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quinta-feira, 7 de agosto de 2025

A loja dos bibelôs encantados - Recordando papai

/ Sheila Sacks /

https://www.revistariototal.com.br/pais/sheilasacks.htm

Sentada no banquinho de madeira nos fundos da loja, eu olhava fascinada papai desenhar as letras e os números nas páginas do livro-caixa encadernado com uma brochura azul marinho. As palavras eram escritas metricamente em cima das linhas, com arabescos que as tornavam mágicas. Os valores numéricos também pareciam desenhos ornamentais que mexiam com minha imaginação.     

O pequeno escritório, protegido por um balcão arredondado onde ficava a imponente máquina registradora de metal, abrigava uma escrivaninha com tampo de vidro, um armário, a pequena geladeira e duas cadeiras, uma delas maior, de madeira clara envernizada, com apoio para os braços. Sobre a mesa ficavam o bloco de notas e o telefone preto que a primeira chamada papai já atendia de forma elegante com a voz singular que todos elogiavam.  – Casa Carlos, boa tarde!

A mesa também comportava um pote bojudo de couro no qual estavam três lápis pretos de meticulosas pontas finas e duas borrachas parecendo goma de mascar, em suas cores laranja e azul, e mais o xodó de papai, o estojo de camurça marrom forrado em seu interior de seda bege, onde era guardada a caneta-tinteiro Parker usada para assinar documentos e recibos.

A loja tinha duas portas altas geminadas na entrada e uma vitrine na qual eram exibidos panelas e faqueiros na parte de baixo, e nas prateleiras superiores a “prata da casa”: jogos de pratos, xícaras e sopeiras de porcelana inglesa; copos e taças de cristal lapidado da Boêmia; vasos coloridos de vidro Murano; e, para o meu prazer infinito, os incríveis bibelôs de porcelana alemã de Dresden, explicava papai, que reproduziam cenas galantes do tempo de Luiz XV, quando os casais dançavam em jardins monumentais, as damas de vestidos rendados e seus pares de jaquetas e coletes bordados.

No lado direito da loja onde armazenavam os materiais de construção, as gavetinhas com os mais variados tamanhos de pregos me mantinham fascinada. Observava “seu Silva” examinando com rigorosa atenção o comprimento e as dimensões certas de cada preguinho conforme os pedidos dos clientes e depois pesá-los na pequena balança de pratos de metal, um deles para colocar a mercadoria e no outro os pesos de diversos tamanhos.   

No balcão do lado esquerdo, papai comandava as vendas das louças, sempre gentil no atendimento e distinto em suas camisas sociais de algodão de cores claras e calças de linho. Os meus amados bibelôs, ao lado de outros enfeites de porcelana e cristal, ficavam expostos aleatoriamente nas compridas prateleiras no centro da loja. Ao fundo, no galpão, as folhas de madeira ficavam empilhadas por tamanho e espessura, e uma enorme balança de ferro servia para pesar os volumosos sacos de cimento e outros materiais ensacados.

Meu irmão passava todo o tempo nessa área da loja. Ele acompanhava o encarregado subir nas pilhas de madeira, escolher a que considerava mais adequada e depois descer para serrar na medida certa. E, compenetrado, ajudava a arrumar os sacos menores de pó de gesso que ficavam a alguns metros de um pequeno banheiro.  

Algumas tardes, depois da escola, nós visitávamos papai na loja. Essa atividade contava como um passeio especial, apesar de morarmos na mesma rua. Tínhamos que atravessar a avenida principal onde passavam o bonde e as lotações para alcançar a loja que ficava próxima à estação de trem.

Adorávamos esse passeio e na nossa chegada papai largava o que estava fazendo e nos abraçava, sem esquecer, porém, de apontar para o enorme relógio redondo na parede, perto do galpão. − Crianças, quando marcar 4 horas, vocês se despedem e voltam para casa. Combinado?

Balançávamos as cabeças concordando com o veredito, já esperando a recomendação que viria logo em seguida. − Com as mãozinhas comportadas. Não mexam em nada, dizia, olhando para nós com aqueles olhos cor do céu por trás dos óculos redondos de aros dourados.

Mas, diante da formosura e graciosidade dos bibelôs, essa assertiva era difícil de cumprir. Só os olhos não davam conta de tanta doçura. Desejava tê-los para mim, tocá-los, acariciá-los em seus contornos emoldurados por flores, passarinhos e querubins.

Uma noite, na volta para a casa, papai trouxe uma caixinha de música de madeira escura e a colocou sobre o buffet. Após o jantar, abriu com cuidado a tampa e uma mimosa bailarina de saiote rosa surgiu em meio a um forro de cetim escarlate e um espelho redondo ao fundo. Papai girou várias vezes a pequena manivela dando corda como fazia todas as manhãs no relógio que usava no pulso. Como por encanto a bailarina começou a girar suavemente  sob um fundo musical que muitos anos depois descobri ser uma canção de ninar do compositor Johannes Brahms.

A meu pedido, papai acomodou a caixinha de música aberta, com a bailarina à vista, ao lado dos três bibelôs que ele trouxera para a casa devido a pequenos defeitos. O conjunto ficou ainda mais destacado na majestosa cristaleira da sala, um móvel alto de madeira maciça com ornamentos entalhados e portas de vidro. Lá estavam o aparelho de porcelana de doze pratos e xícaras hexagonais com bordas prateadas, e os copos, taças e cálices com desenhos em alto relevo usados na páscoa e ano novo judaicos.

Uma noite acordei com um som que, a princípio, pensei vir da rua. Pulei da cama e pela janela do quarto vi uma lua cheia, redonda e brilhante no céu noturno. Percebi então que o som vinha da caixinha de música e corri para a sala. Uma claridade prateada iluminava a cristaleira onde a pequena bailarina dançava rodeada pelos alegres bibelôs. Estes se movimentavam graciosamente ao som da música e as damas e os cavalheiros de louça pareciam felizes com a novidade. Permaneci extasiada com aquela visão e me senti transportada para uma esfera mágica além do real.

De manhã contei ao papai o que aconteceu à noite. Estava radiante e ofegante. Ele me ouviu em silêncio e logo achou uma explicação, com sua voz mansa e pausada. A corda deve ter se soltado e a trepidação fez os bibelôs se mexerem, argumentou. – Mais tarde dou uma olhadinha na engrenagem, disse, balançando minhas trancinhas arrumadas para ida à escola.   

Os anos se passaram, trocamos de casa e de bairro, o mobiliário antigo substituído por outro mais contemporâneo. Uma tarde, vendo papai em sua poltrona preferida, absorto nas páginas de um livro, me lembrei dos bibelôs que dançavam e compreendi como papai foi sábio e generoso. Isso porque em nenhum momento ele questionou minha história, opinando que poderia ser fruto da minha imaginação ou simplesmente um sonho. Nem tampouco considerou que fosse um engano ou uma bobagem de criança.  Eu tinha oito anos, era uma menina tagarela e inquieta. Papai ouviu o que eu disse e atencioso procurou uma resposta dentro da lógica de um adulto.

Apesar disso, durante um bom tempo eu tive a grata sensação de que os bibelôs encantados, de maneira extraordinária e inexplicável, talvez sentindo o imenso amor que eu tinha por eles, ganharam um breve sopro de vida e, sob a noite enluarada, dançaram radiantes na cristaleira. Dois anos depois, para meu desalento, os três ornamentos não resistiram às mãos pesadas dos carregadores do caminhão de mudanças. Papai ainda tentou colar as pequenas figuras, mas sem sucesso porque alguns pedacinhos se perderam.

Restou solitária a dançarina na caixinha de música que sobreviveu mais alguns anos até que a ferrugem corroeu o mecanismo da corda e os pinos que a sustentavam. Da loja, enfim, não sobrou nenhum bibelô para dar vida à nova cristaleira, agora de madeira em tom vinho e embutida na parede.  

Porém, afortunadamente, a sensação de magia, acompanhada da alegria e entusiasmo tão próprios do mundo infantil, não se perdeu nos intrincados ramais do tempo. Muitas noites, quando o vagão da memória me leva à singular figura de meu pai e à extraordinária loja de bibelôs encantados, fecho os olhos devagar e me entrego, em devaneio, a esses felizes instantes de fantasia, saudade e gratidão. 



domingo, 27 de julho de 2025

AK-47: um ícone sinistro a serviço do crime e do terror

 / Sheila Sacks /

No livro Gomorra, sobre a máfia napolitana, o jornalista italiano Roberto Saviano reserva um capítulo de 31 páginas para dissertar sobre o fuzil russo Avtomat Kalasnikova, mais conhecido como AK-47. Diz que a arma matou mais do que a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, do que o vírus HIV, mais do que todos os atentados terroristas e todos os terremotos. Assinala que dezenas de países usaram o fuzil em guerras civis na Argélia, Angola, Bósnia, Burundi, Camboja, Chechênia, Colômbia, Congo, Haiti, Caxemira, Moçambique, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão e Uganda.

Saviano lembra os dois presidentes que morreram sob o fogo do Kalashnikov: o chileno Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, no palácio presidencial de La Moneda, em Santiago, no golpe militar que instaurou o regime ditatorial do general Augusto Pinochet; e o egípcio Anwar Sadat, em 6 de outubro de 1981, no Cairo, durante uma parada militar, três anos depois de ter assinado dois importantes acordos de paz com Israel, em Camp David. Mortes que se somam a de outros políticos, como a do general italiano Dalla Chiesa, que foi prefeito de Palermo, assassinado em 1982, e a do ditador comunista da Romênia, Nicolae Ceausescu, fuzilado em 1989. “Mortes de excelência” que segundo Saviano garantiram “uma verdadeira publicidade histórica” ao AK-47.

Concebido pelo general Mikhail Kalashnikov, que morreu em 2013, aos 94 anos, e incorporado ao exército soviético em 1947, o AK-47 é o fuzil mais popular da terra e estima-se que 250 mil pessoas são mortas anualmente baleadas pela arma. Em 2017, para comemorar os 70 anos de sua invenção, foi inaugurada em uma praça de Moscou, em 19 de setembro, a estátua de Kalashnikov empunhando o célebre fuzil que, há décadas, é um dos maiores sucessos russos de exportação, igualando-se a Coca-Cola, talvez a marca americana mais conhecida do mundo.

Símbolo do liberalismo

Com mais de 200 milhões de exemplares espalhados pelo mundo, segundo Michael Hodges, autor de AK47: A História da Arma do Povo, o fuzil está nas bandeiras de Moçambique e do grupo terrorista xiita Hezbollah; nos brasões do Timor Leste e do Zimbábue; em centenas de emblemas de grupos políticos e nos vídeos de Osama Bin Laden. “É um símbolo do liberalismo, um ícone absoluto”, abaliza Saviano. E explica: “A invenção desta arma permitiu a todos os grupos de poder e de micropoder ter um instrumento militar. Ninguém, depois da AK-47 pode dizer que foi vencido porque não tinha acesso a armas.”

Se na África Ocidental, o fuzil russo pode custar 50 dólares, no Iêmen é possível encontrar um AK-47 usado de segunda e terceira mãos por seis dólares. É o que afirma Saviano em seu livro. “O kalashnikov permite que todos se tornem soldados, todos, até crianças esquálidas, e transformou em generais das Forças Armadas pessoas que não conseguiriam guiar um rebanho de ovelhas”, ironiza.

O jornalista revela que as drogas sustentam as compras dos AK-47 por grupos armados. Sejam de guerrilheiros, terroristas, paramilitares, milícias ou traficantes. “Coca em troca de armas”, enfatiza. Destaca o exemplo do ETA, o grupo separatista basco considerado terrorista pela União Europeia, que enviava cocaína através de seus militantes para receber, em troca, armas da Camorra, a máfia napolitana. Não somente kalashnikov, mas explosivos e lança-mísseis. Conhecido pelo seu histórico de quatro décadas de violência e mortes, resultando em mais de 800 vítimas fatais, o ETA obtinha a cocaína através de seus contatos com grupos guerrilheiros colombianos.

Queda do comunismo ajudou

Com a queda da Cortina de Ferro – expressão usada por Winston Churchill, em 1946, para definir as áreas na Europa sob o domínio da União Soviética – e o fim da chamada Guerra Fria, países como Romênia, Polônia e a ex-Iugoslávia ficaram com os seus arsenais abarrotados de armas russas e precisando se reestruturar. O desmantelamento da União Soviética em 1991, precedido pela queda do Muro de Berlim, em 1989, criou um novo cenário geopolítico na Europa e abriu as fronteiras para o mercado ilícito das armas, dirigido principalmente para grupos políticos armados da África, América Latina e do próprio Balcãs, como a Bósnia e a Sérvia.

De acordo com Saviano, a máfia napolitana pagava informalmente a dirigentes comunistas em decadência a manutenção desses depósitos de armas estocadas nos próprios países de origem. Dependendo da conveniência, essas armas eram retiradas e levadas para a Itália para serem negociadas. “Os fuzis vinham empilhados em caminhões militares que ostentavam o símbolo da OTAN ( Organização do Tratado do Atlântico Norte). Eram grandes carretas roubadas das garagens americanas da base da OTAN, em Nápoles, que graças àquela inscrição, podiam rodar tranquilamente pela Itália.”

Antes, na década de 1980, durante o conflito entre a Argentina e a Inglaterra na Ilha das Malvinas, no Atlântico Sul, a Camorra também entrou no circuito para a venda informal de armas para a defesa argentina. O jornalista afirma que devido ao isolamento econômico do país à época, “ninguém teria lhe vendido oficialmente”. A chamada Guerra das Malvinas durou dois meses e foi um fiasco para a máfia. “Poucos tiros, poucos mortos, pouco consumo.” Ele conta que no mesmo dia que foi decretado o fim do conflito, o serviço secreto inglês interceptou um telefonema intercontinental entre a Argentina e uma localidade em Nápoles. “Aqui a guerra acabou”, falavam da Argentina. “Não se preocupe, haverá outras...”, responderam do outro lado do Atlântico.

Saviano é categórico ao ressaltar o poder de fogo dos clãs da região da Campânia, no sul da Itália, e de sua capital Nápoles e arredores, nas décadas de 1980 e 1990: “As guerras, da América do Sul aos Bálcãs, são feitas com as garras das famílias da Campânia. Em Nápoles, a Camorra já fez 3.600 mortos nos últimos 30 anos”, afirma no livro.

Fuzis com a marginalidade

No Rio de Janeiro, em junho de 2017, a polícia civil carioca descobriu no terminal de cargas do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro uma grande leva de armamentos escondidos em aquecedores de piscinas dentro de containers vindos de Miami. Foram apreendidos 45 fuzis AK-47 que iriam abastecer os traficantes nas favelas, no valor de R$ 1,6 milhão. Na ocasião a secretaria de Segurança informou que desde o início do anho  250 fuzis já tinham sido retirados das mãos de bandidos. “No Rio de Janeiro, traficante só tira onda de macho por conta disso, de ter o fuzil. A hora que tiver uma pistola, ele vai dar meia volta”, comentou o titular da Segurança na ocasião, delegado Roberto Sá, repetindo com outras palavras as observações de Saviano acerca da portabilidade do AK-47.

Pelas contas da polícia do Rio de Janeiro, cada fuzil vendido aos traficantes no mercado negro teria um custo de 20 mil reais (em torno de 6,6 mil dólares, valor de 2017). Saviano escreve em Gomorra que o valor de um AK-47 está diretamente ligado à violação dos direitos humanos. Quanto mais barato o fuzil, pior são as condições de civilidade e cidadania.

Preocupado com a disseminação dessas armas de alta letalidade, contrabandeadas principalmente do Paraguai e da Bolívia, o governo brasileiro sancionou a Lei Nº 13.497 (26/10/2017) que torna crime hediondo, com prisão imediata e sem direito à fiança, o porte ilegal de fuzis e outros armamentos restritos às áreas militares. Em junho deste ano (2025), projeto aprovado pela Câmara dos Deputados prevê o aumento da pena para até 12 anos de reclusão no caso de porte de arma de fogo de uso proibido, como os fuzis. 

Mas, o poder da Justiça, as leis e suas penalidades não parecem amedrontar os criminosos. Reportagem recente sobre a ascensão  das organizações criminosas em ambientes urbanos no Rio de Janeiro, publicada no jornal O Globo (13/7/2025), afirma que, ao contrário de outros países, o fuzil por aqui “circula livremente em áreas sobre o domínio do crime” e “virou garantia para controlar comunidades inteiras”.

 Vida sob escolta

Desde a publicação de Gomorra (2006), que desvenda o crime organizado em Nápoles, Roberto Saviano vive sob escolta policial, devido a ameaças de morte da Camorra. Em julho deste ano, a agência britânica Reuters divulgou que juízes do Tribunal de Apelações de Roma mantiveram a condenação de um ex-chefão da máfia e de seu advogado por ameaças ao jornalista.

Em outro livro, Zero Zero Zero (2013), que aponta as rotas e o tráfico de cocaína no mundo, ele registra uma dedicatória especial, logo na primeira página: “Dedico este livro a todos os carebinieri da minha escolta. Às 38 mil horas vividas juntos. E àquelas que ainda viveremos. Onde quer que seja.”

O título da obra de 400 páginas se refere à gíria pela qual os traficantes europeus se referem à cocaína de melhor qualidade. O Brasil mereceu o capítulo intitulado Caldeirão do Diabo que trata das facções criminosas brasileiras e seu histórico. Escreve Saviano: “No Brasil, a prisão é muitas vezes um escritório a partir do qual os chefes dos maiores grupos criminosos podem comandar os próprios homens dentro e fora da penitenciária sem que a sua liderança seja questionada.”

Mas, quase duas décadas depois do seu livro de estreia – que foi transportado para as telas de cinema e depois transformado em série de TV com cinco temporadas – Saviano ainda passa a maior parte de seu tempo recluso, embora escrevendo nos meios de comunicação (El Pais, The Guardian, New York Times, L’Espresso) e publicando livros, como o romance La Paranza dei Bambini (O bando dos meninos), de 2016, sobre a deliquência juvenil em Nápoles; Vieni via con me (A máquina da lama: histórias da Itália de hoje - 2012); Sono ancora vivo (Ainda estou vivo -2021) ; Falcone: Los valientes están solos (edição espanhola -2024), entre outros.

Ele diz lamentar que Gomorra, escrito quando tinha 26 anos, tenha afetado drasticamente a vida de sua família, que teve de sair de Nápoles. “Minha mãe sofreu um infarto e me senti culpado. Estava vivendo nos Estados Unidos e vim correndo porque de alguma forma me senti como se lhe tivesse dado o golpe no coração (...). Com o meu irmão, a quem amo demais, acontece o mesmo. Ele diz que está comigo, mas sei que está cansado de aguentar tanto.”

As confissões foram feitas ao jornalista Daniel Verdú, do El Pais (29.08.2017), em um parque na cidade de Bolonha, sob os olhares atentos de cinco carabiniere. Apesar do enorme sucesso internacional – Gomorra vendeu 10 milhões de exemplares em mais de 50 idiomas - Saviano admite que hoje não teria escrito o livro da mesma maneira. Jurado de morte pela Camorra, ele tem pesadelos e passa por períodos de depressão. “Eu os desafiei, estava convencido de ser invencível.”

No entanto, um ano antes desse desabafo, Saviano  escreveu La Paranza dei Bambini  que retorna ao tema da máfia napolitana, focando em um grupo de adolescentes da Camorra, em Nápoles, que circulava pelas ruas e bairros em motos, atirando com seus fuzis AK-47, amedrontando e controlando seus moradores. Um enredo que desagradou à população e aos empresários da cidade que acusaram o jornalista de criminalizar Nápoles e espalhar para o mundo uma imagem negativa do lugar.

Porém, o livro se baseia em fatos reais, a partir de uma investigação desenvolvida pelos promotores antimáfia Henry Woodstock e Francesco De Falco e que culminou, em 2015, com a prisão de dezenas de pessoas. Assim, mesmo sob protestos e ameaças, Saviano não tem como excluir o AK-47 de sua literatura. O que lembra uma situação semelhante tendo o Rio de Janeiro como cenário. Desta vez atingindo o premiado cineasta José Padilha. Seus filmes Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 – Agora o inimigo é outro (2010) que tratam das relações promíscuas entre policiais, traficantes e políticos, e onde não faltam AK-47, o levaram a sair do Brasil, em 2015, depois de se sentir ameaçado. Ele reside, desde então, em Los Angeles, na Califórnia.  

Arma de atentados e guerrilha

O AK-47 também atraiu a atenção de dois jornalistas americanos que se debruçaram sobre o tema: Larry Kahaner, que publicou em 2006 o livro AK-47, a Arma Que Transformou a Guerra (na edição em português), e CJ Chivers, ex-correspondente de guerra. Seu livro The Gun: The AK-47 and the Evolution of War é de 2010.

 Escrevendo para o jornal The New York Times, Chivers lembra que o AK-47 é pivô de crimes espetaculares que impactaram o mundo. “A lista remonta há décadas: a morte dos atletas israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972; a tomada de uma escola em Beslan, Rússia, em 2004; os ataques em Mumbai, Índia, em 2008; o ataque a um shopping center em Nairóbi”, destaca o jornalista. Ele afirma que a disseminação do fuzil mudou a guerra moderna. “À medida que os governos comunistas repassavam os kalashnikovs para aliados e terceiros, os rifles assumiram um papel inesperado: niveladores de campo de batalha.”

Entre os fatos históricos nos quais o AK-47 teve papel preponderante estão a Guerra do Vietnã, com os guerrilheiros vietcongues utilizando a arma na selva contra os americanos. “Guerrilheiros armados com kalashnikovs lutavam de igual para igual contra soldados de infantaria de uma superpotência”, assinala Chivers. Por sua vez, nos anos 1980, forças americanas e paquistanesas treinavam combatentes islâmicos a usar o AK-47 na guerra para expulsar as forças soviéticas do Afeganistão.

No campo do terrorismo moderno, coube ao AK-47 inaugurar “a era do terrorismo kalashnikov”.  Chievers cita como exemplo o atentado à Vila Olímpica de Munique onde estava a equipe israelense, assistido globalmente, ao vivo, pela TV. Alerta que os governos têm feito pouco para deter a proliferação desse tipo de arma, que escapou do controle das autoridades constituídas. “O kalasnikov deixou de ser uma ferramenta do estado ou da ideologia comunista. Criado para fortalecer estados autoritários, o AK-47 ganhou credibilidade fora da lei se transformando em símbolo de revolta, contragolpe, crime e jihad islâmico”, conclui.

O exemplo mais recente do uso do AK-47 foi o ataque do grupo terrorista Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023, com 1.200 mortos e 251 sequestrados levados como reféns para Gaza. A plataforma de notícias CNN entrevistou especialistas em armamentos que identificaram o fuzil como uma das armas utilizadas no atentado (‘Foguetes caseiros e AK-47 modificados: uma visão do arsenal mortal do Hamas’, em 14.10.2023).

“Letal, fácil de usar e de encontrar, é o fuzil de assalto preferido dos grupos militantes” afirma a reportagem sobre o AK-47. Especialistas observam que muitos fuzis foram modificados, incluindo a remoção de equipamentos para tornar as armas mais leves e fáceis de usar.

A CNN também destaca um vídeo publicado no canal do Hamas no Telegram, onde terroristas invadem um posto militar israelense, a maioria portando fuzis AK-47. Segundo a matéria, eles disparam contra um tanque israelense e mantêm civis sob a mira de armas.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Livro sobre a maçonaria que adiantava fim da globalização ainda atrai leitores

/ Sheila Sacks /

No final de abril, após o falecimento do papa Francisco e poucos dias antes do início do conclave para a eleição do novo pontífice, a mídia mundial começou a divulgar os nomes dos candidatos cotados para o cargo, segundo especialistas do tema.

Dentre os nomes aventados para a sucessão, os de dois cardeais italianos foram dos mais mencionado em várias listas: Pietro Parolin, secretário de estado do Vaticano, e Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha. Nos resumos de suas biografias, divulgados pela mídia e que correram o mundo, são citadas as “relações amigáveis” dos então “"papabili" com o filósofo e Grão-Mestre do Grande Oriente da Itália, Giuliano Di Bernardo ( que ajudou Parolin, em 2019, ‘a resolver um problema que teve com o governo chinês’) e, tratando-se de Zuppi, sua amizade com o escritor, filósofo e Gão-Mestre  do Grande Oriente Democrático, Gioele Magaldi, autor de “Massoni. Società a responsabilità illimitata. La scoperta delle Ur-Lodges” .

Publicado em 2014, o livro causou polêmica e questionamentos na Itália com revelações sobre a maçonaria, suas ligações com líderes mundiais e o fim do pacto pela globalização. Mais de uma década depois, a obra ainda provoca curiosidade nos leitores que postam comentários e avaliações, em sua maioria positivos, nas diversas plataformas internacionais de venda de livros ou de e-books. 

De acordo com a plataforma de notícias UOL, Magaldi afirmou, em 2010, que “Zuppi conhecia o mundo do Vaticano bem e que o estimava”. Também destacou que “ele seria um excelente Papa" (‘Conclave: conheça os cardeais considerados favoritos ao posto de papa’, em 27/4/2025). Relato semelhante  também integra a biografia de Zuppi divulgada pela plataforma on-line do projeto The College of Cardinals Report, formada por jornalistas católicos, e está registrado na página da Wikipedia, que cita como fonte uma entrevista de Magaldi à agência de notícias italiana  Adnkronos.

Livro revela poder das superlojas

Traduzido para o espanhol em 2017 (Masones: Todos sus secretos al descubierto),  o livro teve a parceria da escritora e jornalista política  Laura Maragnani, autora de dezenas de artigos publicados pelas revistas italianas Panorama e Europeo.

Face às revelações explosivas, Magaldi conta que lhe foi oferecido dinheiro e cargos para que não publicasse o livro. Também sofreu ameaças, mas, segundo ele, “diante de um mundo mais brutal e sanguinário”, achou necessário divulgar a sua pesquisa. Na opinião de Magaldi, a única ideologia ainda não totalmente implantada no planeta é justamente a democracia.

Com 672 páginas, a obra expõe a existência de um nível superior de elite internacional maçônica, abrigada em 36 superlojas  - as ‘ur-lodges’ - secretas e transnacionais,  divididas radicalmente em conservadoras e progressistas, que reúnem maçons e líderes não iniciados, dos mais altos escalões da política mundial, das finanças, da mídia, das forças armadas, serviços secretos, juízes, intelectuais, artistas e lideranças eclesiásticas.

Essas centenas de personalidades conhecidas mundialmente, dos mais variados matizes políticos e até fundamentalistas, se encontram nesses santuários secretos que Magaldi também nomina, um a um, e atuam independentemente de seus próprios países em qualquer tomada de decisão relacionada a questões globais.  Conforme o autor, as superlojas ditam as suas condições às estruturas subjacentes de instituições como a União Europeia, o FMI, Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e o Clube Bilderberg , entre outros.

São esses núcleos que influenciam fortemente os principais acontecimentos geopolíticos e a ordem financeira mundial, aí compreendendo as crises econômicas, as guerras, revoluções políticas e até ataques terroristas. Magaldi afirma que as “ur-lodges” foram as verdadeiras protagonistas da história do século 20 e prosseguem em sua trajetória dando as cartas subterraneamente no cenário global. Políticas públicas e programas econômicos regionais são direcionados e monitorados por essa rede transnacional de poder, afirma o autor.

Abrindo parênteses para assinalar que, tratando-se de comércio global, a era Trump reforça a sensação de que a globalização está tendo uma ruptura visível. Em 2020, prenunciando essa nova fase, editorial do jornal italiano Corriere della Sera, já advertia,  em sua edição de de 1/11: “Se il presidente Trump vince di nuovo significa che gli Stati Uniti sono cambiati e gli amici dovranno prenderne atto (‘Se o presidente Trump vencer novamente, significa que os Estados Unidos mudaram e seus amigos terão que tomar nota’, em tradução livre). Trump perdeu em 2021, mas ganhou em 2025.

Pacto pela globalização

Magaldi escreve que a primeira superloja, a “Thomas Paine”, foi instalada em Londres, em 1849, e depois muitas foram criadas a partir do término da segunda Grande Guerra (1939-1945).

Em 1981, e por vinte anos, as “ur-lodges”  promoveram uma paz interna de onde surgiu a globalização. Esse elo foi rompido com os atentados terroristas em 11 de setembro de 2001, que atingiram as torres gêmeas do World Trade Center (WTC), em Nova York, e o prédio do Pentágono, sede do Departamento de Defesa dos EUA, em Washington. Desde então, adverte Magaldi, se trava uma guerra subterrânea que mexe com o destino do Ocidente. Uma das superlojas, assinalada pelo autor como “a loja da vingança e do sangue”  é a “Hathor Pentalpha”, da qual fazia parte Bin Laden, morto em 2011. Grupos terroristas como a Al-Qaeda e ISIS (Estado Islâmico), e suas ligações com as superlojas são citados no livro.

O autor também critica a mídia que, no geral, confunde as causas com os efeitos ou se concentra em fatos secundários, mirando grupos e conglomerados econômicos, dissimulando um cenário que não é o real. Daí a publicação do livro, segundo Magaldi, centrado nas superlojas e na dinâmica de suas articulações e ações por trás do renascimento da Europa, depois da 2ª Grande Guerra, chegando aos escabrosos e significativos eventos da década inicial do século 21, como atentados terroristas e guerras localizadas.

Acesso aos arquivos

Durante quatro anos Magaldi pesquisou e analisou seis mil documentos e arquivos originários dessas ”ur-lodges” aos quais teve acesso, em países diversos, com o apoio de quatro eminentes protagonistas do establishment maçônico mundial que permanecem ocultos no livro.  Para garantia pessoal, cópias desse material compilado e fotografado pelo autor foram colocadas sob a custódia de advogados em Londres, Paris e Nova York.

No livro, Magaldi aborda o “back office” das superlojas nos diferentes eventos mundiais dos últimos trinta anos do século 20, como a liquidação da União Soviética, a integração política e econômica da Europa, a reunificação da Alemanha, a ascensão de Margareth Thatcher no Reino Unido e o fim da Operação Condor com a democratização da Argentina. Também cita o atentado ao papa João Paulo II em 1981, na Praça São Pedro, no Vaticano.

No que toca ao conflito de Israel com os palestinos, ele escreve que a solução se dará à medida que expoentes moderados dos grupos Al-Fatah e da OLP se integrem aos círculos maçônicos internacionais. A elite árabe também faz parte das superlojas, escreve  Magaldi, com citações a príncipes sauditas, líderes iranianos, o sultão de Omã e os emires do Bahrein e do Catar.

Na lista dos líderes mundiais vivos integrantes das superlojas estão Emmanuel Macron,  Barack Obama, Vladimir Putin, Angela Merkel, Christine Lagarde, George  W. Bush, Bill Clinton, Dick Cheney, Tony Blair, Condoleezza Rice, Nicolas Sarkozy, François Hollande, Tayyip  Erdoğan e Bill Gates,  entre tantos outros citados na obra.

Em relação aos que já morreram, estão listados Silvio Berlusconi, John Kennedy, Martin Luther King, papa João XXIII, Nelson Mandela, Antônio Salazar, Franklin Roosevelt, Deng Xiaoping, David Rockefeller,  Gerald Ford, Henry Kissinger, George Bush (fundador da superloja ‘Hathor Pentalpha’), Abu Bakr Al- Baghdadi, Salvador Allende, Josef Stalin, Isaac Rabin, Golda Meir, Vladimir Lenin, Augusto Pinochet, Tancredo Neves, Raúl Alfosín, Hugo Chávez, Gianni Agnelli, Margareth Thatcher, Zygmunt Bauman, Moshe Dayan, John Keynes e Mahatma Gandhi, entre outros.

Figuras históricas também são lembradas como Simon Bolívar, José de San Martín, José Martí e Guiseppe Garibaldi, maçons que mudaram a trajetória dos países da América Latina.

O “Papa Bom”

Conhecido como o ‘Papa Bom’, pela simplicidade, humildade e calor humano, João XXIII teve um pontificado breve, de 1958 a 1963. Nascido na província de Bérgamo, no norte da Itália, Magaldi  relata que como arcebispo em Istambul, Angelo Giuseppe Roncalli teve sua primeira iniciação maçônica na “ur-lodge Ghedullah”, em 1940, comprometida com o estudo da Cabalá, a milenar tradição mística judaica.

Em 1949, em Paris, recebeu sua segunda iniciação na “ur-lodge” progressista “Montesquieu”. Em 1950, foi iniciado oficialmente como irmão na Ordem Rosacruz.

Os dados detalhados  sobre essas afirmações se baseiam em uma ampla documentação arquivada na superloja “Ghedullah”. De acordo com Magaldi, a eleição de Roncalli como papa, em 28 de outubro de 1958, foi comemorada pelos maçons, individualmente, e pelas superlojas.

Encontro final

Em uma das resenhas sobre o livro de Magaldi, assinada por Marco Moiso, do círculo do autor, fica-se sabendo que o último capítulo da obra relata o encontro de quatro cardeais maçônicos que não têm seus nomes revelados.

Eles estão à vontade para falar das experiências vividas e expor o papel catalisador dessas superlojas no cenário mundial. São maçons de idade avançada, muitos ricos, aristocratas, fundadores de várias “ur-lodges”. Um deles com raízes americanas e britânicas, um franco-alemão, um árabe-islâmico e outro do Extremo Oriente.

Entre os vários temas, os quatro conversam sobre o pacto que uniu as superlojas pela globalização. E o representante americano da maçonaria neoaristocrática, expõe, sem papas na língua, as táticas adotadas ao longo do tempo para impor padrões de uniformização global nas políticas econômicas dos países.

Diz ele, textualmente: “Para fazer as pessoas aceitarem essas reformas idiotas e impopulares, você deve assustá-las como faria com as crianças”. Uma afirmação despida de qualquer disfarce moral e que faz sentido diante da “network” draconiana de programas governamentais econômicos impostos às populações globalizadas que restringem ganhos sociais, independente dos países que os adotam.

Em 2015, Magaldi fundou o Movimento Roosevelt na cidade de Perugia, com a participação de 500 membros. A organização, em sua página na Internet, afirma que defende uma sociedade justa contra “impulsos neo-oligárquicos comprometidos com a redução dos direitos humanos, do estado de bem-estar social e da democracia”. Em seu plano de ação, o Movimento defende uma sociedade social-liberal, de acordo com as quatro liberdades enunciadas por Franklin Delano Roosevelt, presidente americano de 1933 a 1945, em seu discurso sobre o após-guerra: liberdade de expressão, liberdade religiosa, liberdade de viver sem penúria e liberdade de viver sem medo.  


quinta-feira, 26 de junho de 2025

América Latina: Assassinatos ao vivo de influenciadores é desafio para redes sociais

/  Sheila Sacks /

Em meio à análise do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as responsabilidades das redes sociais, os recentes assassinatos ao vivo de influenciadores digitais em países da América Latina, ocorridos em maio e junho, chamaram à atenção do jornal espanhol El Pais, que reportou o fato em sua edição on-line (23/6), destacando que as mortes ocorreram durante transmissões na rede TikTok.

Os três influenciadores eram jovens, um homem e duas mulheres, com milhares de seguidores, residindo na Venezuela, México e Colômbia, respectivamente. As circunstâncias das execuções, em transmissões ao vivo, indicam uma espécie de recado afrontoso dos criminosos aos seguidores das redes sociais e, principalmente, à sociedade em geral.

Ou seja, ninguém está a salvo, literalmente, de ser morto fazendo uma Live. Relativizar a situação considerando-a como fatalidade, vingança pessoal, homicídio ou feminicídio, dentro de um contexto de normalidade, é fechar os olhos para um fenômeno aterrador. Igualmente tachar o ocorrido como “ossos do ofício” de quem se propõe a ser influenciador, é a surrada saída fácil de  culpabilizar a vítima e limitar as investigações.

Terroristas também assassinavam ao vivo

Certamente, as redes sociais e as sociedades estão diante de um difícil desafio porque os assassinatos envolvem um tipo de criminalidade exibicionista e ultrajante em seus métodos selvagens. Só para lembrar que matar ao vivo utilizando um meio digital não é novidade. O grupo terrorista Al-Qaeda, de Bin Laden, já praticava esse crime no início do século 21, com alegações ideológicas e religiosas. 

Foi assim com relação ao jornalista americano Daniel Pearl (38 anos), do Wall Street Journal, sequestrado no Paquistão onde estava a trabalho, decapitado ao vivo em transmissão pela Internet e TV, em 2002. E, dois anos depois, em idêntico procedimento, com o técnico de comunicações Nicholas Berg, de 26 anos, também americano trabalhando no Iraque, que foi decapitado em vídeo assistido por milhões de pessoas em todo o mundo. Ambos eram judeus e, portanto, o recado dos terroristas foi duplo, abrangendo à população dos Estados Unidos e às comunidades judaicas.

Influenciadores agora são as vítimas

Com 76 mil seguidores, Gabriel Jesús Sarmiento Rodríguez gravou seu próprio assassinato quando homens armados invadiram sua casa em Aragua, na Venezuela e o mataram a tiros (Hombres armados asesinan a un ‘tiktoker’ venezolano durante una transmisión).

 Na gravação, segundo o jornal, “os gritos de uma mulher clamando por socorro podem ser ouvidos enquanto Sarmiento pede ajuda aos oficiais do Sebin (Serviço de Inteligência da Venezuela), repetindo várias vezes o endereço de sua casa”. Com 25 anos, ele denunciava nas redes sociais autoridades públicas, policiais e integrantes de gangues por corrupção e extorsão.

No México, a influenciadora Valeria Márquez, de 23 anos, com 100 mil seguidores, foi assassinada momentos antes de relatar em vídeo que iria receber uma entrega. Modelo e dona de um salão de beleza em Jalisco, ela foi morta a tiros pelo suposto entregador em seu local de trabalho. Suas postagens incluíam fotos usando roupas luxuosas ou no interior de iates e restaurantes. Segundo informação de uma amiga, Valeria sempre recebia presentes enviados ao salão e naquele dia, antes de ser baleada, lhe foi entregue uma sacola de uma rede de cafeterias e um bicho de pelúcia.

Também assassinada a tiros em frente a sua casa ao receber uma caixa de chocolates de um falso entregador, a influenciadora e modelo colombiana María José Estupiñán, conhecida como Mona, tinha 22 anos e mais de 55 mil seguidores. Ela residia na cidade de Cúcuta, no norte da Colômbia, e o crime ocorreu dois dias depois da morte da mexicana. Uma câmera de vídeo capturou o assassino correndo após o ataque e a voz desesperada da mãe da vítima ao vê-la caída no chão.

As execuções estão sendo investigadas pelas polícias locais como homicídio, no caso de Gabriel Jesús, e feminicídio em relação à Valéria e María José, já que ambas tinham contenciosos com seus ex-parceiros.

Influenciadores ou criadores de conteúdo?

No Brasil, influenciadores digitais já denunciaram perseguição, ameaças de morte e ataques de ódio. Em uma reportagem de 2024, a plataforma UOL divulgou que a estimativa é que existam 10 milhões de influenciadores no país. A saturação do mercado, com mais influenciadores do que marcas para promover, vem mudando o perfil desses profissionais. Agora muitos se denominam criadores de conteúdo e isso significa, muitas vezes, o envolvimento em “campanhas publicitárias que incentivam serviços ilegais ou controversos, como produtos inexistentes, esquemas de pirâmide ou apostas online”, observa a matéria do UOL.

Acerca da responsabilidade civil dos influenciadores digitais pela sua capacidade de indicar produtos e serviços de consumo, exercer grande poder de persuasão e promover mudanças comportamentais entre seus seguidores, especialistas em Direito consideram que para salvaguardar tais relações devem ser considerados aspectos legais do Código Civil; do Código de Defesa do Consumidor (influenciador como fornecedor de produto ou serviço); da legislação do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), e do Marco Civil da Internet, estabelecido pela Lei nº 12.965/2014.

Um negócio de bilhões

De acordo com o relatório de referência Influencer Marketing Benchmark Report 2025, divulgado em abril pela plataforma Influencer Marketing Hub, no ano passado o marketing de influência impulsionou as mídias sociais a se tornaram o maior canal de publicidade do mundo, ultrapassando a busca paga. Em 2025, a perspectiva é de que o setor deva atingir US$ 32,55 bilhões em tamanho de mercado global, uma taxa de crescimento anual de mais de 30%, a partir de 2014, quando o tamanho do mercado do marketing de influência era estimado em US$ 1,4 bilhão.

O relatório também registra que a transmissão ao vivo surge como a principal estratégia de conteúdo e que o Brasil garante 15,8% de participação como líder global em influenciadores do Instagram.

  

terça-feira, 3 de junho de 2025

Papa Leão XIV quer fortalecer o diálogo inter-religioso e envia carta a rabinos

/  Sheila Sacks  /

Em carta ao rabino americano Noam Marans, datada de 8 de maio, dia de sua eleição como pontífice, o papa Leão XIV expressou sua intenção de fortalecer os laços da Igreja Católica com a comunidade judaica.

Marans é diretor de Assuntos Inter-religiosos do Comitê Judaico Americano (AJC, na sigla em inglês) e esteve com o novo papa no Vaticano, em 19 de maio, um dia depois de sua posse.

Na mensagem, o papa escreveu: “Confiando na assistência do Todo-Poderoso, comprometo-me a continuar e fortalecer o diálogo e a cooperação da Igreja com o povo judeu no espírito da declaração do Concílio Vaticano II Nostra Aetate”.

Igual mensagem o novo papa enviou para ao rabino-chefe de Roma, Ricardo Di Segni, comunicando sua eleição como novo pontífice e se comprometendo a fortalecer os laços entre as duas religiões, citando também a declaração conciliar Nostra Aetate.

Promulgada em 28 de outubro de 1965, sob o pontificado do papa Paulo VI, Nostra Aetate é um documento oficial que reformulou inteiramente o relacionamento da Igreja com a religião judaica. Otimista, Marans considerou um bom presságio para a relação entre católicos e judeus a eleição de um papa nascido nos Estados Unidos. Ele lembrou que o sucesso das relações católico-judaicas pós Nostra Aetate “é demonstrado mais claramente nos Estados Unidos do que em qualquer outro lugar”.

Em uma mesa redonda com jornalistas, ele falou da importância e do significado da iniciativa do papa que demonstrou uma atitude positiva quanto a essa questão logo no início de seu papado, “e não três anos depois, o que seria outra coisa”, segundo a sua opinião. O rabino informou ainda que recebeu uma carta personalizada do papa convidando-o para a missa de posse papal.

As informações foram divulgadas pelo site católico em inglês Crux (22/5/2025), sediado no Colorado, especializada em notícias sobre o Vaticano e a Igreja Católica.

Roma judaica

O tema também teve destaque no site Angelus, da comunidade católica de Los Angeles, que já a partir do título “Papa promete diálogo fortalecido com os judeus” reforça a disposição do papa Leão XIV para o diálogo com as lideranças judaicas (em 13/5/2025).

A matéria foca, essencialmente, na comunidade judaica de Roma e revela que o Leão XIV enviou uma mensagem pessoal ao rabino-chefe de Roma, Ricardo Di Segni, comunicando sua eleição como novo pontífice e se comprometendo a fortalecer os laços entre as duas religiões. Di Segni esteve presente no Vaticano na inauguração do pontificado, em 18 de maio, e disse que “acolheu com satisfação e gratidão as palavras que lhe foram dirigidas pelo novo papa.”

A comunidade judaica de Roma é a mais antiga do mundo ocidental, remontando ao século II, antes da Era Comum. Cerca de 27.300 mil judeus vivem na Itália, a maioria (15 mil) em Roma, de acordo com União da Comunidade Judaica Italiana (UCEI, na sigla em italiano).

A reportagem também lembra que em 2010, quando o Papa Bento XVI visitou a sinagoga de Roma, a equipe do Museu Judaico da cidade apresentou uma exposição de painéis decorativos feitos por artistas judeus dos séculos 17 e 18 que marcavam a inauguração dos pontificados dos papas Clemente XII, Clemente XIII, Clemente XIV e Pio VI.

Raízes espirituais

Em Israel, o jornal Jerusalem Post, em sua plataforma on-line, publicou um artigo assinado pelo embaixador Ilan Mor (24.5/2025), enaltecendo a vontade do novo papa de estreitar as relações com os judeus. Comentando a carta de Leão XIV ao rabino americano Mars, o embaixador escreve: “Esta carta inscreve-se na tradição de um ponto de virada histórico iniciado com a Nostra Aetate. Neste documento histórico, a Igreja Católica rejeitou explicitamente, pela primeira vez, a doutrina da culpa coletiva judaica pela crucificação de Jesus. Também enfatizou as profundas raízes espirituais do cristianismo no judaísmo e apelou ao diálogo respeitoso, tornando-se um divisor de águas na relação entre as duas religiões.”

Para o embaixador, o documento papal de 1965 não foi uma reavaliação apenas teológica, mas também uma resposta moral ao Holocausto e à necessidade de confrontar a culpa histórica, preparando o cenário para décadas de reaproximação.

O texto ressalta o estabelecimento de relações diplomáticas entre o Vaticano e Israel em 1993, a visita histórica do Papa João Paulo II a Israel, em 2000, e as visitas subsequentes de seus sucessores que aprofundaram esse relacionamento. Também cita outro trecho da carta do papa.  “Nestes tempos desafiadores, nós, como comunidades de fé, somos especialmente chamados a construir pontes em vez de erguer muros. Nossa herança compartilhada nos obriga ao respeito mútuo e ao diálogo sincero.”

Mor, que foi embaixador de Israel na Hungria e na Croácia, disse que o novo papa já anunciou a criação de uma comissão conjunta para desenvolver medidas concretas contra o aumento global do antissemitismo. Nos festejos de sua posse se encontrou com o presidente Isaac Herzog que o convidou para visitar Israel.

De acordo com o embaixador, tendo nascido e criado nos Estados Unidos, “uma sociedade onde a diversidade religiosa é uma realidade”, o novo papa entende o diálogo inter-religioso não como uma exceção, mas como a norma. “Essa perspectiva pode ajudar a aprofundar o intercâmbio judaico-católico em um mundo cada vez mais polarizado – não como um exercício teológico abstrato, mas como uma missão compartilhada no combate ao antissemitismo, ao racismo e à intolerância religiosa.”

Filho de sobreviventes do Holocausto, Mor, de 70 anos, transcreve as palavras de Leão XIV, sublinhando que “de Roma, um sinal foi enviado, não apenas ao mundo judaico, mas a todos os que acreditam no poder do diálogo, quando há vontade e compreensão”. Diz o papa: “A dignidade humana é indivisível. Quem denigre uma pessoa por causa de sua religião, origem ou crenças viola princípios fundamentais que são sagrados tanto para cristãos quanto para judeus.”

Comunidades unidas

Presente no primeiro encontro do novo papa com representantes de outras religiões, realizado no Vaticano (19/5), o rabino Mark Dratch, presidente do Comitê Judaico Internacional para Consultas Inter-religiosas (IJCIC, na sigla em inglês), se mostrou confiante no pontificado de Leão XIV. A plataforma Vaticano News, portal oficial de notícias da Santa Sé, reportou a audiência e as palavras do rabino. “Estamos ansiosos para desenvolver nosso relacionamento com o Papa Leão e fortalecer os laços entre as comunidades judaicas e católicas, não apenas no nível da liderança, mas também entre os fiéis de nossas congregações, para que as pessoas em nossas comunidades se conheçam e se apreciem mutuamente”, falou Dratch.

O religioso lembrou ainda que “desde a Nostra Aetate, a relação entre o mundo católico e o judaico evoluiu positivamente em várias direções, em termos de fraternidade, respeito e compreensão mútua”.

Por fim, mostra-se promissor, além de solidário e fraterno, o discurso de Leão XIV na celebração inaugural do meu ministério como Bispo de Roma, ao se dirigir aos representantes de outras igrejas e de outras religiões, conforme transcrição divulgada pelo Vaticano. O novo papa dirigiu uma saudação especial a quem chamou “de nossos irmãos e irmãs judeus”. Disse o papa: “Devido às raízes judaicas do cristianismo, todos os cristãos têm uma relação especial com o judaísmo. A Declaração conciliar Nostra Aetate sublinha a grandeza do patrimônio espiritual partilhado por cristãos e judeus, encorajando o conhecimento e a estima recíprocos. O diálogo teológico entre cristãos e judeus, que é sempre importante, eu tomo-o muito a peito. Mesmo nestes tempos difíceis, marcados por conflitos e incompreensões, é necessário prosseguir com coragem este nosso precioso diálogo.”