/ Sheila Sacks /
O ano
era 1993. O enviado do consulado olhava para a mulher a sua frente. Ela parecia
surpresa diante dos cartões-postais sobre a mesa. Minutos antes, o homem tinha
se apresentado e entregue o pacote, agora aberto revelando o conteúdo.
A senhora de olhos claros e
semblante sereno, que se identificou como dona Rosa, fez perguntas que não
foram respondidas. O funcionário também não entendia o porquê daqueles postais
estarem sendo devolvidos. A encomenda tinha sido despachada pelo governo do seu
país, cruzado o oceano como correspondência consular e, aqui, carimbado para
ser entregue em mãos. E só.
Passava
das quatro da tarde e sombras manchavam a varanda. Dona Rosa acompanhou o homem de terno largo até o
portão de saída. Há vinte anos trabalhava e morava naquela casa de idosos em um
bairro distante do centro. Um emprego que gostava. Talvez porque tivesse
crescido em uma instituição coletiva, com muita gente ao redor. Gente como a
amiga Clara, que partiu em um navio de nome italiano, dez dias depois da
Páscoa.
Os cartões-postais trazidos pelo
funcionário de poucas palavras estavam endereçados à Clara. Eram dezenas de
fotos de pontos turísticos do Rio. Anualmente, logo depois da Páscoa, Rosa
enviava um cartão para Clara. Foi o combinado. Agora os cartões estavam
estranhamente de volta a sua mesa. Sem explicação.
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Em 1953, o Lar das Crianças era uma instituição que abrigava órfãos e filhos de refugiados da 2ª Grande Guerra. Sustentado pela comunidade judaica do Rio, o Lar acolheu Clara e Rosa quando ambas tinham onze anos. Nascidas na Europa, as meninas logo se tornaram amigas. A ideia de ir embora do Rio surgiu quando Clara se deu conta de que teria poucas chances de se casar e formar uma família. Sua mãe estava internada em um manicômio e seu pai era alcoólatra. Com esses antecedentes, seria difícil arranjar um par na comunidade.
Clara tentou convencer Rosa a partir com ela. A
amiga era órfã. Os pais tinham morrido em um campo de concentração na Polônia.
Mas Rosa não acalentava grandes sonhos. O espelho e o bom senso limitavam as
suas ambições. Ficaria no Rio, trabalhando no Lar e ajudando as crianças
menores.
Dez dias depois da Páscoa, no final de abril,
Clara embarcou no navio Leonardo da Vinci para um porto da Itália. De lá
seguiria, com outros jovens, para a terra santa. Tinha dezessete anos, um rosto
bonito e o ímpeto dos que se lançam à jornada.
Sem passado e bem longe do Rio, encontraria o marido que tanto almejava.
Na véspera, Clara chorou ao tirar a foto do Pão
de Açúcar da parede, ao lado da cama. − Prometa que vai me mandar todo ano um
postal do Rio − pediu Clara à Rosa.
Já no ano seguinte, Rosa enviava uma foto do
Alto da Boa Vista. No verso escreveu: “O Rio é muito lindo! Caramba, como a
saudade dói’.
Ano após ano Rosa endereçou postais para a
terra santa com a mesma frase no verso. Era como fosse um código de paixão e
amizade. Escolhia sempre as fotos mais bonitas do Rio. Procurava nas livrarias,
bancas de jornal e até em agências de turismo. Nem o fato de Clara levar meses
para dar notícias a incomodava. A amiga estava casada com um homem de negócios e
o tempo, do lado de lá do oceano, tinha outra dimensão.
Rosa chegou a namorar um rapaz refugiado da guerra, mas o casamento não aconteceu. Muitos anos depois, consciente que de ficaria solteira para o resto da vida, foi convidada para trabalhar em uma casa de idosos. Seu bom trabalho no Lar das Crianças foi lembrado. Aceitou a tarefa com alegria. Agora cuidaria dos velhinhos.
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O ano de 1954 trouxe mudanças inesperadas. Foi
o que pensou Clara ao abrir a caixa postal e retirar o tão esperado cartão do
Rio. Era o décimo dia depois de sua primeira Páscoa na terra santa. Trabalhava
em uma base militar, porém estava irremediavelmente cega. Uma bomba tinha
explodido o jipe em que trafegava com mais três companheiros, poucos meses
depois de sua chegada. Ela sobreviveu por milagre.
Depois de recusar uma aposentadoria por invalidez, Clara aprendeu a leitura e escrita braile e retornou ao exército. Sua vida, a partir de então, estava limitada àquele posto de apoio, em algum ponto isolado do deserto. Para a psicóloga que a entrevistou, consternada com a situação, Clara respondeu simplesmente. – Com certeza não foi essa a vida que imaginei. Mas já aceitei.
Em relação à amiga Rosa, resolveu que ela
jamais saberia da tragédia. Escreveria uma carta contando que o plano de
encontrar um marido deu certo. Estava feliz casada com um rico negociante.
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Em 1999 a Páscoa trouxe melancolia à dona Rosa.
Pela primeira vez, em quarenta e cinco anos, não comprou um postal do Rio. Desde
a visita do funcionário do consulado ela tentava driblar a tristeza que se
aninhava em sua alma. Comprava os postais e ensaiava enviar à Clara. Mas, a
possibilidade de a amiga estar morta havia se transformado em certeza e os
postais se acumulavam na caixa de papelão, embaixo da cama.
O ano de 2003 foi o derradeiro para dona Rosa.
Ela morreu, dez dias depois da Páscoa. Alguns velhinhos choraram. Seus poucos
pertencentes foram divididos entre as ajudantes da cozinha. A coleção de
postais foi encontrada por uma voluntária que a mostrou ao diretor do asilo. O
jovem advogado, que já desconfiava da amiga fictícia de dona Rosa, não teve
dúvidas. Recolheu os postais e os jogou no lixo.
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Do outro lado do mundo, Clara se despediu da terra com a imagem de um Rio banhado em luz. Ela permaneceu no convés do navio até o horizonte esconder a cidade. Nunca mais viu o Rio, apesar dos postais de Rosa. Sua morte, em 1973, constituiu-se em um mistério. Morreu dormindo. A correspondência com as fotos do Rio encontrada em sua caixa postal foi recolhida. A chegada de mais postais, depois de sua morte, deu a certeza de que a remetente desconhecia o falecimento. Um mês depois, penalizado, o oficial guardou os postais para uma breve decisão. A imagem da militar franzina, de traços delicados e de poucas palavras, assomou em instantes o seu pensamento. “Vou resolver amanhã”, definiu, exausto pelo plantão noturno e sem imaginar que, por uma dessas traquinices do destino, esqueceria por vinte anos os postais no fundo do armário.