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quinta-feira, 6 de março de 2014

Espionagem e castigo: o caso Pollard

Por Sheila Sacks


“Eis o que é o justo: o proporcional; e o injusto é o que viola a proporção.” (Aristóteles em “Ética a Nicômaco”, século 4 antes da Era Comum)

No final de 2013, a revelação de que a NSA (sigla em inglês da Agência de Segurança Nacional dos EUA), em cooperação com os serviços de inteligência britânicos, espionou e-mails de políticos israelenses e do então premiê Ehud Olmert e do ministro de Defesa Ehurd Barak, principalmente em 2008 e 2009, levou a mídia israelense nesse início de 2014 a lembrar mais uma vez do caso Pollard, um tema sensível a Israel e Estados Unidos.

Jonathan Pollard foi um ex-funcionário da marinha americana que vazou documentos sigilosos para Israel sobre as atividades de espionagem dos Estados Unidos no mundo árabe. Preso em 1985 e condenado à prisão perpétua em 1987, Pollard cumpre a pena em uma penitenciária federal na Carolina do Norte. 

Pedidos a Obama

Diante da notícia da espionagem americana, o ministro da Inteligência de Israel, Yuval Steinitz se apressou a lembrar que desde a prisão de Pollard os dois países evitam se espionarem mutuamente. Em entrevista ao Canal 2 da televisão israelense, ele admitiu que, além dos estados árabes, também há “países amigos” que os espionam. “Nós não espionamos o presidente dos Estados Unidos. Firmamos compromissos a esse respeito e estamos cumprindo.”

Por sua vez, o primeiro ministro israelense Benjamim Netanyahu, dias depois de a espionagem americana vir à tona, recebeu em seu gabinete a mulher de Pollard e reiterou os esforços realizados por Israel para obter a libertação de seu marido. Na mesma semana, o parlamento israelense (Knesset) aprovou o envio de um pedido oficial ao presidente Obama para soltar Pollard, que desde 1998 tem dupla cidadania. No documento, os parlamentares invocam razões humanitárias para o indulto e as precárias condições de saúde apresentadas pelo prisioneiro. Com 59 anos, Pollard foi operado de urgência há dois anos por complicações na vesícula e rins.

Nos Estados Unidos, uma carta a favor da libertação de Pollard também foi enviada a Obama antes do último Natal pelo ex-embaixador americano nas Nações Unidas na administração Clinton, o democrata Bill Richardson. Governador do estado do Novo México até 2011 e aliado do presidente, Richardson já foi indicado várias vezes ao Nobel da Paz por seus esforços em prol da libertação de soldados americanos reféns ou prisioneiros na Coréia do Norte, Iraque, Cuba e Sudão.

No pedido de clemência, o político assinala que já se manifestaram publicamente a favor da libertação de Pollard autoridades que acompanharam o caso na época como o ex-secretário de Estado do governo Reagan (1981-1989), o republicano George Shultz; o ex-conselheiro de Segurança Nacional Robert McFarlane que atuou de 1983 a 1985; e William Webster, o chefe do FBI no momento da prisão de Pollard e que também dirigiu a CIA, de 1987 a 1991 (governos Reagan e Bush).

Na carta Richardson aponta a atuação do então  secretário de Defesa Caspar Weinberger (falecido em 2006) como decisiva para Pollard ser sentenciado à prisão perpétua, apesar do acordo judicial em que o governo se comprometeu a não buscar essa alternativa.

Punição “três vezes” maior

Outra figura importante à época, Lawrence J. Korb, que exerceu o cargo de  vice-secretário de Defesa (1981-1985) e é autor de duas dezenas de livros sobre temas militares e de segurança, observou que Pollard  está preso “três vezes mais tempo do que qualquer um que já tenha fornecido informações  sigilosas a um país amigo ou neutro”. Em visita a Israel, em março do ano passado, Korb assinalou mais uma vez que a punição a Pollard é desproporcional: “Ele infringiu a lei e precisava pagar o preço, mas a falta de proporção na sua punição vai contra os valores em que eu acredito como americano.” 

Ainda em 2013, o veterano comentarista político de rádio e TV, Cal Thomas,  em artigo veiculado em várias mídias, defendeu a comutação da pena de Pollard face “ao escândalo da espionagem americana revelada pelo WikiLeaks”. E citou o memorando confidencial enviado pela então secretária de Estado do governo Bush, Condoleezza Rice (2005-2009), instruindo a embaixada dos EUA em Tel Aviv a espionar Israel. O documento foi publicado pelo jornal britânico “The Guardian” em 2010.

Tomas também listou algumas personalidades públicas que apoiam Pollard, entre elas o ex-procurador-geral  da Justiça, o republicano  Michael Mukasey que atuou no governo Bush de 2007 a 2009, e o ex-deputado Robert Wexler, democrata pelo estado da Flórida, de 1997 a 2010. Este último, em carta enviada ao presidente Obama enfatizou que Pollard “é o único cidadão americano  condenado a  mais de 14 anos por esse tipo de delito.

Reprovado pela CIA

Nascido no Texas, Pollard é oriundo de uma família judaica e seu pai, Dr.Morris, falecido em 2011, foi um microbiologista conceituado, professor emérito de ciências biológicas da Universidade Notre Dame (Indiana), uma das mais prestigiadas universidades católicas dos Estados Unidos. Formado em ciência política pela Universidade de Stanford, na Califórnia, Pollard tentou um emprego na CIA, a central de inteligência americana, em 1977, mas foi reprovado no teste de polígrafo, instrumento que registra inúmeros fenômenos fisiológicos como pressão arterial e movimentos respiratórios, usado geralmente como detector de mentiras. Dois anos depois, ele foi contratado pela Marinha para trabalhar na área de inteligência, analisando dados e elaborando relatórios.

Em meados de 1984, já no serviço de análise e investigação naval, mas especificamente no ATAC (Anti-Terrorist Alert Center), Pollard observa que dados importantes para a segurança de Israel não estavam sendo repassados conforme acordo de cooperação estratégica e militar assinado em 1981 pelo secretário de Defesa Gasper Weinberger e o ministro israelense Ariel Sharon. Pelo tratado ou Memorando de Entendimento (MOU – Memorandum of Undestanding), ratificado em 1983, os dois países se propunham a estabelecer um quadro de consulta e cooperação para melhorar a segurança nacional de ambas as nações e para lidar com as ameaças no Oriente Médio, incluindo exercícios militares conjuntos, atividades de preparação de defesa e acesso às instalações de manutenção. 

Encontro com israelenses


Por intermédio de um amigo, Pollard entra em contato com um militar israelense em Nova York, o coronel da força aérea Aviem Sella, responsável pelo ataque à usina nuclear iraquiana de Osirak, em 1981. Pollard está convencido de que Israel não estava tendo acesso a informações importantes para se defender de prováveis atos terroristas porque os EUA não desejavam arruinar suas relações com os países árabes produtores de petróleo.

Ele repete esse argumento a Sella que o apresenta ao coronel Yosef Yagur, ex-consultor técnico do Consulado de Israel naquela cidade e agente do Lekem (Bureau of Scientific Relations, em inglês), um setor de inteligência científica e técnica israelense, ligado ao ministério da Defesa, que funcionou até 1986. É o que conta o jornalista e escritor Gordon Thomas no best-seller “Gideon's Spies: The Secret History of the Mossad” (1998), que na versão em espanhol se chamou “Mossad: la historia secreta”. Traduzido em mais de uma dezena de idiomas, a obra é baseada em pesquisas e entrevistas realizadas em Israel com ex-agentes, jornalistas e pesquisadores.

G.Thomas revela que em novembro de 1984 Pollard foi a Paris com sua primeira esposa Anne para ser apresentado pessoalmente ao chefe do Lekem, o lendário Rafael ‘Rafi’ Eitan que em 1960 comandou a captura do carrasco nazista Adolf Eichmann na Argentina. Por um quarto de século atuando como diretor adjunto de operações do Mossad e assessor pessoal do falecido Ariel Sharon quando este foi ministro da Defesa (1981-1983), Rafi sabia que o chefe do Mossad à época, Nanhum Admoni, reclamava que os EUA não estavam se comportando como “um amigo nas horas boas e más”. Isso porque obtivera informações de que altas autoridades do governo americano mantinham encontros com líderes árabes ligado a Yasser Arafat para discutir a melhor maneira de pressionar Israel para que flexibilizasse sua posição frente às exigências palestinas.

Recusado pelo Mossad

Nos próximos meses e até ser preso, em 21 de novembro de 1985, em frente à embaixada israelense em Washington, onde tentara se refugiar, G. Thomas afirma que Pollard enviou às suas fontes dados valiosos para a segurança de Israel, como detalhes sobre a localização e entrega de mísseis e armas russas para a Síria, e mapas e fotografias de satélites dos arsenais de armas militares e químicas dos sírios, iraquianos e iranianos. Mas, diante da prisão do analista pelo FBI, Sella e Yagur embarcam em um avião da El Al rumo a Israel.

Em 4 de março de 1987, Pollard é condenado à prisão perpétua e sua mulher recebe uma sentença de cinco anos. Sella é indiciado à revelia por um júri federal em Washington que também identifica como conspiradores Rafi Eitan, Yosef Yagur e Irit Erb, ex-secretário da embaixada israelense. Em Israel, o governo institui uma comissão de inquérito, afasta Rafi e Sella de seus cargos e encerra os serviços do bureau.

Em tempo: dois anos antes de Pollard manter contato com Rafi, o ex-analista já tinha se oferecido para atuar para o Mossad, o serviço secreto israelense, que o recusou por considerá-lo “instável”. Segundo G.Thomas, um agente do Mossad em Nova York classificou Pollard de “um homem solitário, com uma visão deformada de Israel”.

Momento difícil

Em Israel, os simpatizantes de Pollard têm acusado Rafi de não ter se empenhado pela libertação de seu informante, o que é contestado pelo israelense: “Estou dedicando meus últimos anos para libertar Pollard. Escrevi uma carta ao presidente Obama pedindo desculpas e o encorajando a soltar Pollard”, revela.

Em 2012, na entrevista ao jornal israelense “Yediot Aharonot”, Rafi contou que entregou provas incriminatórias para os americanos atendendo pedido de Shimon Peres, primeiro-ministro na época. ”Havia um entendimento que após 10 anos a pena de prisão perpétua seria comutada. Entretanto, os EUA negaram o acordo. O governo de Israel tomou a decisão e eu cooperei com os americanos depondo contra o meu informante. Não foi um momento fácil”, admitiu.

Pondo mais lenha na fogueira, Ester Pollard (com quem o prisioneiro se casou em 1993) foi a público dizer que em uma reunião com Rafi e outras pessoas, o ex-espião chegou a comentar que a única coisa que lamentava nesse episódio é não ter “concluído o trabalho” antes de deixar os EUA. Segundo Ester, quando foi perguntado a Rafi o significado de suas palavras, ele respondeu: “Se eu estivesse na embaixada israelense no dia em que Pollard buscou asilo, eu teria colocado uma bala na sua cabeça e não haveria nenhum caso Pollard”, teria dito.

Interessante assinalar que o ex-espião, depois do affair Pollard, voltou-se para a política e elegeu-se deputado, sendo posteriormente nomeado ministro da Previdência de Israel (“pensioners affairs”). Ele visitou Cuba e esteve presente na inauguração de uma “Menorá” (candelabro de sete braços) em uma praça de Havana, ao lado de Fidel Castro (2006). “Persona non grata” ao FBI, Rafi, hoje com 87 anos, esteve várias vezes na ilha de Fidel, como sócio de uma empresa de agronegócios israelense e onde também adquiriu terras, ganhando medalha do governo cubano pelos investimentos realizados na área de agricultura.


Violação do acordo

Casado pela segunda vez com uma professora de Toronto, Pollard tem na mulher Ester uma ponta de lança na luta por sua libertação. Em 1996 ele obteve a cidadania israelense e em dezembro de 1997 autoridades de Israel o visitaram pela primeira vez em sua cela na Carolina do Norte.

Convertido ao judaísmo ortodoxo, Pollard tem recebido o apoio de lideranças religiosas e organizações judaicas que a partir da década de 1990 têm solicitado às autoridades americanas uma reavaliação do caso. Os grupos alegam que Pollard se considerou culpado em junho de 1986 e fez um acordo judicial com o Ministério Público, ignorado pelo juiz federal que o condenou a uma pena máxima por pressão do então secretário de Defesa Caspar Weinberger. Destacam ainda que Pollard sempre negou ter fornecido aos israelenses informações capazes de comprometer os interesses nacionais dos EUA ou que fossem prejudiciais ao país, e que apesar de sua cooperação com a Justiça americana recebeu uma sentença mais dura do que a imposta àqueles que espionam para países inimigos.

Mas o real motivo do agravamento de sua sentença, segundo documentos da CIA liberados em 2012 pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington, estaria no conteúdo de uma entrevista dada por Pollard ao jornalista Wolf Blitzer, âncora da rede de TV CNN e um dos profissionais mais conhecidos da imprensa americana. A matéria publicada no “Jerusalem Post” teve grande repercussão na mídia americana. Do interior de sua cela, Pollard falou sobre os motivos que o levaram a espionar para Israel e o teor das informações transmitidas que abarcavam fotografias da sede da OLP na Tunísia à capacidade bélica de países árabes como a Líbia de Kadhafi.

A entrevista divulgada três meses antes do veredicto provocou irritação nos promotores do caso que consideraram a reportagem, realizada sem a aprovação prévia do Departamento de Justiça, uma violação aos termos do acordo judicial assinado pelo acusado. No julgamento, a promotoria denunciou Pollard por divulgar dados sigilosos na mídia comprometendo fontes e métodos da comunidade de inteligência. O que foi contestado pelos advogados de defesa ao afirmaram que o governo tinha conhecimento da solicitação do jornalista e autorizou a entrevista.

Espionagem mútua

Semanas depois da condenação de Pollard, um novo artigo de Blitzer é publicado no “Jerusalem Post”, também envolvendo Pollard. O pivô é o senador Dave Durenberger, republicano do estado de Minnesota (1978-1995) que presidiu o Comitê de Inteligência da Casa (SSCI – Senate Select Committee on Intelligence). Na reportagem, Durenberger afirma que antes de Pollard espionar para Israel, a CIA recrutou, em 1982, um oficial do exército israelense para espionar contra Israel. Shimon Peres, à época ministro das Relações Exteriores e Yizhak Rabin (1922-1995), ministro da Defesa, negaram as acusações e a CIA também se recusou a comentar a matéria.

A respeito dessas espionagens mútuas, o comentarista político Daniel Pipes, no artigo “Espião versus Espião, América versus Israel”, veiculado no “National Review Online” (7.8.2012), enumera uma série de exemplos de espionagem praticada por ambos os lados e menciona o caso de um ex-oficial da inteligência militar israelense que espionou para a CIA. Trata-se de Yosef Amit que durante muitos anos enviou informações aos americanos sobre o movimento de tropas e a política em relação ao Líbano e aos palestinos até a sua detenção em 1986.

Destaca também as palavras do embaixador de Israel em Washington, Itamar Rabinovich, que atuou entre 1993 a 1996. Segundo o diplomata, o governo americano na época decifrou o código israelense utilizado nas comunicações internas. “Com certeza os americanos grampeavam as linhas telefônicas normais da embaixada. Às vezes eu ia a Israel entregar as informações oralmente.”

Yitzhak Rabin chegou a comentar que Israel descobriu cinco espiões americanos atuando no país entre o final de 1970 e o início de 1980 e que para evitar conflitos com seu aliado optou por expulsá-los ao invés de iniciar um processo que os levariam à prisão.  De acordo com Pipes, “a espionagem é recíproca. Faz parte da rotina, é sabida e implicitamente aceita por ambos”. E conclui: “Visto que esses aliados têm muito em comum, de valores morais a inimigos ideológicos e frequentemente trabalham em conjunto, também não é lá tão preocupante essa espionagem mútua.”

Campanhas a favor de Pollard

Em 1998, o Congresso Mundial Judaico (WJC - World Jewish Congress), que representa as comunidades e organizações judaicas em mais de 100 países, fez um apelo para que os judeus americanos quebrassem o silêncio que há mais de uma década envolvia o caso Pollard. “A acusação de dupla lealdade provavelmente jamais irá desaparecer”, admitiu em memorando a organização, assinalando que o episódio sempre será uma arma política atraente para atacar Israel. No documento, o WJC invoca uma reavaliação do caso e adverte para o perigo de recrutar judeus da diáspora para operações de inteligência e de segurança. “Hoje Israel deve usar de cautela e o caso Pollard pode ser visto como um divisor de águas nas relações de Israel com os Estados Unidos e os judeus americanos (“The Pollard Case: A Reassessment” – janeiro de 1998).

Quatro anos depois, em 2002, Benjamim Netanyahu que ocupava o cargo de ministro de Negócios Estrangeiros visitou Pollard no presídio da Carolina do Norte. Desde 1998, Israel já havia reconhecido o ex-analista como um de seus informantes. Na ocasião, Netanyahu garantiu ao preso que o governo de Israel estava empenhado em sua libertação, respondendo ao questionamento de Pollard sobre o pouco interesse de Ariel Sharon, então primeiro-ministro, em abordar o assunto nos encontros com o presidente americano George W. Bush.

Mas, o fato é que o governo de Israel sempre se empenhou pela libertação de Pollard. Na gestão anterior de Bill Clinton (1993-2001) havia uma grande expectativa de que o presidente americano finalmente indultasse Pollard no apagar das luzes de seu segundo mandato, o que não aconteceu.
Conta-se que durante os preparativos para o acordo entre Israel e a Autoridade Palestina de Yasser Arafat em Wye Plantation, no estado americano de Maryland (1998), o presidente Clinton prometeu a Netanyahu, então primeiro-ministro, que soltaria Pollard. O acordo entre as partes intermediado pelos EUA previa a gradual retirada militar israelense da Cisjordânia e a libertação de 750 presos palestinos. Segundo o próprio Netanyahu, Clinton deu para trás no último minuto, alegando que o diretor da CIA, George Tenet, havia advertido de que a liberação de Pollard desmoralizaria a área de inteligência americana.


Tempo “suficiente”

Dez anos depois do encontro de Netanyahu com Pollard, o ex-diretor da CIA, James Woolsey, se posicionou publicamente a favor da liberdade de Pollard, considerando ”suficiente” o tempo de prisão do condenado. Chefiando a agência de inteligência de 1993 a 1995, Woolsey escreveu uma carta para o “The Wall Street Jounal”, em 2012, explicando sua posição à época que comandava a CIA, quando foi contra um pedido de clemência que favorecesse o ex-analista. “Isso porque ele ainda não tinha completado 10 anos de detenção”, justificou. E fundamentou a sua mudança de posição: “O que eu diria que mudou? A passagem do tempo. Há mais de um quarto de século que ele está preso.”

Woolsey lembrou que apenas dois espiões dos 50 condenados por espionagem a favor da China e da Rússia estão cumprindo prisão perpétua nos EUA: Aldrich Ames e Robert Hanssen, ex-agentes da CIA e do FBI, respectivamente. O primeiro preso em 1994 e o segundo em 2001 (depois de vazar documentos por mais de 20 anos para a União Soviética) causaram danos devastadores aos órgãos de inteligência americanos e particularmente à rede de agentes que atuava para os EUA nos países do Leste Europeu.

Outros espiões, como Randy Jeffries e Sharon Scranage detidos em 1985 (“o ano dos espiões”, dada a quantidade de espiões presos pelo governo americano), foram condenados a três e dois anos, cada um. O primeiro tinha trabalhado no FBI e foi acusado de fornecer documentos secretos à União Soviética. Sharon era funcionária da CIA e espionou para o governo de Gana. Também Robert Kim, um funcionário do setor de Inteligência da Marinha, foi acusado em 1996 de espionar para a Coreia do Sul, país aliado dos EUA, vazando documentos sobre a política americana em relação à Coreia do Norte. Sua pena foi de nove anos, das quais ele cumpriu sete.

E tem o caso do espião Steven Lalas, preso em 1993 por espionar para a Grécia. Funcionário do Departamento de Estado americano, ele passou informações sobre as avaliações dos EUA em relação à antiga República da Iugoslávia; sobre a política americana para os Balcãs e a estratégia turca no Mar Egeu e Chipre. Também repassou nomes e cargos do pessoal da CIA que trabalhava no exterior. Foi condenado a 14 anos de prisão, findos os quais emigrou para a Grécia.

Vozes discordantes

No livro “Territory of lies” (Território das mentiras, em tradução literal, publicado em 1989), Wolf Blitzer escreve que os EUA não compartilham com Israel (ou vice-versa) informações que podem comprometer o que os profissionais de inteligência chamam de “fontes e métodos”. Por exemplo, fontes da CIA são mantidas em segredo porque a organização de coleta de informações ficaria prejudicada se descobertas. Fontes americanas em estados árabes amigáveis como Egito, Arábia Saudita e Jordânia também não são reveladas para Israel.

A respeito do livro de Blitzer, que conta a história de Pollard de forma favorável ao acusado, o jornalista investigativo Robert I. Friedman - também de origem judaica e precocemente falecido em 2002, aos 51 anos – criticou duramente o enfoque pró-Pollard apresentado na obra. Escrevendo para uma das revistas mais influentes dos EUA, “The New York Review of Books”, Friedman enfatizou que, de acordo com o Ministério Público Federal, Pollard “roubou” informações que nada tinham a ver com as legítimas necessidades de segurança de Israel: um livro de sistemas de comunicação altamente confidencial para interceptar os códigos de outros governos; documentos técnicos sobre projetos especiais da Agencia de Segurança Nacional (NSA) para proteção e salvaguarda das comunicações militares e da inteligência dos EUA; e informações sobre movimentos de navios americanos no Mediterrâneo.

Friedman, que teve a cabeça colocada a prêmio pela máfia russa, em razão de seu livro “Red Mafiya” (2002) que desvenda os bastidores das atividades criminosas dos mafiosos russos nos EUA, analisa que a informação repassada a Israel é um tipo de conhecimento que até mesmo aliados próximos não compartilham. “O custo para o contribuinte dos EUA dos danos causados por Pollard foi estimado por autoridades americanas entre 3 e 4 bilhões de dólares”, assinalou.

Dois outros respeitados jornalistas americanos de ascendência judaica igualmente se posicionaram contra a libertação de Pollard: o editor-chefe da revista de opinião “The New Republic”, Martin Peretz, de 72 anos, e o subeditor e editor responsável pela página de opinião internacional do “The Wall Street Journal“, Bret Stephens, 40 anos. Em artigo publicado em março de 2012, Peretz critica políticos israelenses e judeus americanos que incomodam o presidente Obama pedindo clemência para Pollard. “O presidente não deve ser pressionado para que liberte um espião somente para provar, mais uma vez, que ele é um aliado e um amigo compreensivo. Pollard não é um herói de Israel, seja o que for que seus admiradores possam dizer.”

Ganhador do prêmio Pulitzer de 2013 como o melhor comentarista político, Bret Stephens é mais incisivo em seus comentários no artigo “Não libertem Jonathan Pollard” (em tradução livre), publicado em 18.03.2013. “O que é desigual na sentença de Pollard não é que sua pena foi muito dura”, escreve. “É que as sentenças de espiões como Aldrich Ames, Robert Hanssen e Robert Kim foram muito brandas.”

Em sua opinião, os EUA precisam castigar exemplarmente os traidores dos segredos nacionais. “Isso vale especialmente para aqueles que espionam em nome de países aliados ou que imaginam que o fazem pelo interesse da humanidade como Bradley Manning” (o principal informante do site WikiLeaks de Julian Assange que foi condenado a 35 anos de prisão por vazamento de documentos e telegramas diplomáticos secretos). Stephens tem um programa semanal de política no canal Fox News e foi o jornalista mais jovem a assumir a chefia do “Jerusalem Post” (2002 a 2004), antes de completar 30 anos.

“Eu acuso”


Lembrando as palavras do romancista francês Emile Zola (que há 115 anos escreveu o histórico libelo “J’accuse” no jornal “L’Aurore” a favor do capitão Alfred Dreyfus, de ascendência judaica, vítima de um complô e condenado injustamente por traição), o jornalista italiano Giulio Meotti publicou em 2011 um artigo no “Jerusalem Post” acusando a esquerda israelense e os intelectuais judeus da diáspora de abandonarem Pollard. De família católica, Meotti é colunista do jornal italiano “Il Foglio” e autor do livro “A new Shoah” (‘Um novo Holocausto – a história não contada das vítimas israelenses do terrorismo’), escrito originalmente em italiano e traduzido para o inglês em 2010.

O jornalista destaca em seu artigo que as informações de Pollard ajudaram Israel a se preparar para os ataques de mísseis iraquianos durante a Guerra do Golfo (1990-1991), quando três foguetes Scud de Saddam Hussein atingiram Tel Aviv e não houve vítimas. Por intermédio de Pollard, o governo de Israel não somente conheceu as intenções belicosas do ditador iraquiano, assinala Meotti, como também ficou sabendo da grande quantidade de armas químicas e não-convencionais armazenadas pelo governo de Bashar al-Assad, da Síria. Segundo ele, Netanyahu é o único político de primeira grandeza do cenário político israelense a estar se empenhando verdadeiramente para libertar Pollard.

Meotti passou quatro anos em Israel realizando pesquisas e entrevistas com as famílias atingidas por ataques terroristas. “Dia após dia, são centenas de ataques agressivos e devastadores nos ônibus, cafés, kibbutzim, restaurantes e templos religiosos executados por radicais muçulmanos”, enfatiza o jornalista. Por isso sua discordância em relação à posição radical adotada por muitos judeus americanos que consideram Pollard “um fanático” (Robert Friedman - “The Washington Post”), “uma víbora” (Martin Peretz – “New Republic”) e “uma aberração” (rabino e ativista social Arthur Hertzberg, falecido em 2006).

Negativas à libertação

Em anos recentes, agências de notícias têm periodicamente divulgado informações sobre pedidos do governo israelense aos EUA para que soltem Pollard em troca de possíveis concessões como a libertação de prisioneiros palestinos ou a interrupção dos assentamentos judeus na Cisjordânia. Mas, as negativas do governo americano se sucedem. Em abril de 2012, a Casa Branca rejeitou oficialmente a possibilidade de libertar Pollard em resposta a um pedido formulado pelo presidente israelense Shimon Peres. “Nossa posição não mudou neste assunto”, afirmou o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional do gabinete de política externa de Obama, Tommy Vietor.

Para piorar a situação, um ex-conselheiro de segurança nacional do FBI, M.E. Bowman publicou um artigo no “New York Times”, em 14 de janeiro de 2014 (‘Não confie neste espião’) lançando a suspeita de que as informações transmitidas por Pollard podem ter sido negociadas pelo governo israelense com a União Soviética para liberar a saída dos judeus da Cortina de Ferro para Israel. A denúncia caberia ao ex-diretor da CIA, William J. Casey, que em 2001 a revelou ao veterano jornalista investigativo Seymour Hersh, ganhador do prêmio Pulitzer e autor de livros sobre geopolítica e assuntos militares.

Uma insinuação grave que torna ainda mais difícil a luta pela liberdade de Pollard, hospitalizado e submetido a uma cirurgia de emergência, nos primeiros dias de março, segundo informou a sua esposa Ester.

Fontes:
“Jonathan Pollard: The 'Spy' Still Out in the Cold” – Chicago Tribune, em 11.11.2013;
“Rafi Eitan says US told Israel that Pollard would only serve 10 years” - The Jerusalem Post, em 11.11.2013;
“Just a farmer in Cuba” – Haaretz, em 3.7.2006;
“CIA: Pollard's life sentence due to ‘Post’ interview” - Jerusalem Post, em 17.12.2012;
“The Secret Agent” - The New York Review of Books, em 26.10.1989;
“CIA: Pollard's life sentence due to ‘Post’ interview” - Jerusalem Post, em 17.12.2012;
“CIA Recruitment of Israeli as Spy Told by Durenberger”- Washington Post, em 21.03.1987;
“Spy versus Spy, América versus Israel” -  National Review Online, em  7.8.2012;
“J’accuse on Pollard” – Jerusalem Post, em 22.06.2011;
“Don’t Trust This Spy” – New York Times, em 14.01.2014

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Quando o espião é a fonte

Por Sheila Sacks
publicado no portal "Observatório da Imprensa"


“Ninguém faz nosso papel de seleção e de conexão da informação” (José Roberto de Toledo, presidente da Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo)
Em uma década iniciada sob o impacto da divulgação pela mídia de documentos  e 
e-mails confidenciais  do governo americano  na sua prática de monitoramento cibernético  a governos, políticos e cidadãos, os espiões e aqueles que revelam segredos militares e de Estado continuam sendo o lado mais vulnerável da relação fonte-jornalista em reportagens de fundo investigativo.
Os exemplos mais recentes são o do soldado Bradley Manning, informante do site WikiLeaks de Julian Assenge, condenado pela justiça americana a 35 anos de prisão por vazar documentos secretos em 2010; e do ex-analista da Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) Edward Snowden, indiciado por espionagem nos EUA e asilado na Rússia por transmitir dados confidenciais ao jornalista Glenn Greenwald, que os publicou no jornal britânico The Guardian, em junho de 2013. Considerado traidor, Snowden pode ser sentenciado a 30 anos de prisão se retornar aos EUA.
O caso Pollard

No início deste ano, os jornais The New York Times e The Guardian pediram, em seus editoriais, clemência para Snowden alegando que a sua atitude de denunciar a vigilância global excessiva exercida pela NSA não mereceria condenação. Semanas antes, ambos os jornais haviam publicado novos documentos repassados pelo ex-técnico da agência com revelações de que o órgão estatal em cooperação com os serviços de inteligência britânicos espionou e-mails de políticos israelenses e do então premiê Ehud Olmert e do ministro de Defesa Ehud Barak, principalmente em 2008 e 2009. A notícia também foi publicada simultaneamente no jornal alemão Der Spiegel, em 20.12.2013.
Imediatamente, na esteira das revelações de Snowden a mídia israelense engatou um tema que há quase três décadas incomoda e constrange autoridades governamentais, lideranças comunitárias e religiosas, políticos e diplomatas de Israel e dos Estados Unidos. Trata-se do caso de Jonathan Pollard, um ex-funcionário da marinha americana que vazou documentos sigilosos para Israel sobre as atividades de espionagem dos Estados Unidos no mundo árabe.  Preso em 1985 e condenado em 1987, Pollard cumpre a pena em uma penitenciária federal na Carolina do Norte.
Entrevista agravou pena
Apesar de se considerar culpado e ter feito um acordo judicial com o Ministério Público, Pollard foi condenado à prisão perpétua. Na época, seus advogados disseram que o ex-analista cooperou com as autoridades, mas recebeu uma sentença mais dura do que a imposta àqueles que espionam para países inimigos.

O real motivo da decisão só viria a ser conhecido décadas depois, em 2012, quando documentos da CIA (Central Intelligence Agency) foram liberados pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington. O agravamento da sentença estava relacionado ao conteúdo de uma entrevista dada por Pollard ao jornalista Wolf Blitzer, âncora da rede americana de TV CNN (Cable News Network) e um dos profissionais mais conhecidos da imprensa americana. A matéria publicada no Jerusalem Post teve grande repercussão na mídia americana. Do interior de sua cela, Pollard culpou os EUA por não compartilhar informações vitais à segurança de Israel e disse que entregou fotos da sede da OLP na Tunísia e dados sobre a capacidade bélica de países árabes como a Líbia de Kadhafi.
A reportagem divulgada três meses antes do veredicto provocou irritação nos promotores do caso que consideraram a matéria uma violação dos termos do acordo judicial assinado pelo acusado. No julgamento, a promotoria denunciou Pollard por divulgar dados sigilosos na mídia comprometendo fontes e métodos da comunidade de inteligência, apesar da contestação dos advogados de que o departamento de Justiça tinha autorizado a entrevista. 
Pouco a perder

Em artigo no Washington Post, traduzido e veiculado pelo site Observatório da Imprensa (11.06.2013), a jornalista Sara Chayes, que trabalhou como repórter de rádio e assessora no Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, questiona a aparente imputabilidade dos profissionais da mídia, ainda que considere “indiscutível” para a democracia “o valor de uma imprensa corajosa e sem restrições”.
Ela observa que os repórteres têm pouco a perder quando divulgam documentos secretos e que jamais um jornalista americano foi processado por publicar informações confidenciais. Para Chayes, os jornalistas muitas vezes estimulam suas fontes a vazar informações confidenciais porque “não compartem parte da responsabilidade pelas transgressões”, ou seja, o risco para eles é mínimo (“Os dois lados do jogo” – edição 750).
Porém, o mais revelador da matéria de Chayes é a denúncia de que haveria um “duplo padrão” nas investigações sobre veiculação de dados sigilosos.  Segundo a jornalista, as acusações feitas pelos órgãos de segurança do governo Obama até então tinham sido todas dirigidas a funcionários governamentais da raia miúda, permanecendo impunes os funcionários do alto escalão que autorizam ou mesmo vazam documentos.
Ponto de equilíbrio

A respeito do tema, o presidente Barack Obama, em palestra na Universidade de Defesa Nacional, em Fort McNair, no ano passado, falou da necessidade de se estabelecer um “equilíbrio certo” entre a segurança da nação e a sociedade aberta. Disse que como comandante em chefe, ele acredita que é preciso manter em sigilo informações que protegem as operações e o pessoal de campo, impondo consequências para quem viola a lei e rompe o compromisso de proteger informações sigilosas.
O presidente americano mostrou-se a favor de uma mídia sem cerceamentos legais que possam inibi-la. “Os jornalistas não devem correr riscos legais por fazer o seu trabalho”, afirmou. E acrescentou: “Uma imprensa livre também é essencial à democracia. É isso o que somos. E estou preocupado com a possibilidade de que as investigações sobre vazamentos possam desestimular o jornalismo investigativo que faz o governo prestar contas.”
Entretanto, Obama foi taxativo em relação às fontes que transmitem material confidencial, equiparando-as aos espiões que revelam dados do governo a países inimigos e que são julgados como traidores: “Nosso foco deve ser naqueles que violam a lei.” Enfatizando a necessidade de haver um controle para que as ameaças não se elevem, ele listou atos terroristas sofridos por cidadãos e militares dos EUA nas últimas décadas em várias cidades do mundo, culminando com o ataque de 11/9 ocorrido em solo americano (“Sobre o futuro da nossa luta contra o terrorismo”, em 23.05.2013).

 Fontes intimidadas
Apesar do apoio presidencial a uma imprensa livre, relatório do Comitê para Proteção dos Jornalistas (Committee to Protect Journalists - CPJ), com sede em Nova York, mostrou que os jornalistas americanos têm enfrentado dificuldade no acesso às informações porque suas fontes se sentem inseguras e intimidadas com a ofensiva do governo Obama contra vazamentos. Em 2012, mais de 100 repórteres e escritórios da agência de notícias Associated Press tiveram suas chamadas telefônicas entre abril e maio vasculhadas pelo governo americano por ordem do Departamento de Justiça. A causa foi a publicação de uma reportagem revelando detalhes da operação da CIA no Iêmen que frustrou o plano de um grupo ligado à Al Qaeda para explodir bombas em aviões dos EUA.
A notícia sobre a coleta secreta dos registros telefônicos dos aparelhos fixos e celulares dos jornalistas só veio à tona um ano depois, em maio de 2013. Uma das representantes da ONG “União Americana pelas Liberdades Civis” (ACLU, na sigla em inglês), Laura Murphy, que atua em Washington, classificou o episódio de “padrão” na atual administração. “O governo Obama tem sido um dos mais agressivos no que se refere à perseguição dos denunciantes e esta é uma conduta altamente perturbadora.”
Por sua vez, o relatório do CPJ também destaca a intensificação da Lei de Espionagem de 1917 que pune os que entregam dados aos jornalistas. A lei federal criada para julgar espiões e traidores foi aprovada pouco depois dos EUA entrarem na 1ª Guerra Mundial e vem sendo aplicada pelo governo Obama com mais regularidade do que as presidências anteriores. O soldado Bradley Manning foi considerado culpado pela justiça militar de violar a citada lei porque transmitiu dados relativos às guerras do Iraque e do Afeganistão e outros documentos secretos ao portal WikiLeaks. O ex-analista Snowden que relatou à mídia sobre o programa secreto de monitoramento de dados da NSA também está enquadrado pela lei, acusado de fornecer informações não autorizadas de defesa nacional.

O especialista jurídico de segurança nacional Stephen Vladeck, em entrevista ao portal Deutsche Welle explicou que a Lei de Espionagem não faz distinção entre espiões e fontes: “Quer se fale de vazamentos de informações, delação ou espionagem clássica, a lei trata todos os três como o mesmo crime, por isso o governo tende, compreensivelmente, a recorrer a ela, sempre que pode.”
Identidades protegidas
No início de 2013, um ex-agente da CIA foi condenado pela Justiça americana a 30 meses de prisão por ter fornecido a um repórter o nome de um colega envolvido em tortura contra presos da base de Guantánamo. Entrevistado pela TV ABC News, em 2007, John Kiriakou denunciou práticas de tortura usadas por agentes da CIA fora dos EUA. Tempos depois, ele confirmou ao jornalista Scott Shane, do New York Times, o nome de um dos agentes envolvidos. O indiciamento de Kiriakou ocorreu em abril de 2012 após uma longa investigação e a juíza federal responsável pelo caso, Leonie Brinkema, manifestou seu desagrado pelo tamanho da pena. Mas um acordo feito entre a defesa e os promotores - com Kiriakou admitindo sua culpa pela violação da identidade do agente da CIA - reduziu o tempo de sua condenação.
Anos antes, em 2003, outro caso rumoroso e polêmico, também envolvendo a divulgação da identidade de uma agente da CIA, ensejou um incidente político com o comprometimento de membros da Casa Branca e do governo George W. Bush. Em uma investigação que durou perto de quatro anos descobriu-se que o chefe de gabinete do vice Dick Cheney foi o autor da informação de que a mulher do ex-embaixador Joseph C. Wilson, que serviu no Iraque e em países da África, era funcionária da CIA.

Com base na Lei de Proteção de Identidades de funcionários ativos da Inteligência, instituída em 1982, o assessor Lewis Libby foi condenado em 2007 a 30 meses de prisão pelo vazamento para a imprensa da identidade da espiã Valerie Plame, revelada em um artigo no Washington Post, semanas depois que o ex-diplomata acusou a Casa Branca de utilizar argumentos falsos para justificar a Guerra do Iraque. Mas Libby teve a pena perdoada pelo presidente Bush, uma prerrogativa que o sistema americano concede aos presidentes dos EUA.
Dois anos antes da condenação de Libby, a jornalista do New York Times, Judith Miller, já tinha sido chamada a testemunhar sobre o caso Valerie Plame recusando-se a fornecer o nome da fonte de vazamento da Casa Branca. Ela ficou detida por três meses acusada de “desacato ao tribunal”. Tanto Miller como Robert D. Novak, autor do artigo “Mission Niger” (14.07.2003) que desencadeou a tempestade em Washington, pertenciam ao seleto grupo de jornalistas simpáticos aos gabinetes palacianos. Uma ex-assessora da vice-presidência, Cathie Martin, em depoimento, relatou a rotina de favorecimento de acesso às informações privilegiadas aos jornalistas “amigos”, aos quais se facilitavam entrevistas exclusivas e liberavam-se dados e documentos, inclusive com a orientação quanto ao sigilo ou não das fontes citadas.
Obediência à lei

Ainda que alguns jornalistas já tenham sido chamados a depor por envolvimento em casos de vazamentos de documentação secreta, são as fontes que “quebram” o sigilo – em sua maioria formada por funcionários a serviço do Estado – as partes mais duramente atingidas pelo rigor da Justiça. Em 2009, um juiz federal do estado da Virgínia, T.S.Ellis, incluiu 100 horas de serviço comunitário à redução de sentença que favoreceu um alto funcionário do Departamento de Defesa acusado de vazar informações a lobistas. O juiz decidiu que Lawrence Franklin que trabalhou no Pentágono teria a tarefa de falar aos jovens sobre a importância de os funcionários públicos obedecerem à lei. “Os direitos protegidos pela Primeira Emenda, às vezes devem ceder à necessidade de segurança nacional”, justificou T.S.Ellis (a Primeira Emenda da Constituição americana garante a todos os cidadãos a liberdade de expressão e resguarda a liberdade de imprensa no país).
Mas, para os defensores de John Kiriakou, o ex-agente da CIA devia ser absolvido por denunciar o uso de tortura contra presos na base americana de Guantánamo. Em relação a Jonathan Pollard, a defesa mais contundente partiu do escritor e jornalista italiano Giulio Meotti para quem as informações do ex-analista da marinha dos EUA ajudaram Israel a se preparar para os ataques de mísseis iraquianos durante a Guerra do Golfo (1990-1991), quando foguetes Scud de Saddam Hussein atingiram Tel Aviv e não houve vítimas (“J’accuse on Pollard – The Jerusalem Post, em 22.06.2011).

O jornalista americano Gleen Greenwald, que ganhou status de celebridade com as matérias sobre o programa de monitoramento da NSA, com base nos documentos repassados por Edward Snowden, defende o trabalho investigativo da imprensa. Para o profissional que reside no Brasil, “o jornalismo não é nem deveria ser um crime nos Estados Unidos”. O comentário veio a propósito da declaração do procurador-geral do país, Eric Holder, em novembro de 2013, de que apesar de não concordar com as reportagens de Greenwald, o governo americano não pretende processá-lo. De acordo com o procurador, “todo jornalista envolvido em verdadeiras atividades jornalísticas não será processado pelo Departamento de Justiça”.
Uma afirmação politicamente correta e que não fere os princípios do Manual sobre a Lei de Comunicação Social elaborado pela professora Jane Kirtley, titular da cadeira de Direito e Ética da Comunicação Social da Faculdade do Minnesota. O texto, em edição digital, consta no link do Gabinete de Programas de Informação Internacional do Departamento de Estado dos EUA (portal IIP Digital). Em seu prólogo, a frase do filósofo e economista inglês do século 19, John Stuart Mill: “O mal inerente a silenciar a expressão de uma opinião é o de que tal constitui um roubo à humanidade, à posteridade e também à geração atual; e àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que a apoiam.”

Uma assertiva onde vale trocar, no atual contexto do século 21, o vocábulo “opinião” por “informação”. 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

De Auschwitz às prisões da Suíça: a história de Petra Krause

por Sheila Sacks


Os meios de comunicação são o oxigênio do terrorismo. Sem eles, os terroristas seriam sufocados e morreriam.” (Adam Lockyer, especialista em segurança, inteligência e contraterrorismo) 

Em 2010, uma professora de inglês do ensino médio em Nápoles publicou um pequeno romance de 78 páginas cujo título estampava o nome de uma personagem misteriosa e enigmática que já foi rotulada por agências de inteligência ocidentais como a maior terrorista do século 20. O livro “L’intervista a Petra Krause” de Mara Fortuna conta a história de uma estudante de jornalismo que em meio à turbulência dos movimentos de esquerda que sacudiram a Europa, com bombas e mortes na década de 1970, tenta entrevistar uma ativista antifascista – Petra Krause - acusada de terrorismo. Mas um incidente trágico a afasta desse encontro que só vai se realizar trinta anos depois.

No lançamento do livro a autora disse que escreveu focada nos adolescentes que na sua maioria tem uma visão distorcida desse tempo de turbulência no continente europeu marcado por sucessivos atentados e sequestros praticados por grupos radicais. Mas, esses grupos extremistas, de acordo com a professora, eram formados por jovens idealistas e revolucionários. Acrescenta-se que tais movimentos tinham um leque bastante amplo de ações: se opunham ao regime de apartheid da África do Sul, às juntas militares na Grécia e às ditaduras de Franco (Espanha), Salazar (Portugal) e Pinochet (Chile); apoiavam as lutas pela libertação da Argélia, Irlanda do Norte e das colônias portuguesas de Angola e Moçambique; e mantinham conexões com organizações clandestinas - como a dos Tupamaros no Uruguai - que lutavam contra as ditaduras militares instaladas em países da América do Sul.


Lembrando Albert Camus (1913-1960), jornalista, escritor e filósofo, argelino de nascimento e prêmio Nobel da literatura em 1957, “a revolta não nasce, única e obrigatoriamente, entre os oprimidos, podendo também nascer do espetáculo da opressão cuja vítima é o outro”. 


Os rebeldes de 1968

A jornalista e escritora americana Claire Sterling (1919-1995), que viveu na Itália durante essa década turbulenta e foi correspondente do The New York Times e colunista política do Washington Post, aponta o ano de 1968 como aquele em que uma geração nascida após a segunda guerra mundial declarou a sua própria guerra contra a sociedade. “A força colossal deflagrada por um bando de jovens beatniks, antes ignorados como uma periferia de lunáticos, tirou o fôlego dos vários sistemas do mundo. Não apenas tirou o presidente Johnson da Casa Branca e o general De Gaulle do Palácio Elysée, como transformou a derrota militar do Vietcong após a Ofensiva do Tet numa conquista política que colocou um ponto final na guerra do Vietnã.”

Explica-se: com o barulho dos movimentos dos jovens universitários americanos e da geração beat (precursora dos hippies) contra a guerra do Vietnã crescendo nos EUA, somado ao surpreendente ataque do Vietnã do Norte ao Vietnã do Sul onde se concentravam as forças americanas, em 31 de janeiro de 1968 (a chamada Ofensiva de Tet, em referência ao ano novo lunar dos vietnamitas conhecido como “Tet Nguyen Dan”), Lyndon Johnson não obteve a indicação dos democratas para tentar a reeleição e o presidente francês, após 10 anos no poder, renunciou em abril de 1969, depois de enfrentar protestos violentos de estudantes e trabalhadores, e ser derrotado em um referendo popular sobre reforma do senado.

Porém, o questionamento mais contundente que os historiadores ainda fazem dessa época conhecida na Itália como os “anni di piombo” (anos de chumbo) é a forma violenta de ação adotada por esses grupos cujos alvos e vítimas foram as próprias democracias da Europa Ocidental e seus cidadãos. O chamado euroterrorismo se deu a partir da década de 1970 e atravessou os anos de 1980 como uma extensão dos protestos estudantis de 1968, com movimentos de extrema esquerda radicalizando suas posições políticas por meio de atos terroristas que inicialmente atingiram a Alemanha Federal e a Itália e depois se alastrou para outros países do continente. A guerra do Vietnã, as ditaduras na Europa e na América Latina, a luta pela independência da Argélia, a causa palestina, o fantasma latente do fascismo e a repressão policial serviram de combustível para que esses guerrilheiros urbanos incendiassem a Europa.

“Geração de Auschwitz”

Andreas Baader e Gudrun Ensslin
Mas o rastilho de pólvora foi aceso na própria Alemanha pós-guerra a partir da fundação do “Grupo Baader-Meinhoff”, em 1970, também conhecido como “Fração do Exército Vermelho” (RAF - Rote Armee Fraktion, em alemão), uma organização de extrema-esquerda responsável por uma série de ações armadas no país e que somente foi oficialmente considerada extinta em 1998, após mobilizar três gerações de militantes. Liderados inicialmente por Andreas Baader (1943-1977), oriundo do movimento estudantil, Ulrike Meinhoff (1934-1976), jornalista e ativista política, e Gudrun Ensslin (1940-1977), doutora em filosofia, os três foram assassinados nas prisões onde cumpriam suas penas, provavelmente por policiais, apesar de o governo alemão alegar que os prisioneiros cometeram suicídio.

No livro “Legacies of Dachau: The Uses and Abuses of a Concentration Camp, 1933-2001” - que aborda a história e a memória de uma Alemanha pós-genocida, a partir de Dachau, o primeiro campo de morte nazista -, o professor americano Harold Marcuse reproduz o desabafo de Ensslin à imprensa após policiais matarem o estudante Benno Ohnesorge durante uma manifestação estudantil, em junho de 1967, contra a visita do Xá Reza Pahlevi do Irã a Berlim. A ativista, então com 27 anos, foi enfática ao se referir aos policiais: “Eles vão nos matar a todos. Vocês agora sabem o tipo de porcos contra os quais nós estamos lutando. Esta é a geração de Auschwitz. Você não pode dialogar com as pessoas que criaram Auschwitz. Eles têm armas e nós não. Nós precisamos nos armar!”

Para o jornalista alemão Stefan Aust, que foi editor do semanário Der Síegel (de 1994 a 2008) e que acompanhou a formação da RAF e conviveu com alguns de seus líderes, essa é a primeira geração nascida desde a guerra que começa a fazer perguntas e questionar os pais acerca dos acontecimentos no regime hitlerista. Eles criticavam aquilo que lhes parecia ser a relutância da sociedade alemã em confrontar-se com seu passado nazista. 

Autor do best-seller “Der Baader Meinhof Komplex”, de 1985, que virou filme em 2008 e dividiu o público alemão, pois muitos viram uma espécie de glamourização dos terroristas, Aust escreve sobre a geração de 1968: “A Segunda Guerra Mundial tinha terminado apenas há 20 anos. Os que chefiavam a polícia, as escolas, o governo, eram as mesmas pessoas que estavam no comando durante o nazismo. O chanceler Kurt Georg Kiesinger era um ex-nazista. Por causa do passado nazista, tudo de ruim era comparado ao Terceiro Reich. Se você ouvia falar de brutalidade policial, diziam que era igual à SS. No momento em que você vê seu próprio país como a continuação de um estado fascista, você se dá a permissão de fazer quase qualquer coisa contra ele. Você vê as suas ações como a resistência que seus pais não tiveram.”


De fato, uma pesquisa popular feita nos primeiros anos das atividades da RAF apontou que um quarto dos alemães com menos de 40 anos tinha simpatia por seus integrantes e que um décimo dessas pessoas esconderia seus membros se fosse necessário.


Vida clandestina

Petra Krause nasceu em Berlim, em 19 de fevereiro de 1939, e com poucos meses de vida foi levada para o campo de extermínio de Auschwitz com sua família, onde seus pais morreram nas câmaras de gás. Seus primeiros três anos são passados neste campo de horrores e por puro acaso consegue sobreviver e é adotada por uma família cristã. Chega à Itália pela primeira vez em 1957, ainda adolescente, e filia-se ao Partido Comunista. Dezoito anos depois, em março de 1975, já como cidadã italiana divorciada de um médico de Milão e mãe do jovem Marco, é detida na Suíça sob a acusação de contrabando de armas e de participação em atentados terroristas contra a embaixada espanhola em Berna e um banco em Zurique.

Escrevendo sobre os grupos de esquerda na Europa que adotaram a violência em suas ações, a jornalista Claire Sterling reserva um capítulo para relatar as atividades clandestinas de Krause em seu livro “A rede do terror - a guerra secreta do terrorismo internacional" (1981). Conta que no início ela emprestava seu passaporte para fugitivas dos regimes de Franco e de Salazar ou as abrigava em seu apartamento em Milão. Depois passou a ser enviada a países da África, como a Argélia e as colônias portuguesas de Angola e Moçambique. Na Itália trabalhava como intérprete e tradutora para a editora de Giangiacomo Feltrinelli, um milionário admirador de Fidel Castro e filiado ao partido comunista que apoiou e financiou os movimentos armados. Após a morte de Feltrinelli, em 1972, Krause “mergulha na clandestinidade total, adota novo nome, adquire um passaporte falso, arranja um insignificante emprego de escritório em Milão e viaja bastante percorrendo os circuitos terroristas europeus”, afirma Sterling.

Em outubro de 1974, Krause atravessa a fronteira e se instala em Zurique. Policiais italianos se lançam a sua procura depois de encontrarem o carro de sua propriedade no local do incêndio que destruiu uma fábrica da multinacional ITT de componentes eletrônicos, causando prejuízos de 10 milhões de dólares. Na época, segundo Sterling, Krause já gerenciava a distribuição de armamentos para vários grupos extremistas sob o nome de “Anna Maria Grenzi”.

Procurada pela CIA
  
De acordo com o relatório da CIA (Central Intelligence Agency) de 1978, o grupo de Petra Krause também chamado de “o grupo de Annababi” funcionava na Suíça em parceria com a organização anarquista AKO (Anarchistische Kampf-organization), fundada por jovens suíços em 1970 e que cultuavam o mito revolucionário do argentino Che Guevara, braço direito de Fidel Castro executado na Bolívia em 1967.  Eles foram responsáveis por roubar toneladas de armamentos e explosivos dos arsenais das forças armadas suíças para suprir grupos extremistas como o Baader-Meinhof da Alemanha, as Brigadas Vermelhas da Itália, os irlandeses do IRA, o ETA dos bascos espanhóis e o Diretório Europeu dos palestinos em Paris, liderado pelo venezuelano Ilich Ramirez Sanchez, conhecido como “Carlos, o Chacal” (atualmente com 66 anos, cumprindo pena de prisão perpétua na França).

A chegada de Krause à Suiça, assinala Sterling, impulsionou o abastecimento de armas e explosivos roubados, o fornecimento de identidades e passaportes falsificados, o tráfego de esconderijos para militantes perseguidos e a mobilização para a formulação de sucessivas ações violentas na Itália e na Alemanha. Anos mais tarde, em declarações a jornais, Krause justificou a sua opção pela militância armada: “Comecei como marxista-lenilista ortodoxa e passei da completa não-violência ao ponto em que compreendi que a não-violência é um luxo burguês” (Newsweek, em 18.07.1978). Em outra entrevista, desta vez para o Le Nouvel Illustré, de Genebra, Krause revelou que sabia que a polícia andava em seus calcanhares. “Comecei a ver a necessidade de ter outros instrumentos para combater o estado burguês e minhas reservas quanto à violência caíram por terra.”

Prisão na Suiça

Em março de 1975 Krause é detida pela polícia suíça em uma movimentada praça de Zurique. Usando pseudônimo e passaporte falso, ela está acompanhada de Elizabeth Van Dyck, da liderança do grupo Baader-Meinhof, que viria a ser fuzilada por policiais na Alemanha, quatro anos depois, aos 28 anos, em um esconderijo da organização.


 Antes de ser presa, Krause vinha sendo vigiada pelo serviço de segurança suíça. Meses antes, ela teria atravessado a fronteira alemã e entregue pessoalmente fuzis automáticos, minas e granadas para Van Dick e Siegfried Haag, um advogado simpatizante da RAF que depois se tornou líder e militante nas ações armadas do grupo. Esse armamento foi encontrado nas ruínas da embaixada alemã em Estocolmo, semanas depois da explosão do prédio que fora invadido por um comando da RAF, em abril de 1975, com o intuito de trocar os diplomatas feitos reféns na embaixada por Baader, Ensslin e Meinhoff que estavam presos. 

Em 1979, Haag é condenado a 14 anos de reclusão pela preparação do atentado na Suécia, recrutamento de pessoal e aquisição de armamentos. Na sentença do tribunal de Zurique, Petra Krause é citada como a pessoa que forneceu as armas a Haag em Waldshut, na Alemanha Ocidental, em 31 de janeiro de 1975 (Haag, de 70 anos, teve sua pena suspensa em 1987 devido ao seu estado de saúde).

Presa na Suiça, Krause fica por mais de dois anos encarcerada aguardando julgamento, sendo que em total isolamento no primeiro ano. Pesam sobre ela acusações de envolvimento em atentados terroristas, roubo de equipamento militar e contrabando de armas. Passa por quatro presídios, sofre uma tentativa de estupro por parte de um carcereiro, faz três greves de fome, perde 14 quilos e grande parte dos cabelos.

Debilitada, com nódulos linfáticos em todo o corpo e sentindo muitas dores, Krause é deportada à Itália para tratamento de saúde, após 28 meses de confinamento. Contribuem para o desfecho a mobilização da mídia e a pressão exercida por um comitê de deputadas que vai a Suíça e constata as péssimas condições de saúde da prisioneira. Um apelo pela libertação de Krause ganha às páginas do jornal La Repubblica, em julho de 1977. Quem assina é o dramaturgo Dario Fo (Prêmio Nobel de Literatura de 1997) e sua mulher, a atriz Franca Rame (falecida em maio de 2013) que também pede a interferência do então presidente italiano Giovanni Leone a favor de Krause.

Retorno à Itália

Já de volta à Itália, onde responde a um processo pelo incêndio de uma fábrica em Milão e a ocultação de um carro roubado, Krause é levada para uma prisão em Nápoles. Mas em razão de seu estado de saúde ela paga fiança e obtém a liberdade provisória. Nas ruas de Nápoles, jovens da extrema-esquerda comemoram a sua saída do presídio e em passeata proclamam a inocência da acusada (EL Pais, em 26.08.1977).

Franca Rame, que além de atriz era ativista feminista, estava no aeroporto de Fuimicino na chegada de Krause. Ela conta que o ostensivo aparato policial inclusive com cães para escoltar a prisioneira foi vista como uma manobra teatral para reafirmar a periculosidade da prisioneira. Um prólogo grotesco, segundo ela, considerando que o genocida alemão Herbert Keppler, responsável pelo envio de mais de onze mil judeus italianos para as câmaras de gás de Auschwitz e condenado a prisão perpétua na Itália, horas depois driblava a vigilância policial escapando de um hospital militar em Roma, onde se encontrava para tratamento de um câncer, rumo à Alemanha que negou devolvê-lo às autoridades italianas (ele morreu poucos meses depois, aos 70 anos ).

Reportando a sua detenção na Suiça, Krause lembra que ela e a amiga estavam em Bellevueplatz, a estação de bondes de Zurique, quando foram cercadas e brutalmente separadas por vários homens que a imobilizaram e arrancaram a sua bolsa. “Se isso acontecesse na Itália e eu estivesse armada teria atirado como louca. Teria a certeza de que se tratava de uma agressão fascista”, disse.


Tempos depois, na petição que faz contra a Suiça por sua prisão, Krause invoca um artigo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, instituída em 1953, que estabelece que ninguém pode ser qualificado pelas autoridades como culpado de um crime sem que esta culpa tenha sido previamente comprovada por um tribunal. Isso porque por ocasião de sua detenção, o ministro da Justiça suíço foi a TV dizer que Krause era autora de crimes que envolviam a utilização de explosivos. Tal declaração violava o entendimento jurídico de que só o processo penal pode conduzir à constatação formal da culpa e de que a revelação pública de uma suspeita por parte dos serviços do Estado pode ter conseqüências negativas para a posição jurídica da pessoa, influenciar juízes e promover condenações antecipadas.

Sentenças

Em novembro de 1978, Krause é absolvida na Itália por falta de provas. Tem ao seu lado grande parte da imprensa italiana que faz longas reportagens relatando as torturas físicas e mentais sofridas pela prisioneira, incriminada por “um suposto roubo de munições de um arsenal do exército suíço e vítima de acusações por supostos atos subversivos que nunca foram provados” (Il Manifesto, diário comunista que encerrou suas atividades em 2012 e Lotta Continua, diário da ultra-esquerda extinto em 1982).

O conhecido cartunista italiano Giorgio Di Vita, um jovem de 22 anos à época, recorda que a imprensa destacava o histórico de Krause como uma menina judia sobrevivente de um campo de concentração nazista e de seu compromisso político de não-violência que a levou a manter contato com os principais movimentos antifascistas da Europa, principalmente com os grupos de esquerda da Alemanha. Também era conhecido seu compromisso de solidariedade com os espanhóis exilados, gregos, argelinos e todos os perseguidos dos regimes ditatoriais, inclusive aqueles que militavam contra as ditaduras da América do Sul.

Opinião que contrasta com a de Sterling que em seu livro enfatiza a ligação de Krause com o terrorismo: “Conhecida por seu bando como ‘Annababi’, Petra Krause foi descrita pela polícia suíça como a ‘terrorista do século’ ao ser apanhada (...) Não era assassina como o resto. Tudo o que fazia era cuidar do negócio.”

Em 9 de março de 1981, o tribunal de Zurique condena Krause a três anos e seis meses de prisão, e em 2 de maio de 1982 a Corte de Apelação de Milão também a sentencia a 6 anos de reclusão.  Muitos dos seus companheiros estão presos ou mortos. Ainda assim, quase duas décadas depois, a jornalista Maria Antonietta Calabró, do influente jornal Corriere della Sera publica artigo afirmando que Krause estaria por trás da reorganização de grupos armados a nível internacional (19.05.2000). Segundo a jornalista, com a captura de “Carlos, o Chacal” no Sudão, em agosto de 1994, Krause estaria desempenhando um papel mais atuante no submundo do terrorismo e ativando a sua teia de relações, já que algumas antigas lideranças estariam em liberdade, ainda que sob vigilância.

 Assassinatos


O artigo que cita Krause e sua suposta associação com grupos de extrema esquerda vem à tona em razão do assassinato, em 1999, de Massimo d’Antona, crime reivindicado pelas Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse) - organização  terrorista de extrema-esquerda responsável pelo sequestro e assassinato do político democrata-cristão Aldo Moro, em 1978. Para a surpresa dos italianos que julgavam o grupo extinto. Conselheiro do Ministro do Trabalho, d’Atona fez parte do grupo que adequou a legislação trabalhista do país às diretrizes da União Europeia, um dos motivos da execução assinalados na mensagem das Brigadas.

Dois anos depois, outro conselheiro do Ministro do Trabalho é morto pelas Brigadas. Desta vez é o professor Marco Biagi, coautor de uma polêmica reforma trabalhista que desagradou os maiores sindicatos italianos. Pela internet, as Brigadas assumem o assassinato do economista tachando-o de “um dos promotores da regulamentação da exploração do trabalho”. Peritos em balística constatam que nos dois assassinatos foi usada a mesma arma de calibre 9mm.

Relatório publicado em 2001 pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado italiano sobre terrorismo no país contempla com duas dezenas de páginas “La controversa figura di Petra Krause”. Entre seus contatos é citado o libanês Michel Moukarbal, definido como “o superior direto de Carlos na resistência palestina ativa na Europa” (Moukarbal foi morto por Carlos, em 1975, por suspeita de traição). Sterling afirma que o grupo suíço de Krause forneceu armas para Moukarbal suprir os grupos separatistas ETA, dos bascos espanhóis, e o IRA dos irlandeses.

Uma atuação superdimensionada de acordo com o jornalista e professor da Universidade de Leipzig, Michael Haller. Articulista do jornal alemão Der Spiegel por um longo período, Haller contesta as afirmações de Sterling acerca do poder de Krause.“O que é certo é que Petra Krause participou de duas ações amadoras, uma em Zurique e outra em Berna, que não tiveram sucesso.” E continua: “Krause chegou a Milão no final dos anos 1960 junto com outros ultraesquerdistas que manifestavam solidariedade a espanhóis antifascistas e negros africanos.”

Para Heller é questionável atribuir a Krause uma posição de liderança no terrorismo da esquerda europeia, ao lado do editor italiano Giangiacomo Feltrinelli, simpatizante da esquerda e morto em um ataque a bomba (1972), e o egípcio de origem judaica Henri Curiel, assassinado em 1979 e que presidiu em Paris a organização “Solidariedade” para acolher os fugitivos e militantes da esquerda perseguidos principalmente pelas ditaduras da América do Sul. “É ridículo montar um best-seller com alegações e especulações infundadas, baseadas em preconceitos vigentes”, critica Heller acerca do livro de Sterling (“Das internationale Terror- Netz”, em 22.02.1982).


Porém, para a autora de “A rede do terror”, a década do medo (1970) ampliou o conceito do general alemão Von Clausewitz (1780-1831) de que a guerra é a continuação da política por outros meios. A jornalista destaca o patrocínio da Líbia do ditador Muammar Khadafi (1942-2011) nesse contexto profissional de terror, e o classifica de “o papai rico do terrorismo”, por manter, em 1976, um fundo especial de 580 milhões de dólares para treino e ações terroristas em solo europeu.


Enfim, militante antifascista para a intelectualidade italiana e terrorista fichada pelas agências de inteligência, Petra Krause foi um produto da juventude europeia pós-Holocausto, comprometida com a violência ideológica e o terror, mas que aparentemente sempre contou com a simpatia da mídia. Um fenômeno que de alguma forma encontra paralelo nos dias atuais, nas dissimuladas elegias midiáticas  ao pseudo terrorismo heroico de grupos fundamentalistas. É a brutal rede de terror que ressurge e avança pelo século 21, mais uma vez favorecida e amparada pela superficialidade, mitos e estereótipos que parcializam e partidarizam grande parte da imprensa global.

Atualizado em setembro de 2015