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quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Livro que inseriu Israel no mapa da Ufologia completa quase dois anos

/  Sheila Sacks  /




No final de 2020, em plena pandemia que desestruturava o planeta e sinalizava tempos sofridos e incertos, o lançamento do livro de um militar aposentado de alta patente afirmando que a humanidade está em contato com alienígenas, há anos, sacudiu a mídia e transformou o autor em celebridade no mundo da ufologia. Mas, também causou algum desconforto para departamentos de defesa e militares de agências federais que investigam e monitoram, de forma sigilosa, fenômenos espaciais.   

Haim Eshed, ex-general israelense, então com 87 anos e figura central da obra “The Universe Beyond the Horizon – Conversations with Professor Haim Eshed” (O Universo Além do Horizonte – Conversa com o professor Haim Eshed, em tradução livre), esteve no comando do programa de segurança espacial de Israel por quase 30 anos e recebeu três vezes o Prêmio de Segurança de Israel (Israel's Security Award) . É considerado o pai dos programas espaciais israelenses.

Engenheiro eletrônico, formado pelo Technion (Instituto de Tecnologia de Israel), tem mestrado em engenharia aeronáutica e desde que se aposentou, em 2011, é professor visitante de várias universidades e instituições de pesquisas espaciais. Foi consultor científico da Faculdade de Tel Aviv e também colabora com o Centro de Ciências de Herzliya para alunos do Ensino Médio. O livro em questão tem a parceria da escritora Hagar Yanai, 50 anos, autora de vários livros premiados.

Ao jornal Yediot Aharonot, em uma longa entrevista, ele revelou que resolveu tornar público suas pesquisas e conhecimento acerca de seres extraterrestres e OVNIs (sigla de Objetos Voadores Não Identificados) ou UFO (Unidentified Flying Object, na sigla em inglês) porque considera o atual estágio tecnológico da humanidade mais desenvolvido e naturalmente mais aberto à abordagem do tema.  "Se eu falasse o que digo hoje há cinco anos, teria sido internado",  ironiza Eshed na entrevista ao diário de maior tiragem do país.

A reportagem, originalmente publicada em hebraico, ganhou as páginas da mídia internacional após o jornal Jerusalem Post, dias depois, recontar a matéria em inglês (Ex-chefe de segurança espacial israelense diz que alienígenas existem e a humanidade não está pronta, em 10/12/2020), e principalmente por conta das credenciais do entrevistado. O texto, desde então, viaja pela Internet, ao sabor de novas notícias sobre fenômenos aéreos e descobertas espaciais.

Nada a perder

Na inusitada entrevista, assinada pelo jornalista Raanan Shaked (‘Os OVNIs pediram para não anunciar que estão aqui, a humanidade ainda não está pronta’, em tradução livre do hebraico), o texto se inicia em um tom não muito sério.  “Em um novo livro, 'The Universe Beyond the Horizon', Eshed afirma que extraterrestres de todo o universo já estão andando entre nós, encontros do terceiro grau acontecem em cada esquina, e a "Federação Galáctica" está atrasando a liberação de informações para não causar pânico. Agora ele também conta como os alienígenas impediram vários holocaustos nucleares.”



E prossegue no mesmo diapasão: “Foi um ótimo início de semana”, escreve o jornalista. “Saí da casa do professor Haim Eshed de bom humor. Em breve, com certeza, faremos contato com extraterrestres, eles nos ensinarão tudo o que sabem, a ciência saltará na frente mil anos-luz, poderemos começar a viajar no tempo e espaço, e saltar com as crianças no fim de semana no aglomerado das Plêiades (aglomerado estelar), a 444 anos-luz de distância do sistema solar, muito melhor do que o Holon Park” ( parque de diversão  aquático perto de Tel Aviv).

Mas, apesar da conotação bizarra que norteia a entrevista, o jornalista israelense destaca a quantidade de livros que Eshed tem em seu escritório, o grande número de material e informação acumulados, e as inúmeras pastas nas quais são guardadas “meticulosamente” cada artigo ou trecho de documento sobre o tema a qual se dedica.

Perguntado do risco acadêmico a que se expõe diante das afirmativas manifestas no decorrer da reportagem, Eshed é categórico na resposta.  Diz que “hoje não tem nada a perder” e fundamenta: “Recebi prêmios e diplomas, sou respeitado nas universidades do exterior e mesmo lá a tendência está mudando e agora estão abertos a falar sobre esses fenômenos.”

Assim, um dos enunciados acerca da forma e a da velocidade com que os alienígenas percorrem o espaço é traduzido por Eshed como “um método avançado ‘deles’ para produzir uma bolha que neutraliza o tempo-espaço”. Desse modo, “a espaçonave não se move, e sim o espaço”. E dá o exemplo de uma formiga se movimentando em cima de uma página. Ao dobrar a página, a formiga irá da extremidade a outra em um segundo. “Eles usam a propulsão, baseada na energia escura – 25% do universo é matéria escura - o que torna possível distorcer o espaço-tempo e alcançar outras galáxias em pouco tempo”, diz.

Sobre o local de origem dos alienígenas, Eshed considera que alguns possam ter vindo das Plêiades (conglomerado de estrelas localizado na Constelação de Touro, algumas visíveis a olho nu) que têm condições de vida parecidas. “Não podemos chegar lá”, explica, “mas eles podem chegar até nós porque são mais avançados”.

Em relação à interação entre humanos e alienígenas, Eshed novamente surpreende ao revelar a existência de uma base subterrânea em Marte onde astronautas americanos e extraterrestres já trabalham em conjunto. “A grande nave espacial é quase do tamanho de uma pequena cidade. Pequenas naves espaciais saem dela - a maioria robóticas, tripuladas por robôs inteligentes. A princípio eles enviarão tais robôs, primitivos em sua visão, ou uma mensagem que teremos que decifrar.” 

Estudo publicado na revista “Astrobiology” (junho de 2021) assinado pelo cientista planetário Jesse Tarnas, do Jet Propulsiom Laboraty da Nasa (centro tecnológico de pesquisa, responsável pelo desenvolvimento de sondas espaciais não tripuladas) sustenta que existem ambientes habitáveis semelhantes à Terra no subsolo de Marte. A revista científica Scientific American também dá destaque ao estudo, ressaltando que a análise de meteoritos marcianos combinada com novos dados dos rovers (veículos robóticos) da Nasa revelam que enquanto houver água subterrânea, o subsolo marciano é habitável. Portanto, já está sendo aceitável cientificamente que para vivermos em Marte terá de ser em túneis e com energia nuclear.

Federação Galáctica

Eshed fala ainda sobre uma suposta “Federação Galáctica” formada por alienígenas que em comum acordo com governos parceiros- e cita os Estados Unidos, China, Rússia, Inglaterra e Japão - tem repassado tecnologia avançada e monitora estações e bases nucleares. Inclusive, evitando catástrofes nucleares que não aconteceram pela intervenção dos alienígenas.

Conta que o ex-presidente Donald Trump estava prestes a revelar esses “contatos”, mas foi aconselhado a esperar. E que mais presidentes se envolveram com o assunto: Truman (1884-1972) admitiu que viu um grupo de extraterrestres; Nixon (1913-1994) levou o comediante Jackie Gleason para a base aérea de White-Patterson (Ohio), onde mostrou corpos de alienígenas; e a neta do presidente Eisenhower (1890-1969) testemunhou o avô assinar um acordo com extraterrestres. Estes teriam uma base de pouso secreta no deserto de Nevada, na Área 51 – região onde há uma base aérea americana, criada em 195, para testes e desenvolvimento de aeronaves.

Reconhecida oficialmente somente em 2003, a base aérea americana na Área 51, a 135 quilômetros de Las Vegas, alimentou muitas suposições e teorias sobre óvnis devido ao sigilo que o governo sempre impôs acerca da instalação militar e seus funcionários. Várias reportagens ao longo do tempo lançaram suspeitas de que a área em questão abrigava uma espaçonave alienígena e os corpos de seus tripulantes, depois que testemunhas comunicaram sobre a queda de destroços de  um objeto não identificado em  Roswell, no estado do Novo México, em 1947.

Projeto Galileu



Outra figura de peso citada por Eshed, desta vez na área científica, é o astrofísico israelense-americano Abrahamn (Avi) Loeb, professor de Ciência na Universidade de Harvard, que afirmou que o objeto celeste observado por astrônomos no Havaí, em 2017, era um óvni. O objeto, com 800 metros de comprimento e superfície avermelhada ganhou o nome de Oumuamua, que significa “mensageiro” em linguagem havaiana. Pela sua alta velocidade, se supõe que o objeto veio de fora do Sistema Solar.

PhD em Física pela Universidade Hebraica de Jerusalém e chefe do Projeto Galileu (Galileo Project), do Centro de Astrofísica de Harvard, Loeb lançou em 2021 o livro “Extraterrestrial: The First Sign of Intelligent Life Beyond Earth” (Extraterrestre: O Primeiro Sinal de Vida Inteligente Além da Terra, em tradução livre do inglês), onde sustenta que o Oumuamua não era um asteroide e sim uma peça de tecnologia avançada criada por uma civilização alienígena distante.

Para o Projeto Galileu, que envolve mais de 100 cientistas, Loeb arrecadou 1,7 milhão de dólares de investidores privados. O programa visa estabelecer uma rede de telescópios avançados - munidos de câmaras infravermelhas, sensores de rádio e áudio, magnetômetro (para mediar campos magnéticos) e computadores com inteligência artificial - que irão varrer os céus em busca de evidências extraterrestres. Um deles é o supertelescópio de 8,4 metros no Observatório Vera C.Rubin, em construção na montanha de Cerro Pachón, no Chile, que terá a maior câmara do mundo.

Em uma reportagem para a Science Magazine, uma da mais prestigiadas revistas de Ciência, Loeb ponderou sobre a necessidade da comunidade cientifica ter a mente aberta para esses fenômenos. “Aqueles que afirmam que a falta de evidências de extraterrestres significa que a vida alienígena não existe, estão equivocados”, disse. “É como um pescador na praia, olhando para o mar: Onde estão todos os peixes? Eu não vejo nada? E, obviamente, se você não usar uma rede de pesca, não encontrará nada”, raciocina.

Com centenas de artigos publicados e autor de oito livros, Loeb, de 60 anos, foi indicado pela revista TIME, em 2012, como umas das 25 pessoas mais influentes em assuntos espaciais. Em 2020, foi considerado um dos 14 israelenses mais inspiradores da década. Em 2021, na esteira da publicação de seu livro sobre extraterrestres, Loeb, assim como Eshed, surpreendeu ao falar sobre a necessidade de um acordo de paz entre os humanos e os habitantes de outras galáxias, semelhante ao Tratado de Proibição de Teste Nucleares. Segundo o cientista, civilizações hostis são capazes de criar dispositivos de destruição de tecnologia avançada que os habitantes da Terra não saberão deter.

Ufologia tem sessão especial do Senado

No Brasil, em uma sessão especial no plenário do Senado para marcar os 75 anos do Dia Mundial da Ufologia, o ufólogo Ademar José Gevaerd, editor da revista UFO, presidente do Centro Brasileiro de Pesquisas de Discos Voadores e autor de 13 livros sobre o tema, comemorou o fato de o governo e a Aeronáutica terem liberado mais de 20 mil páginas de documentos, que atualmente estão no Arquivo Nacional, em Brasília, à disposição dos interessados. Mas fez a ressalva de que a abertura não é completa e que mais arquivos precisam ser divulgados.

O evento, realizado em 24 de junho, reuniu especialistas do Brasil e do exterior para falar sobre fenômenos relacionados a óvnis, vida fora da Terra e liberação de registros de avistamentos.  No requerimento oficial para a realização da Sessão, os senadores lembraram que o Brasil foi “a primeira nação a admitir oficialmente que os óvnis existem de fato e têm procedência extraterrestre”. Isso ocorreu em 1954, na Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro, face ao depoimento do  então capitão da Aeronáutica João Adil de Oliveira  que chefiou a  primeira Comissão de Investigação sobre os Discos Voadores do país. A França só faria o mesmo, vindo em segundo lugar, em 1976, 22 anos depois.

  Ao final do encontro, foi entregue aos parlamentares o documento intitulado “Carta de Brasília”, no qual os ufólogos recomendam a criação de uma comissão permanente mista, civil e militar, para a realização conjunta de pesquisas.

Arquivo Nacional disponibiliza fotos e documentos

A partir da criação da Lei de Acesso à Informação- Lai ((Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011) e sua regulamentação no ano seguinte (16 de maio de 2012),  um encontro inédito aconteceu em Brasília, em abril de 2013, entre pesquisadores de fenômenos aéreos não identificados e representantes do Ministério de Defesa. Na reunião, ficou acordado que documentos acerca do tema, sob a responsabilidade do Exército, Marinha e Aeronáutica, seriam tornados públicos através de consultas ao Arquivo Nacional.

Porém, autoridades militares reconhecem que muitos documentos foram extraviados e outros destruídos, já que o decreto 79.099 de 1977 permitia a destruição de documentos sigilosos.

De acordo com o professor Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e doutor em História, a Pasta OVNI, do Arquivo Nacional, já reúne 758 documentos digitalizados, entre relatórios, depoimentos, fotos, formulários preenchidos, notícias da imprensa, vídeos e áudios.

Em um artigo publicado em 2021, no site do Arquivo Nacional, ele detalha que o documento mais antigo para consulta data de 1952 e o mais recente, de 2016, com uma quantidade considerável de formulários preenchidos em aeroportos por pilotos relatando avistamentos de óvnis. Também estão arrolados, casos de relatos que tiveram repercussão na imprensa, com recortes de revistas e jornais da época.

Também boletins produzidos por investigadores do SIOANI (Sistema de Investigação de Objetos Aéreos Não Identificados), órgão da Aeronáutica que funcionou entre 1969 e 1972, estão acessíveis aos interessados. O trabalho dos militares consistia em investigar os locais de “supostos” avistamentos, entrevistando e até realizando exames psiquiátricos nas testemunhas dos relatos.

No texto, o professor faz um histórico sobre o termo “disco voador”, tradução do inglês flying saucer (pires voando, em tradução livre) usado para designar o que não era imediatamente reconhecido nos céus. A expressão apareceu pela primeira vez em um jornal local do estado de Washington, a partir do registro do empresário Kenneth Arnold, também um piloto experiente. Ele observou objetos voadores que realizavam manobras inusitadas quando pilotava seu avião, em 24 de junho de 1947. “Faziam movimentos ondulares, parecidos com o que acontece quando se joga um disco sobre a superfície da água.”

A partir da década de 1950, um termo mais adequado foi criado para designar esses fenômenos: a expressão UFO - Unidentified Flying Object , ou OVNI, em português (Objeto Voador Não Identificado).

Noite dos óvnis

Ainda no artigo, o autor discorre sobre alguns casos de avistamentos registrados no território brasileiro - já com documentos “desclassificados” (retirados de sigilo) - e que foram veiculados na imprensa. Dentre eles, o que ocorreu na cidade de São José dos Campos, no estado de São Paulo, em 19 de maio de 1986, que ficou conhecido como a Noite dos Discos Voadores.  Na ocasião “foram avistadas pela torre de controle da cidade luzes de diversas cores sobrevoando a região, o que foi confirmado pelo radar e passageiros de aeronaves. Horas depois, foi a vez do radar de Anápolis, no estado de Goiás, apontar objetos não identificados. Temendo pela segurança nacional, caças armados decolaram das bases aéreas no Rio de Janeiro e Goiás”.

O desenrolar da ação é descrita pelo professor: “Alguns (caças) chegaram a identificar luzes que mudavam de cor e tentaram persegui-las, mas foi inútil. Segundo registros, os objetos faziam manobras bastante peculiares com aceleração e desaceleração de forma brusca que ultrapassavam em muito a velocidade dos caças brasileiros. Em determinado momento da madrugada, os radares chegaram a detectar treze pontos não identificados simultâneos. No entanto, como cinco caças não conseguiram se aproximar e identificá-los, a operação foi finalizada. Ao longo de mais de três horas, foram detectados 21 óvnis ” (descritos como esféricos e com 100 metros de diâmetro).

Sobre o episódio foi feito um relatório, datado de 2 de junho daquele ano, assinado pelo então comandante interino do Comando de Defesa Aérea Brasileira COMDABRA, brigadeiro José Pessoa Cavalcanti Albuquerque, que no parágrafo três apresenta o seguinte parecer: “Os fenômenos são sólidos e refletem de certa forma inteligência, pela capacidade de acompanhar e manter distância dos observadores como também voar em formação, não forçosamente tripulados”. E conclui elogiando “a eficiência das unidades aéreas engajadas na operação” que em menos de 30 minutos depois de acionadas estavam prontas para a ação.

Governo americano cria órgão federal para detectar óvnis

No final de 2021, o presidente Joe Biden autorizou a criação de um escritório encarregado de conduzir investigações e responder militarmente e com rapidez a avistamentos de óvnis. A implantação do novo órgão, sob a responsabilidade conjunta do Departamento de Defesa americano e do Diretor de Inteligência Nacional (DNI, na sigla em inglês), figurou no pacote de gastos da Defesa, aprovado pelo Congresso, no valor de 770 bilhões de dólares.

Meses depois, a sigla original do escritório – AOIMSG (Air Object Identification and Management Group - Grupo de Sincronização de Gerenciamento e Identificação de Objetos Aerotransportados, em tradução livre) foi modificada estrategicamente para AARO - All-domain Anomaly Resolution Office - Resolução de Anomalias de Todos os Domínios, eliminando o termo Air Object e dando um caráter mais amplo às observações.

A implantação da AARO, segundo o Pentágano, visa sincronizar os esforços do Departamento de Defesa com outras agências federais para detectar “fenômenos de interesse” perto de instalações militares, áreas operacionais e de treinamento. Isso inclui “espaço anômalo não identificado, objetos aéreos, submersos e transmedium” (termo inglês para objetos que voam entre o espaço, o ar e sob a água). Um vídeo da Marinha, confirmado pelo Pentágono, mostra um óvni aparentemente desaparecendo na água.

Em maio, em uma audiência pública no Congresso americano sobre óvnis, agora também chamados de UAPs (Unidentified Aerial Phenomena - fenômenos aéreos não identificados, que substitui UFO) , o atual subsecretário de Defesa para inteligência e segurança, Ronald Moultrie, refirmou que esses objetos representam “riscos potenciais” para a segurança de voo e um desafio para a segurança nacional, e que o governo está comprometido em determinar suas origens.

A respeito desses fenômenos, o Departamento da Marinha já vinha mantendo, desde 2020, uma Força-Tarefa de Fenômenos Aéreos Não Identificados, a UAPTF - Unidentified Aerial Phenomena (UAP) Task Force, com a missão de detectar, analisar e catalogar objetos voadores que possam representar ameaça à segurança nacional. A medida foi defendida pelo então vice-secretário da Defesa, David L. Norquist.

Um ano depois, em junho de 2021, sob a pressão do Congresso e do público, o Pentágono divulgou um relatório da UAPTF reportando 144 casos de fenômenos aéreos não identificados relatados por pilotos militares desde 2004. De acordo com o documento, 21 desses registros detalhavam objetos com "padrões incomuns de movimento ou de características de voo".

Apesar de grande parte dos pareceres serem inconclusivos, o relatório confirma que a maioria dos óvnis representam objetos físicos captados por vários sensores, incluindo radar, infravermelho, eletro-óptico, “buscadores” de armas e também por observação visual.

Na esteira das revelações, o programa jornalístico “60 Minutes”, da CBS News, um dos mais assistidos nos EUA, dedicou uma apresentação ao tema. Em uma reportagem especial, no ano passado, entrevistou alguns militares da Marinha americana. Um deles, o piloto aposentado Ryan Graves, disse que os encontros com óvnis aconteciam com frequência. “Todos os dias, por pelo menos alguns anos” afirmou.

Ele classificou o que ocorria como “um risco à segurança“. O seu esquadrão de caças supersônicos F/A-18F, de acordo com o ex-piloto, começou a ver óvnis pairando sobre o espaço aéreo restrito, a sudeste de Virginia Beach, em 2014, quando os radares dos jatos foram atualizados, tornando possível mirar com câmeras infravermelhas. É no estado de Virgínia, na cidade de Norfolk, que se localiza a maior base naval americana e mundial. 

 


Outro entrevistado, Luis Elizondo, um ex-militar para operações de Inteligência e ex-agente do Pentágono, revelou que só começou a tratar de óvnis, a partir de 2008, quando foi convidado para trabalhar no Programa Avançado de Identificação de Ameaças Aeroespaciais – AATIP, na sigla em inglês (Advanced Aerospace Threat Identification Program). O projeto foi incluído pelo então líder da maioria do Senado, Harry Reid, no programa de Defesa dos Estados Unidos.

A função de Elizondo era analisar fenômenos aéreos não identificados documentados por militares que poderiam ameaçar a segurança nacional. Nos relatos, segundo ele, registros de objetos que voam a 13 mil milhas por hora, que escapam dos radares, podem voar através do ar, da água e possivelmente do espaço. Sem sinais de propulsão, sem asas, sem superfícies de controle, desafiando os efeitos naturais da gravidade da Terra.

“Gastamos milhões de dólares treinando esses pilotos. E eles estão vendo algo que eles não podem explicar. Além disso, essas informações são apoiadas em dados eletro-ópticos, como imagens de câmeras de armas. E por dados de radar”, diz o ex-agente.

Depoimentos e relatórios oficiais como rotina

Recentemente, em julho, a Câmara de Deputados americana (U.S. House of Representatives) recebeu uma proposta de emenda parlamentar para criar um sistema oficial de relatos sobre óvnis dentro da estrutura da Defesa. A emenda foi apresentada pelo congressista Mike Gallagher, do estado de Wisconsin, que serviu no Corpo de Fuzileiros Navais no Iraque, trabalhou no setor de Contraterrorismo no Comitê de Relações Exteriores do Senado e atualmente integra o Comitê Permanente de Inteligência da Câmara. Ele ainda atua como membro do subcomitê de Pessoal Militar, com jurisdição sobre as políticas e programas relacionados com os militares e o Departamento de Defesa.

O principal objetivo da medida, de acordo com o parlamentar, é estabelecer um canal especial e seguro para que militares e contratados (terceirizados) possam relatar no plenário suas experiências em relação a qualquer evento de UAPs. Também pretende estabelecer uma rotina de envio à Câmara, por parte do Departamento de Defesa, de relatórios atualizados sobre qualquer atividade ou programa de governo relacionado com esses fenômenos.

A transparência e a divulgação pública dessas abordagens, porém, esbarram em afirmações como a do israelense Haim Eshed, explicitada na polêmica entrevista ao Yediot Aharonot. Respondendo ao jornalista que o entrevistava o porquê de os governos manterem segredo em torno de supostos alienígenas que estariam em contato com os humanos, e se muitos evitam falar por uma possível ameaça de morte, o ex-responsável pelo programa espacial de Israel confirmou que ninguém  está a salvo. “Sim. Eles mataram muitos no caminho. Todo mundo que abriu a boca.”

Eshed aproveita também a longa conversa para desenhar um futuro desafiador, onde computadores quânticos atingirão um nível superior à capacidade humana em termos de consciência, impelindo a própria consciência humana a avançar. Ele acredita que seremos capazes de manipular o espaço-tempo (‘enquanto estou sentado aqui com você, também poderei sentar com minha filha na Filadélfia’), e que nosso tempo na Terra não é infinito. “Escute, a humanidade não sobreviverá aqui, e se alguém não cuidar do meio ambiente, eu dou menos de 50 anos. A humanidade vai morrer e espero que “eles” ( aponta para o alto) não vão deixar isso acontecer. O espaço é nosso anseio - saber de onde viemos e para onde vamos.” E conclui: ”Hoje, a única coisa que nos mantém sãos é a ciência.” 


sexta-feira, 24 de junho de 2022

Espanha Sefarad: desterro e sofrimento

/ Sheila Sacks /

Em 21 de abril de 2024, um drama musical em um teatro de Lisboa reviveu um episódio de horror ocorrido há mais de 500 anos. Sob o título de "Rapto dos Inocentes", a ação se passa nas ilhas de São Tomé e Príncipe, na África, para onde foram levadas 2 mil crianças.


Espanha Sefarad: desterro e sofrimento

Em 1492, milhares de judeus sefarditas foram impelidos ao desterro para escapar das garras da Inquisição e da conversão forçada na Espanha. Infortunadamente, um ano depois, já em Portugal, 2 mil crianças, filhos desses judeus espanhóis, são arrancadas dos pais e levadas para uma ilha despovoada da África, infestada de serpentes peçonhentas, ratos do tamanho de coelhos e lagartos gigantes.

Para lembrar os 530 anos da expulsão dos judeus da Espanha e sua saga de sofrimento, uma escultura foi inaugurada, em 31 de março de 2022 no Porto de Cartagena, local da derradeira visão da Península Ibérica para aqueles judeus que partiam pelo mar em direção ao desconhecido.


Período de terror

Iniciada no século 12, a Inquisição atravessou os séculos como instrumento de perseguição, tortura e assassinatos. A Igreja Católica, através de seus tribunais e inquisidores saídos das fileiras das Ordens Dominicanas e Franciscanas, instalou um império de horror e perseguições contra grupos e comunidades não católicas da Europa e das Américas. Eram apontados como hereges, caçados, torturados e queimados vivos, por não seguirem os cânones religiosos estabelecidos pelos papas.

O astrônomo e matemático judeu Abrãao Zacuto (1450-1522), nascido em Salamanca, estima que 120 mil judeus espanhóis optaram pela fuga – ele mesmo um deles -  abandonando suas casas, seus bens e deixando para trás toda uma história pessoal e cultural estruturada por séculos. Despojados de seus pertences e de sua dignidade em uma diáspora dolorosa imposta por uma Igreja sectária e sem piedade que dominou a Europa na Idade Média e estendeu seus tentáculos em séculos posteriores. 

Na Espanha - a Sefarad para os judeus, palavra hebraica em alusão à Península Ibérica – a Inquisição foi estabelecida em 1478 e se tornou uma das mais cruéis do continente e além-mar, com milhares de execuções na fogueira, inclusive de conversos. Nos “autos da fé”, os condenados eram queimados vivos em atos públicos. Documentos apontam entre 130 a 150 mil processos de suspeita de heresia, com julgamentos sumários, conversões forçadas e sentenças de morte.

Em 31 de março de 1492, os reis Fernando II de Aragão e Isabel de Castela emitem a Ordem de Alhambra, documento que determina a expulsão dos judeus da Espanha e a obrigatoriedade da conversão ao catolicismo para aqueles que ficam no país. Mesmo assim, as perseguições continuaram e os conversos, denominados cristãos novos ou marranos, eram tratados com desconfiança pelo clero, autoridades e a própria sociedade.

A inquisição na Espanha foi extinta em 1834, mas somente em 1968 o governo espanhol revogou oficialmente o nefasto decreto abrindo a possibilidade, a partir de 2015, de descendentes de judeus sefarditas pleitearem a nacionalidade espanhola.

Deportação de 2 mil crianças


Em Portugal, para onde a grande maioria dos judeus sefarditas acorreu, o monarca D.João II (1455-1495) permitiu a entrada dos refugiados, mas com um salvo-conduto de oito meses. Ele faleceu em 1495 e o sucessor D.Manuel decretou a expulsão dos judeus no ano seguinte, estabelecendo a data de 5 de dezembro de 1497 como prazo final da retirada ou a conversão ao cristianismo.

Mas a estadia dos judeus fugidos da Espanha sob a coroa de D.João II teve momentos trágicos. Um dos mais abomináveis foi a deportação de duas mil crianças judias para a ilha de São Tomé, no Golfo da Guiné, a 300 quilômetros do continente africano, terra descoberta em 1470 sob seu reinado. As crianças, separadas à força de seus pais, a partir do porto de Lisboa, foram postas em barcos e enviadas à ilha despovoada repleta de animais selvagens. O donatário de São Tomé, Álvaro de Caminha, recebeu carta branca do rei para trazer escravos, degredados e os filhos dos judeus conversos que ainda viviam no reino. Uma ilha com área de 859 km2, menor que a cidade do Rio de Janeiro, e que no século 16 se torna o maior entreposto de escravos da África para o Brasil.

O relato da deportação das crianças foi narrado por Samuel Usque (1530-1596) em Consolação às Tribulações de Israel, provavelmente escrito em 1553. Judeu português fugido de Castela, Usque conta o desespero de pais e filhos diante da inevitável separação, com mães desconsoladas se jogando ao mar com suas crianças numa tentativa extrema de mantê-las perto de si.

“Quando essas crianças inocentes chegaram à selva de São Tomé, o que seria os seus túmulos, elas foram levadas à costa e deixadas ali sem compaixão. Quase todas foram engolidas pelos grandes lagartos da ilha e as que ficaram, pois escaparam dos répteis, morreram de fome e abandono.” Em um ano, apenas 600 crianças ainda se mantinham vivas.

Mais duas outras narrativas sobre esse período de dor são registradas por Salomão Ibn Verga (1460-1554) e Yosef Ha-Cohen (1496-1575). Judeu espanhol, Ibn Verga viveu em Portugal após a expulsão da Espanha e depois se refugiou na Itália. Ele é autor do livro Shebet Yehudá (Cetro de Judá) que descreve o deslocamento forçado dessas crianças à ilha de São Tomé, que juntamente com a ilha de Príncipe eram desabitadas. O relato apareceu pela primeira vez em 1550, na Turquia.

A crônica Shebet Yehuda contém ainda um relato de perseguições e descreve costumes judaicos em diferentes países.  No capítulo 59, está dito: “Quem não assistiu estas terríveis cenas de prantos, choros e gritos de mulheres, jamais haverá visto e escutado tamanha preocupação e desconsolo. Ninguém consola e ninguém protege ou defende.”  

Também nascido em Sefarad, Yosef Ha-Cohen escreveu o livro Emeq Ha-Baqa (Vale das Lágrimas), publicado em 1575. Expulso da Espanha, foi para Portugal e faleceu em Gênova. Ele narra em suas crônicas as agruras e o desespero dos judeus no porto de Lisboa. “Todas as mulheres choravam aos prantos, quando seus filhos lhes eram arrancados dos braços, enquanto seus maridos, amargurados e desesperados, arrancavam suas barbas à força.”

Outros relatos


Existem ainda relatos de cronistas não judeus da época, como o de Valentim Fernandes (1450-1519), nascido na Morávia e que trabalhou para a Coroa Portuguesa como impressor, editor e tradutor. Em 1506, ele escreveu: “Mandou o dito rei com esse capitão (Álvaro Caminha, o donatário da ilha), 2.000 meninos de 8 anos para baixo, que tomou aos judeus castelhanos e os mandou batizar, dos quais morreram muitos, porém pelo presente serão vivos entre machos e fêmeas bem 600.”

Sobre os ferozes lagartos, semelhantes a crocodilos, Valetim descreve literalmente: “Lagartos havia muitos e agora poucos, de doze côvados em longo. E comem homens e mulheres, vacas e bois e animalia. Estes lagartos não vão fora de água senão que sempre lhes fica o rabo na água doce. E qualquer animalia que toma logo dá com ela na água e dentro na água a mata e come. Empina-se sobre o rabo como um homem em pés.” 

Além dos lagartos, Valentim fala sobre ratos gigantes e enormes cobras que infestavam a ilha: “Cobras há nesta ilha muito peçonhentas de dois côvados de longo e de um braço de homem em gordo. E estão olhando os homens e não fogem deles. Estas cobras são negras de cor.“

O cronista-mor do reinado de D.João II, o português Rui de Pina (1440-1522), também secretário e embaixador do reino, narrou o episódio em suas crônicas: “Neste ano de 1493... o rei deu a Álvaro de Caminha a capitania da ilha de São Tomé de direito e herança; e quanto aos judeus castelhanos que não havia deixado seu reino dentro do prazo data, ordenou que, de acordo com a condição à sua entrada, todos os meninos e rapazes e meninas dos judeus sejam levados cativos. Depois de ter todos eles se tornaram cristãos, ele os enviou para a dita ilha com Álvaro de Caminha, para que ao ser isolados, teriam motivos para serem melhores cristãos, e [o rei] teria por essa razão para que a ilha seja melhor povoada, o que, como resultado, culminou em grande crescimento.”

Outra narrativa, desta vez de Garcia de Resende (1470- 1536), compilador e secretário particular do rei D.João II, repete o que já foi dito por Pina em relação à motivação do desterro das crianças: “Para serem apartados dos pais e de suas doutrinas e de quem lhes pudesse falar da lei de Moisés, fossem bons cristãos; e também para que, crescendo e casando, pudesse com eles povoar a ilha, que por esta causa daí em diante foi em crescimento.”

O erudito e mecenas judeu Isaac Abravanel (1437–1508), nascido em Lisboa, chamava a ilha de São Tomé de Ha-Timsahim, a ilha dos Lagartos, em alusão aos enormes répteis existentes no local e também para não pronunciar o nome de um santo católico.

De acordo com o historiador Elias Lipiner (1916-1998), estudioso da história luso-judaica e autor de livros sobre o tema (agraciado post mortem pelo governo de Portugal com a Comenda da Ordem do Mérito), Abravanel fala dessas criaturas semelhantes a crocodilos que chegavam a medir 10 metros. “Os lagartos saiam do mar para a ilha em busca de presa (...) e não obstante a luta dos homens contra eles com espadas, lanças, martelos e machados (...) eram capazes de devorar, por inteiro, um bezerro ou um menino.”

Sem rastros


No reinado de D.Manuel (1469-1521) que se seguiu ao de D.João II, a situação dos judeus que permaneceram em Portugal também foi difícil e dramática. O rei assina em dezembro de 1496 o Édito de Expulsão e dá um prazo de 10 meses para a saída dos judeus do reino. Mas, durante esse período, além de dificultar ao máxima a saída das famílias, quatro meses depois do édito determinou que os filhos menores de 14 anos de pais judeus fossem arrancados de seus pais, batizados e entregues a famílias católicas. O rastro dessas crianças perdeu-se no tempo.

Estima-se que dos 120 mil judeus que vieram da Espanha e mais os 75 mil judeus portugueses que viviam no país, somente 5 mil conseguiram escapar ( porque a maioria não podia pagar as taxas estipuladas pela Coroa), ficando o restante condenado à conversão. São os chamados cristãos novos ou marranos (convertido à força, do hebraico com castelhano, ‘mumrrano’, segundo Lipiner no livro ‘Santa Inquisição: terror e linguagem’).

A Inquisição teve seus primórdios em 1223, a partir da emissão de uma Bula Papal contra os hereges na França emitida pelo papa Gregório IX. Através dos séculos aterrorizou e perseguiu pessoas, e documentos falam em 300 mil condenações e 30 mil execuções.

Desde 2015, quando o Parlamento espanhol aprovou uma lei que concede cidadania a qualquer pessoa que possa provar pelo menos um ancestral judeu que tenha sido expulso durante a Inquisição, já foram aprovados 34 mil pedidos de cidadania espanhola. Atualmente vivem na Espanha 13 mil judeus.

Em Portugal, onde a Inquisição funcionou por 285 anos (1536-1821), já são 57 mil pedidos de cidadania portuguesa aprovados oriundos s de mais de 60 países. Lá a lei de cidadania também foi instituída em 2015.  Efetivamente cerca de 5 mil judeus residem em Portugal. 

Desterro inspira pesquisas

Em 2003, o diplomata e escritor Moshe Liba, nascido na Romênia e que emigrou para Israel após o Holocausto, editou o livro “Jewish Child Slaves in São Tomé” ( Crianças escravas judias em São Tomé), que reúne artigos, ensaios e documentos sobre as consequências sociais e culturais desse episódio escabroso da história. Seria uma possível miscigenação na formação da sociedade na ilha e vestígios de hábitos e tradições dos judeus sefarditas observados na população.

Primeiro embaixador de Israel em São Tomé, o livro – que teve a coautoria do pesquisador e professor Norman Simms -  é resultado de um seminário promovido na ilha ,em 1995, e que contou com a presença de estudiosos de vários países. Na ocasião, recepcionado pelo então presidente da República de São Tomé e Príncipe, Miguel Trovoada - que posteriormente foi representante especial das Nações Unidas para a Guiné-Bissau - Liba ouviu do político as seguintes palavras: “Embaixador, temos raízes comuns. As crianças judias trazidas aqui como escravos de Portugal foram os primeiros colonos desta ilha.”

Pelas pesquisas de Liba, apesar da falta de documentação do destino das crianças, ele observa que registros históricos assinalam que alguns conversos da ilha eram acusados de práticas judaicas. No livro “L’ancien Congo d’après les archives romaines (1518-1640)”, os historiadores J. Cuvelier e L.Jardin apresentam um documento de 1632 que em certo trecho afirma que ”a ilha (São Tomé) está infestada de novos cristãos que praticam os ritos judaicos quase abertamente”.

No texto assinado por Lipiner e incluído no livro (‘O Primeiro Batismo Compulsório Coletivo Ocorrido em Portugal), o autor faz uma diferenciação do status dos judeus na ilha, denominando-os de “cativos” e não “escravos”, apesar de não serem pessoas livres (Lipiner, nascido na Bessarábia, viveu muitos anos no Brasil e depois emigrou para Israel).

Liba relata ainda que em suas andanças na iIlha somente encontrou duas sepulturas judaicas (de Arão Gabai e Avraham Cohen) ao lado do cemitério de São Tomé, datadas do final de 1800, provavelmente de comerciantes que aportaram no local. Todavia, conversando com o bispo local, este disse que contam que as crianças foram enterradas nos arredores da igreja.

Por sua vez, Simms anota que no final do século 16, documentos registram a presença de cristãos novos vindos de São Tomé para se estabelecerem no Brasil nas plantações de açúcar. Pesquisador das raízes judaicas na África no período dos descobrimentos e autor de “Jewish Children of São Tomé”, ele especula que esses cristãos novos poderiam ser descendentes das crianças judias que habitavam a ilha. “Existe a probabilidade que na época do domínio holandês no Brasil, em meados do século 17 (1630 -1654), mais uma geração de cristãos-novos, descendentes dos ”Filhos de São Tomé”, tenha vindo se estabelecer na colônia, principalmente em Recife (Pernambuco).” Assim deixariam para trás a Coroa Portuguesa e a Inquisição para retornar ao Judaísmo ancestral.

Romances idealizam tragédia


Festejado pela crítica literária, o romance Órion do premiado escritor português Mário Claudio foi lançado em Lisboa, em 2003, e tem como tema central o rapto das crianças judias. A obra de ficção ambientada em São Tomé acompanha a trajetória de mais de meio século de sete “moços” (meninos e meninas) judeus trazidos à ilha, e que apesar do sofrimento e das adversidades enfrentadas mantêm sua ligação com o D’us de seus antepassados.

Por duas vezes ganhador do Grande Prêmio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores, Mário Cláudio usa uma linguagem lúdica e alegórica para descrever aquela fatídica manhã, na Praça da Ribeira, onde as crianças se reuniam.  “Era uma manhã de Abril, tão suave que mais parecia um agouro de acontecimentos festivos do que o limiar de um holocausto que se preparasse.”

Em 2010, é a vez do americano Paul Cohn publicar “Sao Tome- Journey to the Abyss-Portugal's Stolen Children” (São Tomé: Viagem ao Abismo - Crianças Roubadas de Portugal), que ganhou o título “Rapto em Lisboa”, na edição portuguesa. A história gira em torno de dois irmãos, um menino e uma menina, sequestrados com outras crianças de uma sinagoga em Lisboa e embarcados em uma caravela para São Tomé, a 4 mil milhas de Portugal.

Quatro anos depois, o escritor Orlando Trindade, natural de São Tomé, publica o livro “Os meninos judeus desterrados” (2014), tendo como fundo os primórdios da colonização da ilha e a chegada de centenas de crianças judias que, em sua maioria, não resiste as agruras da viagem e o ambiente inóspito. A narrativa segue um menino de seis anos que sobrevive à selva e às dificuldades.

Já na década de 1980, a escritora de livros infanto-juvenis Henye Meyer se inspira no triste episódio para escrever “The Exiles of Crocodile Island” (Os exilados da Ilha dos Crocodilos). Americana de nascimento, ela vive na Inglaterra e é autora de uma dezena de livros de temática judaica voltada para o público adolescente. De acordo com o resumo apresentado pela editora, o livro em questão narra a história de uma comunidade de crianças arrancadas de suas casas pela Inquisição e sua luta desafiadora para manter sua fé em um ambiente hostil. 

Sem saída


Ainda na área de pesquisa histórica, a festejada obra do escritor inglês de origem judaica Simon Schama (A História dos Judeus) publicada em 2013, também aborda o episódio das crianças levadas de Lisboa a São Tomé no reinado de D.João II. “Os judeus vindos de Espanha, sobretudo crianças, seriam sujeitos a uma conversão rápida e iriam cristianizar São Tomé, acasalados com os escravos africanos que também foram enviados para a ilha”, assinala.

Professor nas Universidades de Harvard e Columbia e residindo nos Estados Unidos, Schama igualmente cita outra ação envolvendo o rapto de crianças judias, desta vez em 1497, ordenada pelo sucessor D.Manuel. E ressalta que “nunca mais foram vistas”. Sobre Portugal da época, ele descreve: "Os judeus ficaram presos no que foi, na realidade, o primeiro campo de concentração, de onde não podiam fugir nem ter autorização para sair se não se convertessem.”

Para o pesquisador americano Robert Garfield, Ph.D. em Estudos Africanos e professor na Universidade DePaul, em Chicago, São Tomé, quando foi descoberta em 1470 pelos portugueses que procuravam o caminho das índias, era uma ilha incomum, longe da Europa, localizada no Golfo da Guiné e desabitada. Foi colonizada por portugueses condenados, crianças judias convertidas à força e escravos africanos. A mistura dessas culturas, segundo Garfield, “criou uma sociedade inteiramente nova dentro da ilha”.

Autor do livro “A Chave para Guiné: Uma História da Ilha de São Tomé 1470-1655”, publicado originalmente em 1992 e traduzido para o português em 2019, Garfield fala sobre uma sociedade que floresceu na ilha, formada por ricos plantadores de açúcar e dedicada ao comércio de escravos. Enfrentando motins e rebeliões, a ilha foi atacada e invadida por europeus e sua economia entra em colapso em pouco mais de quatro gerações.

O arquipélago de São Tomé e Príncipe também foi tema de um Colóquio Internacional promovido pelo Instituto Universitário de Lisboa que atraiu mais de 100 oradores, em 2012, para debater o colonialismo, o período pós-colonial, a diáspora, literatura, linguística e desenvolvimento da região.

Uma publicação sobre o Colóquio apresentou mais de três dezenas de artigos acadêmicos abordando os aspectos sociais, econômicos e culturais da ilha ao longo do tempo. Sobre o início a colonização de São Tomé, documentos citados indicam: “Vindos em 1493 com Álvaro de Caminha, chegaram também a São Tomé 2.000 meninos judeus, cujos pais vieram para Portugal, expulsos de Espanha pelos reis católicos. Era objetivo da Coroa que fossem convertidos ao cristianismo e que ajudassem ao povoamento. Do conjunto deles, de que nenhum excedia os oito anos, diria Pêro de Caminha, terem dado boa conta da missão que lhes fora cometida. A sua integração na restante da comunidade através do casamento, teria sido, contudo, problemática, Do contingente inicial, em 1505/1506, reduziu-se apenas a 600.”

Lembrando Valetim Fernandes como fonte, são apresentados os seguintes números em relação à população da ilha, passados mais de uma década após a chegada das crianças: “600 descendentes de judeus castelhanos; 200 moradores na povoação principal (na maioria degredados); 1.000 moradores em toda a ilha (sem esclarecer se os descendentes de judeus se encontram entre eles); 2.000 escravos a trabalhar; 5 a 6.000 escravos para resgate”.

A Jewish Virtual Library comenta que até 1600, as práticas judaicas ainda podiam ser observadas nas ilhas, mas que no século 18 a maior parte da herança judaica já não existia. Também conta que uma pequena comunidade foi estabelecida nos séculos 19 e 20 com a chegada de alguns comerciantes judeus de cacau e açúcar. Mas, hoje, não há judeus vivendo nas ilhas.


Atualmente, a República de São Tomé e Príncipe (a distância entre as ilhas é de 140 km) tem em torno de 215 mil habitantes, ficou independente em 1975 e a língua oficial é o português. A principal atividade econômica do arquipélago é a agricultura, com base na exportação de semente de cacau, e a pesca. Segundo o Banco Mundial, um terço da população vive abaixo da linha internacional da pobreza (US$1,90 por dia).

Texto escrito em 2022 e atualizado em 2025