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terça-feira, 31 de março de 2015

Imprensa em questão: o domínio da opinião

Por Sheila Sacks
Publicado no "Observatório da Imprensa"

  “Os inteligentes sempre facilitaram as coisas para os bárbaros” (Theodor W. Adorno, filósofo)

Na série de TV Good Wife, ambientada nos tribunais de Chicago, uma das magistradas possui determinada característica que desarma os bacharéis que recorrem à sua jurisdição. Dependendo do viés interpretativo adotado pelos advogados de defesa e de acusação em relação ao tema em julgamento, a juíza interrompe a argumentação com o bordão “na sua opinião”, sinalizando aos contendores e aos membros do júri que o raciocínio expresso pelo profissional em questão representa um ponto de vista pessoal e não necessariamente uma visão verdadeira ou correta dos fatos em exame.

Diferente dos tribunais, cujos parâmetros legais dificultam e restringem eventuais manipulações na construção de um raciocínio, a imprensa é um campo aberto a observações pessoais especulativas pela própria natureza de seu serviço voltado à livre difusão da informação e por extensão ao livre exercício da opinião. Ainda que o comentário afronte conceitos éticos e apresente visões distorcidas da realidade, o jornal lhe confere visibilidade e, essencialmente, o crédito da confiabilidade. O historiador americano Christopher Lash (1932-1994), crítico dos processos de disseminação da informação no mundo globalizado, teve essa percepção ao enunciar em seu livro “Cultura do Narcisismo” (de 1979), que “para algo ser aceito como real, basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável”.

Artistas opinativos

Recente consulta do Ibope apontou que 58% dos entrevistados confiam “muito ou sempre nos jornais impressos”, percentual superior a outros meios de comunicação como rádio, televisão e internet (“O consumo da informação”, em O Estado de São Paulo de 28.12.2014). Outro dado significativo é que a grande maioria dos leitores (84%) lê jornais para se informar e se inteirar das notícias, segundo a mesma pesquisa.  Mas, tratando-se de páginas de opinião, presume-se que o interesse do leitor irá convergir naturalmente para o editorial, que enuncia a posição ideológica do jornal, e também para os habituais colunistas que repercutem os temas políticos nacionais e internacionais que impactam a vida do cidadão e da sociedade.

Na última década, ampliando a influência subjetiva das páginas opinativas que interferem na formação e avaliação da realidade, a imprensa vem agregando a esse plantel de profissionais de jornalismo uma plêiade de personalidades do mundo artístico, aparentemente em prol da diversidade de ideias e conceitos que balizam a liberdade de expressão nas democracias. Se antes, cineastas, atores, músicos e outros astros populares “bons de escrita” se expressavam nos suplementos de cultura ou “segundo caderno” sobre a sua arte, agora migraram para as páginas reservadas à prática e observação jornalísticas das cenas político-sociais, concorrendo em igualdade de espaço e mérito com os textos do “pessoal da casa”.

A seu favor, os próprios currículos festejados pela imprensa e a admiração dos leitores-fãs, dois referenciais de peso a embasar pontos de vista individuais e impositivos que caracterizam “a superioridade bem informada” conceituada pelo filósofo e sociólogo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969). Na obra “Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada” (1951), Adorno então em seu exílio nos Estados Unidos chama a atenção para a responsabilidade que deve prevalecer entre a elite formadora de opinião – “os inteligentes” – quando se propõe a expressar suas ideias e opiniões valendo-se de um meio de comunicação de massa. “Nenhum pensamento é imune à comunicação e proferi-lo no lugar errado e por meio de entendimento errado é suficiente para solapar sua verdade”, escreveu.

Acrescentando que à responsabilidade que se requer consciente e justa na formulação de conceitos e interpretações críticas soma-se uma carga de poder bastante presente dado o alto grau de influência que essas opiniões produzem.  Para o professor de Ciências da Comunicação da Universidade Nova Lisboa, João Pissarra Esteves, aqueles que têm acesso à mídia estão investidos de um poder extraordinário, “porque impõem a sua própria realidade perante os outros, de acordo com os seus valores e interesses próprios” (“A Ética da Comunicação e os Media Modernos”, de 1998).

“Legisladores invisíveis”

Maior contundência mostra o autor de “Nossa Cultura ou o que restou dela” (2005), o psiquiatra e escritor inglês Theodore Dabrymple, de 65 anos, um implacável analista da sociedade globalizada com uma dezena de livros publicados. Ele credita aos artistas, diretores de cinema, romancistas, dramaturgos, jornalistas e até cantores populares – além de economistas e filósofos sociais – o poder de indução e controle das sociedades. “São eles os legisladores invisíveis do mundo e devemos prestar muita atenção àquilo que dizem e como dizem”, assinala no prefácio do livro.

É o que se acompanha em relação a dois artigos publicados em O Globo nas edições de domingo. O primeiro – “O Jeová do DVD” - assinado pelo compositor Aldir Blanc foi dado a conhecer uma semana antes da realização do primeiro turno das eleições presidenciais que elegeram Dilma Rousseff (28.09.2014). Manejando as palavras como petardos, o compositor adota uma linguagem “jihadista” para firmar sua posição ideológica de não votar na então candidata Marina Silva. Acusa-a de estar “enganando os trouxas” e faz pouco da crença da candidata. “O que a inspira (na Bíblia)? A matança dos inocentes? Um pai que sacrificaria o filho porque o velho é um Deus ciumento? O absurdo e cruel sofrimento imposto a Jó? Os incestos e traições?”

Antes, o autor insinua que a queda do avião de Eduardo Campos teve o dedo de agências de inteligência internacionais. “Há quem diga que o avião foi sabotado pela CIA, Mossad, a poderosa empresa transacional Testemunhas de Jeová e outros interessados.” E conclui: “Afastem do povo brasileiro essa bíblia arcaica, cheia de dólares e mentiras.”

Opinião contestada

No segundo artigo – “A Hollywood de Hitler”, em 16.11.2014 – o cineasta Cacá Diegues repercute o livro do americano Ben Urwand “A colaboração – O pacto entre Hollywood e o nazismo” (2013) que versa sobre um suposto compromisso de não agressão aos nazistas por parte dos donos de estúdios americanos na década de 1930. Dados contestados pelo jornalista e crítico de cinema da revista “The New Yorker”, David Denby, à época da publicação do livro. Ele classifica de enganosa e cheia de erros e omissões a tese acadêmica de Urwand que originou a obra, questionando e desmentindo fatos descritos pelo autor (“How Could Harvard Have Publisher Ben Urwand’s ‘The Collaborations’?, em 23.09.2013).

Filme contra o nazismo 
(1939)
Mas, Cacá Diegues assume as afirmações de Urwand como verdades absolutas e define seu julgamento: “O curioso é que os chefões dos estúdios eram quase todos judeus (...). Em benefício de seu balanço, eles preferiram ignorar o que se passava com os judeus na Alemanha de Hitler e em toda a Europa.”

Mais adiante, ele reforça esse ponto de vista: “Se considerarmos as leis do mercado acima de todas as coisas, estaremos consagrando a superioridade do dinheiro sobre a ética (...), “o fim do próprio humanismo e do amor à vida.” Ou seja, não satisfeito em endossar fatos controversos, o cineasta desloca o eixo das responsabilidades no que concerne ao maior e mais abominável processo de matança institucionalizada do Ocidente. Crime levado a efeito por uma política de estado e para o qual a maioria dos governos europeus fechou os olhos, em uma cumplicidade, essa sim, que consagra o fim do humanismo e do amor ao próximo.

Os bastidores de um jornal 
(1952)
Lamentavelmente, em ambos os artigos, reconhecida a capacidade intelectual de seus autores, a lógica do pensamento mantém-se superficial e primária, repetindo estereótipos que corrompem um correto juízo de valor. Associar o Velho Testamento e Jeová a “dólares e mentiras” assim como o cinema de Hollywood a Hitler são duas faces tendenciosas e estigmatizantes da mesma moeda. Pondo de lado fatores pessoais como preconceitos, inconsciente e linguagem, vale a resposta da filósofa Hannah Arendt (1906-1975) ao jornalista Samuel Grafton, do New York Post, em 1963, sobre a coerência da superficialidade com o mal. “Nós resistimos ao mal, ao não sermos arrastados pela aparência das coisas, ao pararmos e começarmos a pensar; isto é, ao alcançarmos outra dimensão que não a do horizonte do cotidiano. Em outras palavras, quanto mais superficial alguém for, mais probabilidade terá de se render ao mal.” (“The Jewish Writings”, de 2007).

Ao leitor consciente, portanto, sobra a desagradável sensação de impotência diante da leitura de textos bem articulados, produzidos por uma elite inteligente respaldada por um veículo da imprensa do porte de O Globo. Nesse caso soa perfeita a observação do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, de 89 anos, quando afirma que “nunca fomos tão livres e tão incapazes para mudar as coisas”.


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

De volta a Sefarad

Por Sheila Sacks


A Inquisição espanhola e portuguesa desestruturou as comunidades judaicas na Península Ibérica, uma das mais cultas e prósperas da época, com grande parte de seus membros partindo para o exílio ou se convertendo à força ao cristianismo. Instalada oficialmente na Espanha em 1478, a Inquisição precedeu em 14 anos o édito real de expulsão dos 300 mil judeus que viviam nas terras de Sefarad. Mas a perseguição aos judeus e cristãos-novos (marranos) foi além do continente europeu e atingiu as colônias das Américas, com a instalação de tribunais do Santo Ofício em várias cidades. Mais de 30 mil marranos foram condenados à morte sob a acusação de prática secreta de ritos judaicos. 

“Esta singela e preciosa chave de ferro simboliza o magnífico lar de nossos antepassados espanhóis. Meu bisavô amarrou a chave em seu cinto e nunca mais se separou dela” (do livro “A saga do marrano”, de Marcos Aguinis).

Em 2015, judeus expulsos da Espanha e Portugal há 523 anos terão a oportunidade de reconquistar as suas nacionalidades ibéricas a partir das novas leis aprovadas em ambos os países.  A estimativa é que existam 3,5 milhões de judeus praticantes de ascendência sefardita (originários da Península Ibérica – Sefarad, em hebraico) vivendo em Israel, França, Estados Unidos, Turquia, México e em países da América do Sul.

No Brasil são 40 mil judeus sefarditas (que seguem a religião judaica) e outros milhares de descendentes de judeus originários da Espanha e Portugal que se afastaram do judaísmo há dezenas de gerações. Para essa grande maioria não será fácil preencher todos os requisitos burocráticos e legais para a obtenção das cidadanias.

As dificuldades para comprovar com documentos válidos uma origem familiar que remonta a um passado de cinco séculos certamente vão barrar a pretensão não só dos que se mantêm dentro das normas religiosas judaicas como principalmente daqueles descendentes de marranos (vocábulo espanhol depreciativo que designava os cristãos-novos) ou B’nei anussim (“filhos dos forçados”, em hebraico), que por razões diversas se distanciaram de sua religião nativa.

Busca de identidade

A identificação da Espanha com “Sefarad” se consolidou no século 1 através da obra “Targum Jonathan”, do rabino Yonatan Ben Uziel, uma tradução com comentários do livro dos profetas (Nev’im). O termo apareceu uma única vez na citação bíblica do profeta Ovadia (um dos 48 profetas de Israel) que viveu no século 9 antes da Era Comum e se refere a uma cidade bíblica de localização incerta. Ovadia foi contemporâneo do profeta Eliahu (Elias), o mais venerado profeta depois de Moisés. 

No livro “Nunca podras volver a casa” (Nunca voltarás a casa), o jornalista espanhol José María Carrascal, por muitos anos correspondente em Nova Iorque do diário “ABC”, de Madri, narra a busca íntima e pessoal de um professor universitário por suas origens na antiga Sefarad. Publicada em 1997, a história acompanha a viagem do americano Simon Told (Simón Toledano) à cidade espanhola de Toledo, logo após a morte da avó de origem sefardita. Ele parte ao encontro de um passado remoto de muito sofrimento, sangue e glória, levando consigo a chave da casa deixada para trás há centenas de anos e zelosamente guardada por seus antepassados.

Intolerância e exílio

Coube ao casal de reis católicos Fernando II, do reino de Aragão, e Isabel I, de Castela editar o decreto de expulsão dos judeus da Espanha, em 31 de março de 1492, logo após obterem a rendição de Granada, o último bastião mourisco nas terras ibéricas. O historiador especialista em história judaica medieval, Yitzhak Baer (1888-1980), calcula que provavelmente existiam 300 mil judeus na Espanha nessa época. Pelo decreto, os judeus tinham três meses para sair do país ou optarem pela conversão. Cerca da metade dos judeus se tornou cristã e uma multidão em torno de 150 mil se lançou ao exílio.

Muitos judeus fugiram para Portugal – aproximadamente 80 mil -, mas quatro anos depois, em 5 de dezembro de 1496, o rei português Dom Manuel I promulga um decreto semelhante ao édito dos reis espanhóis, impondo a conversão como condição para a permanência da comunidade judaica no país. Tem início um novo êxodo e o rei fecha os portos, com exceção o de Lisboa, para tentar impedir a fuga em massa. Aqueles que ficam são batizados à força e embora publicamente se apresentem como seguidores da fé católica, uma grande parcela continua seguindo os ritos judaicos em segredo.

Entretanto, havia um clima de intolerância em relação aos “conversos” ou cristãos-novos que culminou no massacre de 1506, quando mais de dois mil convertidos foram mortos nas ruas de Lisboa por uma população assolada pela peste negra (bubônica) e pela fome que culpava os judeus recém-batizados por tais infortúnios. 

Depois da carnificina que durou três dias os remanescentes judeus partiram de vez de Portugal tomando o caminho para o norte da África (Marrocos, Tunísia, Argélia, Egito), Turquia, Grécia, Europa Central e as terras do novo mundo na esperança de se libertarem das perseguições e do medo. Três décadas depois, em 23 de maio de 1536, é instituída oficialmente a Inquisição em Portugal, no reinado de D.João III.

Inquisição além-mar 

Na Espanha, antes mesmo do decreto de expulsão dos judeus, os reis Fernando e Isabel, com o apoio da Igreja, já tinham instalado oficialmente a Inquisição em 1478, nomeando o frade dominicano Tomás de Torquemada como Inquisidor Geral. Por mais de 300 anos a Inquisição espanhola (que se estendeu até 1834) perseguiu e matou judeus e conversos, sob a acusação de “prática secreta de ritos judaicos”.

Com a descoberta do novo mundo, vieram os missionários seguidos pelo aparato da Inquisição que implantou tribunais do Santo Ofício em Lima, no Peru (1570), na cidade do México (1571), e em Cartagena das Índias, na Colômbia (1608). No livro “A Inquisição” (1999), o pesquisador e escritor Michael Baigent (1948-2013) e seu parceiro Richard Leigh (1947-2007) detalham a presença dessa instituição no continente americano.

Segundo os autores, a jurisdição do tribunal do Peru estendia-se principalmente ao Chile e à Argentina, no sul, e às ilhas do Caribe, ao norte. Em relação ao tribunal do México, este exercia a jurisdição na América Central, possessões espanholas na América do Norte e também nas Filipinas sob o domínio espanhol, do outro lado do Pacífico. O de Cartagena abrangia o Panamá, Guianas, Antilhas, Colômbia e Venezuela.

Centenas de cristãos-novos de ascendência portuguesa acusados de serem judeus clandestinos tiveram as suas propriedades confiscadas, foram presos e condenados por esses tribunais a morrerem nas fogueiras dos autos de fé (execução coletiva dos sentenciados). A primeira dessas execuções teve lugar na cidade do México em 28 de fevereiro de 1574, mas foi em 11 de abril de 1649 que aconteceu o chamado “grande auto”, envolvendo 109 acusados de heresia, sendo que 20 deles foram queimados vivos em praça pública. Em Cartagena, o primeiro auto de fé se deu em fevereiro de 1614, com 30 condenados, e em Lima, uma execução ocorrida em 1639 arrolou 80 réus, dez dos quais foram imolados na fogueira acusados de prática de judaísmo. Entre eles, o médico Francisco Maldonado da Silva, nascido na província de San Miguel de Tucumán, na Argentina.

Chave de casa

Acerca desse personagem, um cristão-novo que reassume o judaísmo e é condenado à morte na fogueira pela Inquisição, documentos registram que Francisco Maldonado era filho de um cirurgião português converso, Diego Nuñez da Silva, de origem lisboeta, e de mãe católica, Aldonza Maldonado. Nascido em 1592, exatamente um século após a expulsão dos judeus da Espanha, ele é o protagonista do romance do escritor e médico argentino Marcos Aguinis.

Exibindo um retrato sem disfarces de um período colonial cruel e corrupto que se impôs nos territórios da América do Sul sob o domínio da coroa espanhola e da Inquisição, “A saga do marrano” (1991) também inclui em sua narrativa a tradição sefardita de preservar a chave da casa original, sempre sonhando com um possível retorno. Em um dos capítulos, Diego Nuñez revela a um Maldonado criança o segredo da chave escondida: “Meu pai entregou-a para mim, em Lisboa. E ele recebeu de seu próprio pai. Provém da Espanha, de uma formosa casa na Espanha. Nossos antepassados acreditavam retornar a essa casa. Por isso, guardamos a chave.”

Maldonado foi queimado vivo em um domingo, 23 de janeiro de 1639 (aos 47 anos). Com base em documentos do arquivo da Inquisição, o escritor Ricardo Palma (1833-1919), um dos intelectuais peruanos mais respeitados, descreveu o momento da execução em seu livro “Anais da Inquisição de Lima”, publicado em 1863. “Às 3 da tarde, no instante em que iam se lançados às chamas os dez condenados, armou-se um furioso furacão, fenômeno pela primeira vez visto em Lima. A violência do vento rompeu o toldo que recobria o palanque, levando o cirurgião Maldonado a exclamar: - Assim dispõe o D’us de Israel para ver-me cara a cara lá do Céu onde está!

Mais de 30 mil marranos foram condenados à morte e queimados vivos pela Inquisição. Outras dezenas de milhares foram submetidos à tortura física. Qualificação injuriosa, marrano significa em espanhol, segundo Aguinis, “porco jovem recém-desmamado”, referência irônica à proibição dos judeus de comer carne suína. A palavra se disseminou entre as populações espanhola e lusitana que a usavam como um insulto aos judeus convertidos ao cristianismo que mantinham em segredo laços com a sua antiga fé.

Brasil Colônia

Em Portugal, a Inquisição estabeleceu-se em 1536 e somente foi abolida 285 anos depois, em 1821. Contava com quatro tribunais instalados em Lisboa, Coimbra, Évora e Goa, a então colônia portuguesa na Índia. No Brasil Colônia, os culpados de crimes contra a fé católica eram levados para Lisboa para serem punidos. Cerca de 1.200 cristãos-novos foram presos nas capitanias brasileiras acusados de prática de judaísmo. O historiador português do século 19, José de Lourenço de Mendonça, informa em seu livro “A Inquisição em Portugal” que ocorreram 760 autos de fé, com 31.349 sentenciados e 1.813 execuções, resultantes de mais de 40 mil processos.

Um dos processos mais conhecidos foi o que condenou o teatrólogo e poeta Antônio José da Silva, descendente de cristãos-novos.  Nascido no Rio de Janeiro em 1705, ele foi executados pela Inquisição, em Lisboa, depois de ser preso algumas vezes. Historicamente conhecido como “o judeu”, Antonio da Silva estudou direito na Universidade de Coimbra e escreveu poemas, sátiras, comédias e libretos para óperas. Acusado de “judaizante”, foi amarrado a um poste, degolado e depois jogado à fogueira no auto de fé de 18 de outubro de 1739. Tinha 34 anos.

Para os inquisidores, a família do poeta, pelo lado materno, ainda preservava algumas tradições judaicas como limpar a casa às sextas-feiras (para o descanso de sábado) e cumprir o “grande jejum de setembro” (referência ao Yom Kipur, o dia do perdão, quando os judeus permanecem até 25 horas sem comer e beber). A mãe e a esposa de Antonio da Silva também foram perseguidas e presas pela Inquisição.

Rabino marrano

Em 1957, um pouco mais de um século após a tragédia da Inquisição ser definitivamente extirpada na Península Ibérica, nascia em Palma, na ilha espanhola de Maiorca, aquele que seria o primeiro rabino marrano da história. Proveniente de uma família católica praticante que ia semanalmente à igreja, Nicolau Aguilo iniciou sua revolução espiritual ainda na pré-adolescência. A revelação da mãe de que eram descendentes de “chuetas” (termo pejorativo catalão que significa ‘porco’, equivalente ao termo marrano) abalou o menino, mas também o fez decidir a abraçar a sua herança judaica. Viajou para Israel, estudou profundamente o judaísmo, converteu-se formalmente e assumiu o nome hebraico de Nissam Ben-Avraham.

Em 1991, ele tornou-se rabino e 20 anos depois foi enviado à Espanha como emissário religioso da organização “Shavei Israel” (Retorno ao povo Israel). Desde 2010, o rabino Nissam, de 58 anos, atende as comunidades marranas de Barcelona, Alicante, Sevilha e Palma de Maiorca, ministrando aulas de religião e de conhecimento da cultura e tradições judaicas a todos que o procuram. Mas, a sua principal missão é ajudar aqueles que pretendem assumir oficialmente a “perdida” identidade judaica.  

O diretor da “Shavei Israel”, Michel Freund, em entrevista ao jornal israelense “Jerusalem Post” (2.8.2010), falou da importância do trabalho da instituição, sediada em Jerusalém, que mantém atualmente emissários na Espanha, Portugal, Polônia, Rússia, Itália, Colômbia e El Salvador. Disse ele: “Quando as pessoas descobrem que têm raízes judaicas, elas desenvolvem uma afinidade em relação a Israel e ao judaísmo, mesmo permanecendo católicas.”

A reportagem destaca a probabilidade de a Espanha e Portugal abrigarem mais de 100 mil descendentes de marranos, e o Brasil, mais de três milhões. Segundo a matéria do jornalista Mark Rebacz (“First ex-marrano israeli rabbi returns to Spain as emissary”), pesquisadores do tema avaliam que nosso país reúne a maior comunidade de B’nei anussim do planeta. 

Hoje, o Brasil tem 107 mil judeus. A Espanha, 12 mil e Portugal, em torno de 1.500.

domingo, 18 de janeiro de 2015

O primado da rosa


 Como a rosa entre os espinhos... (Cântico dos Cânticos - Shir HaShirim, 2:2)

Por Sheila Sacks
(atualizado em 20.10.2017)
Em 2006, mais de duas décadas e meia após a publicação de “O Nome da Rosa”, que até então acumulava mais de 15 milhões de exemplares vendidos, o italiano Umberto Eco, professor universitário de linguística e autor da façanha, ainda precisava explicar aos jornalistas que o entrevistavam o real sentido e o significado do título de sua obra. Publicado em 1980, quando o autor tinha 48 anos, o livro foi levado às telas em 1986, o que contribuiu para popularizar um enredo policial que discorre sobre estranhas mortes que se sucedem em um monastério medieval que abriga uma antiga biblioteca.  

Dois anos depois da primeira edição, em atenção aos seus leitores mais curiosos, Eco escreveu um pequeno livro de pouca mais de 60 páginas – “Pós-Escrito ao Nome da Rosa” - onde faz considerações sobre o sistema de trabalho que utilizou para o desenvolvimento de seu best-seller. Mas, em relação ao real significado do título, ele manteve o suspense: “Um título, infelizmente, é uma chave interpretativa. Um título deve confundir as ideias, nunca discipliná-las”, afirmou no intuito de encerrar a polêmica.

Ambientado no século 14, o livro inicialmente ganharia o título de “A Abadia do crime”, o que foi descartado, segundo o autor, porque “fixaria a atenção do leitor apenas sobre a intriga policial”. Eco reduz ao acaso a escolha do título, admitindo, contudo, que a ideia de usar o nome da rosa o agradou devido à rica simbologia e a mística religiosa que envolve a flor.

Para embaralhar ainda mais a mente do leitor, o livro de mais de 500 páginas se encerra com uma frase redigida em latim: “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus” (A rosa antiga permanece no nome, nada temos além do nome). Emprestada do monge beneditino Bernard Morliacense, que viveu no século 12, a frase original presente no texto latino “De contemptu mundi” contém o vocábulo “roma”, ao invés de “rosa”, em alusão à antiga capital do império romano. O que dá sentido à frase, pois do histórico poder de Roma, em nossos tempos, só resta o nome. 

 A rosa do “Zohar”

Coincidentemente, em 1980, um mês antes do lançamento de “O nome da Rosa”, que ocorreu em setembro, outro livro é publicado tendo a rosa como título. Escrito pelo rabino e filósofo israelense Adin Even Steinsaltz, 80 anos, a obra de apenas 165 páginas intitulada “A rosa de treze pétalas” traz como tema a teologia e a cosmologia nativas do judaísmo conhecidas como Cabalá (‘receber’, em hebraico).

Steinsaltz abre o livro com o trecho inicial do “Zohar” (‘esplendor’, em hebraico; pronuncia-se zôhar), a obra de referência da Cabalá, que dá nome à rosa e descreve a sua conexão com o povo de Israel. Está escrito: “Quem é a rosa? É Knesset Yisrael, a comunidade de Israel. Pois há uma rosa acima e uma rosa abaixo. Quanto à rosa entre os espinhos, ela tem vermelho e branco, como Knesset Yisrael tem justiça e piedade. Quanto à rosa de treze pétalas, como Knesset Yisrael ela tem treze atributos de compaixão envolvendo-a por todos os lados.”

Continuando a sua descrição da rosa mística, o “Zohar” estabelece: “E há cinco pétalas fortes sobre as quais a rosa é formada, e elas foram chamadas de salvações e agora são conhecidas como os cinco portões. E esta rosa é chamada de cálice da bênção, sobre o qual dizem: Eu beberei do cálice da salvação...” (Salmos – Tehilim, 116:13).

 Simbologia hebraica

Edição do "Zohar" (1558)
 Segundo os sábios de Israel, a rosa original tinha treze pétalas em cima e cinco pétalas mais rígidas na base. As treze pétalas ao redor da rosa corresponderiam aos treze atributos da misericórdia divina revelados ao profeta Moisés (Êxodo – Shemot, 34:6-7) e que constituem a base das orações em Yom Kipur (Dia do Perdão) e nos dias de jejum, quando são recitados. Ao nome divino são associados a compaixão, piedade, verdade, purificação e principalmente o perdão.

Ainda sobre a simbologia hebraica da rosa, o cientista, filósofo e pesquisador Michael Laitman, russo de nascimento e que vive em Israel há mais de 40 anos, observa que treze também são as palavras divinas que como pétalas cercam e protegem Israel. Fundador do Instituto de Educação e Pesquisa da Cabalá - Bnei Baruch e autor de 30 livros sobre o tema, ele explica que os vocábulos estão presentes nas duas frases iniciais do Gênesis (Bereshit), inseridos entre o nome divino citado duas vezes.  As palavras funcionariam como uma preparação para a purificação e correção da comunidade de Israel, preparando-a para receber os treze atributos da misericórdia.

 Em relação às cinco pétalas, Laitman analisa o significado de seu ensinamento: “As cinco folhas rígidas (sépalas) que cercam a rosa simbolizam a salvação” (elas têm a função de guardar a rosa dos espinhos que são entendidos como os nossos desejos egoístas). Ele lembra que a rosa também é comparada ao cálice sagrado: “Assim como o cálice da benção deve se apoiar em cinco dedos e não mais, também a rosa se assenta em cinco folhas rígidas (sépalas) que equivalem aos cinco dedos.” A rosa corresponderia ao cálice mencionado nos Salmos (Eu levantarei o cálice da salvação...).

Manuscritos escondidos

Escrito no século 2 da era comum pelo Rabi Shimon Bar Yochai (Rashbi),  o “Zohar” reúne todo o conhecimento espiritual judaico dos 3 mil anos anteriores, em especial os ensinamento da “Torá” (Pentateuco ou os cinco livros de Moisés). Nascido na Galileia, sob o domínio romano, Rashbi viveu treze anos com o filho Elazar em uma caverna onde escreveu a sua obra. Ele tinha participado da rebelião judaica contra os romanos liderada por Simão bar Kochba (ocorrida entre 132 a 135) e teve que se esconder para não ser executado. Sessenta anos antes o Segundo Templo de Jerusalém tinha sido destruído e os judeus condenados a um exílio que durou perto de dois mil anos.

Rashbi faleceu em 160 da era comum, aos 80 anos, e foi enterrado em Meron, no norte de Israel, perto de Tzfat (ou Safed), a cidade que se tornou o centro cabalístico de Israel. Por mais de mil anos os escritos do “Zohar” permaneceram escondidos em uma caverna sendo descobertos no século 13. Coube ao sábio espanhol Moses de Leon (1238-1305) a tarefa de compilar e publicar o seu conteúdo. Segundo o próprio “Zohar”, os segredos de sua sabedoria seriam revelados a todos, transcorrido o período atribuído para a correção da humanidade. Segundo o Talmud, antes do ano hebraico 6000, com o advento da era messiânica.

Missão e essência

No livro “A Rosa de 13 pétalas”, Steinsaltz chama a atenção para a missão que cada ser humano deve executar no mundo visando à correção da alma, uma tarefa específica que ninguém mais pode cumprir, mesmo que existam pessoas melhores e mais capacitadas para realizá-la. Contudo, somente àquela pessoa está destinada a fazê-la, de uma maneira pessoal e nas circunstâncias que lhe pertencem.

Isso porque o destino e a correção de uma pessoa não estão ligados somente com as coisas que ela própria faz ou cria. As existências anteriores de cada um têm influências consideráveis, visto que a vida é uma continuidade e determinados elementos que parecem não pertencer ao presente podem subir à superfície e será preciso completá-los ou corrigi-los. Cada alma tem uma determinada essência fundamental e para evoluir e se elevar ao nível correto é preciso pôr em ordem a parte que lhe cabe.


Nascido em Jerusalém, Steinsaltz foi aclamado pela revista “Time”, em 1988, como o “estudioso do milênio” por seu trabalho de estudo e divulgação do Talmud (‘estudo, aprendizagem’, em hebraico), a coletânea de explicações rabínicas sobre as leis e tradições do judaísmo. 

Leitura diária

Pelo calendário judaico estamos no ano de 5778 (correspondente a outubro de 2017), aproximando-nos do alvorecer messiânico, e apesar do conteúdo do “Zohar” se manter incompreensível para a maioria, a obra de Rashbi é acessada por milhões de pessoas que se dedicam a sua leitura diária, afirma Laitman que é membro do “World Wisdom Council” (Conselho Mundial da Sabedoria), ligado ao “Clube de Budapeste”, uma organização de pensadores e filósofos de diferentes religiões e tradições.

Mas, assim como o “Zohar”, outros documentos hebraicos foram escondidos em cavernas na Terra Santa e lá permaneceram por centenas de anos. É o caso de “Os Manuscritos do Mar Morto”, documentos com regras e recomendações religiosas escritas por membros da seita judaica dos essênios do século 1 da era comum e descobertas em 1947. Em “O nome da Rosa”, o escritor inspira-se nesses procedimentos milenares para montar a sua história e faz da biblioteca do mosteiro uma espécie de caverna que esconde uma  obra antiga e rara, dada como perdida e condenada pela Igreja.

O livro pivô da questão seria uma continuação da “Poética”, do filosofo grego Aristóteles (384-322 antes da e.c.), que trata da comédia e das virtudes do riso, um tema que a Igreja julgava estar associado à frivolidade e que dificultava a prática da fé.  Aproximando a realidade da ficção, Eco reforça a percepção de que, para determinadas gerações, livros podem ser potencialmente perigosos e, portanto, passíveis de serem destruídos.

 A rosa do paraíso

"Roseto Comunale", em Roma
Historiadores afirmam que a rosa é uma flor de origem oriental, com mais de cinco mil anos. Porém, a partir de descobertas de folhas fósseis de rosas em diversos locais do planeta, cientistas atestam que sua origem passa dos 25 milhões de anos, e é anterior à humanidade. No século 3 da era comum o rabino Joshua ben Levi, descreveu o Gan Eden (jardim do Éden) como uma paisagem de vales, rios e murtas, onde crescem 800 espécies de rosas. A descrição está nos “Midrashim” (derivado do radical hebraico ‘darash’, que significa pesquisar, investigar), manuscritos explicativos dos ensinamentos divinos em forma de parábolas, enigmas e histórias. As narrativas inicialmente orais, tendo como tema os versículos da “Torá”, foram compiladas e redigidas por sábios judeus no ano 500.

Há poucos anos, a referência mais singular (e controversa) a associar as rosas ao judaísmo aconteceu na cidade de Roma, onde a prefeitura criou um jardim municipal de rosas, o “Roseto Comunale”, sobre o cemitério judaico “L’Orto degli Ebrei”, datado do século 17.  A história, revelada em 2014 pelo jornal israelense “Haaeretz”, começou em 1934, quando o governo fascista de Benito Mussolini resolveu construir uma avenida atravessando o cemitério. As autoridades tinham prometido à comunidade judaica remover às lápides, porém o cemitério foi destruído.

Em 1950, dois anos após o término da Segunda Guerra, a municipalidade obteve o acordo dos judeus romanos que sobreviveram à tragédia da “Shoá” (calamidade, em hebraico, ou Holocausto) para que o antigo cemitério fosse transformado em um parque de rosas. Uma pequena placa de pedra no formato das tábuas dos 10 mandamentos e alamedas desenhadas em forma de uma menorá, o candelabro judaico de sete braços, lembram a origem judaica do espaço.

Reunindo mais de mil variedades de rosas de vários países, o “Roseto Comunale”, hoje com 10 mil metros quadrados, é procurado por turistas e apreciadores de flores. Porém, um aviso alerta para o fato de que milhares de restos mortais jazem no subsolo, o que faz com que a maioria dos judeus, por motivos religiosos ou por decisão pessoal, sinta-se impedida de visitar esse paraíso de rosas no coração de Roma.

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O Talmud na visão do rabino Steinsaltz:
                                                                
Em primeiro lugar, uma das características do Talmud é que ele se baseia no diálogo, ele se baseia na troca. Ele é diferente dos outros livros. Ele não diz: “Eu vou lhe contar uma coisa”. Ele diz: “Vamos discutir este assunto.”

O Talmud não é um livro que prega a sanidade, mas ele cria sanidade. A sanidade é uma das coisas mais difíceis de definir. É mais fácil definir a loucura. Mas a sanidade é a capacidade de manter coisas diferentes em certo estado de equilíbrio, mas sem deixá-las imutáveis para sempre.

Quando você é criado lendo esses escritos, ao ver alguma coisa, você se pergunta: “Qual é a pergunta que devo fazer sobre isto?”