Do livro “Escritos
revelados”, de 2009, uma pequena história de encontros e desencontros ocorridos
ao longo de mais de três décadas. Semelhanças com fatos e personagens
descritos são meras coincidências.
Araguaia, meu amor
Por Sheila Sacks
(conto vencedor do Concurso literário Moacyr Scliar 2009, do Centro
Cultural Mordechai Anilevitch do Rio de Janeiro )
O e-mail dizia pouco: “Cara Aniela. Foi bom revê-la. Me perdoe os dez
anos de silêncio. Lino.” O homem de tez morena, cabelo grisalho e porte
atlético fechou o notebook. A mensagem o remetia a um tempo que teimava em
voltar nos momentos mais inoportunos. Em poucas horas estaria com a família no
casamento da sobrinha, na aprazível costa espanhola. Tão diferente e tão longe
daquelas matas molhadas e do chão de barro de Xambioá. Uma vila sertaneja, nos
idos de 1974, que na semana do carnaval mudava de humor e de roupa, em animados
bailes e blocos de rua.
E foi naqueles dias perdidos no tempo que o tenente Lino conheceu
Aniela, menina de 17 anos, franzina, cabelo escorrido, rosto de anjo, gestos
delicados e voz baixa. Ela chegara à localidade para passar o carnaval com os
avós, o seu Zé e dona Maria, donos do armazém-bar que vendia fiado para o povo
da região. Tenente Lino tinha 30 anos e estava noivo de uma professora no Rio
de Janeiro. Mas ficou fascinado por Aniela logo que a viu. Os avós tentaram
escondê-la, mas o tenente ia ao armazém várias vezes ao dia e se convidou para
jantar na casa do seu Zé na terça-feira de carnaval.

2
Em Jerusalém a noite quente e abafada levou Aniela a abrir a janela. Em
pé olhava o céu escuro, sem estrelas, que ameaçava desabar em sua cabeça. Há
pouco havia recebido a mensagem do general em meio a um repentino mal-estar. A
ansiedade que vez ou outra comprimia seu peito como uma dura couraça mostrou as
garras e a fez ofegar. Lembrou do evento, há quase dez anos, no limiar do
século 21, e do homem empertigado a sua frente, meia-idade, rosto magro, com
sulcos profundos na testa e na face. A intensidade daquele olhar não deixava
dúvidas quanto a descoberta. Por um momento Aniela sentiu vergonha dos cabelos
tingidos e da maquiagem esmerada. Em um gesto mecânico de cumprimento suas mãos
se tocaram e antes que alguma conversa pudesse ser iniciada ela pediu licença e
se afastou.
3
No amplo salão da representação diplomática o grupo de militares se
despedia de seus anfitriões após alguns dias de visita à feira de armamentos em
Tel Aviv. O chefe da delegação, um austero coronel do exército, mostrava-se
impaciente desde que a assessora de um dos adidos sul-americanos presentes à
recepção passou por ele apressada. A mulher esplêndida, de pernas bem torneadas
e vestido justo orientava os garçons, do outro lado da sala. Pouco antes, ao
ser apresentada ao coronel, ela pareceu constrangida e não conversou. Apartou-se
do grupo e desapareceu por um das portas do salão. Agora o militar percebia que
ela vinha em sua direção e estranhamente a vista começou a embaçar.
Embaralhando sentidos e sentimentos se deu conta que Aniela sorria, rosto de
menina, pés soltos nas gastas sandálias japonesas, cabelos escorridos em um
mal-amarrado rabo-de-cavalo. Respirou fundo e sentiu um fio de suor resvalar
pela nuca. Bem perto, seus corpos quase se tocando, ela estendeu um papelzinho
dobrado. Surpreso, magoado, desamparado, não se conteve e sussurrou: Aniela do
Araguaia.
4

Assim, quando Wilsão pediu a Aniela para que o ajudasse naquela missão,
a resposta veio imediata. Sua idolatria juvenil por Che e Fidel e o gosto pela
aventura levaram Aniela a mentir. Contou para a mãe que iria trabalhar como
monitora em uma colônia de férias em Sacra Família e partiu para a região do
Araguaia.
5
Sob o codinome Selma foi apresentada ao seu Zé e dona Maria, donos de
uma vendinha naquele fim de mundo. Trazia um documento em linguagem cifrada
para ser entregue ao grupo que lutava na selva. O trato era ficar alguns dias
na casa do comerciante, aguardando a resposta, e depois sumir. Porém o
tenente bonitão do destacamento da região não arredava o pé das redondezas do
balcão. Puxava conversa com Selma a troco de nada. Ao seu Zé elogiou a beleza e
a doçura de Selma, sendo informado que a jovem era a tal neta do Espírito Santo
que chegou de surpresa para visitá-lo. Uma noite, o tenente apareceu na hora do
jantar. A casa ficava nos fundos do armazém e quando a figura alta, fardada,
assomou na varanda, todos engoliram em seco. Mas, sorridente, o tenente pediu
licença para participar da janta, pegou o banquinho na cozinha e se sentou ao
lado de Selma. Nestas alturas, os dois já estavam apaixonados.
Em cinco dias veio a resposta e Selma foi embora. Horas antes, o tenente deu um número de telefone e pediu para que Selma ligasse. Estaria no Rio em seis meses para uma licença. Selma prometeu telefonar. Na despedida chorou ao abraçar seu Zé e dona Maria. Semanas depois, em conversa com Wilsão em uma rua da Tijuca vem a saber da morte do casal de Xambioá, encontrado amordaçado e com tiros na cabeça. Preocupado, Wilsão diz que vai fugir do país e aconselha Aniela a fazer o mesmo.
6
A ordem superior era poupar os adolescentes. O tenente Lino pediu a seu
informante para que seguisse os passos de Aniela no Rio. Após trinta dias,
chegou o primeiro relatório: “A pessoa em questão pertence a um grupo de judeus
que usam camisas de brim azul e se reúnem em uma casa de Botafogo. Fiz amizade
com o vigia e soube que são comunas, mas não atuam no Brasil. Todo ano um
punhado deles vai embora para a Palestina, para viver e trabalhar em fazendas
coletivas, iguais às da Cortina de Ferro. A pessoa investigada também vai
deixar o país. Em anexo estão as fotocópias dos passaportes dos comunas que vão
viajar no meio do ano.”
O tenente leu duas vezes o documento com selo de confidencial antes de
guardá-lo no cofre. Sentia-se traído pelos sentimentos. No fundo da alma tinha
a convicção de que Aniela o amava e que iria telefonar. Esperava vê-la no Rio e
talvez, com o tempo, abrir o jogo. Contar que sabia de sua missão e de sua
falsa identidade. Explicar a bobagem em que se meteu por pura infantilidade.
Os dois meses seguintes foram difíceis para o tenente. Infectado pela
malária teve que ser hospitalizado em Belém. De volta ao destacamento, um novo
relatório com carimbo de urgente já o esperava. Leu avidamente o seu conteúdo,
da primeira à última palavra: “Pegamos o Wilsão... e finalizando, os comunas
judeus estão de partida. Preciso de uma diretriz. Quais são as ordens,
tenente?”.
No dia seguinte, após uma noite mal-dormida, o tenente despachava a
resposta: “Trabalho encerrado.”
7
O casamento da sobrinha na igrejinha medieval fez a esposa do general
chorar. Padrinhos dos noivos, o enlace pegou a família de surpresa. Estudante
de artes em Paris, a jovem namorava um colega espanhol. A gravidez inesperada
acelerou a decisão de ambos de casar e conhecer a Malásia.
Depois da cerimônia, o general seguiu para a boate onde os recém-casados
foram saudados por amigos alegres e poliglotas. O som vibrante da música
empurrou os convidados para o centro da pista. O general, no canto do bar,
imaginou Aniela lendo o e-mail. Talvez em Tel Aviv, Jerusalém ou qualquer outra
cidade daquela terra estrangeira. Sentiu uma vontade incontrolável de fumar. Na
parafernália eletrônica de cores e ruídos ao seu redor, o general só ouvia
mesmo o grito da angústia e da solidão que o mantinham cativo em suas teias
satânicas. Pôs uma pastilha de hortelã na boca e saiu da boate. Lá dentro, a
música do final da década de 1970 explodia estridente, repetindo-se em um coro
de vozes cambaleantes: Please don’t go, don’t go, don’t go away, please don’t
go, don’t go...
Amanhecia em Jerusalém e Aniela entrou na sala de trabalho entulhada de folhetos, cartazes e recortes de jornais. Na parede, a folhinha estampava o ano 2009 em relevo. Estava sozinha e resolveu responder ao general: “Certos encontros, ainda que breves, sobrevivem ao tempo e a lógica. Tive a certeza disso na festa do consulado. Compreendi que a minha vida sempre esteve em suas mãos, general Lino Sotero. No Araguaia, quando não me executou. No Rio, quando permitiu a minha partida. Em Tel Aviv, quando percebi tudo isso. De alguma forma devo a você a minha história.
”Yafa Navon, da ONG World No Wars – Mundo sem Guerras.
P.S. Ainda guardo o número de telefone. Que bobagem!