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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

De volta a Sefarad

Por Sheila Sacks


A Inquisição espanhola e portuguesa desestruturou as comunidades judaicas na Península Ibérica, uma das mais cultas e prósperas da época, com grande parte de seus membros partindo para o exílio ou se convertendo à força ao cristianismo. Instalada oficialmente na Espanha em 1478, a Inquisição precedeu em 14 anos o édito real de expulsão dos 300 mil judeus que viviam nas terras de Sefarad. Mas a perseguição aos judeus e cristãos-novos (marranos) foi além do continente europeu e atingiu as colônias das Américas, com a instalação de tribunais do Santo Ofício em várias cidades. Mais de 30 mil marranos foram condenados à morte sob a acusação de prática secreta de ritos judaicos. 

“Esta singela e preciosa chave de ferro simboliza o magnífico lar de nossos antepassados espanhóis. Meu bisavô amarrou a chave em seu cinto e nunca mais se separou dela” (do livro “A saga do marrano”, de Marcos Aguinis).

Em 2015, judeus expulsos da Espanha e Portugal há 523 anos terão a oportunidade de reconquistar as suas nacionalidades ibéricas a partir das novas leis aprovadas em ambos os países.  A estimativa é que existam 3,5 milhões de judeus praticantes de ascendência sefardita (originários da Península Ibérica – Sefarad, em hebraico) vivendo em Israel, França, Estados Unidos, Turquia, México e em países da América do Sul.

No Brasil são 40 mil judeus sefarditas (que seguem a religião judaica) e outros milhares de descendentes de judeus originários da Espanha e Portugal que se afastaram do judaísmo há dezenas de gerações. Para essa grande maioria não será fácil preencher todos os requisitos burocráticos e legais para a obtenção das cidadanias.

As dificuldades para comprovar com documentos válidos uma origem familiar que remonta a um passado de cinco séculos certamente vão barrar a pretensão não só dos que se mantêm dentro das normas religiosas judaicas como principalmente daqueles descendentes de marranos (vocábulo espanhol depreciativo que designava os cristãos-novos) ou B’nei anussim (“filhos dos forçados”, em hebraico), que por razões diversas se distanciaram de sua religião nativa.

Busca de identidade

A identificação da Espanha com “Sefarad” se consolidou no século 1 através da obra “Targum Jonathan”, do rabino Yonatan Ben Uziel, uma tradução com comentários do livro dos profetas (Nev’im). O termo apareceu uma única vez na citação bíblica do profeta Ovadia (um dos 48 profetas de Israel) que viveu no século 9 antes da Era Comum e se refere a uma cidade bíblica de localização incerta. Ovadia foi contemporâneo do profeta Eliahu (Elias), o mais venerado profeta depois de Moisés. 

No livro “Nunca podras volver a casa” (Nunca voltarás a casa), o jornalista espanhol José María Carrascal, por muitos anos correspondente em Nova Iorque do diário “ABC”, de Madri, narra a busca íntima e pessoal de um professor universitário por suas origens na antiga Sefarad. Publicada em 1997, a história acompanha a viagem do americano Simon Told (Simón Toledano) à cidade espanhola de Toledo, logo após a morte da avó de origem sefardita. Ele parte ao encontro de um passado remoto de muito sofrimento, sangue e glória, levando consigo a chave da casa deixada para trás há centenas de anos e zelosamente guardada por seus antepassados.

Intolerância e exílio

Coube ao casal de reis católicos Fernando II, do reino de Aragão, e Isabel I, de Castela editar o decreto de expulsão dos judeus da Espanha, em 31 de março de 1492, logo após obterem a rendição de Granada, o último bastião mourisco nas terras ibéricas. O historiador especialista em história judaica medieval, Yitzhak Baer (1888-1980), calcula que provavelmente existiam 300 mil judeus na Espanha nessa época. Pelo decreto, os judeus tinham três meses para sair do país ou optarem pela conversão. Cerca da metade dos judeus se tornou cristã e uma multidão em torno de 150 mil se lançou ao exílio.

Muitos judeus fugiram para Portugal – aproximadamente 80 mil -, mas quatro anos depois, em 5 de dezembro de 1496, o rei português Dom Manuel I promulga um decreto semelhante ao édito dos reis espanhóis, impondo a conversão como condição para a permanência da comunidade judaica no país. Tem início um novo êxodo e o rei fecha os portos, com exceção o de Lisboa, para tentar impedir a fuga em massa. Aqueles que ficam são batizados à força e embora publicamente se apresentem como seguidores da fé católica, uma grande parcela continua seguindo os ritos judaicos em segredo.

Entretanto, havia um clima de intolerância em relação aos “conversos” ou cristãos-novos que culminou no massacre de 1506, quando mais de dois mil convertidos foram mortos nas ruas de Lisboa por uma população assolada pela peste negra (bubônica) e pela fome que culpava os judeus recém-batizados por tais infortúnios. 

Depois da carnificina que durou três dias os remanescentes judeus partiram de vez de Portugal tomando o caminho para o norte da África (Marrocos, Tunísia, Argélia, Egito), Turquia, Grécia, Europa Central e as terras do novo mundo na esperança de se libertarem das perseguições e do medo. Três décadas depois, em 23 de maio de 1536, é instituída oficialmente a Inquisição em Portugal, no reinado de D.João III.

Inquisição além-mar 

Na Espanha, antes mesmo do decreto de expulsão dos judeus, os reis Fernando e Isabel, com o apoio da Igreja, já tinham instalado oficialmente a Inquisição em 1478, nomeando o frade dominicano Tomás de Torquemada como Inquisidor Geral. Por mais de 300 anos a Inquisição espanhola (que se estendeu até 1834) perseguiu e matou judeus e conversos, sob a acusação de “prática secreta de ritos judaicos”.

Com a descoberta do novo mundo, vieram os missionários seguidos pelo aparato da Inquisição que implantou tribunais do Santo Ofício em Lima, no Peru (1570), na cidade do México (1571), e em Cartagena das Índias, na Colômbia (1608). No livro “A Inquisição” (1999), o pesquisador e escritor Michael Baigent (1948-2013) e seu parceiro Richard Leigh (1947-2007) detalham a presença dessa instituição no continente americano.

Segundo os autores, a jurisdição do tribunal do Peru estendia-se principalmente ao Chile e à Argentina, no sul, e às ilhas do Caribe, ao norte. Em relação ao tribunal do México, este exercia a jurisdição na América Central, possessões espanholas na América do Norte e também nas Filipinas sob o domínio espanhol, do outro lado do Pacífico. O de Cartagena abrangia o Panamá, Guianas, Antilhas, Colômbia e Venezuela.

Centenas de cristãos-novos de ascendência portuguesa acusados de serem judeus clandestinos tiveram as suas propriedades confiscadas, foram presos e condenados por esses tribunais a morrerem nas fogueiras dos autos de fé (execução coletiva dos sentenciados). A primeira dessas execuções teve lugar na cidade do México em 28 de fevereiro de 1574, mas foi em 11 de abril de 1649 que aconteceu o chamado “grande auto”, envolvendo 109 acusados de heresia, sendo que 20 deles foram queimados vivos em praça pública. Em Cartagena, o primeiro auto de fé se deu em fevereiro de 1614, com 30 condenados, e em Lima, uma execução ocorrida em 1639 arrolou 80 réus, dez dos quais foram imolados na fogueira acusados de prática de judaísmo. Entre eles, o médico Francisco Maldonado da Silva, nascido na província de San Miguel de Tucumán, na Argentina.

Chave de casa

Acerca desse personagem, um cristão-novo que reassume o judaísmo e é condenado à morte na fogueira pela Inquisição, documentos registram que Francisco Maldonado era filho de um cirurgião português converso, Diego Nuñez da Silva, de origem lisboeta, e de mãe católica, Aldonza Maldonado. Nascido em 1592, exatamente um século após a expulsão dos judeus da Espanha, ele é o protagonista do romance do escritor e médico argentino Marcos Aguinis.

Exibindo um retrato sem disfarces de um período colonial cruel e corrupto que se impôs nos territórios da América do Sul sob o domínio da coroa espanhola e da Inquisição, “A saga do marrano” (1991) também inclui em sua narrativa a tradição sefardita de preservar a chave da casa original, sempre sonhando com um possível retorno. Em um dos capítulos, Diego Nuñez revela a um Maldonado criança o segredo da chave escondida: “Meu pai entregou-a para mim, em Lisboa. E ele recebeu de seu próprio pai. Provém da Espanha, de uma formosa casa na Espanha. Nossos antepassados acreditavam retornar a essa casa. Por isso, guardamos a chave.”

Maldonado foi queimado vivo em um domingo, 23 de janeiro de 1639 (aos 47 anos). Com base em documentos do arquivo da Inquisição, o escritor Ricardo Palma (1833-1919), um dos intelectuais peruanos mais respeitados, descreveu o momento da execução em seu livro “Anais da Inquisição de Lima”, publicado em 1863. “Às 3 da tarde, no instante em que iam se lançados às chamas os dez condenados, armou-se um furioso furacão, fenômeno pela primeira vez visto em Lima. A violência do vento rompeu o toldo que recobria o palanque, levando o cirurgião Maldonado a exclamar: - Assim dispõe o D’us de Israel para ver-me cara a cara lá do Céu onde está!

Mais de 30 mil marranos foram condenados à morte e queimados vivos pela Inquisição. Outras dezenas de milhares foram submetidos à tortura física. Qualificação injuriosa, marrano significa em espanhol, segundo Aguinis, “porco jovem recém-desmamado”, referência irônica à proibição dos judeus de comer carne suína. A palavra se disseminou entre as populações espanhola e lusitana que a usavam como um insulto aos judeus convertidos ao cristianismo que mantinham em segredo laços com a sua antiga fé.

Brasil Colônia

Em Portugal, a Inquisição estabeleceu-se em 1536 e somente foi abolida 285 anos depois, em 1821. Contava com quatro tribunais instalados em Lisboa, Coimbra, Évora e Goa, a então colônia portuguesa na Índia. No Brasil Colônia, os culpados de crimes contra a fé católica eram levados para Lisboa para serem punidos. Cerca de 1.200 cristãos-novos foram presos nas capitanias brasileiras acusados de prática de judaísmo. O historiador português do século 19, José de Lourenço de Mendonça, informa em seu livro “A Inquisição em Portugal” que ocorreram 760 autos de fé, com 31.349 sentenciados e 1.813 execuções, resultantes de mais de 40 mil processos.

Um dos processos mais conhecidos foi o que condenou o teatrólogo e poeta Antônio José da Silva, descendente de cristãos-novos.  Nascido no Rio de Janeiro em 1705, ele foi executados pela Inquisição, em Lisboa, depois de ser preso algumas vezes. Historicamente conhecido como “o judeu”, Antonio da Silva estudou direito na Universidade de Coimbra e escreveu poemas, sátiras, comédias e libretos para óperas. Acusado de “judaizante”, foi amarrado a um poste, degolado e depois jogado à fogueira no auto de fé de 18 de outubro de 1739. Tinha 34 anos.

Para os inquisidores, a família do poeta, pelo lado materno, ainda preservava algumas tradições judaicas como limpar a casa às sextas-feiras (para o descanso de sábado) e cumprir o “grande jejum de setembro” (referência ao Yom Kipur, o dia do perdão, quando os judeus permanecem até 25 horas sem comer e beber). A mãe e a esposa de Antonio da Silva também foram perseguidas e presas pela Inquisição.

Rabino marrano

Em 1957, um pouco mais de um século após a tragédia da Inquisição ser definitivamente extirpada na Península Ibérica, nascia em Palma, na ilha espanhola de Maiorca, aquele que seria o primeiro rabino marrano da história. Proveniente de uma família católica praticante que ia semanalmente à igreja, Nicolau Aguilo iniciou sua revolução espiritual ainda na pré-adolescência. A revelação da mãe de que eram descendentes de “chuetas” (termo pejorativo catalão que significa ‘porco’, equivalente ao termo marrano) abalou o menino, mas também o fez decidir a abraçar a sua herança judaica. Viajou para Israel, estudou profundamente o judaísmo, converteu-se formalmente e assumiu o nome hebraico de Nissam Ben-Avraham.

Em 1991, ele tornou-se rabino e 20 anos depois foi enviado à Espanha como emissário religioso da organização “Shavei Israel” (Retorno ao povo Israel). Desde 2010, o rabino Nissam, de 58 anos, atende as comunidades marranas de Barcelona, Alicante, Sevilha e Palma de Maiorca, ministrando aulas de religião e de conhecimento da cultura e tradições judaicas a todos que o procuram. Mas, a sua principal missão é ajudar aqueles que pretendem assumir oficialmente a “perdida” identidade judaica.  

O diretor da “Shavei Israel”, Michel Freund, em entrevista ao jornal israelense “Jerusalem Post” (2.8.2010), falou da importância do trabalho da instituição, sediada em Jerusalém, que mantém atualmente emissários na Espanha, Portugal, Polônia, Rússia, Itália, Colômbia e El Salvador. Disse ele: “Quando as pessoas descobrem que têm raízes judaicas, elas desenvolvem uma afinidade em relação a Israel e ao judaísmo, mesmo permanecendo católicas.”

A reportagem destaca a probabilidade de a Espanha e Portugal abrigarem mais de 100 mil descendentes de marranos, e o Brasil, mais de três milhões. Segundo a matéria do jornalista Mark Rebacz (“First ex-marrano israeli rabbi returns to Spain as emissary”), pesquisadores do tema avaliam que nosso país reúne a maior comunidade de B’nei anussim do planeta. 

Hoje, o Brasil tem 107 mil judeus. A Espanha, 12 mil e Portugal, em torno de 1.500.

domingo, 18 de janeiro de 2015

O primado da rosa


 Como a rosa entre os espinhos... (Cântico dos Cânticos - Shir HaShirim, 2:2)

Por Sheila Sacks
(atualizado em 20.10.2017)
Em 2006, mais de duas décadas e meia após a publicação de “O Nome da Rosa”, que até então acumulava mais de 15 milhões de exemplares vendidos, o italiano Umberto Eco, professor universitário de linguística e autor da façanha, ainda precisava explicar aos jornalistas que o entrevistavam o real sentido e o significado do título de sua obra. Publicado em 1980, quando o autor tinha 48 anos, o livro foi levado às telas em 1986, o que contribuiu para popularizar um enredo policial que discorre sobre estranhas mortes que se sucedem em um monastério medieval que abriga uma antiga biblioteca.  

Dois anos depois da primeira edição, em atenção aos seus leitores mais curiosos, Eco escreveu um pequeno livro de pouca mais de 60 páginas – “Pós-Escrito ao Nome da Rosa” - onde faz considerações sobre o sistema de trabalho que utilizou para o desenvolvimento de seu best-seller. Mas, em relação ao real significado do título, ele manteve o suspense: “Um título, infelizmente, é uma chave interpretativa. Um título deve confundir as ideias, nunca discipliná-las”, afirmou no intuito de encerrar a polêmica.

Ambientado no século 14, o livro inicialmente ganharia o título de “A Abadia do crime”, o que foi descartado, segundo o autor, porque “fixaria a atenção do leitor apenas sobre a intriga policial”. Eco reduz ao acaso a escolha do título, admitindo, contudo, que a ideia de usar o nome da rosa o agradou devido à rica simbologia e a mística religiosa que envolve a flor.

Para embaralhar ainda mais a mente do leitor, o livro de mais de 500 páginas se encerra com uma frase redigida em latim: “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus” (A rosa antiga permanece no nome, nada temos além do nome). Emprestada do monge beneditino Bernard Morliacense, que viveu no século 12, a frase original presente no texto latino “De contemptu mundi” contém o vocábulo “roma”, ao invés de “rosa”, em alusão à antiga capital do império romano. O que dá sentido à frase, pois do histórico poder de Roma, em nossos tempos, só resta o nome. 

 A rosa do “Zohar”

Coincidentemente, em 1980, um mês antes do lançamento de “O nome da Rosa”, que ocorreu em setembro, outro livro é publicado tendo a rosa como título. Escrito pelo rabino e filósofo israelense Adin Even Steinsaltz, 80 anos, a obra de apenas 165 páginas intitulada “A rosa de treze pétalas” traz como tema a teologia e a cosmologia nativas do judaísmo conhecidas como Cabalá (‘receber’, em hebraico).

Steinsaltz abre o livro com o trecho inicial do “Zohar” (‘esplendor’, em hebraico; pronuncia-se zôhar), a obra de referência da Cabalá, que dá nome à rosa e descreve a sua conexão com o povo de Israel. Está escrito: “Quem é a rosa? É Knesset Yisrael, a comunidade de Israel. Pois há uma rosa acima e uma rosa abaixo. Quanto à rosa entre os espinhos, ela tem vermelho e branco, como Knesset Yisrael tem justiça e piedade. Quanto à rosa de treze pétalas, como Knesset Yisrael ela tem treze atributos de compaixão envolvendo-a por todos os lados.”

Continuando a sua descrição da rosa mística, o “Zohar” estabelece: “E há cinco pétalas fortes sobre as quais a rosa é formada, e elas foram chamadas de salvações e agora são conhecidas como os cinco portões. E esta rosa é chamada de cálice da bênção, sobre o qual dizem: Eu beberei do cálice da salvação...” (Salmos – Tehilim, 116:13).

 Simbologia hebraica

Edição do "Zohar" (1558)
 Segundo os sábios de Israel, a rosa original tinha treze pétalas em cima e cinco pétalas mais rígidas na base. As treze pétalas ao redor da rosa corresponderiam aos treze atributos da misericórdia divina revelados ao profeta Moisés (Êxodo – Shemot, 34:6-7) e que constituem a base das orações em Yom Kipur (Dia do Perdão) e nos dias de jejum, quando são recitados. Ao nome divino são associados a compaixão, piedade, verdade, purificação e principalmente o perdão.

Ainda sobre a simbologia hebraica da rosa, o cientista, filósofo e pesquisador Michael Laitman, russo de nascimento e que vive em Israel há mais de 40 anos, observa que treze também são as palavras divinas que como pétalas cercam e protegem Israel. Fundador do Instituto de Educação e Pesquisa da Cabalá - Bnei Baruch e autor de 30 livros sobre o tema, ele explica que os vocábulos estão presentes nas duas frases iniciais do Gênesis (Bereshit), inseridos entre o nome divino citado duas vezes.  As palavras funcionariam como uma preparação para a purificação e correção da comunidade de Israel, preparando-a para receber os treze atributos da misericórdia.

 Em relação às cinco pétalas, Laitman analisa o significado de seu ensinamento: “As cinco folhas rígidas (sépalas) que cercam a rosa simbolizam a salvação” (elas têm a função de guardar a rosa dos espinhos que são entendidos como os nossos desejos egoístas). Ele lembra que a rosa também é comparada ao cálice sagrado: “Assim como o cálice da benção deve se apoiar em cinco dedos e não mais, também a rosa se assenta em cinco folhas rígidas (sépalas) que equivalem aos cinco dedos.” A rosa corresponderia ao cálice mencionado nos Salmos (Eu levantarei o cálice da salvação...).

Manuscritos escondidos

Escrito no século 2 da era comum pelo Rabi Shimon Bar Yochai (Rashbi),  o “Zohar” reúne todo o conhecimento espiritual judaico dos 3 mil anos anteriores, em especial os ensinamento da “Torá” (Pentateuco ou os cinco livros de Moisés). Nascido na Galileia, sob o domínio romano, Rashbi viveu treze anos com o filho Elazar em uma caverna onde escreveu a sua obra. Ele tinha participado da rebelião judaica contra os romanos liderada por Simão bar Kochba (ocorrida entre 132 a 135) e teve que se esconder para não ser executado. Sessenta anos antes o Segundo Templo de Jerusalém tinha sido destruído e os judeus condenados a um exílio que durou perto de dois mil anos.

Rashbi faleceu em 160 da era comum, aos 80 anos, e foi enterrado em Meron, no norte de Israel, perto de Tzfat (ou Safed), a cidade que se tornou o centro cabalístico de Israel. Por mais de mil anos os escritos do “Zohar” permaneceram escondidos em uma caverna sendo descobertos no século 13. Coube ao sábio espanhol Moses de Leon (1238-1305) a tarefa de compilar e publicar o seu conteúdo. Segundo o próprio “Zohar”, os segredos de sua sabedoria seriam revelados a todos, transcorrido o período atribuído para a correção da humanidade. Segundo o Talmud, antes do ano hebraico 6000, com o advento da era messiânica.

Missão e essência

No livro “A Rosa de 13 pétalas”, Steinsaltz chama a atenção para a missão que cada ser humano deve executar no mundo visando à correção da alma, uma tarefa específica que ninguém mais pode cumprir, mesmo que existam pessoas melhores e mais capacitadas para realizá-la. Contudo, somente àquela pessoa está destinada a fazê-la, de uma maneira pessoal e nas circunstâncias que lhe pertencem.

Isso porque o destino e a correção de uma pessoa não estão ligados somente com as coisas que ela própria faz ou cria. As existências anteriores de cada um têm influências consideráveis, visto que a vida é uma continuidade e determinados elementos que parecem não pertencer ao presente podem subir à superfície e será preciso completá-los ou corrigi-los. Cada alma tem uma determinada essência fundamental e para evoluir e se elevar ao nível correto é preciso pôr em ordem a parte que lhe cabe.


Nascido em Jerusalém, Steinsaltz foi aclamado pela revista “Time”, em 1988, como o “estudioso do milênio” por seu trabalho de estudo e divulgação do Talmud (‘estudo, aprendizagem’, em hebraico), a coletânea de explicações rabínicas sobre as leis e tradições do judaísmo. 

Leitura diária

Pelo calendário judaico estamos no ano de 5778 (correspondente a outubro de 2017), aproximando-nos do alvorecer messiânico, e apesar do conteúdo do “Zohar” se manter incompreensível para a maioria, a obra de Rashbi é acessada por milhões de pessoas que se dedicam a sua leitura diária, afirma Laitman que é membro do “World Wisdom Council” (Conselho Mundial da Sabedoria), ligado ao “Clube de Budapeste”, uma organização de pensadores e filósofos de diferentes religiões e tradições.

Mas, assim como o “Zohar”, outros documentos hebraicos foram escondidos em cavernas na Terra Santa e lá permaneceram por centenas de anos. É o caso de “Os Manuscritos do Mar Morto”, documentos com regras e recomendações religiosas escritas por membros da seita judaica dos essênios do século 1 da era comum e descobertas em 1947. Em “O nome da Rosa”, o escritor inspira-se nesses procedimentos milenares para montar a sua história e faz da biblioteca do mosteiro uma espécie de caverna que esconde uma  obra antiga e rara, dada como perdida e condenada pela Igreja.

O livro pivô da questão seria uma continuação da “Poética”, do filosofo grego Aristóteles (384-322 antes da e.c.), que trata da comédia e das virtudes do riso, um tema que a Igreja julgava estar associado à frivolidade e que dificultava a prática da fé.  Aproximando a realidade da ficção, Eco reforça a percepção de que, para determinadas gerações, livros podem ser potencialmente perigosos e, portanto, passíveis de serem destruídos.

 A rosa do paraíso

"Roseto Comunale", em Roma
Historiadores afirmam que a rosa é uma flor de origem oriental, com mais de cinco mil anos. Porém, a partir de descobertas de folhas fósseis de rosas em diversos locais do planeta, cientistas atestam que sua origem passa dos 25 milhões de anos, e é anterior à humanidade. No século 3 da era comum o rabino Joshua ben Levi, descreveu o Gan Eden (jardim do Éden) como uma paisagem de vales, rios e murtas, onde crescem 800 espécies de rosas. A descrição está nos “Midrashim” (derivado do radical hebraico ‘darash’, que significa pesquisar, investigar), manuscritos explicativos dos ensinamentos divinos em forma de parábolas, enigmas e histórias. As narrativas inicialmente orais, tendo como tema os versículos da “Torá”, foram compiladas e redigidas por sábios judeus no ano 500.

Há poucos anos, a referência mais singular (e controversa) a associar as rosas ao judaísmo aconteceu na cidade de Roma, onde a prefeitura criou um jardim municipal de rosas, o “Roseto Comunale”, sobre o cemitério judaico “L’Orto degli Ebrei”, datado do século 17.  A história, revelada em 2014 pelo jornal israelense “Haaeretz”, começou em 1934, quando o governo fascista de Benito Mussolini resolveu construir uma avenida atravessando o cemitério. As autoridades tinham prometido à comunidade judaica remover às lápides, porém o cemitério foi destruído.

Em 1950, dois anos após o término da Segunda Guerra, a municipalidade obteve o acordo dos judeus romanos que sobreviveram à tragédia da “Shoá” (calamidade, em hebraico, ou Holocausto) para que o antigo cemitério fosse transformado em um parque de rosas. Uma pequena placa de pedra no formato das tábuas dos 10 mandamentos e alamedas desenhadas em forma de uma menorá, o candelabro judaico de sete braços, lembram a origem judaica do espaço.

Reunindo mais de mil variedades de rosas de vários países, o “Roseto Comunale”, hoje com 10 mil metros quadrados, é procurado por turistas e apreciadores de flores. Porém, um aviso alerta para o fato de que milhares de restos mortais jazem no subsolo, o que faz com que a maioria dos judeus, por motivos religiosos ou por decisão pessoal, sinta-se impedida de visitar esse paraíso de rosas no coração de Roma.

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O Talmud na visão do rabino Steinsaltz:
                                                                
Em primeiro lugar, uma das características do Talmud é que ele se baseia no diálogo, ele se baseia na troca. Ele é diferente dos outros livros. Ele não diz: “Eu vou lhe contar uma coisa”. Ele diz: “Vamos discutir este assunto.”

O Talmud não é um livro que prega a sanidade, mas ele cria sanidade. A sanidade é uma das coisas mais difíceis de definir. É mais fácil definir a loucura. Mas a sanidade é a capacidade de manter coisas diferentes em certo estado de equilíbrio, mas sem deixá-las imutáveis para sempre.

Quando você é criado lendo esses escritos, ao ver alguma coisa, você se pergunta: “Qual é a pergunta que devo fazer sobre isto?”




domingo, 30 de novembro de 2014

A linguagem perdida ou o mundo infinito que a linguagem não alcança

por Sheila Sacks

“Cada pensamento desloca as partículas do cérebro, pondo-as em movimento e disseminando-as pelo Universo. Cada partícula da matéria existente deve ser um registro de tudo o que aconteceu.- “Principles of Sciences”, de William Stanley Jevons (1835-1882) e Charles Babbage (1791-1871)


O instrumento da linguagem continua aquém dos mistérios da Vida e do Cosmos. No século 19, pensadores históricos buscaram acender nas palavras a luz que poderia iluminar o universo não lógico que ainda nos espanta nessa segunda década do século 21. Percepções múltiplas sobre o Inexplicável e o Infinito estão gravadas em milhões de páginas que desafiam a capacidade humana de compreender e assimilar os fenômenos fundamentais da existência. 

Entretanto, hoje, acelerando um processo selvagem de dispersão mental, restamos reféns de palavras e encadeamentos frívolos e individualistas, ilhados em uma redoma de pensamentos manipulados por uma máquina de informações e sugestões que nos distanciam, cada vez mais, de um aprofundamento e de uma possível redescoberta da essência da linguagem e de sua possível expansão na tradução de pensamentos que versam sobre o incógnito, o invisível e o que não conhecemos. 

No livro “Key to the Hebrew-Egyptian mystery : in the source of measures”, datado de 1875, o pesquisador e estudioso da Cabalá, James Ralston Skinner, afirma estar convencido de que existiu uma linguagem antiga desaparecida, e de que restam numerosos vestígios. “A singularidade dessa linguagem era que podia estar contida dentro de outra, por um processo oculto, não sendo percebida senão com a ajuda de certas instruções; as letras e os signos silábicos possuíam, ao mesmo tempo, os poderes ou as significações dos números, das figuras geométricas, das pinturas ou ideografias, e dos símbolos, cujo objetivo era determinado e especificado por meio de parábolas, sob a forma de narrações completas ou parciais, mas que também podiam ser expostas separadas ou independentemente, e de vários modos, por meio de pinturas, obras de pedra e construções de terra.”

Skinner, de origem americana, destaca que aquela antiga linguagem estava profundamente infiltrada nos textos hebraicos, de tal forma que se empregando os caracteres escritos, cuja pronúncia forma a linguagem definida, podia-se intencionalmente comunicar uma série de ideais muito diferentes das que se expressam com a leitura de signos fonéticos. Para o pesquisador, realmente existiu na história da raça humana uma linguagem primitiva perfeita que por fatores desconhecidos desapareceu ou se perdeu no tempo.

Termos insuficientes

A medium e pensadora russa Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891) reclamava da insuficiência de palavras adequadas na linguagem moderna para a abordagem de determinados temas. Dissertando sobre autoconhecimento e consciência, a estudiosa das religiões e autora da “Doutrina Secreta” (1888) diz textualmente: “Tal é a pobreza da linguagem humana que não dispomos de termos para distinguir o conhecimento em que não pensamos ativamente do conhecimento que não podemos reter na memória.” E refletia: “Mais difícil então será encontrar palavras para descrever os fatos metafísicos e abstratos e distinguir-lhes as diferenças.”

Isso porque as pessoas definem as coisas segundo as suas aparências, de acordo com Blavatsky, que exemplificava: “À Consciência Absoluta chamamos ‘Inconsciência’, porque assim nos parece que deva ser, do mesmo modo que denominamos ‘Trevas’ ao Absoluto, porque este parece de todo impenetrável a nossa compreensão finita.” Contudo, apesar das dificuldades de expressão, a escritora fazia ressalvas ao hebraico e ao sânscrito “onde cada letra tem sua significação oculta e sua razão de ser; onde é uma causa e também o efeito de uma causa precedente”. Ela explicava que a combinação das letras nesses alfabetos produzia muitas vezes “efeitos mágicos”.

Ação da palavra

Alef, a primeira letra do alfabeto hebraico
Sobre a mágica das palavras e sua influência na existência das pessoas, o escritor francês Paul Christian (1811-1877) escreveu: “Pronunciar uma palavra é evocar um pensamento e fazê-lo presente; o poder magnético da palavra humana é o começo de todas as manifestações no Mundo Oculto. Pronunciar um nome é não somente definir um Ser (uma Entidade), mas submetê-lo à influência desse nome e condená-lo, por força da emissão da palavra (Verbum), a sofrer a ação de um ou mais poderes ocultos. As coisas são, para cada um de nós, o que a palavra determina quando as nomeamos. A palavra (Verbum) ou a linguagem de cada homem é, sem que disso ele tenha consciência, uma benção ou uma maldição; e é por isso que a nossa atual ignorância acerca das propriedades da matéria nos é tantas vezes fatal. Sim, os nomes (e as palavras), são benéficos ou maléficos: em certo sentido, são nocivos ou salutares, conforme as influências ocultas que a Sabedoria suprema associou a seus elementos, isto é, às letras que compõem e aos números que correspondem a estas letras.” 

O texto acima está contido no livro “Historie de la Magie”, e foi escrito em 1870. Christian que foi educado para ser sacerdote tornou-se jornalista e escritor, dedicando-se a assuntos esotéricos.  



quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Em Roma, uma sinagoga entre catedrais (a história de um atentado)

por Sheila Sacks

“Há mais de 900 igrejas cristãs em Roma, maiores e menores, católicas e protestantes” (‘The Churches of Rome: Major and Minor’, de Stuardt Clarke/2012).

Em 2004, por ocasião dos festejos do centenário do grande templo de Roma, o papa João Paulo II (1920-2005) enviou uma carinhosa mensagem à comunidade judaica romana, a mais antiga da Europa Ocidental, lembrando a presença milenar dos judeus naquela cidade, que remonta ao século 1 antes da Era Comum. Endereçada ao rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, o papa destacou “o profundo laço que une a Igreja com a Sinagoga”, lembrando que ambas as religiões “compartilham, em grande parte, das Escrituras Sagradas, da liturgia e de antiquíssimas expressões artísticas.”

No documento, publicado pelo site católico “Zenit”, João Paulo II se dirige aos judeus de Roma como seus “irmãos prediletos” na fé de Abraão, o patriarca, fazendo referência às figuras bíblicas de Isaac, Jacob, Sara, Rebeca, Raquel e Lia. “Veja como é bom, como é agradável os irmãos conviverem juntos – “Hineh ma tov uma na’im shevet achim gam yachad” (Salmo 133), assinala o pontífice em hebraico. Mais adiante, ele acrescenta que “o majestoso Templo Maior, na harmonia de suas linhas arquitetônicas, eleva-se há 100 anos sobre as margens do rio Tiber como testemunho de fé e de louvor ao Onipotente”.

Construída entre 1901 e 1904, a grande Sinagoga de Roma está instalada no antigo gueto judaico, na Via Catalana, ao lado do pitoresco bairro de Trastevere, e foi concebida pelos arquitetos Vicenzo Costa e Osvaldo Armanni. Faz parte do seleto grupo das 25 mais belas sinagogas do mundo, segundo a revista americana “Complex”, especializada em design e estilo.

Terror ataca

A relação entre João Paulo II e a sinagoga de Roma pontuou de forma singular e dramática a história do século 20. Em 1986, o sumo pontífice tomou a iniciativa de atravessar os portões do templo tornando-se o primeiro papa em quase dois mil anos a visitar uma sinagoga e chamar os judeus de “nossos amados irmãos mais velhos”.  Pondo de lado o protocolo, João Paulo II deu um abraço emocionado no então rabino-chefe Elio Toaff (atualmente com 99 anos), falando aos presentes, por várias vezes, em hebraico.  

A emblemática visita do papa funcionou como uma espécie de contraponto à tragédia que se abateu sobre a comunidade judaica de Roma, quatro anos antes, a mais chocante desde a Shoah (a palavra hebraica para o holocausto, significando calamidade), quando 1.259 judeus romanos foram deportados em trens pelas forças nazistas (em 16 de outubro de 1943) para as câmaras de morte de Auschwitz. A essa ferida jamais cicatrizada veio se juntar mais uma, desta vez representada pelo horrendo atentado terrorista que atingiu a sinagoga, em 9 de outubro de 1982, matando um menino de dois anos, Stefano Gay Taché, e deixando mais de três dezenas de feridos, muitos deles com gravidade.

Na ocasião, a imprensa relatou o banho de sangue que marcou aquela manhã de sábado, quando se realizavam as rezas do ”shabat” e se comemorava o término de “Sucot” (a festa das cabanas que lembra as tendas usadas pelos hebreus nos 40 anos que vagaram pelo deserto de Sinai, depois do êxodo do Egito). O “Diário ABC”, da Espanha, publicou na primeira página: “O templo estava repleto de crianças e adolescentes para uma benção especial naquele sábado. Pouco antes do meio-dia, dois homens se acercaram de uma das entradas da sinagoga e renderam o segurança. Eles entraram na sinagoga portando cinco granadas, conseguindo explodir duas. As pessoas começavam a sair naquele momento. Os terroristas sacaram de suas mochilas metralhadoras e iniciaram o tiroteio. Outros dois terroristas se uniram aos primeiros para completar a carnificina. Terminada a operação, abandonaram o lugar em dois automóveis”.

Sem punições



Em 2012, ao se completarem 30 anos da tragédia, o líder da comunidade judaica de Roma, Riccardo Pacifici, manifestou o seu desapontamento ao presidente Giorgio Napolitano, visto que o atentado, transcorrido tanto tempo, não tinha sido esclarecido e nem os culpados punidos. “Por que naquele dia, e somente naquele dia, não havia presença policial em frente à sinagoga?”, perguntou Pacifici em sua missiva ao presidente. 

Semanas antes do atentado, o rabino Toaff tinha protocolado uma solicitação ao Ministério do Interior para que reforçasse a segurança em torno da sinagoga durante os feriados judaicos de Rosh Hashaná (ano novo), Yom Kipur (dia do perdão) e Sucot, que acontecem em sequência, nos meses de setembro e outubro. Mas, o pedido não foi considerado, apesar do clima de antissemitismo reinante no país, estimulado principalmente pela imprensa e políticos que criticavam o governo de Israel pelo conflito com militantes da OLP no sul do Líbano.

A presença e o acolhimento em Roma do líder da OLP, Yasser Arafat (1929-2004), também estimulou os simpatizantes da causa palestina a se sentirem mais à vontade para atacar alvos judaicos, o que já havia ocorrido em junho daquele ano, com sindicalistas arremessando um caixão na frente da sinagoga.  Recebido como chefe de estado pelo então presidente Sandro Pertini (1896-1990), na residência oficial de Quirinal, Arafat teve igualmente um encontro no Vaticano com o papa João Paulo II em 15 de setembro, três dias antes das comemorações do Rosh Hashaná.

Ambiente hostil

No livro “Attentato alla sinagoga”, lançado em 2013, os autores Arturo Marzano, pesquisador do Departamento de História e Civilização do Instituto Universitário Europeu de Florença, e Guri Schwarz, professor assistente do Departamento de História da Universidade da Califórnia (UCLA), buscam os antecedentes políticos, sociais e históricos que estariam na raiz do ataque terrorista ao templo de Roma, concluindo que o conflito israelense-palestino foi o pivô da tragédia. Para os autores, a Guerra dos Seis Dias, em 1967, que resultou na fuga de milhares de palestinos para a Jordânia, Líbano, Síria e outros países fronteiriços, repercutiu negativamente de forma evolutiva contra Israel ao longo de duas décadas, atingindo os judeus da Diáspora.

Marzano e Schwarz também destacam o papel da imprensa italiana de esquerda que, em 1982, censurava sistematicamente as ações das forças de defesa de Israel instaladas no Líbano (cujo objetivo era impedir os ataques contínuos dos grupos da OLP contra o território israelense). O episódio nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, em setembro daquele ano, quando cristãos maronitas libaneses mataram centenas de palestinos em represália ao assassinato do presidente eleito do país, Bashir Gemayel, morto em um atentado com carro-bomba que vitimou 26 pessoas, radicalizou ainda mais os discursos contra Israel que ocupava militarmente a área.

“Ecos dessas tensões contaminaram a sociedade civil”, avaliam os pesquisadores. “O maestro Daniel Oren (nascido em Israel e atual diretor do Teatro Municipal Guiseppe Verdi, em Salerno) foi insultado enquanto regia um concerto no Teatro San Carlo, em Nápoles; em Turim, um jovem foi surrado porque usava um colar com a estrela de David; e em 1º de outubro, uma bomba explodiu no escritório da comunidade judaica de Milão”. Em paralelo, um grupo de intelectuais judeus, tendo à frente o escritor e sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi (1919-1987) – laureado em 1979 com o mais prestigioso prêmio literário da Itália (Premio Strega) pelo livro “A Chave Estrela” - assina um manifesto a favor da retirada de Israel do Líbano, gerando um profundo mal estar entre a comunidade judaica composta de 35 mil membros, a metade residente em Roma.

Comentando a obra de Marzano e Schwarz para o diário “Il Foglio”, o escritor e jornalista Guilio Meotti classificou o trabalho como uma “viagem sobre a desumanização de Israel” empreendida por jornalistas e intelectuais no período que antecedeu o atentado. No artigo intitulado “Pogrom Italiano” (25.05.2013), Meotti, que é o autor de “A New Shoah” (Um Novo Holocausto), um livro que conta as histórias pessoais de israelenses vítimas do terrorismo na Terra Santa, cita as palavras do psicanalista Antonio Semi, membro da Societá Psicoanalitica Italiana (SPI), estampadas na primeira página do jornal “Il Gazzettino”, de Veneza, logo após o ataque: “Se eu fosse judeu nos dias de hoje, na nossa Europa civilizada, eu teria medo.”

Reações iniciais


Também o renomado arquiteto Bruno Zevi (1918-2000), autor do projeto do pavilhão da Itália na exposição de Montreal em 1967 (Expo 67) - a maior feira mundial do século 20 -, foi a Câmara Municipal de Roma para tornar pública a revolta e a indignação que tomaram de assalto a comunidade judaica. Corajosamente, ele desautorizou a mídia na sua tentativa de se solidarizar com os judeus, usando o subterfúgio de dissociar o judaísmo do antissionismo. “Não vamos aceitar uma distinção maniqueísta entre judeus e israelenses. Nós pertencemos ao povo de Israel que inclui as comunidades espalhadas em todas as partes do mundo, começando com a mais antiga, a de Roma, e aquelas que retornaram à terra de seus antepassados.”

Professor universitário e autor de vários livros sobre arquitetura, Zevi foi um político atuante, eleito deputado para o parlamento de Roma (1987-1992). Precedendo seu discurso, publicado na íntegra pelo diário conservador “Il Tempo”, a juventude judaica lançou um duro manifesto acusando frontalmente a imprensa (inclusive citando ‘Il Corriere della Sera’, o jornal de maior circulação do país), o presidente da Itália, Sandro Pertini (1896-1990), e até João Paulo II, que abriu as portas do Vaticano para receber o líder de um movimento que agrupava terroristas (ao todo o papa se encontrou 12 vezes com Arafat).

O empresário Dario Coen era estudante na época e encabeçou o movimento. O folheto se iniciava ironicamente com a palavra “Grazie” (obrigado), em alusão à sistemática campanha dos principais jornais do país contra o estado de Israel, e a anuência de políticos e personalidades públicas a esse cenário de hostilidade. O manifesto destacava que Pertini e o ex-primeiro ministro Guilio Andreotti (1919-2013) receberam Arafat nas residenciais oficiais com honras de chefe de estado, uma afronta para os judeus italianos. E concluía, de forma peremptória: “Não precisamos de palavras de compaixão.”

Fuga e Impunidade

Mas, a indignação com o atentado sensibilizou toda a Itália e o então representante da OLP no país, Nemer Hammad (atualmente conselheiro político de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina - ANP) se apressou em negar qualquer ligação com o ataque terrorista. Porém, as investigações policiais apontaram para a organização terrorista “Junho Negro” comandada por Abu Nidal (1937-2002), uma facção radical da OLP. Os retratos-falados dos terroristas permitiram assegurar que pelo menos um dos atiradores, o palestino Abdel Osama al-Zomar, era conhecido pelas polícias dos países europeus como integrante do movimento Fatah-Conselho Revolucionário (Fatah-CR), de Nidal. Também o depoimento da namorada italiana de al-Zomar reforçou esse envolvimento.

Preso no norte da Grécia, ainda em 1982, quando dirigia um carro repleto de explosivos em direção à Turquia, al-Zomar passou 40 meses na prisão cumprindo pena por esse delito e também por esconder uma arma em sua cela. Em 1988, o governo grego autorizou a deportação do terrorista para a Líbia do ditador Muamar Kadafi (1942-2011), apesar de o governo italiano ter pedido a extradição do terrorista, três anos antes. Condenado à prisão perpétua na Itália, a Grécia quebrou o acordo de entregá-lo à polícia italiana e expulsou al-Zomar para “um país de sua escolha”, segundo as notícias da época. O terrorista, então com 27 anos, desapareceu na Líbia e até os dias atuais seu paradeiro é desconhecido.

Em entrevista ao “Corriere Della Sera”, em outubro de 2011, Gadiel Taché, de 33 anos, irmão do pequeno Stefano, morto no atentado à sinagoga, lamentava o pouco empenho demonstrado todos esses anos pelo governo italiano no sentido de exigir de Kadafi a extradição do terrorista e de outros membros do grupo. Ele, que ficou gravemente ferido no ataque, dizia esperar que com a morte do ditador líbio ocorrida naquele mês, as autoridades italianas intensificassem a petição junto ao novo governo de Trípoli e reconhecessem oficialmente o irmão como uma vítima do terrorismo e “parte da consciência histórica da Itália” (em 9 de maio de 2012, o presidente Giorgio Napolitano incluiu Stefano nessa categoria).

Revelações

Grades e guaritas cercam
a sinagoga de Roma
Quatro anos antes, em 2008, as declarações de um ex-presidente já tinham provocado perplexidade na comunidade judaica porque o político denunciou a existência de um compromisso extra-oficial entre o governo italiano e a OLP, nas décadas de 1970 e 1980, no sentido de preservar o país de ataques terroristas. Em troca, a Itália não interferiria em assuntos palestinos, fechando os olhos para as atividades da organização no país. Na entrevista, publicada pelo diário israelense “Yedioth Ahronoth”, em 03 de outubro de 2008, Francesco Cossiga (1928-2010), que presidiu a Itália de 1985 a 1992, falou ao correspondente Menachem Gantz sobre esse pacto conhecido como “Acordo Moro”, em alusão ao político Aldo Moro (líder do partido democrata cristão, cinco vezes primeiro-ministro e assassinado em 1978), figura central responsável pelo trato.

O “Acordo Moro” também foi reconhecido por Bassam Abu Sharif, assessor particular de Arafat e atual porta-voz de imprensa da OLP, em reportagem do “Corriere della Sera”, em agosto de 2008. Apelidado de “o rosto do terror” pela revista americana “Time”, Sharif era membro da Frente para Libertação da Palestina (FPL) e foi responsável por uma série de sequestros de aviões de passageiros em aeroportos europeus, nos anos 1970. Ele contou que as organizações palestinas operavam livremente em território italiano e por sua vez não atacavam alvos nacionais na Itália e fora do país, desde que não cooperassem com o estado de Israel.

O “acordo”, porém, não abrangia os judeus italianos e nem os alvos judaicos na Itália. Francesco Cossiga, que faleceu dois anos após a entrevista, acreditava que a política de preservar a Itália de ataques terroristas ainda continuava valendo. “A Itália tem um acordo com o Hezbollah”, afirmou o ex-presidente ao jornal, “e a UNIFIL (sigla em inglês para as ‘Forças Interinas das Nações Unidas no Líbano’ que atuam na região) fecha os olhos ao processo de rearmamento do grupo, desde que não sejam realizados ataques contra os seus contingentes”. O Hezbollah é uma organização islâmica extremista que age no Líbano, catalogada como terrorista pelos Estados Unidos e países europeus. Mantém estreita ligação com o Irã e a Síria e prega a eliminação do estado de Israel.

Ecumenismo e memória

Voltando ao papa João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, com a comunidade judaica ainda traumatizada pela tragédia na sinagoga, ocorrida três meses antes, João Paulo II promulga um novo Código Canônico que entre os seus itens mais importantes destaca o esforço que a Igreja deve consagrar ao ecumenismo. Documento especial enviado a Diocese de Roma orientava para que os sermões não contivessem “qualquer forma ou vestígio de antissemitismo”, recomendando também “uma redescoberta das nossas raízes judaicas”.

Anteriormente, João Paulo II já havia se reunido com delegados das conferências episcopais para normatizar as aulas de catolicismo, chamando a atenção para o comportamento a ser adotado. “Seria necessário conseguir que este ensino nos diferentes níveis de formação religiosa, na catequese dada às crianças e adolescentes, apresentasse os judeus e o judaísmo, não somente de maneira honesta e objetiva, sem nenhum preconceito e sem ofender ninguém, mas também, e mais ainda, com uma viva consciência da herança comum a judeus e cristãos” (Roma, 6 de março de 1982).

Quinze anos depois, com 78 anos, o papa faz uma espécie de mea-culpa, em nome da Igreja, publicando o documento intitulado “Nos Lembramos: Uma reflexão sobre a Shoah” (1998). Ele admite que a perseguição do nazismo contra os judeus pode ter sido facilitada por preconceitos antijudaicos presentes nas mentes e nos corações dos cristãos. João Paulo escreve: “No termo deste milênio, a Igreja católica deseja exprimir a sua profunda tristeza pela faltas dos seus filhos e das suas filhas em todas as épocas.” E prossegue: “A inumanidade com que os judeus foram perseguidos e massacrados neste século supera a capacidade de expressão das palavras. E tudo isto lhes foi feito só porque eram judeus.” Também reconhece o preconceito arraigado que se estende pelos séculos. “Em tempos de crise como carestias, guerras e pestes ou de tensões sociais, a minoria judaica foi muitas vezes tomada como bode expiatório, tornando-se assim vítima de violências, saques e até mesmo massacres.”

O documenta ressalta o “dever da memória” e conclama para um “futuro comum” entre judeus e cristãos. “Pedimos que a nossa tristeza pelas tragédias que o povo judaico sofreu no nosso século leve a novas relações com esse povo. Desejamos transformar a consciência dos pecados do passado em firme empenho por um novo futuro, no qual já não haja sentimento antijudaico entre os cristãos, nem sentimento anticristão entre os judeus, mas sim um respeito recíproco compartilhado, como convém àqueles que adoram o único Criador e Senhor e têm um comum pai na fé, Abraão.”

Vale lembrar que João Paulo II também foi vítima de um atentado terrorista na Praça de São Pedro, no Vaticano, em 13 de maio de 1981. O turco Mehmed Ali Agca atirou três vezes contra o sumo pontífice em meio à multidão que estava no local para saudar o primeiro papa polonês da história (teses conspiratórias surgiram ao longo do tempo envolvendo países do bloco soviético descontentes com a posição do papa favorável aos sindicalistas do movimento polonês “Solidariedade”, do líder Lech Walesa).

Sensação de medo

Desde 1984, e após 16 séculos, a Itália se tornou um estado de pluralismo religioso com o acordo entre a Santa Sé e a república italiana que aboliu o privilégio de o catolicismo ser uma “religião de Estado”. Com a instituição da liberdade religiosa, presente na Constituição, italianos e imigrantes de todos os credos ganharam mais segurança para praticarem a sua fé (atualmente a Itália abriga 1,5 milhão de muçulmanos). Entretanto, no caso específico da pequena comunidade judaica, qualquer visitante mais atento pode notar o temor e a insegurança que seus membros ainda sentem em relação à grande sinagoga de Roma.

Foi o que percebi ao me aproximar de uma família no antigo bairro judeu de Roma. A relutância em indicar a localização do templo e os olhares desconfiados dirigidos à sacola que eu portava, não deixavam dúvidas. No prédio, guardado por duas guaritas, o ingresso somente é autorizado após uma minuciosa revista. Enfim, uma sensação de medo que sobrevive à tragédia de 1982, resistindo ao tempo em sua inquietude por uma justiça que, efetivamente, não se concretizou.

Gadiel Taché, que viveu o pesadelo de perder o irmão e sofrer mais de trinta cirurgias, lamenta que um véu de silêncio ambíguo e estranho ainda acoberte o episódio. Anualmente, a comunidade judaica relembra a data fatídica e clama por esclarecimentos e a prisão dos envolvidos. Ao escolher um sábado, o “shabat”, o dia mais santificado da semana (‘Santificar o Shabat’ ou ‘Shamor et Yom HaShabat’, como determina o 4º mandamento), os terroristas premeditaram uma ação visando atingir uma simbologia sagrada e um grande número de fiéis. Porque como preceituava o rabino e teólogo Abraham Heschel (1907-1972), que perdeu a família na “Shoah”, os sábados são as catedrais do povo judaico.

E explicava a razão: “Durante os seis dias da semana, vivemos sob a tirania das coisas do espaço. O sábado nos coloca em sintonia com a santidade do tempo. Neste dia somos chamados a participar no que é eterno no tempo, a nos voltar dos resultados da criação para o mistério da criação, do mundo da criação para a criação do mundo.”

O sábado das orações e das bênçãos que, lamentavelmente, naquela manhã outonal, não ecoaram em toda a sua glória nos céus de Roma.