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segunda-feira, 12 de abril de 2010

Rosa dos tempos


por Sheila Sacks
Conto vencedor do concurso literário do clube Hebraica-Rio (2004)

O ano era 1993. O enviado do consulado olhava para a mulher a sua frente. Ela parecia surpresa diante dos cartões-postais sobre a mesa. Minutos antes, o homem tinha se apresentado, estendido um protocolo para que assinasse e entregue o pacote, agora aberto revelando o conteúdo.

A senhora gorducha de olhos claros e semblante sereno que se identificou como dona Rosa fez perguntas que não foram respondidas. O funcionário também não entendia o porquê daqueles postais estarem sendo devolvidos. A encomenda tinha sido despachada pelo governo do seu país, cruzado o oceano como correspondência consular e, aqui, carimbado para ser entregue em mãos. E só.

Passava das quatro da tarde e sombras irregulares manchavam a varanda. Dona Rosa acompanhou o homem alto de terno largo até o portão de saída. Há vinte anos trabalhava e morava naquela casa de idosos, rodeada de árvores centenárias, em um bairro distante do centro. Um emprego que gostava. Talvez porque tivesse crescido em uma instituição coletiva, com muita gente ao redor. Gente como a amiga Clara, que partiu em um navio de nome italiano, dez dias depois da Páscoa.

Os cartões-postais trazidos pelo funcionário de poucas palavras estavam endereçados à Clara. Eram dezenas de fotos de pontos turísticos do Rio. Anualmente, logo depois da Páscoa, Rosa enviava um ou mais cartões para Clara. Foi o combinado. Agora todos estavam estranhamente de volta a sua mesa. Sem explicação.

2

Em 1953, o Lar das Crianças era uma instituição que abrigava órfãos e filhos de refugiados judeus da 2ª Grande Guerra. Sustentado pela comunidade judaica do Rio, o Lar acolheu Clara e Rosa quando ambas tinham onze anos. Nascidas na Europa, as meninas logo se tornaram amigas. A ideia de ir embora do Rio surgiu quando Clara se deu conta de que teria poucas chances de se casar e formar uma família. Sua mãe vivia entre delírios e choques elétricos em um manicômio público e seu pai era alcoólatra.

Clara tentou convencer Rosa a partir com ela. A amiga era órfã. Os pais tinham morrido em um dos vários campos de concentração da Polônia. Mas Rosa não acalentava grandes sonhos. O espelho e o bom senso limitavam as suas ambições. Ficaria no Rio, trabalhando no Lar e ajudando as crianças menores.

Dez dias depois da Páscoa, no final de abril, Clara embarcou no navio Leonardo da Vinci para um porto da Itália. De lá seguiria com outros jovens para a terra santa. Tinha dezessete anos, um rosto bonito e o sagrado ímpeto dos que se lançam à jornada. Sem passado e bem longe do Rio, encontraria o marido que tanto ansiava.

Na véspera, Clara chorou ao descolar a foto desbotada do Pão de Açúcar da parede ao lado de sua cama-beliche. “Prometa que vai me mandar todo ano um postal do Rio”, pediu Clara à Rosa. Já no ano seguinte Rosa enviava uma imagem do Alto da Boa Vista. No verso escreveu: O Rio é muito legal. Puxa vida, como a saudade dói.

Ano após ano Rosa endereçou os postais à terra santa, com a mesma frase no verso. Era como fosse um código de paixão e amizade. Escolhia sempre as fotos mais encantadoras do Rio. Procurava nas livrarias, bancas de jornal e até em agências de turismo. Nem o fato de Clara levar meses para dar notícias a incomodava. A amiga estava casada com um homem de negócios e o tempo, do lado de lá do oceano, tinha outra dimensão.

Por sua vez Rosa namorou dois rapazes, se apaixonou, desiludiu-se, não casou. Muitos anos depois, beirando aos quarenta, ela foi convidada para trabalhar em uma casa de idosos. Sua experiência no Lar das Crianças foi lembrada. Aceitou a tarefa com alegria. Agora cuidaria dos velhinhos.

3

Nos primeiros dias de 1983 o oficial moreno com uma cicatriz no braço deu por findo o trabalho. Por algum tempo o processo dos postais do Rio ficou sobre a sua mesa. Em um país em guerra, assolado por ataques terroristas, qualquer fato inusitado levantava suspeitas. O envio sistemático de postais a partir de uma cidade da América do Sul, sempre na mesma data e com uma frase repetitiva por demais explícita, despertou a atenção do serviço de inteligência.

Peritos fizeram simulações de códigos tentando descobrir a mensagem que se escondia por trás da frase aparentemente inofensiva. Profissionais foram enviados à cidade praiana para investigar o autor da mensagem e seu possível envolvimento com algum grupo inimigo. A gerente atenciosa e boa praça da casa de idosos, conhecida como dona Rosa, teve seus passos monitorados e sua vida vasculhada. Tempos depois, o resultado final da delicada operação ficou registrado no volumoso processo encaminhado pelo oficial às patentes superiores.

4

O ano de 1954 havia trazido mudanças inesperadas e radicais. Foi o que pensou a tenente Clara ao abrir a caixa de correio e sentir sob os seus dedos a textura em revelo de um cartão. Dez dias tinham-se passado desde do término da semana da Páscoa naquela primavera de 1963 e mais uma vez recebia um postal de Rosa. Há muitos anos trabalhava em uma base militar, mas estava irremediavelmente cega. Uma granada havia explodido o jipe em que viajava com mais três companheiros, poucos meses depois de sua chegada. Sobrevivera por milagre.

Depois de recusar uma pensão vitalícia do governo Clara aprendeu a leitura e escrita braile e retornou ao exército. Sua vida, a partir de então, estava limitada àquele posto de apoio, em algum ponto isolado do deserto.

Após receber o primeiro postal do Rio mas impossibilitada de vê-lo, Clara decidiu que Rosa jamais saberia da tragédia. Naquele mesmo ano escreveu uma carta à amiga contando que o plano de encontrar um marido vingou. Estava casada com um rico negociante de tapetes.

5
Em 1999 a Páscoa trouxe melancolia à dona Rosa. Pela primeira vez em quarenta e cinco anos não saiu às ruas para procurar um postal. De fato, desde a visita do funcionário do consulado, há mais de cinco anos, a discreta e eficiente gerente do Lar dos Velhos tentava driblar a tristeza que se aninhava em sua alma. Comprava os postais e ensaiava enviar à Clara. Mas a possibilidade da amiga estar morta havia se transformado em certeza e os cartões se acumulavam na caixa de papelão embaixo de sua cama.

O ano de 2003 foi o derradeiro para dona Rosa. Ela morreu dez dias depois da Páscoa. Muitos velhinhos choraram. Seus poucos pertencentes foram divididos entre as ajudantes da cozinha. A coleção de postais foi encontrada por uma senhora voluntária que a mostrou ao diretor do asilo. O jovem advogado, sempre apressado em suas visitas e que já desconfiava da amiga fictícia de dona Rosa, não teve mais dúvidas. Recolheu os postais e os jogou no latão de lixo.

6

Do outro lado do Atlântico, Clara se despediu do mundo com a imagem de um Rio de Janeiro banhado em luz. Ela permanecera no convés do navio até o horizonte esconder o colar de prédios que pareceu afundar nas águas ondulantes do oceano. Nunca mais pode ver as belezas do Rio apesar dos postais de Rosa. Sua morte, em 1973, constituiu-se em um mistério. Simplesmente dormiu e não acordou. A correspondência com as fotos do Rio encontradas em sua caixa de correios provocou perplexidade. A chegada de mais postais depois de sua morte aguçou a imaginação. Mas a sigilosa operação levada a efeito por agentes muito bem treinados desfez o enigma. Na página final do processo, datado em 28 de março de 1983, o corregedor agastado com todo aquele mal-entendido escreveu: “A investigação está encerrada. O material analisado não tem restrição e a partir desta data está liberado. Que se devolva a quem de direito e que se faça cumprir a presente determinação imediatamente e de forma adequada.”

Já era noite quando o militar fechou a porta de seu gabinete. Lá fora, como lanternas mágicas, as casas se iluminavam para a ceia da Páscoa.