman, jornalista e cônsul honorário de Israel no Rio de Janeiro.

Com uma visão humanista do Direito e da Justiça, Fux reiterou seu posicionamento ao ser sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal. Aprovado por unanimidade pelos 23 senadores integrantes da CCJ, o novo ministro destacou que a Constituição Federal é a fonte de todas as leis, mas que “a Justiça é algo que não está só na lei”, porque “também depende da sensibilidade, da humanidade do magistrado”. Segundo Fux, “o Direito vive para o homem, e não o homem para o Direito” e que as soluções devem ser humanas. “A justiça tem que ser caridosa e a caridade tem que ser justa”, afirmou.

Bento XVI vê a religião marginalizada da vida pública

Em 2010, em visita a Londres, o Papa demonstrou preocupação com o que classificou de “crescente marginalização da religião, especialmente do cristianismo, em alguns lugares, inclusive em nações que outorgam uma grande ênfase à tolerância”. Falando no Westminster Hall do Parlamento britânico, Bento XVI afirmou que “há alguns que desejam que a voz da religião se silencie ou pelo menos que se relegue à esfera meramente privada”.

O pontífice disse ainda que os cristãos que desempenham um papel público não deveriam agir contra a sua consciência, ainda que muitos sustentem que às vezes, com a intenção de suprimir a discriminação, lancem mão do uso da razão prática. O Papa lembrou que os princípios éticos nos processos democráticos não devem ser regidos apenas por meros consensos sociais, pois resultarão em estruturas frágeis. - Sem a ajuda corretiva da religião, a razão pode ser também presa de distorções, como quando é manipulada por ideologias, sublinhou. “O papel da religião consiste justamente em ajudar a purificar e iluminar a aplicação da razão à descoberta de princípios morais objetivos” (agência Zenit, em 17.09.2010).
Pensadores contemporâneos defendem neutralidade religiosa

De acordo com os mais recentes estudos de contextos sociais, nas sociedades modernas as pessoas têm de assumir e cumprir diferentes papéis em diferentes domínios da vida (família, cidade, classe, nação ou povo) que podem entrar em conflito uns com outros. A questão que se apresenta é de como a pessoa que se sente pertencendo a uma comunidade familiar e religiosa pode permanecer sendo a mesma e única pessoa diante de visões e exigências contrárias. De que maneira é possível conciliar a “identidade do eu” - que está vinculada de maneiras diversas a várias comunidades e associações constituídas - com a pessoa “sujeito de direito” de uma comunidade política de normas jurídicas.

A separação entre os princípios universais e as concepções éticas privadas, com a priorização do justo e imparcial, é defendida pelo filósofo norte-americano Thomas Nagel (The Possibility of Altruism/1970). Professor de Filosofia e Direito na Universidade de Nova York, Nagel, de 73 anos, julga imoral forçar alguém a compartilhar um fim sobre o qual não está convencido, mesmo quando a pessoa que exerce essa imposição esteja convicta de que isso seria vantajoso para o outro. “É ilegítimo recorrer à verdade de uma concepção ética para justificar uma coerção jurídica.” Nagel defende que as pessoas tenham um padrão elevado de objetividade ao assumirem um ponto de vista “universal” e “impessoal”, e que procurem distinguir o que é “crença pessoal” e “verdade”, mesmo diante de suas próprias convicções éticas.

A respeito, o alemão Rainer Forst, 47, doutor em Teoria Política e professor na Universidade Goethe, em Frankfurt, ressalta que existe uma diferenciação entre a pessoa ética e a pessoa de direito. “Preceitos jurídicos e normas morais têm a pretensão de serem válidos para todos, não importando as concepções éticas que as pessoas adotem. Em contraposição, os valores éticos são válidos apenas para os indivíduos que se identificam com esses valores como parte de suas identidades e de sua história pessoal.”

Na obra “Contextos da Justiça” (1994), Forst assinala que o Direito deve ser eticamente “neutro” em seu modo de validação, a fim de que ele mesmo não prescreva determinados “valores” como bens superiores que não podem ser justificados de modo recíproco e universal. Ele chama a atenção ainda para o fato de que uma comunidade política somente pode ser integrativa num sentido abrangente quando ela não absolutiza política e juridicamente uma determinada tradição ético-cultural.

A neutralidade ética do Direito também é defendida pelo norte-americano Bruce Akerman, 67, conceituado professor de Direito Constitucional e Ciências Políticas da Universidade de Yale (Connecticut-EUA). No livro “Social Justice in the Liberal State” (1980), ele assinala: “Nenhuma razão é uma boa razão quando exige que o dono do poder afirme que sua concepção do bem é melhor ou superior do que qualquer outra afirmada por seus concidadãos.”

Em tempo: A presidente brasileira Dilma Rousseff – que estudou em escola de freira e assume que é católica -, em sua primeira semana no Palácio do Planalto também foi motivo de polêmica ao retirar de seu gabinete o crucifixo e a bíblia. No dia seguinte à notícia, a Secretaria de Comunicação da Presidência informou que o crucifixo pertencia ao ex-presidente Lula, que havia recebido de um artista português, logo no início de seu mandato. Em relação à bíblia, a nota à imprensa afirmava que o livro permanecia em uma sala contígua ao gabinete, sobre uma mesa, onde a presidente encontrou ao chegar ao palácio.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Houve um tempo no Egito - A vida de Henri Curiel

por Sheila Sacks

(atualizado em 2015)


A menos de dois quilômetros da Praça Thair (libertação, em árabe), principal palco dos protestos que resultaram na queda do presidente Hosni Mubarak, em 11 de fevereiro, a ilha verde de Zamalek, com vista sobre os dois afluentes do Nilo, ainda é uma das regiões mais elegantes e aprazíveis do Cairo. Em suas ruas arborizadas se alinham confortáveis residências de classes abastadas, modernos hotéis cinco estrelas, suntuosas embaixadas e movimentados cafés, livrarias, teatros e museus. Esse oásis turístico que passou ao largo dos conflitos que sacudiram o Egito nos primeiros meses de 2011, guarda histórias centenárias por trás das imponentes fachadas das poucas mansões remanescentes das primeiras décadas do século 20. Época em que a nobreza egípcia e a oficialidade britânica frequentavam os salões restritos do Turf Club, jogavam tênis e golf no elitista Sporting Club, e eventualmente eram encontradas em esticadas noturnas no Casino Badia.

Hoje cercado por grades de ferro, o majestoso palacete de 17 quartos construído pelo banqueiro judeu sefardita Daniel Nessim Curiel, em meados de 1930, abriga a embaixada da República da Argélia no endereço Brazil Street nº 14. Entretanto, há mais de 80 anos, quando a Villa Curiel foi projetada na então Hassam Sabry`s Street, suas espaçosas dependências eram ocupadas pela jovem Zefira, esposa de Daniel – que ficou cego aos três anos- e seus dois filhos, Raoul e Henri. Havia um salão de música, outro salão para a coleção de moedas raras do dono da casa e um segundo pavimento de onde se podia contemplar o esplendor do Nilo. A residência servida por uma dezena de empregados estava sempre repleta de convidados, mas raramente oriundos da comunidade judaica. E em 1937 viviam 63.500 judeus nas cidades de Cairo e Alexandria.

Miséria “sem limites” dos egípcios ainda impressiona

A família Curiel havia sido expulsa da Espanha pela Inquisição e alcançado o Egito no final do século 19, via Portugal e depois Itália. O caçula Henri, nascido em 1914, apesar de pertencer a segunda geração dos Curiel no Egito, tinha a nacionalidade italiana e foi educado em um colégio jesuíta francês. Ele cresceu em um Egito ocupado pelos britânicos e tiranizado por uma monarquia feudal, e ainda jovem voltou-se para o marxismo. Porém, coube a ele suceder o pai na direção do banco, enquanto o irmão Raoul seguia para estudar em uma universidade na França. Por sua vez, a mãe de Henri era dona de uma livraria que divulgava autores socialistas, ponto de reunião da intelectualidade egípcia antifascista.

No livro “Um homme à part” (1984), o jornalista e escritor Gilles Perrault  conta que Henri conheceu a tragédia dos camponeses egípcios ao visitar as propriedades de sua família, no delta do Nilo. “Foi na companhia de Rosette Aladjem, que mais tarde se tornaria a sua esposa, que Henri Curiel descobriu a miséria sem limites do povo egípcio. O trabalho de um homem valia menos do que o serviço de uma mula. Crianças de 7 a 13 anos trabalhavam nas fábricas de algodão, em meio à poeira sufocante, sob o jugo de feitores. A esperança de vida girava em torno dos 27 anos e doenças como a tracoma e a malária devastavam a população.”

Situação de extrema pobreza que lamentavelmente ainda persiste no século 21, conforme descrição do jornalista Samy Adghirni, em reportagem para a Folha de São Paulo (01.02.2011). Destacando que parte dos egípcios mais pobres se manteve alheia aos recentes protestos “preocupada só em sobreviver”, o enviado do jornal ao Cairo visitou uma favela assentada em meio a um cemitério, com milhares de pessoas se amontoando em barracos erguidos nos vãos dos túmulos. Sem dinheiro para pagar aluguel, famílias inteiras foram transformando, ao longo do século 20, o cemitério de Majauirun em um labirinto de ruelas onde cada quarteirão é composto por túmulos coletivos. Uma tragédia social que pune um país em que 40% da população ganha menos que 2 dólares ao dia.

A luta por um Egito independente

Em 1943, vivendo sob a monarquia do rei Farouk, Henri Curiel funda o Movimento Egípcio de Libertação Nacional – depois Movimento Democrático de Libertação Nacional (Hadetu) – que vem a se tornar a maior organização comunista do Egito. Os acontecimentos no país durante a 2ª Grande Guerra, com parte da sociedade egípcia se aproximando dos nazistas em reação ao domínio britânico, mostram a Curiel que o anseio por uma pátria independente muitas vezes conduzem as pessoas por caminhos tortuosos.

Decide permanecer no Cairo, apesar de uma grande fatia da comunidade judaica lotar os trens rumo a Jerusalém, atemorizada com a possível invasão dos áfricakorps do general Rommel (a força expedicionária nazista que combatia no Norte da África). Ele adquire a nacionalidade egípcia e começa a aprender o árabe. Mas a derrota egípcia na primeira guerra árabe-israelense, em 1948, muda o seu destino. Centenas de comunistas são presos e Curiel vai para a prisão de Huckstep, onde cumpre pena por 18 meses.

Para o seu companheiro de partido, Raymond Stambouli (1923-2004), a guerra de independência de Israel forçou os comunistas judeus egípcios a se confrontar com a sua identidade e a arcar com as conseqüências políticas desse fato. “A guerra na Palestina pôs fim ao sonho. Nós nos considerávamos egípcios, ainda que muitos nos vissem como estrangeiros. Porém, agora, não éramos estrangeiros, mas judeus, o inimigo, uma potencial quinta coluna. Nenhum de nós havia previsto isso.”


Em 26 de agosto de 1950, Curiel perde a cidadania egípcia e é colocado à força em um navio rumo à Europa. Expulso do país, ele se transforma em um exilado político para o resto da vida. “Ele foi o pai do comunismo egípcio”, escreveu Mohamed Sid-Ahmed, em 1998, no diário de maior circulação do país – Al-Ahram. Escritor, jornalista e por muitos anos editor de política do jornal, Sid-Ahmed (falecido em 2006) lembrou que apesar de Curiel ter sido expulso do Egito, “ele sempre esteve envolvido com os problemas egípcios, sua política interna e o conflito árabe-israelense.”

Ao lado dos argelinos, na Guerra da Independência

Deportado para a Itália com outros militantes expulsos do país, Curiel acaba por se instalar em Paris e reúne em uma associação – o Grupo de Roma - os judeus egípcios comunistas exilados. Tempos depois, se torna um dos homens-chave da Frente Nacional de Libertação da Argélia (FLN), movimento fundado em 1954, no Cairo, por Ahmed Ben Bella, líder da revolução e primeiro presidente da República da Argélia. No Egito, o coronel Gamal Abdel Nasser (1918-1970), que havia deposto Farouk em 1952, fecha as portas a Curiel, não obstante manifestar apoio ao FLN. Impedido de retornar ao Egito, Curiel doa a mansão de Zamalek para sede provisória do governo argelino no Cairo.

Entre 1954 e 1962, no decurso da guerra de independência argelina contra a França, cabe a ele disponibilizar recursos, documentos, cobertura e treinamento aos oficiais e estudantes anticolonialistas, apoiado por um esquema subterrâneo onde se misturam grandes somas não identificadas provenientes da Suíça, a rede árabe do Kremlin, os partidos comunistas europeus, intelectuais socialistas e sacerdotes cristãos.

Em 1960, após interrogatório sobre as suas atividades na FLN, é preso pelo serviço de segurança interno francês (DST) e permanece dois anos encarcerado na prisão de Fresnes, na periferia de Paris. Com o fim da guerra da Argélia é solto e funda a organização Solidarité, de apoio aos movimentos de libertação nacional em países antidemocráticos do Terceiro Mundo.

O militante político de esquerda e jornalista israelense Uri Avnery   fundador do movimento Gush Shalom (Bloco da Paz) e que na Guerra da Independência de Israel, em 1948, foi membro da organização paramilitar Irgun, conheceu Curiel em Paris, no final da década de 1950, quando a guerra na Argélia estava no auge. Curiel sonhava em estabelecer uma conexão argelina-israelense que Avnery considerou totalmente utópica, já que os judeus argelinos portavam identidade francesa e se identificavam completamente com o regime colonialista francês.

No artigo “The silent idealist”, publicado na revista Le Monde Diplomatique (1998), Avnery observa que Curiel era um idealista que jamais se deixou render. “Ele era determinado, jamais levantou a voz e nunca se desesperou. Apesar das inúmeras decepções, ele não desistia. Não se deixava levar pelas emoções e nem permitia que problemas pessoais interferissem em suas decisões. Para mim, Curiel foi um modelo de político idealista. Através de seu exemplo pessoal, ele me ensinou determinação, paciência e perseverança.”

Um dos companheiros de Curiel no “grupo de Roma”, Joseph Hazan, lembra que o fato de ambos terem nascido em um país com um sistema de produção extremamente cínico, em que a exploração do homem pelo homem atingira uma situação degradante, provocou em Curiel uma reação instintiva que permeou sua forma de ser e sua consciência para sempre. “Ele nunca se esqueceu que foi a miséria do povo egípcio que o levou à política.”

Hazan que militava no partido de Curiel tinha nacionalidade francesa e acolheu o amigo quando este procurou abrigo em Paris. Infelizmente, a onda de nacionalismo que se implantou na Argélia, após a saída dos franceses, atingiu em cheio a comunidade judaica, com a edição de decretos discriminatórios, confiscos e perseguições. Mais de 130 mil judeus nascidos na Argélia e portadores de cidadania francesa imigraram para a França e Israel, reduzindo a pó a tradicional comunidade sefardita (judeus originários de Portugal e Espanha) que veio a se formar, a partir do século XIV, em Argel.

Pedindo dinheiro e armas para derrubar o regime de Nasser

De acordo com André Marty (1886-1956), político francês que foi secretário do Partido Comunista na França e chefe das Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola (1936-39), Curiel fez o possível para derrubar Nasser na década de 1950. “Em repetidos encontros com líderes de partidos comunistas europeus, Curiel insistia em solicitar armas e dinheiro para destituir Nasser”, relatou. A crise do Canal de Suez (1956-1957) que envolveu o Egito, Inglaterra, França e Israel havia resultado em mais um traumático êxodo para os judeus egípcios. Vinte e cinco mil foram expulsos, centenas tiveram a prisão decretada e bens e propriedades foram confiscados.

No livro “The Jews of Egypt, 1920-1970”, o professor Michael M.Laskier, do Departamento de História do Oriente Médio da Universidade Bar-Ilan, de Tel Aviv, descreve a dolorosa situação: “A expulsão e fuga tiveram início em larga escala com centenas de pessoas aglomerando-se nos escritórios do rabinato, consulados e embaixadas, procurando conselho, assistência e meios de escapar. O porto de Alexandria e o aeroporto do Cairo ficaram abarrotados de refugiados deixando o país. As dificuldades nos pontos de embarque, com os funcionários do governo confiscando arbitrariamente qualquer coisa que julgassem valiosas, fizeram com que muitas pessoas, diante da confusão, partissem com apenas algumas roupas nas bagagens.” Para o American Jewish Congress (AJC), a atitude de Nasser, em certo sentido, é comparável a de Hitler, pois o intento do coronel egípcio foi destruir a antiga comunidade judaica existente no país, privando-a de seus direitos e de meios de subsistência.

Uma central de ajuda a refugiados e revolucionários

Em 1962, aos 48 anos e após sair da prisão de Frasnes, Curiel amplia suas atividades até então centradas no Egito e na independência da Argélia. Através da organização Solidarité ele promove ajuda financeira e estratégica aos movimentos anticolonialistas de países da África e aos grupos que lutavam contra a Grécia dos coronéis e as ditaduras na Espanha (do general Francisco Franco), Portugal (Oliveira Salazar) e Chile (Augusto Pinochet).

A rede baseada em Paris contava com militantes de origens e filiações diversas, clérigos protestantes, padres católicos, sindicalistas, intelectuais, professores, socialistas e membros do partido comunista. Os seus filiados davam abrigo e proteção aos revolucionários de outras partes do mundo que, em fuga, chegavam a Paris. A organização também funcionava como uma central de prestação de serviços voltada para os ensinamentos das múltiplas técnicas de sobrevivência e clandestinidade, os quais os militantes, expostos à repressão violenta e sofisticada de estados opressores como a África do Sul do aparthaid, necessitavam dominar para permanecerem vivos.


Outro foco de atenção no curso político de Henri Curiel estava direcionado para o conflito árabe-israelense. Ele manteve contato com figuras proeminentes do Partido Trabalhista de Israel e com os membros do “Israeli Council for Israeli-Palestinian Peace” (ICIPP), em busca de um caminho de entendimento que chegasse à Organização para a Libertação da Palestina (OLP).


Perrault afirma que Curiel estava convencido de que era possível promover um diálogo entre as duas partes. “Em 1976, ele organiza com seus amigos judeus de origem egípcia, exilados na França, um encontro clandestino entre o general da reserva israelense e pacifista Matti Peled (1923-1995), e Issam Sartawi (assassinado em Portugal, quando participava do encontro da Internacional Socialista, em 1983), antigo terrorista convertido ao processo de paz e amigo de Yasser Arafat.” Entretanto, na mesma época, uma reportagem no semanário Le Point acusa Curiel de ser o cabeça de uma rede terrorista conectada com a KGB (serviço secreto da antiga União Soviética).

A matéria assinada por Georges Suffert equivale a uma condenação capital. “Curiel abominava o terrorismo, considerava uma falta de bom senso político e uma monstruosidade humana. A acusação foi frívola, mas mortal”, revela Perrault. “Uma campanha na imprensa o fulminou e medidas administrativas baixadas pelo governo francês incluíram prisão domiciliar na cidade de Digne, nos Alpes franceses. Três meses depois, quando as acusações se mostraram infundadas, as restrições foram suspensas, mas o caminho estava aberto para os inimigos de Curiel.” (Henri Curiel, citizen of the third world, de Gilles Perrault - 1998)

Assassinato não esclarecido na Rive Gauche

Curiel foi assassinado com três tiros por dois pistoleiros de mãos enluvadas no elevador de seu apartamento, na Rive Gauche de Paris, em 4 de maio de 1978. No dia seguinte, a organização Delta, uma rede da extrema direita francesa composta de nostálgicos da Argélia francesa, reivindicou a autoria do crime. Mas a “Delta”, esquadrão de extermínio dos extremistas de direita francesa durante a guerra da Argélia estava extinta há mais de 15 anos.

Contudo, ainda que passado tanto tempo após a sua morte, as autoridades francesas não conseguiram elucidar o caso. Existem suspeitas que levam a radicais argelinos, donos de terra que perderam suas propriedades na Argélia; ao serviço secreto da África do Sul, que considerava Curiel um perigoso inimigo; ou mesmo ao terrorista palestino da al Fatah e assassino profissional Abu Nidal, mercenário a soldo da Síria e da Líbia e responsável por centenas de atentados a alvos israelenses e árabes (morto no Iraque em 2002). Quatro meses antes da execução de Curiel, o representante em Londres da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Sa’id Hammami, que participava com Curiel das iniciativas em prol de uma coexistência pacífica entre árabes e judeus, também fora assassinado.

O mistério da morte de Curiel foi tema de um documentário apresentado na TV francesa, em setembro de 2008. “Henri Curiel; un crime politique” explora a pista que imputa às autoridades francesas a responsabilidade direta pelo assassinato de Curiel. Isso porque seus passos eram monitorados pelos serviços secretos da França e nem a polícia ou a justiça francesa levaram adiante a investigação. Ninguém foi interrogado ou detido. É o que reclama Alain Gresh, diretor adjunto de Le Monde Diplomatique (revista mensal publicada em 25 idiomas, inclusive português, com tiragem de 2,4 milhões de exemplares), no artigo “Henri Curiel:la piste française”. Especialista em assuntos ligados ao Oriente Médio e filho natural de Curiel, Gresh nasceu no Egito, em 1948, de mãe judia de origem russa. Educado por um egípcio copta (cristão), só soube da existência de seu verdadeiro pai aos 28 anos, quando já vivia em Paris.

Apesar de Curiel estar morto há décadas, sua figura carismática e seu trabalho solidário a favor da emancipação dos povos continuam a despertar interesse e admiração. Livros, filmes e artigos sobre o curso de suas atividades ainda confundem estudiosos e leitores pela diversidade de opiniões e pontos de vista. “A estranha carreira de Henri Curiel” , assim definida por Claire Sterling (1919-1995), em seu livro a “A rede do terror” (1981), também mereceu um longo e polêmico capítulo.

Segundo a jornalista norte-americana que foi correspondente na Europa das revistas Life e The New York Times Magazine, nos 27 anos em que viveu na França, Henri Curiel constou nos arquivos do serviço secreto francês como o agente estrangeiro S531916, ligado à KGB. Todos os principais serviços ocidentais de contraespionagem tinham um dossiê a seu respeito, assegurava Sterling, e a confirmação veio em março de 1979 quando a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) registrou em seu relatório anual, de distribuição interna, na página 3, o seguinte obituário: “Revolucionários do mundo inteiro, inclusive terroristas, lamentam o assassinato de Henri Curiel, líder de uma organização de apoio sediada em Paris que fornecia dinheiro, armas, documentos, treinamento e outros serviços a dezenas de grupos esquerdistas.”

terça-feira, 8 de março de 2011

Xerifes urbanos contra os senhores do crime

por Sheila Sacks
Publicado no Portal da Federação Nacional dos Policiais Federais - FENAPEF

De tempos em tempos chegam à superfície ecos de supostas lambanças ocorridas nos subterrâneos da área da segurança pública em sua permanente batalha contra o crime organizado. Transitando por uma complexa rede de conexões que se interligam em voltagens diversas, se isso é possível, agentes públicos responsáveis por manter a ordem e a lei muitas vezes são levados a percorrer um intrincado e ambíguo sistema de alta tensão povoado de peças à margem da esfera oficial, mas nem por isso menos capazes de provocar curto-circuitos e panes avassaladoras à estrutura e hierarquia organizacionais estabelecidas.


As inevitáveis notícias que dali surgem, em um primeiro momento, e que a mídia transfere ao público, tendem a ganhar novas conotações e desdobramentos com o passar dos dias, muito deles contraditórios em relação aos primeiros publicados, em razão da entrada de outros dados vindos de fontes diferentes. Entretanto, o imediatismo e a dinâmica que regem o jornalismo diário muitas vezes interferem e precipitam decisões no âmbito administrativo do Estado, preocupado em dar por encerrado o episódio. Mas aí o estrago está feito e, com verdades reveladas ou não, sobram chamuscados a instituição e os personagens envolvidos.


Muito antes do fenômeno Tropa de Elite, filme brasileiro de 2007 construído a partir do livro Elite da Tropa (escrito por ex-policiais e um ex-secretário de Segurança), que enfoca as contradições morais e éticas que permeiam as ações de um batalhão de operações especiais no Rio de Janeiro, um seriado de TV de temática semelhante alcançava picos de audiência e arrebatava os mais importantes prêmios da televisão norte-americana. Isso, nos idos de 2002, quando o canal a cabo FX, da Fox Entertainment Group, lançou sua primeira série original, The Shield (O distintivo, em tradução livre), um trabalho audacioso assinado pelo jovem roteirista Shawn Ryan (no Brasil, o seriado foi apresentado no canal pago AXN).


Pressão da mídia e interesses políticos


À época com 36 anos, Ryan se inspirou em uma divisão do Departamento de Polícia da cidade de Los Angeles para mostrar, de forma intensa e incisiva, o dia-a-dia de cão de uma delegacia policial e de um eficiente e seleto grupo de profissionais que se utiliza de métodos violentos e pouco convencionais no combate ao crime e ao tráfico de drogas. Por sete anos e ao longo de 88 episódios, os telespectadores puderam acompanhar o périplo tenso e angustiante de policiais em mortificantes conflitos com os princípios morais e os valores éticos representados por suas insígnias e a realidade cruel e impiedosa que embrutece seus atos, congela seus sentimentos e conspurca de fel suas vidas nos âmbitos profissionais e familiares.


O fictício distrito de Farmington constituiu-se no perfeito microcosmo de centenas de centros urbanos existentes no planeta onde traficantes, viciados, aliciadores, informantes, denunciantes, desempregados, prostitutas e degenerados convivem em bolsões de pobreza ao lado de crianças e jovens provenientes de famílias desestruturadas pelo consumo de drogas e pelo subemprego que avilta e corrompe. Em outro patamar, atuando sobre esses conglomerados humanos, profissionais pagos pelo Estado para gerenciar a aplicação das leis e assegurar a ordem social se veem às voltas com situações em que o bom senso e o padrão regular de ações se revelam insuficientes ou inócuos. Fustigados por interferências de fatores díspares, que vão desde a pressão da mídia até ao assédio de interesses políticos e econômicos, os chamados homens da lei travam uma dura e dúbia batalha interior e que, no cômputo final, se revela, na maioria das vezes, desesperada e solitária.


A influência das redes ilícitas


No livro Ilícito (2005), o analista político Moisés Naim, 59, editor-chefe por mais de 10 anos da conceituada revista Foreign Policy, identifica as transformações tecnológicas e a abertura de mercados ocorridas nos anos 90 como fatos marcantes que propiciaram o advento de um tipo de crime mais evasivo e poderoso, que entrelaça "intimamente" redes ilícitas a atividades lícitas do setor privado, da área pública e do sistema político. "Eventos políticos como a queda do muro de Berlim, a derrocada da União Soviética, a multiplicação de nações que se democratizaram, a política liberal e o livre mercado, tudo isso associado à introdução de novas tecnologias, favoreceram não só a expansão do crime global como, graças à sua capacidade de acumular lucros colossais, torná-lo também uma poderosa força política."


Nascido em Caracas, Naím foi ministro da Indústria e de Comércio da Venezuela, diretor do Banco Central e diretor-executivo do Banco Mundial na década de 1990, antes de fixar residência nos Estados Unidos. Doutor em Ciências Econômicas pelo Massachusetts Institute of Technology, ele é autor de 10 livros sobre economia e política internacional e atualmente mantém uma coluna semanal no jornal espanhol El País, reproduzida em diversas mídias da América Latina, inclusive no site Observatório da Imprensa. Best-seller traduzido para 18 idiomas, o livro, que apresenta um longo subtítulo – "O ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global" – serviu de base para o documentário Illicit: The Dark Trade, produzido pelo canal National Geographic e premiado com o Emmy Award de 2009.


Entre outras constatações, Naím observa que os criminosos globais mudaram o mundo, ainda que os governos custassem a perceber o teor dessas transformações. Ele alerta para o fenômeno: "À medida que as redes ilícitas se expandem em direção a empresas privadas lícitas, partidos políticos, parlamentares, governos locais, grupos de comunicação, tribunais, exército e setores beneficentes, elas assumem uma influência poderosa – e, em certos países, sem igual – nas questões de Estado."


Uma máquina gigantesca


Tudo começou no início dos anos 1990, quando o comércio ilícito global criou os mesmos mecanismos que as organizações terroristas internacionais – como a Al-Qaida e a Jihad Islâmica – já utilizavam. As hierarquias fixas foram substituídas por redes descentralizadas; líderes autoritários, por agentes e células múltiplas relacionados e dispersos; linhas rígidas de controle, por transações em constante transformação, de acordo com as oportunidades. Segundo Naím, em países em desenvolvimento e naqueles que fizeram a transição do comunismo, as redes criminosas frequentemente constituem o capital investido mais poderoso que confronta o governo. E, em alguns países, os traficantes e seus sócios controlam os partidos políticos, dominam importantes meios de comunicação, são os maiores filantropos por trás das organizações não-governamentais (ONGs) e tornam-se "o grande empresariado" nacional.


Há ainda a internet. Para o crime organizado, um presente do céu. Naím ressalta que essa tecnologia é de um valor "imenso" para os traficantes e o comércio ilegal. "Aqueles que se envolvem em transações ilícitas, comunicam-se uns com os outros fazendo uso da privacidade e do anonimato de contas de e-mail, alteradas com frequência e acessadas de cibercafés e outros lugares impenetráveis. A internet permite que os traficantes se comuniquem reservada e eficientemente a fim de operar quantas transações sejam possíveis, tanto no espaço virtual quanto no real, e cria novas formas de movimentar e ocultar bens."


Maior mercado mundial de cocaína, correspondendo a quase 40% do total de consumidores da droga, os Estados Unidos há duas décadas vêm combatendo esse tipo de ilícito dentro e fora de suas fronteiras. Naím cita Washington como o centro da guerra contra as drogas, com milhares de funcionários federais contratados exclusivamente para combater o tráfico e impor a lei. São agentes da DEA (Drug Enforcement Administration, agência antidrogas dos Estados Unidos), funcionários da secretaria antidrogas da Casa Branca, especialistas em drogas do ICE (Immigration and Customs Enforcement – Departamento de Imigração e Alfândega), policiais federais, serviço secreto, FBI e a Guarda Costeira, para citar alguns. Uma máquina gigantesca que consome 20 bilhões de dólares anuais apenas em nível federal, na luta contra o uso e o comércio das drogas. No entanto, ressalta o analista, a poucos minutos desses escritórios estão os 60 pontos de venda de drogas que Washington abriga a céu aberto e que atendem os moradores de classe média, além de revendedores e intermediários que levam o produto para bairros ainda mais abastados.


O lucro ilícito gerando atividades legais


Em abril de 2009, poucos meses após a sua eleição, Barack Obama visitou o México para conversar com o presidente Felipe Calderón sobre a intensificação no combate ao comércio das drogas e à venda ilegal de armas vindas dos EUA que abastecem os cartéis mexicanos. Dois anos depois, amargando mais de 34 mil mortes na guerra contra o narcotráfico, sendo 15 mil somente em 2010, Calderón criticou as agências do governo norte-americano, como CIA e DEA, por sua suposta incapacidade de colaborar na guerra contra o narcotráfico. "A realidade é que eles não se coordenam. São rivais", disse Calderón (agência Reuters, em 03/03/2011).


Cerca de 30 mil agentes são disponibilizados pelo governo dos EUA para patrulhar os 3.169 quilômetros que separam os dois países. Mas tal aparato não inibe os fora da lei. A respeito, o sociólogo e político suíço Jean Ziegler reproduz, em seu livro Les Seigneurs du Crime (1999), o comentário de um procurador de Justiça de Berlim: "Os senhores do crime organizado são hoje em dia os únicos autênticos cosmopolitas. São cidadãos do mundo. Isso porque as fronteiras detêm a ação de juízes, mas não a dos criminosos."


Ziegler, de 77 anos, ganhou notoriedade com a obra A Suíça, o Ouro e os Mortos – Como os Banqueiros Suíços Ajudaram a financiar a Máquina de Guerra Nazista, publicado em 1997.


As Nações Unidas calculam que existem mais de 200 milhões de consumidores de drogas no mundo, o que gera um negócio de mais de 270 bilhões de euros por ano. Em entrevista ao jornal El País, o ex-primeiro-ministro espanhol Felipe Gonzáles analisa o tema: "Se você liga a droga aos negócios associados com o tráfico de armas e de pessoas, aumenta esse volume de negócio. E não falamos do que se pode fazer com esse dinheiro: uma pizzaria, um hotel..., legais. A lavagem de dinheiro negro entra no aparato de circulação do sistema e proporciona emprego e gera atividades econômicas que não são ilegais."


Costa brasileira favorece tráfico


Moisés Naím denomina de "buracos negros geopolíticos" os lugares onde as redes de tráfico "vivem" e prosperam, lembrando que na astrofísica essas regiões do universo estão fora das tradicionais leis da física newtoniana. Ou seja, nesses locais não se aplicariam as formas tradicionais de pensamento sobre política mundial e relações internacionais. Um exemplo seria a cidade de Málaga, na Costa do Sol da Espanha, conhecida região turística. De 2000 a 2005 houve um aumento de 1.600% na construção de casas particulares, apesar da localidade ter uma das mais altas taxas de desemprego e um dos mais baixos índices de renda da Espanha. O motivo se encaixaria na explicação dada por um chefe de polícia espanhol ao jornal inglês Financial Times: "Os criminosos são os empresários de hoje... Eles querem boas escalas para suas viagens, um sistema bancário eficiente, um clima ameno e anonimato. Conseguem tudo isso em Málaga."


A reportagem de Leslie Crawford ("Hot money pays for boom on Spain´s Costa del Crime") revela os resultados de uma ação policial, realizada em 2005, que envolveu agentes de sete países e que constatou a presença de 550 grupos criminosos operando na Espanha. No caso de Málaga, o crime organizado lavava o dinheiro ilegal através da indústria da construção civil, que teve uma expansão extraordinária. "É talvez a mais importante força motriz por trás da indústria da construção", afirmou Per Stangeland, responsável pela cadeira de Criminologia da Universidade de Málaga. Em relação ao Brasil, documento elaborado pelo Departamento de Estado norte-americano e divulgado pela mídia em 3 de março de 2011 aponta o país como o maior consumidor de drogas da América do Sul (900 mil de usuários de cocaína) e com o consumo em crescimento. O Paraguai continua sendo o maior fornecedor de maconha para o Brasil, cujo cultivo local da droga está concentrado na região Nordeste.


O relatório anual "Estratégia para o Controle Internacional de Narcóticos" indica que o Brasil está aberto ao trânsito de pequenos aviões da Colômbia (maior produtor mundial de cocaína) e Peru (maior produtor mundial de coca, matéria-prima da cocaína), com destino à Venezuela e Suriname (principais áreas de saída da América do Sul com carregamentos de drogas ilícitas para Europa) e começa a se mostrar como uma fonte importante no fornecimento de compostos químicos para a produção de cocaína. "O Brasil não só é o maior consumidor de drogas da América do Sul, mas também tem a costa mais extensa do continente e isto o transforma em uma rota de passagem inevitável para o contrabando de narcóticos rumo à Europa, África e em menor quantidade aos Estados Unidos", conclui o estudo. A costa brasileira tem 7.367 quilômetros de extensão.


Um submundo capaz de controlar nações inteiras


O Brasil também apresenta números significativos na venda ilegal de armas. Pesquisa divulgada pela Subcomissão de Armas do Congresso Nacional, em novembro de 2010, revela que quase a metade das armas que circulam no país é ilegal – 7,6 milhões de um total de 16 milhões de armas. Em seu livro sobre os cartéis do crime organizado, Jean Ziegler procura demonstrar que a progressiva institucionalização desse exército de criminosos representa o estágio supremo e a própria essência do modo de produção capitalista. Ele explica: as redes criminosas realizam a "maximização" do lucro, acumulam sua mais-valia a uma velocidade vertiginosa, criam oligopólios, a noção de contrato social lhes é estranha, agem no imediato e numa liberdade quase total e seus capitais atravessam as fronteiras cibernéticas do planeta sem qualquer obstáculo. Qual capitalista, pergunta Ziegler, em seu foro íntimo, não sonharia com tamanha liberdade, uma tal rapidez de acumulação, semelhante ausência de transparência e lucros dessa ordem?


Doutor em Direito e Ciências Econômicas, escritor, professor de Sociologia nas Universidades de Genebra e Sorbonne, em Paris, e membro do parlamento suíço por quase 20 anos, Jean Ziegler dedica a parte final do livro aos policiais e magistrados que em diversos países estão engajados no combate às redes criminosas. Segundo ele, nessa "guerra da liberdade", dentre todos os policiais que lutam contra o crime organizado, a figura do undercover agent (agente infiltrado), agindo sob identidade falsa e participando das atividades criminosas, é a mais ambígua e a mais difícil.


Entrevistando fontes policiais da Europa, Ásia e Estados Unidos, peritos, juízes, procuradores e diretores de serviços secretos, Ziegler chegou à conclusão de que esse tipo específico de policial é "um herói de nossa época". "Ele não é nem um delator nem um informante da polícia, explica. É um agente encoberto. Age sob identidade falsa e mantém as autoridades informadas sobre uma infração que está sendo cometida ou um projeto, enquanto se encontra ele mesmo infiltrado entre os delinquentes visados. Constitui-se uma arma decisiva na guerra contra os senhores sanguinários."


Enfim, na batalha crucial contra o tráfico global e as perversas variantes do comércio ilícito, ainda são os policiais que permanecem na linha de frente, sujeitos a sofrerem incalculáveis reveses e pesadas baixas, físicas e morais, em ações potencialmente arriscadas e limitadas pela hierarquia e a burocracia de Estado. "Frequentemente os agentes policiais fazem parte da engrenagem da máquina, mas não são o seu motor", atesta o venezuelano Moisés Naím, para quem o crime organizado é o outro lado da moeda da globalização. Um submundo com poder político e econômico capaz de controlar nações inteiras.