/ Sheila Sacks /
Quando
papai comprou um Plymouth de duas portas, a minha vida mudou. Eu
tinha sete anos e morávamos em um ponto esquecido à esquerda da linha férrea
que cortava a zona norte do Rio. O carro seminovo tinha cromados reluzentes,
pneus de bandas brancas e assentos de couro marfim. Papai mostrou a novidade em
uma tarde de primavera e mamãe, radiante, beijou-o no meio da calçada. No
domingo, de vestido florido, batom vermelho e sandálias de solado alto, ela
anunciou que íamos ao Cais do Porto, no centro. Felizes, meu irmão e eu colamos
os narizes na janela do veículo que avançava pelas ruas margeadas pelo casario
urbano.
No cais, o navio enorme causava
espanto. Sobreviventes da Guerra, dois primos de papai chegavam da
Europa. Os rapazes desembarcaram do imenso cargueiro equilibrando-se em uma
estreita escada de corda. Usavam casacos pesados e pareciam assustados. Papai
abraçou-os e sussurrou qualquer coisa em iídiche
(dialeto falado pelos judeus na Europa). Mamãe traduziu a saudação,
estendendo-lhes a mão. − Bem-vindos ao paraíso − disse em voz alta, despertando
a atenção das pessoas no píer.
Nos dias posteriores uma chuva
persistente entristeceu a semana. Pedi aos céus para o tempo
melhorar. Em uma manhã acordei com o sol no quintal. A claridade me
cegava, mas assim mesmo eu teimava em encarar o sol. − Vamos à praia no domingo
− exclamei confiante, enquanto mamãe bordava. − Desta vez de carro − insisti ao
perceber um olhar maroto em minha direção. Suas unhas ovaladas e perfeitas,
impecáveis no esmalte vermelho, me fascinavam. Assim como os lenços coloridos
que davam um toque cigano aos seus cabelos escuros.
Semanas depois, enchendo o baldinho de areia na praia,
escutei os primos de papai anunciarem a novidade: fariam aliá (palavra hebraica para imigração). O
recém-criado estado de Israel precisava de gente para arar a terra e jovens
para defendê-lo, justificavam. Mamãe traduzia as frases e eu
percebia o entusiasmo com que falavam sobre a gloriosa vida que teriam no novo
país. Sem me conter, imitei minha mãe abrindo os braços para o mar
que espumava sobre a areia. − Mas o paraíso é aqui ! − disparei. Mas os jovens
pareciam não entender, abrigados sob o guarda-sol de gomos coloridos. Ao meu
lado, esguia em seu maiô preto e chapelão de ráfia, mamãe sorria, balançando a
cabeça de modo afirmativo.
Naquele
verão de 1953, papai iniciou um novo ritual aos domingos. Acordávamos cedo,
entrávamos no carro e seguíamos para Copacabana. O prédio escondido pelos
tapumes estava sendo finalizado. Enquanto ele conferia o avanço nas obras do
futuro apartamento, ficávamos no carro. Mamãe, no banco da frente, abanava-se
com o leque japonês não escondendo a impaciência. Após uma espera que parecia
durar horas, papai surgia na calçada. Com um suspiro de alívio, mamãe saltava
fora do carro e lá íamos nós caminhando pela rua arborizada rumo à praia. − Um sonho antigo, esse de morar em
Copacabana − confidenciou mamãe ao telefone, em conversa com uma prima.
E assim foram se passando os meus
domingos. Como um pequeno milagre, o domingo de praia se incorporou
aos hábitos da família, agora instalada no novo apartamento e surpreendida pela
auspiciosa chegada de um bebê. Problemas e discussões podiam
esperar. Compromissos, visitas e encontros eram adiados. Andar pela areia
úmida, estirar os corpos ao sol e se banhar nas águas geladas redimiam as
agruras da semana. Esquecido na garagem, o carro sem serventia foi vendido. A loja de ferragens no subúrbio, o ganha-pão de papai por três
décadas, alugada ao empregado de confiança, conhecido de longa data. Para a vida prazerosa que papai imaginava,
bastavam os livros da biblioteca municipal do bairro, a praia bela e generosa e,
principalmente, a presença de mamãe. Dona de mãos de fada, cozinhava, bordava,
pintava lindas paisagens e, se isso era pouco, tinha a pele cor de
mate, olhos amendoados, um sorriso cativante e contava histórias fantásticas de
sua Romênia natal. – Bety sempre teve uma memória prodigiosa – elogiava vovó.
Muitos anos depois, no final da década de 1980, mamãe e papai ainda se sentavam na areia para ler e namorar o mar. – Bem-vindos ao paraíso – eu lembrava a frase dita há tanto tempo na beira do cais. Papai, bem disposto aos 80, e mamãe, muito ativa aos 70, sorriam e se entreolhavam imaginando, talvez, um paraíso celeste bem parecido com aquele em que viviam, com muito sol, areia e mar, e onde todos os dias seriam domingos de praia.