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domingo, 5 de julho de 2015

Show em Israel: boicote ou assédio moral?


Por Sheila Sacks

Desde que o músico inglês Roger Waters, ex-integrante do grupo Pink Floyd, tornou pública a carta enviada a Caetano Veloso e Gilberto Gil em que pede aos artistas para cancelarem o show em Tel Aviv, marcado para 28 de julho, um frisson sacudiu a mídia opinativa brasileira e as redes sociais, normalmente disponíveis para esse tipo de polêmica que envolve figuras conhecidas do show business.

A carta, escrita em maio logo após o anúncio da turnê dos brasileiros pela Europa e Israel, foi encaminhada aos músicos pelo movimento BDS, sigla para “boicote, desinvestimentos e sanções”, que desde 2005 faz campanha mundial contra Israel e é coordenado por um “Comitê Nacional Palestino” (BNC).   

Em 1 de junho, a “Folha de São Paulo” divulgou a carta de Waters que se utilizando de uma miscelânea de pontos de vista e estereótipos piegas sobre o Brasil, escreveu entre outras coisas, o seguinte: “ Eu tenho a praia de Ipanema nos olhos da minha mente”; “Eu tenho uma camiseta de futebol assinada: Para Roger, de seu fã Pelé”; “Eu amo o Brasil”.

Mas, a pressão sobre Caetano e Gil vem logo no parágrafo inicial: “Quando olho para as suas fotos, escuto as suas músicas, leio a histórias de suas lutas pessoais e profissionais, lembro de todas as lutas de todos os povos que resistiram”. Ao final do texto, mais coação: “Quando tudo isso acabar, nós iremos à Terra Santa, cantaremos nossas músicas de amor e solidariedade”.

Em 23 de junho foi a vez de “O Globo” publicar a carta-resposta de Caetano Veloso a Waters, em que é nítido o constrangimento do artista para explicar a sua presença em Israel. “Eu cantei nos Estados Unidos durante o governo Bush e isso não significava que eu aprovasse a invasão do Iraque”, alega. Mais adiante, desculpa-se: “Charbel (o brasileiro integrante do BDS que entregou a carta de Waters) sabe quantos problemas de produção teríamos no caso de cancelamento de um show que já foi anunciado e completamente vendido”.

Em 30 de junho, Waters ataca novamente com outra missiva endereçada a Caetano e publicada pelo “O Globo” que estranhamente adota o refrão do BDS nos títulos de ambas as cartas: “Boicote a Israel”. No documento, o inglês faz uma convocação pública ao brasileiro para se integrar às fileiras do movimento, a saber: “Temo que você possa estar vendo a política israelense com lentes cor-de-rosa”; “mas se você quer realmente influenciar o governo israelense, você se unirá a nós na linha de piquete do BDS”; ”Eu imploro a você para não proceder com sua participação em Tel Aviv”; “Caetano, eu não conheço você, nunca nos encontramos pessoalmente, mas eu acredito que você tem boas intenções”.

Como era de se esperar, algumas vozes com acesso à mídia e as redes sociais se pronunciaram por meio de artigos defendendo a apresentação dos artistas brasileiros em Israel. A série de explicações plausíveis apresentadas com o objetivo de aplacar a propaganda virulenta desencadeada por Waters ecoaram, mais uma vez, como vozes no meio do oceano, ouvidas apenas por aqueles que se encontram no mesmo barco.
  
Para além do oceano, no mundo da terra firme, a história, a experiência, a realidade e o bom senso contidos nesses textos lamentavelmente soçobram diante do universo fluido e digitalizado da propaganda, dos slogans e dos ídolos pop, uma trinca que persevera imbatível na era globalizada. Lembrar que Israel é a única democracia da região e que importantes lideranças palestinas até hoje não reconhecem o estado de Israel, assim como o radicalismo islâmico exclui Israel de qualquer acordo pra valer e o colonialismo inglês oprimiu judeus e árabes no início do século 20, definitivamente, essas assertivas apesar de verdadeiras já não têm o peso histórico de décadas anteriores.

Mas, por outro ângulo, essa pressão do ex-líder do Pink Floyd sobre Caetano e Gil apresenta características semelhantes ao que se convencionou tipificar como assédio moral. Afinal, o músico inglês criou uma situação de constrangimento para o colega brasileiro que se sentiu na obrigação de justificar em carta a sua apresentação em Israel e reafirmar a sua posição a favor do estabelecimento de uma pátria palestina. Uma asserção que, involuntariamente ou não, já politizou um show que, na origem, não privilegiava esse aspecto.

Com a publicação da segunda carta, mais incisiva contra a apresentação do show, mostra-se patente a ação coercitiva de Waters sobre Caetano. Para a legislação brasileira o assédio moral é uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que se manifesta por meio de gesto, palavra, escritos, capaz de provocar danos à personalidade ou imagem do assediado. No Rio de Janeiro, desde 2002 existe lei contra assédio moral relativa ao ambiente de trabalho. E Waters, Caetano e Gil têm no mundo dos espetáculos o seu ambiente de trabalho.

Também no Código Civil Brasileiro, o artigo 186 preceitua: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ilícito. Sem esquecer o artigo 5º, inciso X da Constituição Federal: São invioláveis a intimidade, vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Ao insistir para que Caetano e Gil cancelassem o show em Israel, fazendo crer que mantendo a apresentação eles se mostrariam, segundo palavras de Waters, “cúmplices de políticas racistas e ilegais”, o artista inglês extrapolou a barreira da sensatez, do respeito e da verdade, em um explícito abuso moral contra a dupla brasileira e ao próprio estado de Israel, alvo constante de ataques verbais de lideres muçulmanos. Há pouco mais de um mês, em 4 de junho, em uma reunião em Beirute, no Líbano, representantes do Hamas, Hezbollah e influentes clérigos muçulmanos, como o aiatolá Moshen Araki, do Irã, acordaram que “a destruição de Israel” é a prioridade máxima dos movimentos islâmicos, sustentando o apoio e o respaldo a ações terroristas desses grupos na região.

domingo, 28 de junho de 2015

Os heróis de Hemingway

por Sheila Sacks

Publicado no Correio do Brasil (Direto da Redação)



O mais terrível dos sentimentos é o sentimento de ter a esperança perdida
(Garcia Lorca, poeta e dramaturgo espanhol, fuzilado em 1936)

Dois dias antes das eleições americanas de 4 de novembro de 2008 - que consagraram Barack Obama como o primeiro negro a atingir à presidência dos Estados Unidos -, uma reportagem do “New York Times” destacava os exemplos de heróis do então candidato democrata Obama e de seu oponente, o republicano John McCain. Para ambos, o protagonista do livro “Por quem os sinos dobram”, o brigadista Robert Jordan, era a representação do homem honrado, generoso, determinado, altruísta, idealista e disciplinado. Ambientado na guerra civil espanhola (1936-1939), o romance de Ernest Hemingway (1899-1961) foi publicado em 1940 e é baseado em sua vivência como correspondente de guerra em Madri. O escritor trabalhava para a North American Newspaper Alliance (NANA), a mais importante agência de notícias à época.

Engajado contra o fascismo que avançava na Europa (e que matou Garcia Lorca aos 38 anos, em Granada), Hemingway acompanhou a saga dos voluntários das Brigadas Internacionais (1937-1938) que combatiam pela república espanhola contra o golpe militar liderado pelo general Francisco Franco, com o apoio de Mussolini e Hitler. Estima-se que 35 a 40 mil estrangeiros de 53 países, grande parte jovens de ideais socialistas (sendo 8 mil judeus), atenderam ao apelo do presidente espanhol Francisco Largo Caballero (1869-1946), o primeiro sindicalista a chefiar um governo na Espanha. Os brigadistas chegaram ao país no que seria o derradeiro despertar da consciência coletiva antes da hecatombe nazista.

No contato diário com os combatentes vindos dos Estados Unidos, o escritor lapidou o personagem central de seu livro que para alguns pesquisadores tem o perfil do judeu novaiorquino Irving Goff (1900-1989), capitão da Brigada Abraham Lincoln, com 3,2 mil voluntários, e para outros se assemelha a Milton Wolff (1915-2008), também um judeu de Nova York, o último comandante da brigada. Com 40% de seu efetivo composto por judeus americanos, a Brigada Lincoln foi desmobilizada em outubro de 1938 e perdeu 900 combatentes em solo espanhol.

Atrás das linhas inimigas

Mas, quem de fato teria inspirado o herói de Hemingway? No cinema, Jordan foi vivido pelo galã Gary Cooper, no filme de 1943, tendo como parceira Ingrid Bergman. Na história, o personagem é um professor de espanhol especialista em explosivos, americano do estado de Montana que se engaja na luta contra o fascismo através das Brigadas Internacionais. Ele viaja à Espanha para se juntar aos republicanos da Frente Popular que lutam contra os franquistas nacionalistas. Sua missão é explodir uma ponte para evitar que as tropas inimigas cheguem à cidade de Segóvia.

Em artigo para o “New York Times”, o jornalista e escritor David Margolick ao analisar a preferência de Obama e McCain pelo personagem de Hemingway, destaca que o escritor jamais revelou em quem se baseou para construir o seu herói. Sabe-se que ele conheceu em Madri um jovem professor da Universidade da Califórnia, Robert Merriman, que tinha estudado economia em Moscou e pertencia ao comando tático da Brigada Lincoln. Morto por tropas franquistas em 1938, Merriman, porém, não era perito em explosivos e nem se infiltrava através das linhas inimigas como Jordan fazia. Já Irving Goff atuava em operações de guerrilha no território inimigo, explodindo pontes, ferrovias e linhas de energia. Também Milton Wolff participava de situações perigosas e protagonizou ações heróicas comandando batalhas sangrentas. Ambos os brigadistas eram judeus e filiados ao Partido Comunista americano (Communist Party USA- CPUSA).

No mesmo artigo (‘A Hemingway hero embraced by both sides’ – Herói de Hemingway é adotado por ambos os lados, em tradução livre), Margolick cita Allen Josephs, professor de literatura na Universidade de West Florida, ao assinalar que o Jordan criado por Hemingway era um comunista, mas que mudou sua filiação para “antifascista” depois da objeção de seu editor, Charles Scribner. Ainda de acordo com Margolick, certamente não cairia bem, até em termos comerciais, Hemingway tipificar seu herói como um judeu comunista nascido no Brooklyn, ainda que essa fosse a realidade dos muitos americanos que ele encontrou na Espanha.

Coragem elogiada

Em 1938, em uma reportagem sobre os brigadistas americanos, Hemingway descreve Milton Wolff como um jovem de 23 anos, “alto como Lincoln, magro como Lincoln e tão corajoso e tão bom soldado como aqueles que lutaram nos batalhões em Gettysburg” (local da batalha que marcou o fim da guerra civil americana, em 1863, dando a vitória ao governo abolicionista de Abraham Lincoln). O escritor ressalta a habilidade de Wolff, atestando que dos “nove comandantes dos batalhões Lincoln, quatro morreram, quatro foram feridos e o nono era Milton Wolff”. E reforça: “Ele está vivo e sem ferimentos pela mesma casualidade que a passagem de um furacão deixa em pé uma alta palmeira.”

Wolff conheceu Hemingway em Madri, em julho de 1937, quando esteve na cidade por um período de folga. O encontro em um bar é descrito no seu livro de memórias “Another Hill” (Outra Colina), de 1994. Meses depois, como comandante da Brigada Lincoln, Wolff é fotografado ao lado do escritor e a foto ilustra a primeira página do jornal americano judaico The Forward (atualmente semanário), com tiragem de 270 mil exemplares. Seu autor, o húngaro Robert Capa, freqüentava o grupo de Hemingway e tornou-se um dos mais célebres fotógrafos de guerra da primeira metade do século 20.

Conta-se que até então a mãe de Wolff, em Nova York, ignorava que o filho lutava nas Brigadas Internacionais. Nas cartas, ele dizia que trabalhava em uma fábrica na Espanha para ajudar os combatentes republicanos. A foto, que correu o mundo e foi replicada por centenas de revistas e jornais, mostra um jovem magro, envergando uma farda, de semblante sério e com os cabelos escuros cobertos por uma boina. Ele olha para baixo como querendo evadir-se da lente da câmera. Ao seu lado, a imagem marcante de um Hemingway parecendo bem à vontade em sua missão de reportar a guerra.

Ativista até o fim

De volta aos Estados Unidos, Wolff se mantém fiel aos seus ideais, participando com outros veteranos de manifestações públicas contra a ditadura de Francisco Franco e de campanhas de assistência às famílias dos presos políticos, exilados e refugiados espanhóis. Por esse motivo ele chega a ser preso em 1940 e nos anos 1950 é alvo da intensa patrulha anticomunista liderada pelo senador Joseph McCarthy, em um período de delações e perseguições que atingiu militantes, intelectuais e artistas. Por ocasião de sua morte, em 2008, aos 92 anos, o jornal espanhol “El Mundo” lembrou que Wolff combateu durante toda a vida os movimentos fascistas. Na Segunda Grande Guerra ele colaborou com os serviços secretos britânicos e quando os Estados Unidos entrou no conflito se alistou no exército. Foi enviado para a Itália ocupada para lutar ao lado dos partisans (guerrilheiros) antifascistas.

O jornalista e escritor Jacinto Antón, em artigo no “El Pais” – o maior jornal da Espanha – é incisivo acerca do mítico comandante “El Lobo”, como Wolff era chamado por seus companheiros: “Caiu um valente”, escreve o articulista no início da matéria (‘Milton Wolff, el último comandante de la Brigada Lincoln’, em 08.01.2008). Antón observa que a descrição que Hemingway fez sobre o brigadista ainda permanecia atual. Apesar da idade, Wolff viajava à Espanha todos os anos para voltar a cruzar o rio Ebro – como na guerra, perseguido pelos inimigos – e jogar flores em suas águas em memória dos companheiros mortos, saudando-os com um “Salud, camaradas!”.

Em 2002, em visita a Barcelona, Wolff afirmou que sua luta na Espanha foi voluntária e pessoal. “Tenho a Espanha em meu coração. Este é o meu segundo país”, disse. Convidado a falar sobre a sua experiência como brigadista, Wolff admitiu que ao lutar pela república espanhola ele desafiou as leis dos Estados Unidos e se arriscou a perder a própria nacionalidade.

Visão “aventureira”

O outro possível inspirador de Hemingway, Irving Goff, nasceu em 1900 e cresceu nas ruas do Brooklyn. Ele foi acrobata profissional até ingressar no partido comunista. Em abril de 1937 viajou para a Espanha e meses depois já estava atuando nas guerrilhas. Treinado no uso de explosivos por instrutores soviéticos, uma de suas ações mais difíceis foi a destruição de uma ponte no povoado de Albarracín, na província de Teruel - a 300 quilômetros ao noroeste de Madri – com o objetivo de cortar o abastecimento das tropas franquistas. Esse feito pode ter influenciado o enredo de Hemingway, cujo personagem também se incumbe de explodir uma ponte para deter o avanço dos inimigos. Entretanto, o próprio Goff criticou o escritor logo após o lançamento do livro pelo que julgou uma visão “romântica e aventureira” em relação ao tema.

Um dos biógrafos de Hemingway, o jornalista Milt Machlin (1924-2004), afirma que o escritor teve longas conversas com Goff, que em companhia de dois outros brigadistas, Willian Alstrom e Alex Kunslich, formavam um grupo especial de guerrilha. Kunslich havia desaparecido nas montanhas durante uma incursão por trás das linhas inimigas e essa história chegou aos ouvidos de Hemingway. Criador das expressões “Triângulo das Bermudas” e “o abominável homem das neves”, Machlin foi correspondente da agência “France Presse”depois se dedicou a reportagens de aventura. Ele viajou a Cuba para conhecer pessoalmente o seu biografado. O livro “The Private Hell of Hemingway” (O inferno Privado de Hemingway) foi publicado em 1962.

Legião do Mérito

Com a Segunda Grande Guerra em curso, Goff foi convidado por Milton Wolff, companheiro das brigadas, para trabalhar a serviço da Inteligência Britânica, através da Agência de Serviços Estratégicos (Office of Strategic Services – OSS), precursora da CIA. Comandada pelo general William J.Danovan (o militar mais condecorado dos Estados Unidos), a agência começou a funcionar em 1941, quando os americanos ainda não estavam envolvidos oficialmente na Segunda Grande Guerra.

Goff aceitou a convocação e partiu para o norte da África onde iniciou o treinamento de recrutas espanhóis para habilitá-los nas operações atrás das linhas alemãs. Em 1943, é enviado à Itália pelo general Danovan para preparar os voluntários italianos nas operações de guerrilha contra tropas nazistas, no norte do país. Anos depois recebe a Legião do Mérito (Legion of Merit –LOM), medalha militar das Forças Armadas dos Estados Unidos, concedida àqueles que prestam serviços especialmente meritórios à Nação. Ao falecer, em 1989, é sepultado no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington, onde os veteranos e militares mortos nas guerras são enterrados com honras de Estado.

Causa coletiva

No estudo “Judios en La Guerra de España”, o pesquisador espanhol Alberto Fernández (1914-1993) comenta que “a maioria dos judeus que chegou à Espanha para combater as forças franquistas não veio como judeus e sim por simpatizar com a causa dos republicanos”. Oficial do exército republicano na guerra civil, Fernández teve contato com centenas de brigadistas, foi ferido e com a vitória de Franco teve de se exilar na França, onde lutou contra os nazistas. No texto em questão (arquivado na biblioteca digital da Universidade de Salamanca, a mais antiga do país), Fernández também credita ao avanço do antissemitismo na Alemanha a decisão desses voluntários de lutar contra o fascismo na Espanha, já que muitos eram socialistas, comunistas ou simpatizantes desses movimentos.

A mesma opinião tem a historiadora Raquel Ibáñez Sperber, de origem espanhola e que reside em Israel. Ela considera que o alto grau de antissemitismo presente nos governos de direita na Europa dos anos 1930 constituiu um fator importante para explicar a alta proporção de judeus (em torno de 20%) nas Brigadas Internacionais. Responsável pela exposição que reuniu fotos, documentos e objetos sobre os voluntários judeus das Brigadas Internacionais, em 2003, na Universidade Hebraica de Jerusalém, Ibáñez destaca que diante do acordo explícito do General Franco com a Alemanha hitlerista, judeus liberais da classe “burguesa”, antes indiferentes, mostraram simpatia pela causa republicana.

Voluntários de Israel

Além dos judeus da Europa, das Américas e parte da África, as Brigadas também contaram com voluntários judeus originários de Israel. Uma mostra instalada no Museu de Eretz Israel (Terra de Israel) de Tel Aviv, em 2013, resgata a memória desses combatentes esquecidos pelas páginas da história. A exposição intitulada ”From here to Madri” (De aqui para Madri) homenageia os 267 voluntários judeus nascidos na antiga Israel sob o Mandato Britânico que combateram na guerra civil junto aos republicanos espanhóis.

A história desses brigadistas também é contada no documentário produzido em 2007 pelo israelense Eran Torbiner, intitulado “Madri before Hanita”, em alusão ao kibutz Hanita, na Galileia. O filme expõe as críticas que esses jovens receberam por colocarem a luta contra o fascismo na Espanha acima do projeto de edificação de uma pátria na Terra Santa, ou seja, “Madri antes de Hanita”. Tendo que combater, por um lado os ingleses colonialistas e por outro os árabes que queriam destruí-los, foi grande o desagrado das lideranças judaicas com a partida desses combatentes.

Esse enfoque, porém, mudou a partir de 1986, quando da celebração, em Israel, dos 50 anos do início da guerra civil espanhola. O então presidente Chaim Herzog, quebrando um silêncio de décadas, elogiou o heroísmo dos voluntários, chamando-os de “guardiões do espírito e da imagem da humanidade e defensores da cultura humana”. Na solenidade promovida pela Histadrut – a Federação de Trabalhadores de Israel – Herzog agradeceu aos brigadistas: ”Em nome do povo de Israel, a principal vítima dos nazistas e fascistas, eu presto minha homenagem à honra e glória dos combatentes voluntários que deram a vida por essa causa e dos sobreviventes que aqui estão. Que eles possam desfrutar de uma vida longa e feliz.” 

Homenagens na Espanha

Dois anos depois (1988), em Madri, os brigadistas judeus mortos em combate na Espanha ganharam uma lápide no cemitério de Fuencarral. Além dos nomes dos 15 combatentes (aos quais posteriormente se acrescentaram mais quatro), um texto “In Memoriam” testemunhava: “Aqui jazem os voluntários judeus heroicamente caídos em Madri, no transcurso da guerra civil espanhola em defesa da liberdade. A vossa e a nossa.” Também em Barcelona a passagem dos brigadistas judeus pela Espanha foi lembrada. Desde 1990, uma escultura em forma da “Estrela de David” está instalada no cemitério de Montjuic, junto às lápides de outros brigadistas e das vítimas da repressão franquista.

Em 1996, por ocasião dos 60 anos do início da guerra civil, 350 veteranos remanescentes das Brigadas, a maioria com mais de 80 anos, voltaram a Madri, convidados pelo governo espanhol. Na saudação, é citada a frase do escritor Antonio Muñoz Molina, autor da obra “A Noite dos Tempos” (2009), centrada na guerra civil espanhola: “Viajaram para um país que não conheciam dispostos a perder, não somente a juventude, mas também, se fosse preciso, a sua vida em defesa da liberdade.”

Esse reconhecimento fica patente com o decreto real emitido naquele ano pelo qual os brigadistas poderiam optar pela nacionalidade espanhola, ainda que tivessem de renunciar a sua cidadania anterior. Restrição anulada em 2007 com a instituição da “Lei de Memória Histórica” que concedeu a cidadania, sem imposições. A Lei da Memória também abriu os documentos sigilosos da guerra civil e criou mecanismos para a reparação moral e jurídica dos combatentes e dos perseguidos da ditadura de Franco (regime que durou até a sua morte, em 1975).

Aviões de Hitler

De acordo com o historiador alemão Carlos Collado–Seidel, especializado em história espanhola, o golpe militar de 18 de julho de 1936 contra o governo republicano não iria adiante sem os aviões de Hitler e Mussolini. As aeronaves transportaram os milhares de soldados das tropas africanas do Protetorado espanhol de Marrocos para lutarem ao lado dos franquistas. No livro “España, regufio nazi” (2004), o historiador revela a afinidade ideológica e a comunhão de interesses que uniram Franco a Hitler.

Estima-se que Hitler enviou às forças franquistas 14 mil soldados alemães, centenas de tanques, armamentos e mais de 700 aviões que formaram a “Legião Condor”. O bombardeio à cidade basca de Guernica, imortalizado na pintura de Pablo Picasso, foi executado pela força aérea alemã. A Itália de Mussolini também colaborou com mais de 30 mil homens, tanques, armas e 660 aviões Do lado dos republicanos, o apoio veio basicamente da União Soviética que enviou mil aviões, 900 tanques, armamentos e instrutores. A Inglaterra, França e Estados Unidos, alegando que o conflito se limitava ao território espanhol, se desobrigaram de qualquer tipo de ajuda ou intervenção. Calcula-se que 400 mil espanhóis morreram no conflito e mais 180 mil durante os anos de chumbo da ditadura.

A historiadora austríaca Renée Lugschitz estudou por quinze anos a guerra civil espanhola e publicou a obra “Luchadoras en España: Mujeres extrajeras en La Guerra Civil Española”, em 2012. Ela explica que um terço dos brigadistas morreu nas frentes de batalha e aqueles que sobreviveram sofreram perseguição política ao voltarem para seus países. “Um grande número acabou em campos de concentração na França, mas outros terminaram em prisões comunistas após a Segunda Guerra Mundial.” No Brasil, dos 20 voluntários que decidiram lutar na Espanha, dois eram judeus de São Paulo. Ernest Yosk e Wolf Reutberg, comunistas perseguidos pela ditadura de Vargas, combateram na Espanha e morreram na Europa durante a Segunda Grande Guerra. O primeiro em um campo de concentração na Alemanha e o outro fuzilado pelos nazistas na França ocupada.

Sentido à vida”

Correspondente do “New York Times” na guerra civil espanhola, o jornalista americano Herbert L. Mattews (1900-1977) tornou-se amigo de Hemingway em Madri. Ele ganhou notoriedade internacional anos depois, em 1957, ao entrevistar com exclusividade, em Sierra Maestra, o então guerrilheiro Fidel Castro que comandava nas montanhas os grupos rebeldes na luta armada contra a ditadura de Fulgencio Batista.

No livro que publicou em 1973 sobre a sua vivência na guerra espanhola (“Half of Spain Died: a reappraisal of the Spanish Civil War” – Metade da Espanha morreu: uma reavaliação da Guerra Civil Espanhola, em tradução livre), Mattews escreve sobre os sentimentos que o animavam naqueles tempos: “Nada tão maravilhoso vai me acontecer novamente como esses dois anos e meio que eu passei na Espanha. Deu sentido à vida; incutiu coragem e fé na humanidade. Aqui eu aprendi que homens podem ser irmãos e que nações, fronteiras e raças são apenas aparatos externos.”

Saudando os brigadistas que conheceu nesse período, o jornalista americano exaltou a sua ligação emocional com essas pessoas. “Hoje, neste mundo, onde quer que eu encontre um homem ou uma mulher que lutou pela liberdade na Espanha, eu encontro uma alma gêmea. Nada vai quebrar esse vínculo, jamais. Lá, nós deixamos nossos corações.”

Igualmente para Hemingway a guerra civil espanhola teve um impacto que perdurou por toda a vida. A presença de figuras como George Orwell, autor de “1984” e Andre Malraux (“A Condição Humana”), entre outros intelectuais e artistas que pegaram em armas para lutar pela liberdade na Espanha entusiasmava o escritor: “A guerra civil espanhola foi o momento mais feliz de nossas vidas”, sintetizou. “Nós éramos felizes. Apesar das pessoas morrerem, pensávamos que suas mortes eram justificadas porque elas morriam por uma causa que acreditavam.“ (“A Death in San Pietro” – A Morte em San Pietro, de Tim Brady/2013).

Ao retornar da Espanha Hemingway decide residir em Cuba. Em 1939, no quarto do Hotel “Ambos Mundos”, no centro de Havana, escreve “Por Quem os Sinos Dobram” (“For Whom the Bell Tolls”). Com o sucesso editorial do livro – um dos 100 livros mais importantes do século 20 segundo pesquisa do jornal francês “Le Monde” – o criador de Robert Jordan, herói de Obama e também do cubano Fidel, finalmente consegue adquirir a casa de seus sonhos, de arquitetura espanhola e debruçada sobre o mar caribenho, onde vive por duas décadas.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Memórias de Horror: as imagens que o mundo não viu

Forças aliadas arquivaram filme de 1945 que documentou as atrocidades nazistas



Por Sheila Sacks

Para o jornalista Elio Gaspari o mundo só começou a encarar o Holocausto a partir dos anos 1960, com o julgamento público de Adolf Eichman em Tel-Aviv. De fato, a captura do oficial nazista em Buenos Aires por um comando israelense, seu transporte clandestino para a Terra Santa, as audiências na Suprema Corte e a sentença por enforcamento, em 1962, renderam milhares de reportagens, centenas de livros e ensaios, questionamentos políticos, filmes e documentários.

Entretanto, essa revelação histórica - a do mais brutal massacre institucional de cidadãos promovido por um governo em solo europeu – poderia ter sido antecipada e exibida ao mundo, ainda em 1945, caso as autoridades britânicas e americanas não tivessem arquivado em uma repartição pública militar os cinco cilindros de filme que registraram em tempo real o horror dos campos de concentração alemães.

Cenário macabro

A filmagem feita por cinegrafistas do exército aliado acompanha a libertação de 11 campos de concentração nazistas – de um total de 1.094 já documentados - a partir de abril de 1945. Entre eles os campos de Bergen-Belsen, com 70 mil mortos (onde Anne Frank morreu), Majdanek (80 mil), Dachau (30 mil) Buchenwald (56 mil), Ebensee (20 mil), Matthausen (150 mil) e Auschwitz-Birkenau (1,1 milhão). As imagens aéreas mostram vastas planícies ocupadas por fileiras de barracões cercadas por arame farpado e guaritas. No solo, cadáveres sem roupa se misturam aos doentes e moribundos que agonizam sob a indiferença daqueles que ainda reúnem forças para disputar algum resto de comida. Um cenário macabro onde proliferam a imundície, as epidemias e a fome.

O filme também mostra as equipes nazistas – homens e mulheres - que atuavam nos campos da morte. Sob a ordem do exército aliado, esses soldados alemães cavam imensos buracos onde são jogados os milhares de cadáveres que jazem insepultos. Todos esquálidos e desnudos. O material catalogado sob a inscrição F3080 permaneceu abandonado nas prateleiras de um departamento do antigo ministério da Guerra (hoje, ministério da Defesa) e em 1952 foi transferido para o “Imperial War Museum” – IWM (Museu Imperial da Guerra) que o registrou sob o título de “Memory of the Camps” (Memória dos Campos). Ali ficou enterrado e esquecido por décadas.

Culpa coletiva

Planejado para ser um documento histórico e didático que funcionaria como uma prova real da existência dos campos e das práticas abomináveis exercidas pelo regime nazista, o projeto do comando aliado ficou sob a responsabilidade de Sidney Bernstein (1899-1993), chefe da seção de cinema da divisão de Informação britânica, que chamou Richard Crossman para ajudá-lo no roteiro. Crossman foi um dos primeiros oficiais britânicos a pisarem no campo de Dachau e posteriormente entrou para a política, tornando-se líder do Partido Trabalhista e ministro do Trabalho. Com apoio dos colegas do serviço americano de informação, Bernstein recrutou ainda o diretor de cinema Alfred Hitchcock (1899-1980), que trabalhava em Hollywood, para supervisionar o documentário.

Mas, em 9 de  julho de 1945, menos de três meses após o início efetivo do projeto, os americanos retiram a sua participação no filme. Em setembro de 1945, com o documentário inacabado, as autoridades britânicas resolvem interromper o trabalho. O comando militar, àquela altura, estava empenhado em melhorar as relações anglo-germânicas, conter uma possível expansão soviética e não dar publicidade à vitimização dos judeus que lutavam por uma pátria na terra de Israel sob mandato britânico. A exibição do filme iria incutir uma culpa coletiva sobre a população alemã, o que segundo as autoridades aliadas aumentaria ainda mais o caos e a desmoralização de uma nação derrotada.

Nas imagens engavetadas, moradores das cidades e vilas próximas aos campos, convocados pelo exército aliado, visitam esses locais em plena efervescência de uma indescritível e absurda tragédia humana. As câmeras registram o constrangimento e a  aparente vergonha dos alemães diante daquela multidão de seres desfigurados, reduzidos ao nível mais baixo de miséria e humilhação. Um pesadelo inimaginável que se sucedia a poucos quilômetros de suas casas, sem que ninguém soltasse um suspiro de misericórdia. Vizinhos das indústrias da morte, os moradores são forçados a encarar, naquela primavera de 1945, a máquina genocida que amparada na indiferença e pouco caso de seus cidadãos exterminou milhões de crianças, idosos e cidadãos civis inocentes.

Vizinhos dos campos 
O historiador Geoffrey Megargee, do Museu do Holocausto de Washington, afirma que, de 1933 a 1945, o regime nazista implantou uma rede de trabalho escravo que funcionou em 42.500 locais na Alemanha e nos países ocupados. Foram 1.094 campos de concentração e 1.150 guetos, além de milhares de fábricas e outros centros de trabalho forçado, de tortura e de morte.

O mapeamento e o censo completo desses locais irão compor uma enciclopédia que deverá estar concluída nos próximos anos. “A existência de campos de concentração não era segredo e dada a dimensão dos números é quase impossível acreditar que os alemães não tinham conhecimento do sistema de matança de Hitler”, pondera o pesquisador. “Quando você tem dezenas de milhares de acampamentos e milhões de trabalhadores forçados, prisioneiros de guerra e prisioneiros de campos de concentração em todos os lugares, todos fazendo todo o tipo de trabalho que se possa imaginar, é muito difícil dizer que você não sabia de nada desse sistema”, completa.

Exibição na TV

Corpos empilhados 
Em 7 de maio de 1985, após 40 anos de um esquecimento premeditado e moralmente injustificável,  o documentário em estado bruto é apresentado na TV americana. Pesquisadores do premiado programa de jornalismo investigativo “Frontline” - focado em temas políticos e internacionais - haviam encontrado em um cofre do IWM, em Londres, os cinco cilindros de filme e mais um rolo sem data, com imagens não editadas, um roteiro datilografado para narração e uma lista de termos que corresponderia às imagens editadas (um sexto carretel de filme que mostrava a libertação dos campos de Auschwitz e Majdanek teria sido levado para Moscou por cinegrafistas soviéticos).

O ator britânico Trevor Howard (1913-1988) é escalado para a narração das imagens que se mantém fiel ao roteiro original. Com o mesmo título registrado pelo museu, “Memory of the Camps” é exibido pelo canal aberto PBS (Public Broadcasting Service), dos Estados Unidos, uma emissora pública voltada para programas culturais e educativos.

Josef Kramer
Acerca do filme, um dos cinegrafistas responsáveis pelas imagens chocantes registradas no campo de Bergen-Belsen foi o sargento do exército britânico, Mike Lewis, que não tinha ideia do que iria encontrar naquela tarde de 15 de abril de 1945, ao cruzar os portões do campo recém- libertado. Tinham dito que ele iria filmar um acampamento de prisioneiros, de criminosos. Anos depois, sua filha, Helen, conta a saga do pai: “Ele entrou pelos portões de arame farpado e se deparou com um terreno baldio cheio de corpos de pessoas mortas, em sua maioria nuas, ao lado de outras morrendo de fome. Eram em torno de 10 mil pessoas que jaziam insepultas e outras 13 mil que morriam de desnutrição e doenças.”

Helen Lewis diz que seu pai permaneceu por 10 dias filmando as atrocidades nazistas em Belsen, apesar da epidemia de tifo que assustava a todos. “Foi um trabalho de registro histórico que inclusive foi usado em um dos primeiros julgamentos de crimes de guerra.” De fato, cenas do documentário foram apresentadas como prova documental no julgamento de Josef Kramer, o chefe do campo de Bergen-Belsen, cuja imagem está presente no filme. Conhecido como a besta de Belsen, Kramer também foi responsável pelo controle das câmaras de gás de Auschwitz. Ele foi condenado por uma corte militar britânica e enforcado em 13 de dezembro de 1945.

Em Berlim

Corpos insepultos
Um ano antes, em 1984, por ocasião do 34º Festival de Cinema de Berlim, as imagens de “Memory of the Camps” foram mostradas à parte da competição oficial. O documentário sem som foi precedido pela leitura do texto dos editores originais. Após os 60 minutos de filme houve um debate acompanhado pela rede americana de TV NBC (National Broadcasting Company). O tema abordava a possibilidade de exibição do documentário em toda a Alemanha Ocidental (o muro de Berlim que separava as duas Alemanhas - a Oriental sob o governo soviético e a Ocidental, alinhada com os Estados Unidos - só foi derrubado em novembro de 1989). Porém, o assunto não foi adiante em termos práticos e os debatedores e a plateia se mostraram evasivos.

O crítico de cinema Harlan Kennedy que escrevia para a revista americana “Film Comment” e estava presente ao encontro, comentou que o único traço de realidade sobre o que acontecia no país em relação ao Holocausto veio através da observação de um estudante. “Ele disse que nunca se falava sobre essas atrocidades na escola. E que havia participado de uma visita com seus colegas a Bergen-Belsen, mas a história e o horror do lugar foram apresentados de forma bem abreviada. Disse ainda que nunca tinha visto nada parecido com as imagens do filme, o que fez o mediador pular da cadeira e responder que não havia esse tipo de material disponível na Alemanha.”

Imagens digitalizadas

Em 2015, três décadas após essas apresentações que tiveram divulgação restrita, o governo britânico resolve marcar os 70 anos da libertação dos campos nazistas e o fim da Segunda Grande Guerra (1939-1945) com o documentário recuperado sob o título original: “German Concentrations Camps Factual Survey” (Inspeção local dos campos de concentração alemães, em tradução livre). Pesquisadores do IWM onde o filme esteve abandonado por mais de 60 anos se empenharam no processo de digitalização das imagens e de outros acabamentos, como a inclusão de som e áudio e a reabilitação do rolo dado como perdido.
 
Contudo, permanecem os questionamentos sobre a decisão das forças aliadas de desistir de concluir o documentário, em 1945, e deixá-lo enterrado por tanto tempo, longe do olhar e da consciência do mundo. A filha de Sidney Bernstein, o idealizador do filme, revelou em entrevista ao jornal israelense “Haaretz” que até 1984-85, quando as imagens foram liberadas, ela também não tinha conhecimento da existência do material. Cineasta e autora de dezenas de curtas-metragens, Jane Wells confessou que foi uma surpresa completa saber que o pai esteve em Bergen-Belsen. Realmente, Bernstein impressionado com o relato escabroso do correspondente britânico da rádio BBC, Richard Dimbleby, sobre o campo de Belsen, foi ao local e decidiu retratar os crimes dos nazistas de tal maneira que seria impossível alguém negar que aquilo existiu.

Em 1984, aos 85 anos, Bernstein lamentou que o documentário não se concluísse. “Minhas instruções eram para filmar tudo, o que provaria que realmente aquilo aconteceu. Eu queria provar que tinha visto porque a maioria das pessoas iria negar.” Sobre a presença de Hitchcock no filme, acredita-se que foi importante para delinear o roteiro, enfatizando quão perto estavam os campos de concentração das aldeias e cidades, onde civis alemães viveram durante a guerra. O cineasta queria planos longos, sem cortes, para que o documentário transmitisse credibilidade e assim se tornar irrefutável a possíveis controvérsias quanto ao extermínio sistemático de milhões de pessoas naquelas fábricas de mortes.

“Memory” é tema de filme


Ressuscitado da censura e do ostracismo, o documentário de 1945 agora está sendo apresentado em museus e centros de cultura a uma geração que na maioria das vezes dá de ombros para o que aconteceu porque não houve um processo sistemático de conscientização coletiva sobre o tema que ficou restrito às teias literárias, memoriais e artísticas. Mas, ainda assim suas imagens surpreendem pelo extremo nível de desumanidade e a brutalidade que registram.

Ciente e sensibilizado pelo trabalho de restauração do documentário, o antropólogo e documentarista inglês Andre Singer partiu para a realização de um filme tendo como base o “Memory of the Camps”. Autor de documentários premiados de TV e ex-diretor do “Discovery Channel”, na Europa, Singer revive a história de alguns sobreviventes, apresentando imagens do filme original, depoimentos de soldados e cinegrafistas que estiveram nos campos, e a visão de Bernstein e Hitchcock. Apresentado no Festival de Berlim em 2014, o filme "Night Will Fall" (em alusão à citação do roteiro original: ‘A menos que o mundo aprenda a lição que essas imagens ensinam, a noite vai cair’) foi exibido na TV, no início de 2015, em mais de 15 países, durante a semana de celebração do Dia Internacional do Holocausto (27 de janeiro).

Guardas arrastam cadáver
Na Alemanha, onde o filme teve estreia mundial, o historiador Heinrich August Winkler admitiu que “o Holocausto é o fato central da história alemã do século 20”. Também afirmou que a população da Alemanha levou muitas décadas para reconhecer o Holocausto e que não se pode colocar um ponto final diante desses acontecimentos. Professor emérito da Universidade Humboldt, de Berlim, ele discursou no parlamento alemão na cerimônia dos 70 anos do fim da Segunda Grande Guerra, em sessão especial realizada em 8 de maio de 2015. Para uma plateia de autoridades, o historiador lembrou que a ascensão política de Hitler foi o triunfo do mito sobre a razão e advertiu que a xenofobia e o antissemitismo atuais presentes na vida das sociedades alimentam e nutrem esses mitos, que na verdade nunca desapareceram. Continuam à espreita, esperando a sua hora para agir.

terça-feira, 31 de março de 2015

Imprensa em questão: o domínio da opinião

Por Sheila Sacks
Publicado no "Observatório da Imprensa"

  “Os inteligentes sempre facilitaram as coisas para os bárbaros” (Theodor W. Adorno, filósofo)

Na série de TV Good Wife, ambientada nos tribunais de Chicago, uma das magistradas possui determinada característica que desarma os bacharéis que recorrem à sua jurisdição. Dependendo do viés interpretativo adotado pelos advogados de defesa e de acusação em relação ao tema em julgamento, a juíza interrompe a argumentação com o bordão “na sua opinião”, sinalizando aos contendores e aos membros do júri que o raciocínio expresso pelo profissional em questão representa um ponto de vista pessoal e não necessariamente uma visão verdadeira ou correta dos fatos em exame.

Diferente dos tribunais, cujos parâmetros legais dificultam e restringem eventuais manipulações na construção de um raciocínio, a imprensa é um campo aberto a observações pessoais especulativas pela própria natureza de seu serviço voltado à livre difusão da informação e por extensão ao livre exercício da opinião. Ainda que o comentário afronte conceitos éticos e apresente visões distorcidas da realidade, o jornal lhe confere visibilidade e, essencialmente, o crédito da confiabilidade. O historiador americano Christopher Lash (1932-1994), crítico dos processos de disseminação da informação no mundo globalizado, teve essa percepção ao enunciar em seu livro “Cultura do Narcisismo” (de 1979), que “para algo ser aceito como real, basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável”.

Artistas opinativos

Recente consulta do Ibope apontou que 58% dos entrevistados confiam “muito ou sempre nos jornais impressos”, percentual superior a outros meios de comunicação como rádio, televisão e internet (“O consumo da informação”, em O Estado de São Paulo de 28.12.2014). Outro dado significativo é que a grande maioria dos leitores (84%) lê jornais para se informar e se inteirar das notícias, segundo a mesma pesquisa.  Mas, tratando-se de páginas de opinião, presume-se que o interesse do leitor irá convergir naturalmente para o editorial, que enuncia a posição ideológica do jornal, e também para os habituais colunistas que repercutem os temas políticos nacionais e internacionais que impactam a vida do cidadão e da sociedade.

Na última década, ampliando a influência subjetiva das páginas opinativas que interferem na formação e avaliação da realidade, a imprensa vem agregando a esse plantel de profissionais de jornalismo uma plêiade de personalidades do mundo artístico, aparentemente em prol da diversidade de ideias e conceitos que balizam a liberdade de expressão nas democracias. Se antes, cineastas, atores, músicos e outros astros populares “bons de escrita” se expressavam nos suplementos de cultura ou “segundo caderno” sobre a sua arte, agora migraram para as páginas reservadas à prática e observação jornalísticas das cenas político-sociais, concorrendo em igualdade de espaço e mérito com os textos do “pessoal da casa”.

A seu favor, os próprios currículos festejados pela imprensa e a admiração dos leitores-fãs, dois referenciais de peso a embasar pontos de vista individuais e impositivos que caracterizam “a superioridade bem informada” conceituada pelo filósofo e sociólogo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969). Na obra “Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada” (1951), Adorno então em seu exílio nos Estados Unidos chama a atenção para a responsabilidade que deve prevalecer entre a elite formadora de opinião – “os inteligentes” – quando se propõe a expressar suas ideias e opiniões valendo-se de um meio de comunicação de massa. “Nenhum pensamento é imune à comunicação e proferi-lo no lugar errado e por meio de entendimento errado é suficiente para solapar sua verdade”, escreveu.

Acrescentando que à responsabilidade que se requer consciente e justa na formulação de conceitos e interpretações críticas soma-se uma carga de poder bastante presente dado o alto grau de influência que essas opiniões produzem.  Para o professor de Ciências da Comunicação da Universidade Nova Lisboa, João Pissarra Esteves, aqueles que têm acesso à mídia estão investidos de um poder extraordinário, “porque impõem a sua própria realidade perante os outros, de acordo com os seus valores e interesses próprios” (“A Ética da Comunicação e os Media Modernos”, de 1998).

“Legisladores invisíveis”

Maior contundência mostra o autor de “Nossa Cultura ou o que restou dela” (2005), o psiquiatra e escritor inglês Theodore Dabrymple, de 65 anos, um implacável analista da sociedade globalizada com uma dezena de livros publicados. Ele credita aos artistas, diretores de cinema, romancistas, dramaturgos, jornalistas e até cantores populares – além de economistas e filósofos sociais – o poder de indução e controle das sociedades. “São eles os legisladores invisíveis do mundo e devemos prestar muita atenção àquilo que dizem e como dizem”, assinala no prefácio do livro.

É o que se acompanha em relação a dois artigos publicados em O Globo nas edições de domingo. O primeiro – “O Jeová do DVD” - assinado pelo compositor Aldir Blanc foi dado a conhecer uma semana antes da realização do primeiro turno das eleições presidenciais que elegeram Dilma Rousseff (28.09.2014). Manejando as palavras como petardos, o compositor adota uma linguagem “jihadista” para firmar sua posição ideológica de não votar na então candidata Marina Silva. Acusa-a de estar “enganando os trouxas” e faz pouco da crença da candidata. “O que a inspira (na Bíblia)? A matança dos inocentes? Um pai que sacrificaria o filho porque o velho é um Deus ciumento? O absurdo e cruel sofrimento imposto a Jó? Os incestos e traições?”

Antes, o autor insinua que a queda do avião de Eduardo Campos teve o dedo de agências de inteligência internacionais. “Há quem diga que o avião foi sabotado pela CIA, Mossad, a poderosa empresa transacional Testemunhas de Jeová e outros interessados.” E conclui: “Afastem do povo brasileiro essa bíblia arcaica, cheia de dólares e mentiras.”

Opinião contestada

No segundo artigo – “A Hollywood de Hitler”, em 16.11.2014 – o cineasta Cacá Diegues repercute o livro do americano Ben Urwand “A colaboração – O pacto entre Hollywood e o nazismo” (2013) que versa sobre um suposto compromisso de não agressão aos nazistas por parte dos donos de estúdios americanos na década de 1930. Dados contestados pelo jornalista e crítico de cinema da revista “The New Yorker”, David Denby, à época da publicação do livro. Ele classifica de enganosa e cheia de erros e omissões a tese acadêmica de Urwand que originou a obra, questionando e desmentindo fatos descritos pelo autor (“How Could Harvard Have Publisher Ben Urwand’s ‘The Collaborations’?, em 23.09.2013).

Filme contra o nazismo 
(1939)
Mas, Cacá Diegues assume as afirmações de Urwand como verdades absolutas e define seu julgamento: “O curioso é que os chefões dos estúdios eram quase todos judeus (...). Em benefício de seu balanço, eles preferiram ignorar o que se passava com os judeus na Alemanha de Hitler e em toda a Europa.”

Mais adiante, ele reforça esse ponto de vista: “Se considerarmos as leis do mercado acima de todas as coisas, estaremos consagrando a superioridade do dinheiro sobre a ética (...), “o fim do próprio humanismo e do amor à vida.” Ou seja, não satisfeito em endossar fatos controversos, o cineasta desloca o eixo das responsabilidades no que concerne ao maior e mais abominável processo de matança institucionalizada do Ocidente. Crime levado a efeito por uma política de estado e para o qual a maioria dos governos europeus fechou os olhos, em uma cumplicidade, essa sim, que consagra o fim do humanismo e do amor ao próximo.

Os bastidores de um jornal 
(1952)
Lamentavelmente, em ambos os artigos, reconhecida a capacidade intelectual de seus autores, a lógica do pensamento mantém-se superficial e primária, repetindo estereótipos que corrompem um correto juízo de valor. Associar o Velho Testamento e Jeová a “dólares e mentiras” assim como o cinema de Hollywood a Hitler são duas faces tendenciosas e estigmatizantes da mesma moeda. Pondo de lado fatores pessoais como preconceitos, inconsciente e linguagem, vale a resposta da filósofa Hannah Arendt (1906-1975) ao jornalista Samuel Grafton, do New York Post, em 1963, sobre a coerência da superficialidade com o mal. “Nós resistimos ao mal, ao não sermos arrastados pela aparência das coisas, ao pararmos e começarmos a pensar; isto é, ao alcançarmos outra dimensão que não a do horizonte do cotidiano. Em outras palavras, quanto mais superficial alguém for, mais probabilidade terá de se render ao mal.” (“The Jewish Writings”, de 2007).

Ao leitor consciente, portanto, sobra a desagradável sensação de impotência diante da leitura de textos bem articulados, produzidos por uma elite inteligente respaldada por um veículo da imprensa do porte de O Globo. Nesse caso soa perfeita a observação do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, de 89 anos, quando afirma que “nunca fomos tão livres e tão incapazes para mudar as coisas”.