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domingo, 25 de setembro de 2022

Rosa dos Tempos - Da série Histórias que Mamãe Contava

 

/  Sheila Sacks  /


O ano era 1993. O enviado do consulado olhava para a mulher a sua frente. Ela parecia surpresa diante dos cartões-postais sobre a mesa. Minutos antes, o homem tinha se apresentado e entregue o pacote, agora aberto revelando o conteúdo. 

            A senhora de olhos claros e semblante sereno, que se identificou como dona Rosa, fez perguntas que não foram respondidas. O funcionário também não entendia o porquê daqueles postais estarem sendo devolvidos. A encomenda tinha sido despachada pelo governo do seu país, cruzado o oceano como correspondência consular e, aqui, carimbado para ser entregue em mãos. E só.

            Passava das quatro da tarde e sombras manchavam a varanda. Dona Rosa  acompanhou o homem de terno largo até o portão de saída. Há vinte anos trabalhava e morava naquela casa de idosos em um bairro distante do centro. Um emprego que gostava. Talvez porque tivesse crescido em uma instituição coletiva, com muita gente ao redor. Gente como a amiga Clara, que partiu em um navio de nome italiano, dez dias depois da Páscoa.

            Os cartões-postais trazidos pelo funcionário de poucas palavras estavam endereçados à Clara. Eram dezenas de fotos de pontos turísticos do Rio. Anualmente, logo depois da Páscoa, Rosa enviava um cartão para Clara. Foi o combinado. Agora os cartões estavam estranhamente de volta a sua mesa. Sem explicação.

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Em 1953, o Lar das Crianças era uma instituição que abrigava órfãos e filhos de refugiados da 2ª Grande Guerra. Sustentado pela comunidade judaica do Rio, o Lar acolheu Clara e Rosa quando ambas tinham onze anos. Nascidas na Europa, as meninas logo se tornaram amigas. A ideia de ir embora do Rio surgiu quando Clara se deu conta de que teria poucas chances de se casar e formar uma família. Sua mãe estava internada em um manicômio e seu pai era alcoólatra. Com esses antecedentes, seria difícil arranjar um par na comunidade.

Clara tentou convencer Rosa a partir com ela. A amiga era órfã. Os pais tinham morrido em um campo de concentração na Polônia. Mas Rosa não acalentava grandes sonhos. O espelho e o bom senso limitavam as suas ambições. Ficaria no Rio, trabalhando no Lar e ajudando as crianças menores.

Dez dias depois da Páscoa, no final de abril, Clara embarcou no navio Leonardo da Vinci para um porto da Itália. De lá seguiria, com outros jovens, para a terra santa. Tinha dezessete anos, um rosto bonito e o ímpeto dos que se lançam à jornada.  Sem passado e bem longe do Rio, encontraria o marido que tanto almejava.

Na véspera, Clara chorou ao tirar a foto do Pão de Açúcar da parede, ao lado da cama. − Prometa que vai me mandar todo ano um postal do Rio − pediu Clara à Rosa.

Já no ano seguinte, Rosa enviava uma foto do Alto da Boa Vista. No verso escreveu: “O Rio é muito lindo! Caramba, como a saudade dói’. 

Ano após ano Rosa endereçou postais para a terra santa com a mesma frase no verso. Era como fosse um código de paixão e amizade. Escolhia sempre as fotos mais bonitas do Rio. Procurava nas livrarias, bancas de jornal e até em agências de turismo. Nem o fato de Clara levar meses para dar notícias a incomodava. A amiga estava casada com um homem de negócios e o tempo, do lado de lá do oceano, tinha outra dimensão.

Rosa chegou a namorar um rapaz refugiado da guerra, mas o casamento não aconteceu. Muitos anos depois, consciente que de ficaria solteira para o resto da vida, foi convidada para trabalhar em uma casa de idosos. Seu bom trabalho no Lar das Crianças foi lembrado. Aceitou a tarefa com alegria. Agora cuidaria dos velhinhos.

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O ano de 1954 trouxe mudanças inesperadas. Foi o que pensou Clara ao abrir a caixa postal e retirar o tão esperado cartão do Rio. Era o décimo dia depois de sua primeira Páscoa na terra santa. Trabalhava em uma base militar, porém estava irremediavelmente cega. Uma bomba tinha explodido o jipe em que trafegava com mais três companheiros, poucos meses depois de sua chegada. Ela sobreviveu por milagre.

Depois de recusar uma aposentadoria por invalidez, Clara aprendeu a leitura e escrita braile e retornou ao exército. Sua vida, a partir de então, estava limitada àquele posto de apoio, em algum ponto isolado do deserto. Para a psicóloga que a entrevistou, consternada com a situação, Clara respondeu simplesmente.   Com certeza não foi essa a vida que imaginei. Mas já aceitei.

Em relação à amiga Rosa, resolveu que ela jamais saberia da tragédia. Escreveria uma carta contando que o plano de encontrar um marido deu certo. Estava feliz casada com um rico negociante.

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Em 1999 a Páscoa trouxe melancolia à dona Rosa. Pela primeira vez, em quarenta e cinco anos, não comprou um postal do Rio. Desde a visita do funcionário do consulado ela tentava driblar a tristeza que se aninhava em sua alma. Comprava os postais e ensaiava enviar à Clara. Mas, a possibilidade de a amiga estar morta havia se transformado em certeza e os postais se acumulavam na caixa de papelão, embaixo da cama.

O ano de 2003 foi o derradeiro para dona Rosa. Ela morreu, dez dias depois da Páscoa. Alguns velhinhos choraram. Seus poucos pertencentes foram divididos entre as ajudantes da cozinha. A coleção de postais foi encontrada por uma voluntária que a mostrou ao diretor do asilo. O jovem advogado, que já desconfiava da amiga fictícia de dona Rosa, não teve dúvidas. Recolheu os postais e os jogou no lixo.

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            Do outro lado do mundo, Clara se despediu da terra com a imagem de um Rio banhado em luz. Ela permaneceu no convés do navio até o horizonte esconder a cidade. Nunca mais viu o Rio, apesar dos postais de Rosa. Sua morte, em 1973, constituiu-se em um mistério. Morreu dormindo. A correspondência com as fotos do Rio encontrada em sua caixa postal foi recolhida. A chegada de mais postais, depois de sua morte, deu a certeza de que a remetente desconhecia o falecimento. Um mês depois, penalizado, o oficial guardou os postais para uma breve decisão. A imagem da militar franzina, de traços delicados e de poucas palavras, assomou em instantes o seu pensamento. “Vou resolver amanhã”, definiu, exausto pelo plantão noturno e sem imaginar que, por uma dessas traquinices do destino, esqueceria por vinte anos os postais no fundo do armário.