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quarta-feira, 28 de abril de 2010

Diferentes...nós?

por Sheila Sacks
publicado no site da Federação Israelita do Rio Grande do Sul - FIRGS
Contar vantagem só dá prazer a uma única pessoa: quem conta. Não sugere diálogo e sim um monólogo egocentrista que dificilmente encontra receptividade e simpatia em quem escuta.

Em relação as nossas qualidades e capacitação, nós judeus temos muito o que falar quando se trata de demonstrar em números e percentuais que alcançamos um patamar privilegiado na escala dos titãs em todas as áreas do saber humano. Vira e mexe aparecem artigos listando nossas fantásticas marcas no ranking dos melhores cientistas, físicos, médicos, escritores, compositores, arquitetos, músicos, pintores etc na atualidade e no passado, ainda que representemos uma minoria ínfima no bolo da população terrestre, algo em torno de 0,2%.

O inconveniente dessas comparações é que 99% delas são enxertadas em textos induzidos, produzidos e veiculados por nós, judeus, enquanto proprietários, diretores, funcionários ou colaboradores de rede de jornais, revistas, rádio, tv e demais mídias eletrônicas. Se para alguns pode parecer uma falta de tato para com aqueles que nos leem (a grande maioria composta de não judeus e de pessoas comuns) ou ainda uma mal disfarçada arrogância no trato com nossas excepcionalidades, para outros que se julgam “melhores” informados essa combinação de poder econômico e mídia tem nome: lobby judaico. Mesmo que muitos possam alegar que colocar tais números na mesa é uma maneira direta e transparente de mostrar ao distinto público o currículo inquestionável de um povo cuja trajetória está intimamente ligada à evolução e ao progresso da humanidade, a experiência mostra que a tática do autoelogio é antipática, inconveniente e acirra suscetibilidades.

Prêmios e autobajulações não resolvem

Lançar mão de tal lógica de argumentação simplista e ingênua acrescida de outras mesmices que atrelam nossas contribuições científicas e culturais em prol do bem da humanidade a um assento honorável na arena da vida a salvo de trovões e trovoadas – como o mundo estivesse em infinito débito conosco -, no mínimo embaralha o jogo de relações humanas, sociais, religiosas e políticas a ser desenvolvido por aqueles que de alguma forma falam publicamente pelas comunidades judaicas.

Quais seriam os resultados pragmáticos dessas autobajulações no imaginário de um leitor ou espectador não-judeu? A aquiescência imediata aos judeus das benesses de uma existência estável, sem contratempos ou atribulações? É evidente que nem todos sabem que Einstein, Marx e Freud eram judeus. Muito menos que um terço do total de diretores norte-americanos ganhadores da estatueta do Oscar são judeus. Assim como também são judeus um terço dos que foram laureados com o prêmio Nobel nas áreas científica e médica. Ou que mais de 50% dos campeões de xadrez são judeus, assim como o são 50% dos jornalistas e escritores norte-americanos que até a atualidade receberam o prêmio Pullitzer.

Infortunadamente, prêmios, láureas, adulações, carreiras festejadas e empregos influentes não ajudaram a salvar os judeus quando a fúria nazista se abateu sobre a Alemanha e contaminou a Europa. A elite cultural judaica, os judeus ricos e pobres, todos foram nivelados de forma uniforme e ganharam o mesmo passaporte para o inferno: a estrela amarela no peito.

O imaginário coletivo não é favorável aos judeus

A história tem demonstrado em várias situações que o melhor preparo ou capacidade dos judeus em áreas do conhecimento humano pouco vai alterar a concepção geral das pessoas acerca de nós. No imaginário coletivo o judeu ainda é basicamente uma representação, um personagem nascido há dois milênios pela força de uma mitologia introduzida através de um processo de evangelização que o perpetuou de forma pejorativa, não obstante a realidade de toda uma pujante narrativa anterior vivida pela nação judaica dois mil anos antes deste marco histórico-religioso. Assim, criou-se ao longo do tempo uma estranha dissociação entre o que seria o povo hebreu - um agrupamento nômade, forte, rijo, guerreiro, de crença monoteísta e escaldado pelo fogo do deserto - e os ardilosos judeus engendrados como vilões da crucificação. Um único povo diabolicamente fracionado em duas metades antagônicas, como se isso fosse cabível sob o crivo da razão: cultuado e indesejável, dependendo das datas.

Esse mal-estar que perdura por vinte séculos polarizado no antissemitismo tornou-se o fermento biológico mais fácil e vulgar encontrado no mercado das especulações dogmáticas para inflar políticas de poder sectário, de proselitismo e autoritarismo. Diferente das celebrações judaicas onde a simbologia repercute o fato literal, como por exemplo a que evoca a força tirana do poderoso faraó na história de Moisés (Êxodo – Pentateuco), eximindo o povo egípcio da autoria dos infortúnios pelos quais os judeus passaram enquanto escravos no Egito, a paixão da crucificação concentrou-se na condenação ad aeternum da comunidade judaica ali existente (e de seus descendentes), constituída de múltiplas seitas, facções diversas, de rebeldes e adesistas, da qual todos faziam parte naquele contexto político inquieto e em ebulição, subjugados ao implacável tacão da Roma dos pagãos.

Crenças populares reforçam preconceito

Logo, acreditar que exista um interesse natural do não-judeu, e da sociedade em geral, em se desembaraçar de um legado de tamanha força religiosa e psicológica impingido de forma sistemática ao longo de gerações é apostar no vazio de um otimismo irresponsável. São vinte séculos de pregação acusatória em alto e bom som que transcende gerações e que dificilmente irá figurar prioritariamente na pauta de prováveis resgates de ideias pré-concebidas a serem revistas pela maioria das pessoas. Vencer e sublimar preconceitos demanda um grande potencial de energia e de vontade por parte de quem se dispõe a ir contra todo um conjunto de tradições e crenças populares que faz parte de sua identidade.

Portanto deve-se no mínimo louvar todos aqueles que demonstrem por atos públicos a efetiva necessidade de se revisar conceitos caducos acerca desse tema espinhoso e ainda tratado como tabu no seio de muitas famílias de classes sociais distintas. Observa-se que em conversas em restaurantes ou rodinhas de amigos abaixa-se naturalmente o tom de voz quando o termo “judeu” é pronunciado. No ambiente de trabalho geralmente há manifestações de surpresa contida diante da revelação de que esse ou aquele colega é judeu. Também aí quase que se murmura a palavra incômoda, o tal detalhe “diferente” e folclórico da biografia do sujeito. Abrir um canal mais amplo e aberto para uma abordagem sem eufemismos sobre a questão é sempre uma alternativa corajosa. Mas a grande maioria prefere se esquivar do confronto (no bom sentido) individual. É bem mais confortável ser judeu em toda a sua plenitude – com direito a reclamar de tudo, de todos e dos outros - em um ambiente judaico.

Brasil – Israel: Percalços de uma aproximação

Vivemos no maior país católico do planeta, com 150 milhões de fiéis, e que possui a maior colônia de descendentes árabes da América Latina, cerca de 10 milhões. As recentes visitas de autoridades e personalidades brasileiras a Israel devem ser assimiladas como uma valiosa oportunidade para o exercício de um melhor entrosamento humano e social entre as duas nações, em paralelo ao crescente avanço que já se verifica nos âmbitos econômico, tecnológico e cultural. Possíveis falhas, mal-entendidos, palavras e ações deslocadas que possam suscitar críticas não são peças estranhas nos processos de aproximação. Fazem parte da dinâmica de relacionamento daqueles que se engajam em processos dessa natureza.
Parabéns, pois, as nossas lideranças judaicas, assessores do Executivo, políticos, empresários, diplomatas brasileiros e israelenses que participam intensamente de fatos e acontecimentos que envolvem a comunidade judaica brasileira, os governos do Brasil e de Israel. O essencial, em se tratando de nossas lideranças, é que as mesmas estejam unidas, atentas e empenhadas em encontrar um senso comum, uma linha de prumo que, à parte as atividades sociais de eventos, celebrações e homenagens, propicie uma melhor interação com a própria comunidade e uma convivência cada vez mais igualitária, franca e prazerosa com o todo da sociedade brasileira.