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domingo, 5 de fevereiro de 2023

Egito restaura sinagogas de olho nos turistas

Comunidade judaica foi expulsa do país na década de 1950 e seus bens e propriedades encampados pelo governo. Uma tragédia humanitária das muitas que marcaram o século 20.

/  Sheila Sacks /

Sinagoga Eliahu Hanavi - Alexandria


Outrora uma das mais antigas e pujantes comunidades judaicas do Oriente, o Egito conta hoje com menos de dez judeus remanescentes  de uma era dourada onde o país chegou  a somar mais de 80 mil judeus.

Depois da morte de Carmem Weinstein, em 2013, ela que foi durante décadas a responsável pela preservação das quatro mais importantes sinagogas e do único cemitério judaico que restou, sua sucessora, Magda Haroun, 70 anos, tem atuado junto às autoridades egípcias no trabalho de preservação das construções e artefatos judaicos ainda presentes principalmente no Cairo e Alexandria. Em 2018, a imprensa local deu ampla repercussão à notícia de que o Ministério de Turismo e Antiguidades alocou recursos da ordem de 71 milhões de dólares para a restauração  dos locais de herança judaica.

Em dezembro último, depois de mais de seis meses de reforma, a Sinagoga Ben Ezra, no centro do Cairo, abriu suas portas para a visitação de turistas. Acredita-se que foi construída em 882 sobre os restos de uma igreja copta e seu nome homenageia o sábio e filósofo judeu Abraham Ibn Ezra, nascido no norte da Espanha por volta de 1093. O interior da sinagoga, de dois pavimentos, é rico em colunas de mármore, madeira e detalhes únicos, como flores de lótus e palmeiras.

 A restauração ficou a cargo do Ministério de Turismo e Antiguidades que em 2020 já havia aberto para visitação pública a Sinagoga Eliyahu Hanavi, em Alexandria, depois de um período de reforma onde foram investidos em torno de 6 milhões de dólares.  A sinagoga, construída originalmente em 1345, foi destruída em 1798 em um bombardeio por tropas de Napoleão, e reconstruída em 1850. Estava fechada desde 2012.

Pelo trabalho realizado, o governo egípcio foi agraciado com o prêmio internacional  ENR 2021 Global Best Projects Award na categoria de melhor projeto de Renovação/Restauração de Engenharia. A revista americana ENR - Engineering News-Record é considerada uma das publicações de maior influência no ramo da indústria da construção mundial.

De acordo com o Ministério das Antiguidades até 1930 havia 20 sinagogas em Alexandria de propriedade de judeus marroquinos, turcos, italianos, espanhóis, franceses e árabes.

Águas do Nilo

Sinagoga Ben Ezra - Cairo

Em relação à antiga sinagoga Ben Ezra, os guias de turismo enfatizam que talvez seja esse o local onde o bebê Moisés foi encontrado. Em recente reportagem da revista ortodoxa Mishpacha (3/1/23), dois visitantes judeus  narram sua visita à sinagoga: “Esta sinagoga, onde dizem que o Rambam (Maimônides:1135-1204 ) rezava, foi reformada inúmeras vezes nos últimos mil anos e hoje é um importante local turístico. Enquanto estávamos lá, grupos de turistas da Europa, Estados Unidos e Ásia entraram e ouviram do guia egípcio como o rio Nilo na época das cheias supostamente beirava o local onde estávamos e que pela tradição local, esse é o exato lugar onde a cesta do bebê Moshe estava escondida nos juncos.”

Segundo  a  Sociedade Histórica dos Judeus do Egito - Historical Society of Jews from Egypt /HSJE, sediada nos Estados Unidos, pouco se sabe sobre o edifício original. “Por volta de 1012, o califa Al-Hakim bi-Amr Allah ordenou a destruição de todos os locais de cultos  judaicos e cristãos. O próximo califa Ali az-Zahir permitiu a reconstrução de instituições cristãs e judaicas, e a sinagoga foi reconstruída no período de 1025-1040.”

Desde então a sinagoga ganhou várias reformas e o prédio atual data de 1890. No século 19 (década de 1890),  a descoberta de uma geniza (área de armazenamento de livros e manuscritos) no porão do da sinagoga, com mais de 300 mil documentos religiosos e seculares escritos em hebraico, aramaico e árabe, tornou o local ainda mais significativo  para os estudiosos.  A coleção conhecida como Cairo Geniza foi transferida inicialmente para a Universidade de Cambridge, na Inglaterra, por iniciativa do rabino e educador Salomão Schechter (1847-1915).  Atualmente, vários documentos estão preservados em bibliotecas acadêmicas. Com o acesso aos papéis, pesquisadores  puderam conhecer  mais a vida das comunidades judaicas locais nos séculos 11 a 13.


 O fundador e presidente da HSJE,  Desire L. Sakkal, é crítico em relação a abrangência das restaurações das sinagogas.  Ainda em 2019, por ocasião do anúncio das obras, Sakkal  viu na divulgação uma manobra política e de propaganda do governo do Cairo para angariar simpatia dos países ocidentais e incrementar o turismo, principalmente dos judeus americanos.

Sakkal observa que restam muito poucos judeus no país capazes de realizar serviços religiosos e que os turistas precisam de permissão especial e guias egípcios para visitar os locais judaicos. Aos egípcios não são permitidas visitas por questão de segurança.

De fato, pouco tempo depois do anúncio repercutido pelas mídias judaicas e até pelo site da Embaixada israelense no Cairo,  o próprio Ministro das Antiguidades corrigiu a informação e disse que o montante de recursos, na verdade, iria para a restauração de todos os monumentos religiosos (mesquitas e igrejas inclusive) que necessitassem de reparos.

O rabino Andrew Baker, diretor de assuntos internacionais do grupo de defesa do Comitê Judaico Americano (American Jewish Committee -AJC ), conta que nas diversas vezes que visitou o Egito percebeu que o governo não está interessado em parcerias com organizações de fora. “Eles sustentam que a herança judaica também faz parte da história do Egito”,  relata Baker que também já criticou o estado deplorável da maioria das construções judaicas ainda existente no país.

Sinagogas sob tutela


Em recente entrevista à CBS News, Magda Haroun falou que ainda existem doze locais de culto judaico no Cairo e que as chaves ficam sob a sua guarda.  Preocupada com o destino dessas construções, já que a comunidade judaica está praticamente extinta no país, ela conseguiu que as sinagogas ficassem sob a tutela do Ministério das Antiguidades e assim protegidas em relação a demolições. Isso inclui a Sinagoga Ben Ezra, a mais antiga do Oriente Médio. Haroun destacou que foi feito um inventário de cada sinagoga, com as peças catalogadas com fotos e numeração.

Em novembro do ano passado, através de outra parceria, desta vez com a Embaixada americana no Cairo, a Drop Mil Foundation, uma organização centenária que visa preservar a herança judaica no Egito, e a American Research Center in Egypt  (ARCE), um centro de pesquisa que apoia a preservação de bens culturais no país, foi inaugurada a restauração de parte do cemitério de Bassatine ( a ala reservada aos judeus caraítas),  o segundo cemitério judeu mais antigo do mundo, construído no século 9 (o primeiro está situado no Monte das Oliveiras, em Jerusalém).

Foram investidos 150 mil dólares na recuperação do local que ganhou também um Jardim Memorial com doações dos judeus caraítas que vivem nos Estados Unidos. Os caraítas seguem apenas a Torá escrita – os mandamentos divinos transmitidos a Moisés - não considerando a lei oral (Talmud ) e outras tradições orais que são parte fundamental do judaísmo rabínico. Vivem em Israel de 30 a 50 mil judeus caraítas, a maioria na cidade de Ashdod.  Também existem pequenos grupos na Turquia, Europa e Estados Unidos.


O cemitério de Bassantine foi saqueado ao longo do tempo e invadido por pessoas sem moradia. Desde 1970, o trabalho de Carmem Weinstein foi fundamental para preservar 300 túmulos cujas lápides de mármore estavam sendo roubadas ou destruídas por construções na periferia.  Com o auxílio de judeus sefarditas da França e da Suiça, ela construiu um muro circular de 2 quilômetros ao redor do terreno, mas, anos depois, uma parte foi derrubada, novamente invadida e transformada em lixão. A situação era tão degradante que por ocasião de seu falecimento ela teve de ser enterrada longe do túmulo da mãe, em outro terreno do cemitério.

Expulsão traumática

O êxodo dos judeus egípcios teve início após a criação do Estado de Israel e a guerra da coligação dos países árabes contra o novo estado. O antissemitismo aumentou ainda mais quando estourou o Conflito do Canal de Suez, em 1956 ( com tropas israelense se juntando às tropas francesas e britânicas para garantir o acesso ao canal), e na chamada Guerra dos Seis Dias (1967), quando o exército israelense destruiu as defesas do Egito, Síria e Jordânia, conquistando a Península do Sinai, as Colinas do Golã, a Faixa de Gaza, Cisjordânia e a parte oriental de Jerusalém.

A organização Justice for Jews from Arab Countries (JJAC), com sede em Nova York, estima que cerca de 856.000 judeus de 10 países árabes ( Egito, Marrocos, Iraque, Síria , Iêmen  Irã , Tunísia, Líbia, Argélia e Líbano) fugiram ou foram expulsos em 1948 , sendo que muitos foram mortos ou ficaram feridos em consequência dos violentos ataques praticados pelos árabes desses países.  Perto de 800 mil vieram para Israel.


Em 2019, depois de 18 meses de trabalho, o governo israelense calculou em mais de 250 bilhões de indenização pelas propriedades e ativos dos judeus forçados a fugir, partir de 1948. Também já foi estimado que os imóveis de judeus deixados para trás em terras árabes equivalem a 100 mil quilômetros quadrados, quatro vezes o tamanho do estado de Israel.

Para lembrar a saída e deportação desses judeus,  o parlamento (Knesset) instituiu, em 2014,  a data de 30 de novembro  como um dia de conscientização e de eventos diplomáticos visando reforçar, a nível internacional, os direitos de ressarcimento dessas famílias. A data se relaciona com o 29 de novembro de 1947, quando a ONU votou a resolução a favor da partilha da Palestina. No dia seguinte, 30/11, teve início a perseguição aos judeus no mundo árabe.

Ressaltando que a península do Sinai foi devolvida ao Egito nos acordos de Camp David, em 1978; a Cisjordância entregue para controle da Autoridade Palestina (acordos de Oslo, nos anos de 1990); e a Faixa de Gaza desocupada por colonos israelenses durante o governo de Ariel Sharon, em 2005.

Segurança reforçada



Em dezembro último, a festa de Hanuchá  foi celebrada  na Sinagoga Meyr Biton (inaugurada em 1934), no arborizado bairro Maadi, com a participação de diplomatas e de três idosas judias que ainda vivem no Cairo. A plataforma de notícias Al Monitor reportou que os arredores da sinagoga no dia do evento concentravam mais policiais do que visitantes. Um exagero, para alguns, que viram na ação o reflexo da ainda presente desconfiança das forças de segurança egípcia em relação a qualquer reunião judaica.

O diretor do documentário Judeus no Egito, Amir Ramses (44 anos) disse que a palavra "judeu" é em si uma fonte de paranoia para a segurança nacional do Egito  - talvez o resultado de décadas de doutrinação pela mídia estatal e livros escolares que incitam o ódio aos judeus.  O documentário exibido em cinemas do Cairo, em 2013, conta a história da comunidade judaica exilada do Egito,  através de  uma série de depoimentos de judeus egípcios residentes em Paris, intelectuais e até de um membro da Irmandade Muçulmana que participou, em 1947, dos ataques às lojas judaicas.


Magda, que representa uma comunidade praticamente extinta, afirma que  ainda existem judeus egípcios que escondem sua condição e vivem como muçulmanos. Considera que tem havido progresso em seu empenho de resguardar os locais judaicos e preservar algumas tradições religiosas. Diz que recebe o apoio de organizações locais, embaixadas estrangeiras, principalmente a dos Estados Unidos,  e do próprio governo. Sonha em promover concertos musicais nas antigas sinagogas e ver restaurantes kosher se espalharem pela cidade. “Quero conciliar os egípcios com seu passado”, justifica.

Em 1967,  seu pai, advogado e político, fundador do Partido Comunista Egípcio, foi preso por sua condição de judeu.  Chehata Haroun se recusou a sair do país e permaneceu vários anos na cadeia. Antissionista, morreu no Cairo, em 2001, aos 82 anos. Intrigante também é a história pessoal de Magda. Foi casada com muçulmano, tem duas filhas muçulmanas que foram criadas por um cristão, seu segundo marido.  Se declara pluralista mas, como o pai, é antissionista e não mantém contato com a embaixada de Israel.

Foco no turismo


Um dos principais roteiros turísticos da região, o Egito recebeu 4,9 milhões de visitantes no primeiro semestre de 2022. Em novembro, a filha do ex-presidente Donald Trump, Ivanka, em visita de férias ao Egito, levou a família para conhecer as principais atrações turistas do país, entre elas, a Sinagoga Ben Ezra. Ela estava acompanhada do marido, Jared Kushner, e dos três filhos.

Segundo a reportagem da revista Mishpacha, turistas individuais geralmente não têm segurança, mas o grupo israelense ganhou escolta policial durante os dias que esteve no Egito. “Na verdade, achamos um pouco exagerado ter um carro da polícia na frente de nosso ônibus e outro carro da polícia atrás, o tempo todo”, revelaram os dois israelenses autores da matéria (Ary Z. Zivotofsky e Ari Greenspan). “Além da presença de um guarda armado dentro do ônibus”, enfatizam.

Outro lance que os autores classificam de “incrível”  diz respeito aos quiosques turísticos nas paradas de ônibus. “Todos oferecem a opção de compra de lanches e bebidas kosher para os visitantes ”, ressaltam.

Mas, muito mais surpreendente que os lanches kosher nas paradas de ônibus foi o evento  que ocorreu em maio do ano passado, quando da comemoração do 74º aniversário da criação do estado de Israel. Sob os auspícios da embaixada israelense no Cairo, uma orquestra de Israel se apresentou para convidados egípcios e de outras nacionalidades, executando clássicos egípcios das décadas de 1950/60. O concerto a céu aberto teve como cenário as famosas pirâmides do Egito.

A orquestra Firqat Alnoor (do árabe Banda da Luz) é especializada em música árabe e seu maestro Ariel Cohen se disse emocionado pela recepção calorosa do público presente. Ainda que nas redes sociais egípcias e de países árabes o clima fosse outro com muitas críticas contundentes à organização e localização do evento. "Os israelenses comemoram o Dia da Independência nas pirâmides, que vergonha para o Egito", escreveu um internauta. O assunto foi registrado pela a plataforma de notícias Times of Israel , em  25/5/2022, sob o título Israeli orchestra performs in Egypt for the first time in 40 years. 

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Houve um tempo no Egito - A vida de Henri Curiel