linha cinza

linha cinza

terça-feira, 17 de abril de 2012

O Holocausto sob a ótica do Vaticano

Designar algo como mal é uma maneira de assinalar que aquilo abala nossa crença no mundo” (Susan Neiman, escritora)

Por Sheila Sacks

A partir da visita do papa Bento 16 aos campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em 2006, o Vaticano vem anualmente enfatizando, por ocasião das celebrações do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (instituído pela ONU em 27 de janeiro de 2005), a importância da lembrança dessa tragédia humana que marcou de forma ignominiosa o século 20.

Cruzando o portão de entrada do campo principal sobre o qual havia o letreiro original em alemão “Arbeit macht frei” ( o trabalho liberta) – roubado em 2009 e substituído por uma réplica- o papa rezou, acendeu uma vela em memória às vítimas do nazismo e manifestou a esperança de que “Deus não permita coisas como estas”, nunca mais. Ainda que, segundo o pontífice em seu discurso, o horizonte político seja preocupante e “que forças obscuras pareçam emergir de novo no coração dos homens”.

Em visita às celas dos prisioneiros e as áreas onde funcionavam as câmaras de gás, Bento 16 lembrou do teor das atrocidades cometidas naquele local que resultaram em mais de um milhão de mortes e expressou todo o seu espanto diante da força do Mal: “Falar neste lugar do terror é quase impossível. Neste local falham as palavras e só pode haver um silêncio comovente – silêncio que é um grito interior a Deus. Por que, Deus, o senhor permaneceu em silêncio? Como pôde tolerar tudo isso? Onde estava Deus naqueles dias?”, indagou o papa diante de sua comitiva, convidados e alguns sobreviventes presentes à cerimônia.

Símbolo extremo do Mal

Três anos depois, na residência de verão de Castel Gandolfo, o papa voltou a falar sobre o terror do nazismo, ao recordar o sacrifício da freira carmelita Edith Stein (de pais judeus) e do padre franciscano Massimiliano Kolbe que morreram no campo de Auschwitz e foram canonizados pela Igreja. “Os lagers (campos de morte) nazistas como todo campo de extermínio devem ser considerados símbolos extremos do Mal, do inferno que se abre sobre a terra”, evocou Bento 16 para um grupo de fiéis.

Meses antes, em maio de 2009, o pontífice já tinha ressaltado o papel da memória no combate ao esquecimento. Em Jerusalém, ao lado do presidente de Israel, Shimon Peres, Bento 16 falou da importância da lembrança “para impedir que um horror semelhante pudesse desonrar novamente a humanidade”. Na sala dos Nomes do Museu do Holocausto Yad Vashem, (até 2010 já haviam sido identificados nominalmente quatro milhões de judeus assassinados pela Alemanha nazista), o papa exortou os homens de bem a honrar aqueles que perderam a vida, mas jamais perderam seus nomes. “Que os nomes dessas vítimas não pereçam nunca! Que o seu sofrimento não seja nunca negado, diminuído ou esquecido! E que toda pessoa de boa vontade vigie para erradicar do coração do homem qualquer coisa capaz de acarretar tragédias semelhantes a essa!”, declarou, após conversar com sobreviventes e depositar uma coroa de flores no local.

Repercutindo as palavras do papa, o porta-voz do Vaticano e diretor da sala de Imprensa da Santa Sé, padre Federico Lombardi, expressou o desejo de que “a lembrança da Shoá (‘catástrofe’, em hebraico) leve a humanidade a refletir sobre a imprevisível potência do Mal quando conquista o coração do homem”. Em editorial, no programa semanal “Octava Dies” do Centro Televisivo do Vaticano (2009), padre Lombardi advertiu que o extermínio de seis milhões de judeus se configura em uma “espantosa manifestação da potência do Mal que desafia a fé na própria existência de Deus”. Segundo o porta-voz, o papa não só condena toda forma de esquecimento e de negação da tragédia do extermínio como também expõe as dramáticas interrogações que esse evento tem proposto à consciência do homem e do crente.

A memória que confronta o Mal

Em janeiro de 2012, lembrando mais uma vez a data da libertação do campo de Auschwitz, o Vaticano reafirmou a importância das pessoas não se esquecerem, passados 67 anos, “da tragédia infame do Holocausto”. Sob o título “Preservar a Memória”, padre Lombardi redigiu a mensagem em que remete à memória dolorosa do Holocausto como “o lugar teológico da pergunta mais radical sobre Deus e sobre o Mal”. Segundo o religioso, “a memória do Holocausto é um ponto de confronto crucial na história da humanidade para entender o que está em jogo quando se fala em dignidade irrenunciável de toda a pessoa humana, da universalidade dos direitos humanos e do compromisso por sua defesa”.

Sacerdote jesuíta de 69 anos, o italiano Federico Lombardi estudou matemática e teologia na Alemanha. Em 1990 foi nomeado diretor Geral da rádio Vaticano e dez anos depois assumiu a direção do Centro Televisivo. Indicado por Bento 16, em 2006, para chefiar a Sala de Imprensa, Lombardi tornou-se responsável pela gerência de todas as mídias do Vaticano.

Daí a importância de seu comunicado que representa o pensamento oficial da Igreja Católica sobre a tragédia. De acordo, ainda, com o porta-voz da Santa Sé, “se existiram homens capazes de chegar a tão absurda atrocidade, ninguém nos assegura que no futuro isso não possa se repetir”. Lembrando que a geração das testemunhas, que viveu os tempos e horrores do Holocausto, está diminuindo rapidamente, padre Lombardi acentuou que “a memória dolorosa se torna advertência para o hoje e para todos os tempos”. E assume um compromisso: “ Nós também continuaremos a fazer isso (lembrar as vítimas) neste dia, em solidariedade, em primeiro lugar, ao povo de Israel e a todas as vítimas do absurdo ódio homicida.”

O Mal na esfera do homem

A tocante indagação do sumo pontífice sobre a ausência de Deus diante do horror de Auschwitz – um fato histórico que ameaça a noção teológica tradicional do sentido do mundo e da existência humana – mostra uma perplexidade que o pensamento filosófico já tentou responder em tempos anteriores frente a outros eventos caracterizados pela ascendência do Mal.

No século 18, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) já havia retirado Deus e outros enunciados incompreensíveis presentes na metafísica (área da filosofia que busca dar explicações sobre a essência dos seres e as razões de estarmos no mundo), dos limites do conhecimento humano. Dessa forma, fora da perspectiva religiosa, a questão do Mal não estaria intrinsecamente ligada a Deus, e questionamentos à Sua presença (ou ausência) diante de males naturais, como terremotos e tsunamis, e males morais - dos quais o Holocausto é um exemplo assustador – soariam descabidos e alienados de propósito.

Na obra “Trabalho sobre o Mito”, o filósofo Hans Blumenberg (1920-1966), que chegou a ser preso e levado a um campo de concentração, em 1944, ao analisar o célebre poema “Prometheus”, de Goethe (1749-1832), escrito em 1774, e seu impacto sobre a filosofia alemã, observa que a ideia central transmitida pelo autor é a de que “ Deus teria que organizar o mundo de forma diferente caso houvesse se preocupado com o homem”. A tragédia de Prometeu, submetido ao suplício diário por um poder despótico e arbitrário, reflete a impotência do homem para entender ou explicar o Mal em suas formas mais avassaladoras. Essa dificuldade de compreensão é sempre profundamente perturbadora à consciência moral clássica que vincula o sofrimento ao castigo e ao pecado. Considerando uma situação como a dos campos de extermínio, onde seres humanos, sob os auspícios do estado, violaram as normas da sensatez e da razão praticando atos contra cidadãos inocentes que não deixam espaço para justificação ou explicação, pode-se afirmar que Auschwitz revelou uma nova face do Mal ainda mais espantosa: a da barbárie burocratizada, alienada, e altamente desenvolvida.

Uma ameaça à alma humana

É o que observa a autora do livro “O Mal no Pensamento Moderno”, a norte-americana Susan Neiman, que dirige o “Eistein Forum” , instituição alemã que discute os grandes temas universais : “O que choca e modifica nossa compreensão do mal em Auschwitz é que os assassinos não eram bestas e demônios e se comportavam como tais e sim seres humanos comuns, que levavam uma vida mundana como qualquer outro. Isso foi conceitualmente devastador porque revelou uma possibilidade na natureza humana que esperávamos não ver.”

Segundo Neiman, Auschwitz modificou nossa compreensão sobre o problema do mal, já que as condições de educação e cultura na Alemanha não deveriam conduzir a formas de barbárie tão sofisticadas quanto avassaladoras, mas a uma genuína civilização. As câmaras de gás foram introduzidas para, simultaneamente, matar o maior número de pessoas possível poupando as vítimas de uma morte agonizante e os assassinos de visões que atormentassem suas consciências. De acordo ainda com a pensadora, os agentes da SS realizavam seu trabalho seguindo a ordem burocrática das atividades cotidianas, paradoxalmente “despidos de sinais de má-intenção”. Para o filósofo judeu alemão Gunther Anders (1902-1992) - que exilou-se nos Estados Unidos em 1936 e retornou à Alemanha em 1950 - os crimes cometidos em Auschwitz e nos demais campos de extermínio se constituíram em ameaças, não à humanidade em si, mas à alma humana, porque seria preciso um coração muito duro (ou mesmo ausência de alma) para levar uma criança a uma câmara de gás.

E assim como o Talmud (livro milenar das leis judaicas e comentários rabínicos) ensina que salvar uma vida é como salvar o mundo, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821- 1881), de forma literária, adverte que assassinar uma criança é suficiente para amaldiçoar o mundo. Porém, em Auschwitz, “o pensamento parou, pois as ferramentas da civilização pareciam tão impotentes para lidar com aquele acontecimento quanto o foram para evitá-lo. Dessa forma, qualquer um poderia levar um tiro por fazer bem o seu serviço, assim como outros poderiam escapar da seleção da morte fazendo o mesmo”(Neiman). Os campos da morte, continua Neiman, distorceram os pressupostos mais básicos da racionalidade que ordena os mundos normais, instituindo “assassinatos em massa no século 20 que não foram nem fruto da paixão, nem da ignorância”.

Ilógico e irracional

Sobrevivente do campo de concentração de Buchenwald, na Polônia, e por mais de uma década exercendo a função de grão-rabino de Israel, Israel Meir Lau, de 75 anos, teve os pais e irmãos assassinados nos campos da morte. Para o religioso, o fato do nazismo e da solução final para a eliminação dos judeus terem como berço uma Alemanha onde a população judaica se encontrava mais integrada e adaptada à sociedade secular, mostra que o antissemitismo é ilógico e que não é possível enfrentá-lo de maneira racional. “Alguns perguntam onde estava D´us durante o Holocausto, mas nós devemos perguntar onde estava o homem durante o Holocausto. Como foi possível que homens cultos, que amavam a filosofia e a música, cortassem crianças em pedaços e à noite retornassem aos seus lares para beijar seus filhos e regar suas flores? Essa é a pergunta que jamais deverá calar”, afirma Lau.

Autor do livro de memórias “Lúlek – a história do menino que saiu do campo de concentração para se tornar o grão-rabino de Israel”, Meir Lau é atualmente rabino-chefe da cidade de Tel-Aviv e presidente do Museu em memória das vítimas do Holocausto (Yad Vashem), de Jerusalém.

Lembrança coletiva

Em 1953, cinco anos após a fundação do estado de Israel, o então primeiro-ministro David Bem Gurion instituiu o Yom HaShoá – Dia de Memória do Holocausto, escolhendo a data de 27 de Nissan (calendário hebraico) para a celebração por sua associação ao “Levante do Gueto de Varsóvia”, a rebelião armada de jovens judeus contra a ocupação nazista, ocorrida em 19 de abril de 1943. A homenagem acontece geralmente cinco dias depois do término da Páscoa judaica (Pessach), quando o país para e seus cidadãos, onde estiverem, guardam dois minutos de silêncio, honrando a memória dos que pereceram nos formos crematórios ou foram covardemente fuzilados.

Enfim, uma data dolorosa a ser lembrada ainda que a memória de fatos tão escabrosos envergonhe a humanidade. Nesse aspecto, aliás, tanto o Vaticano quanto as lideranças judaicas estão de acordo que a lembrança deve funcionar como um aviso de alerta para governos e cidadãos. E para aqueles que têm o dom ou a capacidade de perceber o Mal em todas as suas formas sutis e enganadoras, vale a ressalva de que de nada servirá essa percepção se a omissão e o silêncio forem as opções escolhidas. Citando Kant: “Só as escolhas mais difíceis revelam liberdade absoluta”. Auschwitz que o diga!

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O médico e o livro: lembrando Moacyr Scliar



por Sheila Sacks

“Às vezes, o meu lado médico estranha o meu lado escritor...” (Moacyr Scliar)

Um dos mais importantes escritores brasileiros de origem judaica, Moacyr Scliar faleceu no ano passado, em 27 de fevereiro, para tristeza de milhares de leitores que o admiravam. Paralelamente aos seus escritos, Scliar manteve-se fiel a sua profissão de médico, atuando na área da saúde pública como médico sanitarista e exercendo o magistério como professor universitário na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.

Em 2007, repercutindo as pesquisas do Ibope realizadas em anos anteriores que indicavam o alto grau de credibilidade da classe médica entre os brasileiros, entrevistei o escritor e médico gaúcho, então com 70 anos e irradiando vitalidade. Ele não se mostrou surpreso com o resultado que apontava um índice de confiabilidade de 81% para a categoria dos médicos, à frente de instituições como as Forças Armadas, a Igreja Católica, jornais e TV (em 2011, esse índice ficou em 76%). Para o escritor, um componente influente nessa avaliação estaria relacionado com a própria imagem da profissão médica que arrola qualidades altruístas admiradas e reconhecidas pela população, como a dedicação e o sacrifício pessoal.

Livros sobre Oswaldo Cruz e Noel Nutels

Autor de mais de 70 obras, várias delas premiadas no Brasil e no exterior, Moacyr Scliar (1937-2011) iniciou-se na literatura em 1962, com o livro “Histórias de um Médico em Formação”. Em 2005 lançou “O Olhar Médico: crônicas de medicina e saúde”, que também enfocava a área médica, reunindo 55 crônicas publicadas no jornal gaúcho Zero Hora. Com obras traduzidas em 12 idiomas e eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 2003, o “imortal” Scliar também escreveu sobre as vidas dos médicos sanitaristas Oswaldo Cruz (Sonhos Tropicais) e Noel Nutels (A Majestade do Xingu), este último um indigenista judeu que realizou trabalho pioneiro com os índios da Amazônia, nas décadas de 1940 e 1950.

Filho de imigrantes russos, Scliar formou-se pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (fez curso de pós-graduação em Medicina em Israel, em 1970) e atuou como professor visitante na Brown University (Rhode Island) e na Universidade do Texas (Austin), nos Estados Unidos. Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública (Rio de Janeiro), sua tese de doutorado, apresentada em 1999 sob o título “Da Bíblia à Psicanálise: saúde, doença e medicina na cultura judaica”, obteve nota máxima, com louvor. Em um trecho do trabalho, Scliar destaca que entre 1899, data da introdução do Prêmio Nobel de Medicina, até 1989, foram laureados trinta e nove médicos judeus.

Em Porto Alegre, sua idade natal, Scliar coordenou o Programa de Educação em Saúde na Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, trabalhou na Fundação Nacional de Saúde e foi consultor do Ministério da Saúde. Também chefiou o Departamento de Saúde Coletiva da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre.

Entre os 100 melhores livros

Em 2007 publicou “O Texto ou a Vida”, uma coletânea de crônicas, contos, trechos de romances, ensaios e comentários do autor sobre o processo criativo de cada um deles. Vale lembrar que a sua obra "O Centauro no Jardim", publicada em 1980, foi selecionada entre os 100 melhores livros de temática judaica dos últimos 200 anos de acordo com o National Ydish Book Center, dos Estados Unidos. Scliar assim resumiu o tema do livro: “É a história de uma criatura com dupla identidade, assim como os filhos de imigrantes judeus. O ambiente familiar e da escola israelita é diferente do ambiente universitário e do trabalho. Ter várias identidades não é problema nenhum, ao menos que a pessoa tenha alguma dificuldade emocional para lidar com essas identidades. O meu personagem, o centauro, tinha. E é por isso que deu um romance”. Figura da mitologia grega, o centauro é um ser metade homem, metade cavalo.

Abaixo, Moacyr Scliar responde as nossas perguntas:

Qual é a sua leitura sobre o resultado da pesquisa do Ibope, em 2005, que apontou a categoria dos médicos como a instituição de maior credibilidade do país?
MS- Um resultado mais ou menos esperado. Em outras pesquisas os médicos também estavam nos primeiros lugares. Isto corresponde à imagem da profissão, que envolve desprendimento, dedicação e até sacrifício pessoal, mas corresponde também à experiência pessoal de cada um. Não há ninguém que não seja grato a, pelo menos, um médico.

Muitos médicos são também filósofos, escritores, artistas, políticos e até presidentes da República como foi Juscelino Kubitschek. A que o senhor atribui essa dualidade presente na carreira de tantos médicos?
MS- Ao lado humanista da profissão. Ser médico é interessar-se pela condição humana, em geral na doença, mas também na vida cotidiana. Este interesse, junto com a disposição especial que a pessoa eventualmente tenha, acaba se estendendo a outras áreas.

Na sua tese de doutorado o senhor relata a enorme quantidade de médicos judeus na Espanha e Portugal, à época da Inquisição. A fuga desses profissionais para o Brasil permite afirmar que os primeiros médicos do país foram judeus?
MS- Certamente. Muitos historiadores médicos em nosso país apontam para este fato. Depois da Inquisição, outros períodos de perseguições provocaram a fuga de médicos judeus para o Brasil.

O trabalho desses doutores de alguma forma contribuiu para a evolução da medicina brasileira?
MS- De novo, a resposta é afirmativa. Para ficarmos num único exemplo, podemos citar o Hospital Albert Einstein (São Paulo), que é um verdadeiro centro de referência.

A percentagem de médicos judeus no Brasil e no mundo é extraordinariamente alta em comparação com a proporção de judeus na população em geral. A religião ou a tradição judaica é um fator de peso nesta escolha?
MS- Sim. Saúde e doença são mencionadas abundantemente no Tanach e no Talmud. Na Antiguidade, o médico era basicamente alguém que dava conselhos, e isto de novo está dentro da tradição do Judaísmo, que sempre respeitou a figura do "chacham", do sábio. Mas havia também um motivo prático e penoso. A medicina é uma profissão "portátil", resulta de um conhecimento que está na cabeça do médico e em sua habilidade. Para um grupo humano que não raro era expulso de países, isto era uma coisa importante, tanto mais que a medicina dava status. Não foram poucos os judeus que trabalharam como médicos de reis, de sultões e de nobres. Maimônides, que atendia o sultão Saladino, é um exemplo.

Nota: Tanach (os 24 livros que compõem o chamado Antigo Testamento); Talmud (Leis judaicas e Comentários); Maimônides (médico e filósofo nascido na Espanha, no século XII).

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Dia do Holocausto à moda da casa

por Sheila Sacks

"A segunda coisa melhor do que saber aproveitar uma oportunidade é saber deixá-la passar." (Benjamim Disareli, político inglês)
Publicado no site Observatório da Imprensa
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed681_dia_do_holocausto_a_moda_da_casa


Instituído pela ONU em 2005, o Dia Internacional do Holocausto tem sido celebrado anualmente na maioria dos países que contam com comunidades judaicas. A data escolhida, 27 de janeiro, lembra o dia da libertação do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, em 1945, pelas tropas soviéticas, na Segunda Guerra Mundial (em Israel, a cerimônia ocorre em data diversa e de acordo com o calendário hebraico. Em 2012 será em 19 de abril). No Brasil, a homenagem às vítimas do genocídio nazista – que culminou com o extermínio de um terço da população judaica à época (6 milhões, sendo 1,5 milhão de crianças) e de milhares de negros, ciganos, maçons, homossexuais, deficientes físicos, comunistas, socialistas, dissidentes políticos e outros grupos minoritários considerados inferiores e descartáveis pela Alemanha de Hitler – tem sido prestigiada por governadores, ministros e principalmente pelo gabinete da Presidência da República, nas figuras do ex-presidente Lula e da presidente Dilma Rousseff.

Em 2012, o evento mudou de data e endereço, deslocando-se de São Paulo e Porto Alegre para a Bahia em razão da agenda da presidente Dilma, que visitava o estado no dia 30 de janeiro para dar início às obras do Complexo de Camaçari, incluídas no PAC 2 (Programa de Aceleração do Crescimento). Horas depois, a presidente viajaria com o governador da Bahia, Jacques Wagner, para Cuba e Haiti. No dia anterior, um domingo (29/1), foi então realizada a cerimônia no Fórum Ruy Barbosa, em Salvador, que ganhou uma inabitual visibilidade na mídia nacional (geralmente discreta em relação a esse tipo de evento), em razão do teor do discurso da presidente e da própria presença do governador petista, de ascendência judaica.

Estado palestino é lembrado

Fadada a ser mais uma cerimônia de recordação, entre tantas que se celebram em várias partes do mundo, a homenagem atraiu o interesse da mídia por um detalhe fora do contexto que funcionou como uma senha mágica tão a gosto dos repórteres de plantão. Ainda na noite de domingo, a fala presidencial já repercutia na maioria dos noticiosos da internet, e na manhã de segunda-feira os jornais destacavam, nos títulos, o pronunciamento que, lamentavelmente, atropelou as mais comezinhas normas de delicadeza que todo convidado deve ter com seu anfitrião.

Utilizando-se da oportunidade oferecida pela cerimônia aberta ao público e diante da comunidade judaica presente que patrocinava o evento, a presidente Dilma, de posse do discurso preparado por sua assessoria, reafirmou a posição brasileira de defesa de um estado palestino que, curiosamente, desejou que fosse “democrático e não segregador”. Sabendo-se que o Itamaraty advoga, desde dezembro de 2010, o reconhecimento de um estado palestino com fronteiras de antes da Guerra dos Seis Dias (1967), postura ratificada pela presidente brasileira na abertura dos trabalhos da ONU, em setembro de 2011, lamenta-se que seus assessores tenham inserido esse item no texto da homenagem, de forma superficial e atemporal, visto que as negociações de paz acerca dos chamados territórios ocupados é um dos mais sensíveis temas enfrentados pelo governo de Israel, em sua política externa e interna (até o conflito, a população israelense estava subjugada a graves fatores de vulnerabilidade e insegurança).

Recados presidenciais

Mas, se o palanque não foi o mais adequado, a tática para atrair manchetes se revelou positiva. Vejamos os títulos das matérias publicadas nos dias 29 e 30 de janeiro: “Na Bahia, Dilma defende estado palestino” (O Estado de S.Paulo); “Na Bahia, Dilma defende criação do estado palestino” (O Globo); “Em evento sobre Holocausto, Dilma defende estado palestino (Jornal do Brasil e Terra Notícias); “Na Bahia, Dilma volta a defender criação do estado palestino” (UOL notícias). Também a agência espanhola de notícias, EFE, distribuiu a matéria sobre o evento de forma semelhante: ”Holocausto commemoración: Rousseff destaca la necesidad de un Estado palestino para la paz em Oriente Medio”. “Al acto vários representantes de la comunidad judia en Brasil y representantes diplomáticos israelíes, así como el gobernador del estado de Bahía, del que Salvador es capital, Jacques Wagner.” O site de notícias israelense de língua espanhola Aurora veiculou no seu link sobre América Latina, em 30.01.2012: “Brasil: Es necessário um Estado palestino para la paz em O. Medio”. “Gobierno considera ‘imprescindible’ la creación de un Estado palestino para lograr la paz en Oriente Medio durante en un acto de homenaje a las víctimas del Holocausto.”

Acredita-se que o Dia de memória das vítimas do Holocausto foi criado para lembrar, de alguma forma, as atrocidades que os homens e seus regimes políticos são capazes de praticar sob a égide de um poder discriminador, prepotente e sem limites. O uso da data, em Salvador, com o intuito de produzir mensagens políticas ideológicas, sub-reptícias e extemporâneas à homenagem, se mostrou um equívoco do ponto de vista de atender à finalidade do evento, ainda que satisfizesse alguns assessores palacianos que sentindo-se em casa, pelo fato da Bahia ter um governador petista, puseram a presidente Dilma para apadrinhar o Estado palestino em meio à cerimônia aos mortos do regime nazista. Uma manobra que deve ter levado os convidados a engolirem em seco, mas que, no final das contas, rendeu uma boa pauta de fim de semana para a mídia, sempre atenta e disposta a repercutir recados presidenciais que possam resultar em observações críticas ou polêmicas. Só que desta vez, se alguém se sentiu ofendido ou desconfortável com o rumo imposto à solenidade, estranhamente calou-se e permaneceu em silêncio.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Em Portugal, cidade medieval terá museu judaico

Sinais hebraicos na região datam de mais de 5 séculos

por Sheila Sacks

Catalogada como uma das doze “aldeias históricas” de Portugal, a cidade de Trancoso, no centro-norte de Portugal, surpreende os visitantes pela imponência de suas muralhas e pela beleza de seus monumentos, igrejas e castelos medievais. Foi nessas paragens que, em 1282, Isabel de Aragão, então com 12 anos (canonizada 400 anos depois como Santa Isabel), entra na Igreja de São Bartolomeu para se casar com D.Dinis, rei de Portugal, que lhe dá o povoado como dote.

Situado a uma mesma distância de Lisboa e de Madri (em torno de 350 quilômetros dessas capitais), o município de Trancoso, no distrito da Guarda, subregião da Beira Interior, abriga 11 mil moradores e um patrimônio histórico e arquitetônico que engloba um antigo bairro judeu, provavelmente estabelecido no século 15 por judeus fugitivos da Espanha, após o édito de expulsão assinado em 1492 pelos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela.

Nesse centro histórico rodeado por altas muralhas e um majestoso portão medieval – a antiga Porta d’El Rei em homenagem ao rei D.Dinis – está sendo construído pela municipalidade um museu judaico. Denominado “Centro de Interpretação Judaica Isaac Cardoso”, em memória ao médico e filósofo judeu nascido em Trancoso, em 1603, o prédio terá uma sala de exposições, espaço museológico dedicado ao passado da presença judaica na região, sala de documentação bibliográfica e um pequeno templo de orações para visitantes judeus (Beth Mayim Haim – Casa das Águas Vivas). De acordo com o presidente da Câmara Municipal de Trancoso, Julio Sarmento, está sendo investido 1,2 milhão de euros na construção do museu, com uma coparticipação comunitária de 85%.

Rabinos visitam Trancoso

Em dezembro de 2011 estiveram em Trancoso os rabinos Shlomo Riskin, presidente do “Centro para o Entendimento e Cooperação Judaico-Cristão de Israel” (Center for Jewish- Christian Understanding and Cooperation - CJCUC), e Elisha Salas, da organização “Shavei Israel” (que faz a conversão dos chamados “judeus perdidos”, aqueles descendentes dos judeus forçados a abandonar a religião), que atua em Portugal. Em visita ao local onde será implantado o museu, os religiosos mostraram-se entusiasmados com a solidariedade e o apoio do município de Trancoso e agradeceram à população, seus técnicos e os autores do projeto, arquitetos Gonçalo Byrne e José Laranjeira. “Este centro judaico dedicado a Issac Cardoso, uma destacada figura judaica portuguesa, e a sinagoga que vai comportar são uma expressão fantástica de que a memória dos perseguidos pela Inquisição e seus descendentes está viva, mais de 500 anos após a conversão forçada, a expulsão e a resistência, mesmo que em segredo, que preservou a cultura e a fé”, disse o rabino Riskin.

Júlio Sarmento adiantou que serão produzidos vários conteúdos multimídia e que haverá referências a judeus naturais e residentes em Trancoso que foram vítimas da Inquisição. A historiadora Carla Santos, que investiga a presença judaica na região, sustenta que os judeus já viviam em território português desde os primórdios da Idade Média e que essa vivência prolongou-se por um período de, pelo menos, mil anos, “balizados arqueológica e legalmente entre os anos de 482 e 1496”, data do édito de expulsão de Portugal da minoria religiosa. “Em consequência da expulsão dos judeus e mouros, alguns membros da comunidade judaica converteram-se ao cristianismo, ainda que, apenas, aparentemente. Naturalmente os mais abastados saíram do país constituindo parte da diáspora de origem sefardita”, explica.

Herança judaica

Outra estudiosa do tema, Antonieta Garcia, docente da Universidade da Beira Interior, afirma que é preciso aprofundar as investigações sobre as figuras judaicas que marcaram a região, mas cuja influência permanece desconhecida. “Por exemplo, onde houve uma forte presença judaica, o comércio teve um desenvolvimento espantoso. É o caso de Trancoso”, exemplifica. A historiadora aponta ainda como uma herança de prática religiosa e costumes judaicos, o forte significado da celebração da Páscoa. A proximidade com a Espanha é outro diferencial: “O que esta região tinha de diferente era a proximidade da fronteira. Desde que nasceu a Inquisição até o seu final, no século 19, circulavam muitos judeus neste local, entre Portugal e Espanha e por entre diferenças religiosas”, explica.

Atualmente várias excursões são realizadas tendo Trancoso e outras cidades do distrito da Guarda (antiga região da Beira Alta) como foco. Pesquisadores e turistas judeus de várias nacionalidades têm visitado essas localidades interessados em conhecer um passado medieval envolto em segredos e mistérios por força do poder do Santo Ofício que perdurou por três séculos em Portugal. A Rua da Alegria, no centro histórico de Trancoso, junto à muralha, seria uma das principais vias do antigo bairro judeu, cujos moradores, em 1496, antes do édito da expulsão, representavam a quinta parte de toda a população da cidade.

Um dos lugares mais característicos do antigo bairro é a “Casa do Gato Preto” ou a “Casa do Rabino”, que muitos acreditam ter sido uma sinagoga. O imóvel de arquitetura medieval apresenta desenhos de raízes hebraicas esculpidos na fachada principal. Investigadores interpretam como sendo as portas de Jerusalém, um pelicano ou pomba, quatro semblantes e o leão de Judá. Em um outro imóvel, descobriu-se uma mezuzá no interior da parede, artefato usado até hoje pelos judeus para santificar as suas casas. Colocado na parte superior do batente direito da porta de entrada, a mezuzá (do hebraico umbral) contém um pequeno rolo de pergaminho com duas passagens bíblicas e se constitui em uma proteção divina ao lar.

Sinais e caracteres gravados nas paredes de pedra e nos umbrais das portas da entrada das casas denominados cruciformes (cruzes de variados formatos) também revelam que aquelas habitações pertenciam aos chamados cristãos-novos, judeus que aparentemente professavam a fé cristã. Olhados com desconfiança pelos católicos tradicionais, que acreditavam que muitos desses conversos continuavam a praticar em segredo ritos judaicos, os cristãos-novos desenhavam cruzes nas portas de suas moradias com o intuito de serem poupados pela Inquisição, introduzida em Portugal em 1536.

Judeus ilustres

A cidade de Troncoso também é conhecida como o berço natal de Gonçalo Anes, o Bandarra (1500-1556), um misterioso trovador, provavelmente de ascendência judaica, que possuidor de um bom conhecimento das Escrituras, profetizou sobre o futuro do reino de Portugal. Seus versos messiânicos tiveram grande aceitação entre os cristãos-novos e serviu de inspiração e muitos escritores como Fernando Pessoa, o maior poeta português da era contemporânea. Acusado de judaísmo pela Inquisição, Bandarra – que era sapateiro de profissão – teve as suas trovas incluídas no catálogo de livros proibidos pela Igreja e foi condenado pelo tribunal do Santo Ofício a nunca mais interpretar a Bíblia e escrever sobre assuntos de teologia.

Sobre Bandarra, Fernando Pessoa escreveu: Sonhava, anônimo e disperso/ O Império por Deus mesmo visto,/Confuso como o Universo/E plebeu como Jesus Cristo./Não foi nem santo nem herói/Mas Deus sagrou com Seu sinal/ Este, cujo coração foi / Não português, mas Portugal (do livro “Mensagem” – uma coletânea de poemas sobre grandes personagens portugueses).

Já Isaac Cardoso, que dará seu nome ao Centro de Interpretação Judaica, embora nascido em Trancoso, ainda criança mudou-se com a família para a Espanha. Estudou em Salamanca e lecionou filosofia e depois medicina em Valladolid. Foi médico da corte real até que, em 1648, mudou-se para Veneza, onde assumiu publicamente a sua condição de judeu e adotou o nome de Issac (o de batismo era Fernando). De 1653 até o final de seus dias, em 1683, voltou a exercer a medicina em Verona, simultaneamente escrevendo dezenas de livros, entre eles, “Del Origen Del Mundo”, “Philosophia Libera” e “Las Excelências de los hebreus” (dedicado ao judeu português Jacob de Pinto), em que cita Bandarra como “o profeta de Trancoso”.

Encontro com Bento 16

No início de 2011, meses antes da visita a Trancoso, o rabino Shlomo Riskin se reuniu com o Papa Bento 16, no Vaticano, para falar sobre o trabalho desenvolvido pelo Centro para o Entendimento e Cooperação Judaico-Cristão (CJCUC), entidade a qual preside e que promove o diálogo teológico e de fé com os cristãos que vivem em Israel. Membro do Grão-Rabinato de Israel, o rabino Riskin disse ao Papa que tem procurado aliviar a pobreza nessa comunidade religiosa. Também está empenhado em permanecer solidário com os irmãos e irmãs cristãos em Israel e advogar por eles. “Pela primeira vez na história dos judeus, nós, como maioria, devemos tratar das minorias religiosas, e é obrigação do judaísmo aderir ao preceito bíblico que diz: Amarás o estrangeiro que vive em tua terra.” De acordo com o rabino Riskin, o Papa se mostrou satisfeito e respondeu: “Temos de trabalhar juntos”.

Uma das ações propostas pelo CJCUC foi a de criar programas para instruir os rabinos de Israel e da diáspora no diálogo entre judeus e cristãos visando melhorar a compreensão e cooperação em questões religiosas e morais. “Eu tive a oportunidade de contar isso brevemente a Sua Santidade”, disse Riskin. “Falamos das atuais oportunidades de diálogo para que os cristãos que viajam a Israel possam conhecer mais as raízes judaicas de sua fé.”

Entusiasmado com o que viu em Trancoso, o rabino Riskin considera que o museu judaico vai se constituir em uma referência não só para Portugal, mas também e sobretudo para o mundo, valorizando a tradição e o passado da presença judaica em termos culturais, sociais, históricos e patrimoniais. “Funcionará como um centro de aglutinação para judeus e cripto-judeus que retornaram ou pretendem retornar à identidade judaica, sempre numa atitude de cultura, conhecimento, estudo e fé”, reafirmou Riskin que desde 1983 dirige a comunidade de Efrat, cidade que fica entre Belém e Hebron.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O Japão não é aqui

Por Sheila Sacks
publicado no site "Observatório da Imprensa"
http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed677_o_japao_nao_e_aqui


“Jornalismo é uma questão de ênfase” (Paulo Francis)

Quatro dias antes de se completar um ano do mais grave fenômeno climático em número de vítimas que atingiu o país, o jornal O Globo,se antecipando à data, encartou um suplemento especial sobre o tema em sua edição dominical [8/1], enfatizando o imenso esforço que a população atingida pela tragédia vem fazendo para retomar a rotina. A chuva torrencial sobre a região serrana do Rio de Janeiro, que matou 918 pessoas e deixou 215 desaparecidos, ocorrida na madrugada de 12 de janeiro de 2011 nas cidades turísticas de Petrópolis, Teresópolis, Friburgo e arredores, voltou a ter destaque na mídia por conta das chuvas que desde os primeiros dias de 2012 castigam o interior do estado, desta vez em municípios próximos da divisa com Minas Gerais.

A reportagem (“A vida de Brayan”, em alusão ao menino nascido em uma maternidade de Teresópolis “enquanto o mundo desabava”) focaliza ações individuais de ajuda aos desabrigados; os mutirões que têm reunido moradores e instituições empenhados na construção de novas moradias; a recuperação da lavoura e a criação de uma cooperativa; a presença do poder público nas ações iniciais de emergência e socorro às vítimas, na transferência de verbas para a reconstrução dos acessos destruídos pelas enchentes e na ativação de programas de ajuda financeira às famílias que perderam suas casas (aluguel social), sem faltar o relato das investigações em curso, a cargo da Controladoria Geral da União (GCU), sobre possíveis irregularidades na utilização desses recursos por parte de funcionários das prefeituras, donos de construtoras e firmas de serviço.

Destruição e falência de empresas

Ainda que o encarte seja crítico em relação às ações governamentais (“Enxurrada de promessas só foi cumprida parcialmente”), houve espaço razoável na reportagem para que representantes do poder público falassem sobre o trabalho desenvolvido na região no decorrer de 2011. A insistência da mídia em minimizar as iniciativas levadas a efeito pelo governo (limpeza das áreas atingidas, remoção de barreiras, reconstrução de acessos, dragagem de rios, melhoria no sistema de alarme de cheias, mapeamento de áreas de risco geológico, instalação de sirenes e pluviômetros em áreas vulneráveis etc) porque sua abrangência e resultados não atenderam à totalidade da imensa demanda que tais tragédias costumam requerer, denota um tipo de ênfase tendencial, quase institucionalizada, por parte da maioria dos meios de comunicação.

Desta vez, o enquadramento noticioso se fixou em aspectos comparativos entre o Brasil e o Japão – país assolado, em março de 2011, por uma tríplice tragédia: terremoto, tsunami e vazamento nuclear – no que concernem à grandeza do estrago e os resultados obtidos em todo o processo de socorro às vítimas, atendimento às populações e recuperação física das localidades atingidas pelas catástrofes. Editoriais, colunistas e comentaristas de notícia repercutiram e ampliaram o enfoque das críticas, ancorados na afirmação simplista e padronizada de que “ muito pouco ou nada foi feito”, permitindo-se ainda desconsiderar os obstáculos geológicos, jurídicos e burocráticos que têm atrasado os trabalhos de reconstrução.

“Foram quatro dias de horror, nos quais os japoneses enfrentaram um terremoto, seguido de um tsunami e finalizado com explosões na usina nuclear de Fukushima Daiichi – com um saldo de cidades inteiras destruídas, 20 mil mortos ou desaparecidos, 70 mil refugiados nucleares, 800 mil casas total ou parcialmente destruídas, 400 mil pessoas deslocadas de seus lares, além de destruição de toda a infraestrutura de uma vasta área e a falência de milhares de empresas” (coluna de Ricardo Setti – Veja online de 14/12/11). O preço da reconstrução está sendo estimado pelo governo japonês em 235,8 bilhões de dólares.

A política é acalmar a população

Já na região serrana do Rio, segundo os parlamentares que integraram a CPI das chuvas na Assembleia Legislativa (Alerj), encerrada em setembro de 2011, a tempestade, além de provocar mais de mil vítimas, entre mortos e desaparecidos, afetou meio milhão de pessoas, deixando 35 mil desalojados, mais de 7 mil desabrigados, um prejuízo de 4 bilhões de reais, além da estimativa de recuperação das cidades em dois anos (“Um ano da tragédia na região serrana” – O Fluminense, em 11/1/12). Relatório da Comissão Especial de Medidas Preventivas e Saneadoras de Catástrofes Climáticas da Câmara dos Deputados revela que as tragédias naturais no estado do Rio de Janeiro foram agravadas pelo incremento da construção civil e a reocupação de áreas de risco. “Os deputados afirmam que, na serra fluminense, 85% das áreas atingidas por deslizamentos em 2011 foram desmatadas ou alteradas pela ação do homem” (“Mesmo com histórico de tragédias, Brasil não investe em prevenção” – O Globo, em 11/1/12). Um cenário, portanto, de causas e soluções diferentes daquelas propostas no Japão onde os moradores deverão retornar as suas moradias reconstruídas, excetuando aqueles que residiam nos arredores da usina nuclear de Fukushima.

Neste aspecto, aliás – o de realocamento de famílias –, o governo do Japão tem sido bastante questionado pelos habitantes das cidades próximas à usina por não estar adotando uma política séria de proteção à saúde. Protestos têm sido organizados em Tóquio contra a posição do governo de concentrar esforços em “aliviar” a preocupação pública prometendo reduzir a exposição radioativa em áreas afetadas ao invés de realizar remoções. Pesquisa realizada na região demonstrou que um terço dos cidadãos de Fukushima desejaria mudar, mas não o fazem pelos problemas e custos que isso acarretaria. Na manifestação antinuclear realizada em Tóquio para lembrar os seis meses do vazamento da usina, manifestantes exibiram faixas e cartazes que demonstravam a sua revolta: “A radioatividade não tem fronteiras” e “Do Japão ao mundo: Perdão!” (“Protestos antinucleares marcam 6 meses de crise em Fukushima” – agência EFE, em 11/9/11).

A ativista Aileen Mioko Smith, que lidera a organização não governamental Green Action Japan, critica as medidas do governo japonês: “Nossas reuniões com funcionários para pedir mais rapidez em programas de evacuação dos grupos de alto risco são respondidas com promessas de limpeza do lixo radioativo. Isto é totalmente irresponsável.” Também a representante da ONG Mães de Fukushima contra a Radiação, Ayako Ooga, mostra-se decepcionada com a posição do governo: “Não é a recuperação que imaginávamos. A política é acalmar a população, mas o que queremos são ações honestas do governo.” Para a Green Action Japan, os novos padrões adotados pelas autoridades com relação ao nível aceito de radiação não protegem a população mais vulnerável, como crianças, mulheres grávidas e idosos (“Muitos lutam para salvar a infância em Fukushima” – Inter Press Service, em 9/11/11).

US$ 30 milhões destinados à indústria baleeira

Em outra cidade, Ishinomaki, no noroeste do Japão, milhares de desabrigados passam o rigoroso inverno em casas improvisadas. Um vídeo produzido pela agência France Presse, em dezembro de 2011 (“Cidades japonesas continuam destruídas 9 meses após tsunami”), apresenta um panorama de devastação, com entulho, mato, escombros e casas arrasadas. Muitas famílias, com a chegada da neve, estão vivendo nas ruínas do que foram as suas casas. O governo admite que a reconstrução vai demorar e que ainda não há previsão de entrega de moradias permanentes. Os atingidos pela tragédia também se mostram preocupados com o fim da concessão do seguro-desemprego que termina em fevereiro de 2012. Em outra cidade, Onagawa, os desabrigados vivem em contêineres de navio, uma alternativa para os que ficaram sem teto.

Além das críticas à condução da política de realocamento e reparação de danos decorrentes do vazamento nuclear, o governo japonês também está sendo acusado de desviar 30 milhões de dólares dos fundos destinados à recuperação das áreas atingidas pelo terremoto e tsunami para subvencionar o programa anual de caça às baleias. A ONG Greenpeace denunciou que esses recursos estão sendo gastos para proteger a frota baleeira que já está no Ártico (“Japão promove caça de baleias com verba de pós-tsunami, diz ONG” – Folha de S.Paulo, em 7/12/11). As autoridades japonesas inicialmente justificaram o uso da verba como uma forma de ajudar na recuperação das comunidades costeiras que trabalham nesse tipo de atividade, depois recuaram e disseram que os recursos vieram dos impostos.

Apesar da pesca da baleia para fins comerciais ser proibida desde 1986 pela Comissão Baleeira Internacional (CBI), anualmente em torno de mil baleias são mortas pelos pesqueiros japoneses, sob protestos de países como a Austrália, Holanda e Estados Unidos e de várias organizações ambientalistas. Uma delas, a Sea Shepherd, que com seus barcos há sete anos tenta evitar as atividades da frota baleeira no oceano Antártico, lembra que a prioridade no uso de verbas é para atender os atingidos pela catástrofe. O fundador da ONG, Paul Watson, insiste nesse ponto. “De qualquer maneira, a pergunta deve ser feita: quando as pessoas estão desabrigadas por causa do desastre, por que 30 milhões de dólares são destinados à indústria baleeira para defender a sua operação de caça ilegal no Santuário Antártico das Baleias?”

Ações para reduzir riscos e mortes

Mas, voltando à região serrana, a intervenção nas áreas atingidas não ficará limitada à limpeza e desobstrução das vias, a remoção de entulhos, consertos emergenciais e a retomada dos serviços interrompidos. Isso já foi feito em grande parte das localidades. Será preciso realizar obras de razoável tecnologia de engenharia para tornar as cidades seguras do ponto de vista habitacional. O realocamento de centenas de famílias que residem em áreas de encostas e margens de rios muitas vezes esbarra na escassez de terrenos planos e seguros ofertáveis à compra pelo poder público ou mesmo passíveis de serem desapropriados para a construção de novas casas e bairros. Muitas vezes terrenos que parecem viáveis para a moradia acabam não recebendo o nada consta ambiental.

O governo do estado do Rio afirma que aplicou 49 milhões de reais em 2011 em várias frentes de trabalho na Região Serrana, principalmente as emergenciais e as voltadas para restaurar a normalidade dos acessos e serviços nas localidades. Por sua vez, a reconstrução de dezenas de pontes, grande parte delas pequenas, vão ser realizadas após estudos de viabilidade. As enxurradas mudaram as margens dos rios e a quantidade de água que passava debaixo das pontes. Setores ambientais do estado tiveram que analisar os projetos. Com o mapeamento de 170 pontos de alto risco (os temporais de janeiro de 2011 provocaram 777 deslizamentos em sete municípios da serra fluminense), o cálculo dos técnicos é de que será preciso 1 bilhão de reais para tornar as encostas seguras, além dos 147 milhões de reais que já estão sendo investidos em 30 pontos considerados prioritários. Outros 265 milhões de reais serão necessários para a realização de trabalhos de dragagem, canalização, construção de barragens e implantação de um parque fluvial (“Estado diz que precisa de mais R$ 1 bi para encostas”, O Globo, em 12/1/12). A disposição do governo também é de construir cinco mil casas para atender aqueles que perderam ou tiveram as suas moradias interditadas ou condenadas pela Defesa Civil. Atualmente, 7.372 famílias recebem ajuda do governo por meio do aluguel social no valor de R$ 500 mensais.

Em 2007, quando da primeira conferência sobre redução dos riscos de catástrofes organizada pela ONU, a crescente vulnerabilidade das cidades já preocupava. “A progressiva urbanização, conjugada com as alterações climáticas, criará novas situações de stress para os povoamentos urbanos, tornando milhões de pessoas ainda mais vulneráveis a catástrofes”, alertava o então subsecretário-geral da ONU para assuntos humanitários e coordenador de ajuda de emergência, John Holmes, chamando a atenção ainda para a necessidade de se implementar ações que pudessem evitar ou reduzir os riscos e as mortes.“Um planejamento eficaz, a elaboração de orçamentos corajosos e a aplicação de políticas que impeçam a fixação de seres humanos em zonas de perigo são indispensáveis. Temos de velar para que os hospitais, as escolas, os transportes e as redes de água consigam resistir aos riscos decorrentes de catástrofes.”

Avanço “em direção ao fim”

Em relação à região serrana, “a ocupação de Áreas de Proteção Permanente- APPs (áreas cobertas ou não por vegetação nativa, que têm como função preservar os recursos hídricos, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo de fauna e flora e proteger o solo) maximizou os impactos dos desarranjos do clima e sua variabilidade”, explica a coordenadora do Programa de Mudanças Climáticas e Resposta a Desastres da organização não-governamental Care Brasil, Leila Soraya Menezes. Ela alerta para o fato de que áreas de extremo risco de desastre estão ocupadas por comunidades inteiras, em geral comunidades em situação de extrema vulnerabilidade social. “O que aconteceu na serra fluminense mostra como a ocupação intensa de APPs protegidas pelo nosso Código Florestal, como dunas, mangues, encostas e topos de morro, beiras de rio e matas, que cumprem papel natural de redução de riscos, podem potencializar uma tragédia.” Relatório de Inspeção do Ministério do Meio Ambiente já havia revelado que as áreas mais atingidas foram justamente as APPs, onde as pessoas habitavam irregularmente áreas à beira ou muito próximas às margens dos cursos dos rios e áreas de encostas de morros com grande declividade e que esses moradores morreram atingidos por inundações e deslizamentos de terra” (“Mudanças climáticas –Sociedade de risco”, portal Ipea).

Em suma, em ambas as catástrofes houve equívocos na condução dos trabalhos a serem realizados que resultaram em omissões e erros de avaliação. A reconstrução de qualquer área submetida à fúria de um desastre natural, além de requerer custos estratosféricos, é um desafio que exige, após os primeiros dias de reação emergencial, um planejamento gerencial conjugado envolvendo várias estruturas e mecanismos governamentais simultaneamente, com propostas e ações alternativas já prevendo os possíveis cerceamentos jurídicos e ambientais que costumam interromper e atrasar os cronogramas de obras. Consciente dessa questão, a ONU promoveu em maio de 2011, em Genebra, juntamente com o Banco Mundial, a primeira conferência sobre reconstrução (World Reconstruction Conference). Presente ao encontro, a diretora do departamento de finanças, economia e desenvolvimento urbano do banco, Zoubida Allaoua, resumiu a essência dos debates: “Queremos aprender com o passado e chegar a um acordo sobre uma nova estrutura que agilize a reconstrução após uma catástrofe, aprovar normas comuns, melhorar a qualidade e aumentar a transparência.”

Metas que precisam ser implementadas com certa urgência. Neste início de ano, face aos desastres climáticos de 2011, o relógio do Juízo Final foi adiantado em um minuto, deslocando-se para 23h55m. De acordo com o Boletim dos Cientistas Atômicos, grupo que criou este mecanismo em 1947, além da disseminação das armas nucleares, o que pesou no avanço “em direção ao fim” foi a falta de empenho global no combate às mudanças climáticas que têm provocado desastres naturais de grande monta, com prejuízos bilionários e milhares de mortes, principalmente em países em desenvolvimento pouco capacitados para lidar com esses tipos de catástrofes.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O jornalismo entre o real e o aparente


por Sheila Sacks

“... a vida só termina para os mortos” (Roberto DaMatta, antropólogo)
publicado no site Observatório da Imprensa
http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed673_prisao_de_nem__o_jornalismo_entre_o_real_e_o_aparente

Na semana em que as forças de segurança do Rio de Janeiro anunciavam a ocupação da favela da Rocinha, na zona sul da cidade, fatos ainda pouco esclarecidos antecederam e se seguiram ao evento, ocorrido em um domingo, 13 de novembro de 2011. A megaoperação planejada há pelo menos um ano, segundo a subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança, contou com efetivos das polícias Federal e Estadual, fuzileiros navais e blindados da Marinha, equipamentos sofisticados e agentes infiltrados que se instalaram nas favelas meses antes para mapearam os principais pontos utilizados pelos traficantes de drogas.

Apontado pela polícia como chefe do tráfico de drogas da favela da Rocinha, Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, de 35 anos, tinha essa atribuição desde 2004 quando sucedeu o traficante Luciano Barbosa dos Santos, o “Lulu”, morto por policiais do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais). Capturado três dias antes da invasão da Rocinha, escondido no porta-malas de um carro, quando tentava escapar do cerco policial, Nem chegou a oferecer R$ 1 milhão por sua liberdade. Três homens o acompanhavam no veículo, que foi parado por policiais militares em uma das saídas da favela por estar com a suspensão baixa. Ao revistar o carro, os PMs encontraram Nem. A Delegacia de Combate às Drogas do Rio fez a estimativa de que o comércio ilegal da Rocinha é um negócio que movimenta cerca de R$ 100 milhões anuais ou quase R$ 2 milhões por semana (“Nem com R$ 1 milhão” - Correio Braziliense, em 11.11.2011).

Maior favela do país, com população estimada em 120 mil moradores, a Rocinha (que agrega as favelas do Vidigal e da Chácara do Céu) também é considerada o mais importante entreposto de drogas da cidade principalmente em relação à venda de cocaína. Em entrevista ao jornalista Gil Alessi, meses antes de sua prisão, Nem revelou que tinha sob a sua responsabilidade 300 homens e que todos recebiam salário, inclusive décimo terceiro, e que em caso de prisão ou morte a família recebia pensão vitalícia. Ele também comandava a facção Amigos dos Amigos (ADA) da Rocinha, um grupo criminoso com ramificações em numerosas favelas cariocas (“Conversas com Antônio” – Carta Capital, em 04.12.2011).

Nem negociava rendição

Levado preso para a sede da Polícia Federal do Rio, o traficante prestou depoimento e disse que negociava há cerca de dois meses a sua rendição com a ONG (Organização Não Governamental) Grupo Cultural AfroReggae que vem atuando como mediadora de conflitos sociais em favelas que envolvem traficantes, viciados e os próprios moradores (“Traficante Nem diz que negociava sua rendição com o AfroReggae há dois meses.” “Bandido revela ainda que faturava R$ 1milhão por mês” - O Globo, em 12.11.2011).

Originária do grupo musical Banda AfroReggae, a ONG criada nos anos 1990 instalou suas primeiras oficinas de música e dança afro para os jovens da favela de Vigário Geral, na zona norte da cidade, e depois expandiu seu trabalho para outras comunidades pobres do Rio. Do objetivo inicial de resgatar, através da música e da arte, as crianças e adolescentes da influência dos traficantes, a instituição ampliou a sua área de atuação e em anos recentes tem trabalhado na ressocialização de presos e foragidos, contando com apoio jurídico de escritórios de advocacia. De acordo com matéria publicada em O Globo, em 29.11.2011, cinco fugitivos do sistema penitenciário voltaram à prisão depois de procurarem a ONG. Eles são acusados de assaltos, homicídios e tráfico de drogas (“Afro Reggae faz mediação e 5 bandidos se entregam”).

O coordenador executivo da AfroReggae, José Junior, confirmou que a entidade negociava a rendição de Nem e que ele manteve contato com o traficante até algumas horas antes de sua prisão pela Polícia Militar. A informação, postada pelo próprio José Junior na rede de microblogs Twitter, foi veiculada um dia depois do subchefe operacional da Polícia Civil do Rio, delegado Fernando Velloso, anunciar que havia uma negociação em curso com o advogado de Nem para a rendição do bandido. “Venho a público esclarecer que os policiais civis estavam em uma missão legítima e legal, que foi autorizada por mim”, afirmou Velloso, justificando a ação dos três policiais que tentaram evitar que o traficante preso fosse levado para a sede da Polícia Federal, como acabou acontecendo. Porém, segundo os policiais federais, o traficante não citou qualquer policial civil na negociação (“Coordenador diz que Nem negociava rendição com AfroReggae” – Jornal do Brasil online, em 12.11.2011).

Sambista executado com oito tiros

A prisão de Nem na madrugada de quinta-feira, 10 de novembro, foi seguida, horas depois, pelo seqüestro e assassinato de uma “mediadora de conflitos” do AfroReggae, levada de sua casa em Vigário Geral, na zona norte do Rio, e encontrada morta, com um tiro na cabeça, em um matagal no bairro Campos Elísios, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Tânia Cristina Moreira, 44 anos, trabalhava na ONG há sete anos e fazia parte de um grupo com cerca de 20 pessoas que atua junto a criminosos e traficantes de facções rivais no sentido de diminuir a violência e o confronto nas favelas.

Com um filho preso por envolvimento com o tráfico de drogas, a mediadora teve a casa – que fica a poucos metros da sede da ONG - invadida por três homens que a levaram em um Gol branco, de acordo com a mãe e uma amiga que estavam no local. Nenhum objeto foi roubado e os policiais da Divisão Anti-Sequestro (DAS) disseram acreditar na hipótese de vingança relacionada a algum dos casos em que a funcionária da ONG serviu como mediadora. Mas, a direção do AfroReggae negou que o assassinato tivesse algo a ver com o seu trabalho. Vizinhos contaram que veículos de policiais civis foram vistos nas imediações da casa de Tânia na noite do crime. (“Mediadora do AfroReggae é sequestrada e morta no Rio de Janeiro” – Estado de São Paulo, em 11.11.2011).

Dias depois desse assassinato, um outro crime com características de execução vem a público, desta vez ocupando as primeiras páginas dos jornais cariocas. A vítima, de 32 anos, é o músico e vocalista da banda “Samba Firme”, Carlos Eduardo Mendes de Jesus, o Dudu, filho do coreógrafo e dançarino Carlinhos de Jesus.

Assassinado com 8 tiros ao sair do “Boteko Carioca”, na zona oeste do Rio, local onde havia se apresentado com a banda, o músico foi atacado por dois homens em uma moto que fizeram os disparos e fugiram. Também nesse caso a polícia disse acreditar na hipótese de vingança, “pela ausência de subtração de pertences e pela ausência de anúncio” (“Polícia investiga se filho de Carlinhos de Jesus foi executado” – O Globo, em 21.11.2011). Um policial militar que teria se envolvido em uma discussão com integrantes do grupo, uma semana antes, seria o principal suspeito de ter assassinado o músico (“PM é o principal suspeito de matar filho de Carlinhos de Jesus, diz polícia” – JB online, em 22.11.2011).

Atentado à bomba

Observa-se que, assim como o AfroReggae está presente na Rocinha e em várias comunidades pobres através de suas oficinas de música e arte, o coreógrafo Carlinhos de Jesus também é padrinho de um grupo da comunidade da Rocinha, que atende 60 jovens de 13 a 26 anos. Eles recebem aulas de dança na academia do artista, no bairro de Botafogo, e aprendem todos os ritmos para se apresentarem em festas de debutantes e outro eventos (“Grupo de Valsa Noite de Encantos e Carlinhos de Jesus”- site Rocinha.org). Por sua vez, a banda de Dudu de Jesus tinha entre seus convidados o cantor e compositor Renato da Rocinha, nascido e criado naquela favela, e que foi durante muitos anos a voz dos “Acadêmicos da Rocinha”, a escola de samba da comunidade.

A criação de grupos musicais, de dança e de arte nas favelas como tentativa de afastar as crianças e os jovens do vício e da possibilidade de envolvimento com o ilícito e a marginalidade que, infelizmente, muitas vezes fazem parte do cotidiano desses adolescentes, tem tido o apoio e a participação de artistas de renome e de ativistas sociais. Em 2008, em reconhecimento ao trabalho desenvolvido nas áreas artística e social, Carlinhos de Jesus e o grupo cultural AfroReggae (José Junior) foram condecorados pela Assembléia Legislativa do Rio (ALERJ): o primeiro com o título de Benemérito do Estado do Rio de Janeiro, e o segundo, com a Medalha Tiradentes, a mais alta condecoração da Casa. Em 2009, a revista Época incluiu José Junior na sua lista anual das 100 pessoas mais influentes do país.

Uma semana após o assassinato do músico, dois homens em uma moto lançaram um explosivo contra carros estacionados em uma via importante da Tijuca, bairro de classe média da zona norte. O atentado ocorreu na madrugada de domingo, 29 de novembro, a 200 metros do batalhão da Polícia Militar e destruiu cinco veículos. No dia seguinte, a polícia prendeu em Bangu, zona oeste da cidade, a 40 quilômetros do ocorrido, dois homens suspeitos de chefiar o tráfico no Morro do Andaraí, comunidade de 13 mil habitantes que fica nos arredores da Tijuca. De acordo com as investigações, os traficantes perderam R$ 6 mil reais mensais com a entrada dos policiais naquela favela, em 2010. (“Incêndio a carros:suspeitos presos” – O Dia, em 01.12.2011).

Rocinha cresceu 23%

A migração dos bandidos das favelas da zona sul da cidade para outras mais distantes do foco prioritário da polícia é um fato que tem sido denunciado por moradores das comunidades das zonas norte e oeste, da Baixada Fluminense e da área metropolitana, que abrange municípios como Niterói e São Gonçalo. do outro lado da Baía de Guanabara. O desembarque de criminosos, traficantes e armamentos em favelas distantes 50 a 100 quilômetros do centro do Rio, muitas delas filiais menores das grandes facções criminosas dominantes no cenário carioca, tem elevado ainda mais os altos índices de criminalidade nessas regiões que contam com um efetivo policial insuficiente observando-se a extensão territorial dessas localidades (“Moradores:dois caminhões-baú levaram traficantes da Rocinha para Belford Roxo” – JB online, em 21.22.2011).

Por outro lado, a distância não tem sido obstáculo para as ações de intimidação e violência dos criminosos que comumente se valem da mobilidade das motos e de mototaxistas ligados ao ilícito para a prática de assaltos e assassinatos em qualquer ponto do estado. Desde a ocupação policial da Rocinha, em novembro, aumentaram os assaltos no local e moradores estão reclamando que cresceu a sensação de insegurança. “O clima é de muito medo, segundo relato de uma moradora, empregada da zona sul do Rio de Janeiro. Moradores estão fechados a sete chaves e apavorados dentro de suas casas.” (“Casas estão sendo assaltadas na Rocinha” -JB online, em 13.12.2011). Uma conhecida rede de eletrodomésticos que instalou uma filial na favela, em outubro, teve suas dependências invadidas por assaltantes. O imóvel de três andares foi inaugurado após um investimento de R$ 1 milhão (“Loja de eletrodomésticos é assaltada na Rocinha” – O Dia online, em 13.12.2011).

É importante lembrar que a cidade do Rio de Janeiro, de acordo com os mais recentes dados do Instituto Pereira Passos, órgão da prefeitura, tem 152 complexos de favela e 467 favelas isoladas (em 2009, o mesmo instituto somou 968 favelas), onde vivem perto de 1,1 milhão de pessoas, cerca de 18º da população carioca. Desse total de favelas, 28 estão ocupadas pela polícia que mantém 3,3 mil homens nesses locais. Há poucos meses, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou um estudo onde mostra que algumas das maiores favelas do Rio, na última década, tiveram um aumento de população acima da média da cidade, que foi de 7,9. Somente a favela da Rocinha cresceu 23% (“População das favelas cresceu acima da média carioca” - Estado de São Paulo, em 01.07.2011).

Mundo do faz de conta

Três semanas após a prisão de Nem, um festejado líder comunitário da Rocinha, agraciado em 2004 pela ONG Sou da Paz pelos seus esforços no desarmamento na favela, é preso acusado de negociar armas para o traficante. William de Oliveira, 41 anos, que foi presidente da Associação de Moradores da Rocinha, tinha bom trânsito nas esferas política e social por sua popularidade entre os moradores - tornando-o uma cobiçada base eleitoral para os candidatos a cargos eletivos- e também pela sua proximidade com os traficantes, um detalhe recorrente “que costuma marcar a atuação de organizações sociais em favelas subjugadas pelo crime” (“O bom moço vendia fuzil” – Revista Veja, em 04.12.2011).

Funcionário da Câmara Municipal do Rio, William estava lotado no gabinete da vereadora Andréa Gouvêa Vieira, e ganhava como assessor parlamentar um salário de 5.300 reais. Um vídeo mostrando a negociação de um fuzil de fabricação russa para o traficante Nem, com a participação de William e do ex-vice-presidente da Associação de Moradores da Rocinha, Alexandre Leopoldino da Silva, o Peninha, também exercendo cargo na administração pública, colocou ambos na prisão, ao mesmo tempo em que foram sumariamente exonerados. De acordo com a polícia, o vídeo foi feito por uma moradora , em setembro, e entregue ao titular da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (DRFA), Marcio Mendonça (“Vídeo com Nem leva líder comunitário à cadeia” –O Dia, em 03.12.2011).

Em artigo publicado em O Globo, o antropólogo Roberto DaMatta analisa as nuances e as inovações dos papéis sociais, sua falta de coerência institucional, e do mundo de faz de conta presente no comportamento de governantes e figuras públicas: “No teatro, mente-se quando se representa um papel, mas um ministro mentir, um presidente abusar de seu cargo ou um delegado mandar matar não ocorre num palco onde a peça se repete todo o dia e na qual os mortos (que fingem morrer) voltam a viver porque aquilo não é coisa de verdade, mas uma novela” (“Papéis e atores”, em 07.12.2011).

O traficante Nem, confinado desde 19 de novembro em um presídio federal, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul (assim como os três homens de sua escolta), tornou-se figurante de um obscuro “enredo” onde os “atores” dificilmente “morrem”, porque são titulares de papéis sociais “corporativos e outorgados através de uma investidura, ou obtidos por nomeação ou eleição competitiva e liberal”.

Sobra então, para os que estão atrás das grades e para os demais figurantes da bandidagem sob a mira da polícia, a consciência do peso da “vida real”, integralmente assumida no seu dia-a-dia pelos viventes comuns que, ao contrário do que ocorre no teatro, morrem de verdade. Muitos prematuramente, vitimados pela violência e pelo “poder que brutaliza”.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Troca de prisioneiros: quando um é muito


por Sheila Sacks
publicado no "Observatório da Imprensa"
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_troca_de_prisioneiros__quando_um_e_muito


“Não posso escolher como me sinto, mas posso escolher o que fazer a respeito.” (William Shakespeare)

Em maio deste ano, por ocasião das homenagens às vítimas holandesas da II Grande Guerra, pediu-se aos moradores de Amsterdã para sinalizarem com cartazes as casas onde residiam os judeus que foram deportados para os campos de concentração nazistas. Para isso, os atuais proprietários dessas casas receberam um cartaz com o seguinte texto: “Esta é uma das 21.662 casas em que viveram judeus antes de serem mortos durante a Segunda Guerra Mundial.”

Com o apoio do Arquivo Nacional da Holanda, procurou-se dar uma conotação mais emotiva e educativa ao evento, lembrando às gerações futuras os acontecimentos trágicos ocorridos há pouco mais de 70 anos. Em um artigo para a Radio Nederland Internacional (RNW), a jornalista Myrtille van Bommel constatou a boa receptividade dos moradores à ideia e lembrou que, em 1941, viviam cerca de 80 mil judeus em Amsterdã – 10% do total da população da cidade. “A maioria dos judeus de Amsterdã, 61.700 homens, mulheres e crianças, não sobreviveu à guerra. Morreram em campos de extermínio” (“Amsterdã sinaliza casas de judeus deportados”, em 2/5/2011).

Por outro lado, também como parte da programação em homenagem às vítimas, o canal NCRV da televisão pública holandesa exibiu um documentário sobre os chamados “soldados negros” (Zwarte Soldaten), oficiais holandeses da Gestapo ligados ao extinto partido pró-germânico NSB (Netherlands Socialistic Union) que atuaram nas forças de repressão durante a ocupação alemã. Dias antes, dada a expectativa gerada pela veiculação da fita, a imprensa holandesa adiantou alguns extratos do filme que, ao contrário do que seria o esperado, mostrou que “as feridas da II Guerra Mundial seguem abertas na Holanda”. No documentário, os seis entrevistados – o mais novo, com 85 anos – não demonstravam nenhum sinal de arrependimento ou remorso em relação à matança dos judeus e se negaram a pedir perdão a seus compatriotas por terem colaborado com os ocupantes nazistas.

“Ausência de arrependimento”

Na reportagem publicada pelo jornal espanhol El Mundo (“Ex SS holandeses hablan en público: “Hitler hizo lo correcto!”, em 27/4/2011), o diretor do documentário, Joost Seelen, apontou a idade avançada dos entrevistados como justificativa para as “surpreendentes” declarações dos antigos membros das SS holandesas, colhidas em 2009 através de depoimentos individuais que duraram até três horas. “Eles nada tinham a perder, conscientes que estavam que lhes restavam poucos anos de vida”, ponderou o diretor. Contando originalmente com o testemunho de oito participantes, dois deles vieram a falecer antes da exibição do filme.

Em seus depoimentos, os entrevistados defenderam Hitler e a estratégia da “solução final” dos campos de extermínio. “Eles se ocuparam de manter a pureza da raça e não sinto nenhum remorso até os dias de hoje”, afirmou Kris Kol, um dos antigos SS. “Hitler conseguiu fazer uma boa limpeza”, reforçou o seu colega Klaas Overmars, recentemente falecido. Segundo a reportagem, o que sobressaiu nos polêmicos testemunhos foi um indisfarçável “ódio aos judeus”, expresso de forma direta e sem rodeios. “Hitler fez o correto,” reafirmou Kol, demonstrando orgulho de seu passado.

Cinco meses depois da exibição do documentário holandês, quando da troca do soldado israelense Gilad Shalit por 447 prisioneiros palestinos condenados por terrorismo (de um total de 1027 a serem libertados), novamente a questão da “ausência de arrependimento” veio à tona no artigo da jornalista Frimet Roth, que teve a filha de 15 anos morta em agosto de 2001 no ataque à pizzaria Sbarro, em Jerusalém. Publicada pelo jornal israelense Haaretz (16/10), a matéria apelava ao primeiro ministro Benjamim Netanyahu para que não libertasse a jordaniana Ahlam Tamimi, envolvida no ataque, face à frieza demonstrada pela terrorista todas às vezes que fora instada a falar sobre o ocorrido. Tamimi, então com 20 anos, foi a encarregada pelo Hamas da missão de transportar, de Ramalah, na Cisjordânia, até Jerusalém, os 10 quilos de dinamite usados pelo homem-bomba que explodiu a pizzaria matando 15 pessoas e ferindo mais de 100.

Ações de Israel influenciam antissemitismo

Em um vídeo apresentado pelo canal 2 de notícias da TV israelense, Tamimi reafirmou o que já havia dito em 2006 sobre a sua participação no ataque. Respondendo ao repórter da emissora, ela disse que não se sentia mal ou com pena das vítimas e se houvesse uma nova oportunidade ela faria novamente. “Não me arrependo do que fiz. Por que tenho que me arrepender? Não fiz nada de errado”, disse. Condenada a 16 prisões perpétuas, Tamimi foi libertada em 18 de outubro pelo governo israelense e retornou a Jordânia. Em Amã, em entrevista à rede de TV Al Jazira, ela expressou lealdade ao braço militar do Hamas: “Deus tem escolhido seus soldados nesta terra, e eles são os soldados das brigadas de Al-Qassam (braço armado do grupo que controla a Faixa de Gaza)”, declarou à rede. Tamimi também revelou, em uma das entrevistas, que a escolha de Jerusalém para alvo do ataque levou em conta o grande número de judeus ortodoxos residentes na cidade, os quais são considerados pelo Hamas os seus principais inimigos pela ferrenha posição de defesa do território bíblico de Israel.

A declaração em si não traz nenhuma novidade mas intensifica o inquietante quadro político instalado, há décadas, no Oriente Médio, a partir da visível ascensão da sharia (leis islâmicas) e dos partidos islâmicos nos futuros governos dos países árabes sacudidos por rebeliões populares. A correspondente de O Globo, Graça Magalhães-Ruether, destacando a vitória dos islamistas na Tunísia, berço da chamada Primavera Árabe, chama a atenção para dois outros países, a Líbia e o Egito, ambos a caminho da islamização. “Na Líbia, o Conselho Nacional de Transição (CNT) já informou que a sharia (lei islâmica) será a fonte de inspiração legal do novo governo e no Egito a Irmandade Muçulmana desponta como força de peso no cenário pós-HosniMubarak.” Para o cientista político tunisiano Hammadi el-Aouni, da Universidade livre de Berlim, “há risco de se sair de uma ditadura para entrar em outra, a islâmica” (“Entre a sharia e a democracia”, 26/10/2011).

Em recente pesquisa sobre antissemitismo realizada pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) e divulgada pela Delegação das Associações Israelitas da Argentina (Daia), 25% dos argentinos consultados creditaram as ocorrências de violência contra judeus na diáspora a um sentimento anti-Israel. Mas a esmagadora maioria, cerca de 75% dos entrevistados, respondeu que o sentimento antijudaico (antissemitismo) ainda é o principal motor das manifestações contra os judeus que vivem fora do Oriente Médio. O sociólogo argentino Patrício Brodsky lembra que, em 2009, uma pesquisa semelhante realizada na Europa pela Anti-Defamation League - ADL (Liga Antidifamação) mostrou que uma percentagem maior de europeus, cerca de 39%, via correspondência entre os atos contra os judeus e o sentimento anti-Israel, sendo que 17% admitiam que medidas políticas adotadas pelo estado de Israel influenciavam sua opinião sobre os judeus. Outro dado importante dessa pesquisa analisado por Brodsky é a visão da atual crise mundial e a percepção de possíveis culpados. Segundo 48% dos argentinos entrevistados, os judeus têm algum grau de responsabilidade nesse quadro econômico, percentagem superior aos 31% dos europeus que em 2009 tinham a mesma opinião. A Argentina tem a maior comunidade judaica da América Latina, com 300 mil membros.

Caminho certo

A pesquisa também abordou o Holocausto, um tema presente e recorrente nas consultas que incluem o antissemitismo na sua forma mais disseminada na diáspora: a de se constituir em um dispositivo sutil de preconceito e de embutir um mecanismo reticente de exclusão social. Ainda que o genocídio judaico seja uma das mais infames tragédias levadas a efeito pela mente humana conjugada com o poder do Estado – um marco aterrador na história do século 20 –, 49% dos argentinos e 44% dos europeus concordaram com a seguinte frase: “Os judeus falam demasiado sobre o que lhes aconteceu no Holocausto” (“El antisemitismo en Argentina”, publicado no site de notícias Aurora, em 18.10.2011).

Diante de situações controversas e de pesquisas que demonstram que o antissemitismo persiste, entende-se a preocupação dos líderes israelenses de preservar uma única vida, a do soldado Shalit, a despeito do desespero dos pais e parentes das vítimas dos ataques terroristas, inconformados com a decisão do governo de libertar mais de mil condenados por assassinatos. Sobre os pretensos dividendos políticos ganhos por Netanyahu nessa negociação com o Hamas, o inverso parece ser o mais lógico: mesmo sendo Israel uma das poucas democracias da região e o genocídio praticado pelo regime nazista apresentar uma inquestionável relevância histórica, o sentimento antijudaico não tem dado mostras de arrefecer.

E em tempo de desafios, com um planeta alcançando o incrível patamar de 7 bilhões de habitantes, o Estado de Israel e as comunidades judaicas instaladas em dezenas de países, que somam pouco mais de 13 milhões de pessoas, se rejubilaram pelo retorno do soldado israelense ao convívio de seus familiares. Para a maioria dos judeus, aplicou-se a máxima do Talmud (comentários e explicações das leis judaicas) que diz: “Quem salva uma vida é como se salvasse o mundo inteiro.” Para os 300 ex-prisioneiros palestinos que retornaram a Gaza, a jordaniana Ahlam Tamimi e a multidão que gritava “queremos um novo Shalit”, a troca estabeleceu a certeza de que o Hamas está no caminho certo, “sugerindo que o resultado prático da captura do soldado israelense pode incentivar a repetição da iniciativa para obter a liberdade de mais prisioneiros” (“Shalit tem feriado judaico em casa”, Correio Braziliense, 20/10/2011).