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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

As chaves do reino de Gibraltar

Presença judaica no território é registrada em 1474 quando conversos compram o território

/ Sheila Sacks /



Uma monografia inédita publicada em abril de 1990 pela revista Almoraima, do Instituto de Estudios Campogibraltareños (da comarca espanhola Campo de Gibraltar) trouxe à tona um episódio tão surpreendente quanto desconhecido sobre a compra do território de Gibraltar por conversos espanhóis, no século 15.  O autor, Diego Lamelas Oladán, já na introdução, ressalta que o fato é “praticamente desconhecido” e aconteceu 18 anos antes da expulsão dos judeus da Espanha, e 12 anos depois de Gibraltar ser reconquistada dos mouros pelos espanhóis.

Intitulado La compra de Gibraltar por los conversos andaluces (1474-1476), o estudo de 30 páginas revela que a região localizada no extremo sul da Península Ibérica – oficializada território ultramarino britânico em 1713, pelo Tratado de Utrecht – foi habitada e administrada por conversos que erigiram casas, defenderam militarmente o local dos ataques de piratas e constituíram uma comunidade civil organizada.  

Lamelas ressalta que a versão repetida através dos séculos, principalmente por historiadores espanhóis, é a de que os conversos de Córdoba tentaram, sem êxito, comprar Gibraltar. A exceção a essa historiografia oficiosa, segundo Lamelas, se encontra na narração do cronista Alonso de Palencia (1423-1492), que registra com detalhes as tratativas com os nobres e a Coroa espanhola que resultaram na efetiva ocupação do local pelos conversos por um período de dois anos.


Durantes esse tempo, sob o reinado de Henrique IV (1454 a 1474), rei de Castela e Leão, 4.350 conversos oriundos de Córdoba e Sevilha, liderados por Pedro de Herrera, também um judeu converso, viveram como cidadãos livres em Gibraltar, após negociarem a compra do território com o duque de Medina Sidonia, nobre influente na corte.

 Ali estabeleceram uma guarnição de cavalaria para a proteção do local. Porém, em 1476, tiveram que deixar Gibraltar por ordem do mesmo duque, que se alinhou à Espanha católica. Muitos conversos, sem alternativa, retornaram a Córdoba onde foram acusados de hereges, perseguidos e sentenciados à morte pelos tribunais da Inquisição.

Clima de medo

Um dos homens mais ricos da Espanha à época, Don Enrique de Guzmán, que ostentava os títulos de II Duque de Medina Sidonia e IV Conde de Niebla, tinha uma situação destacada na cidade de Sevilha e mantinha estreitas relações com banqueiros conversos que arrecadavam impostos para a Coroa. Seu pai, o I Duque de Medina Sidonia foi quem reconquistou Gibraltar dos mouros, em 1462, e, após a sua morte, Guzmán pleiteou a concessão da terra a Enrique IV, que autorizou a posse, porém sob o controle do reino.




Segundo Lamelas, anos antes, a ascensão econômica dos judeus e sua influência no reino gerou um sentimento antissemita na própria nobreza e no clero em geral, o que culminou no pogrom (perseguição religiosa violenta com ataques físicos massivos) de 1391, em Sevilha, estendendo-se por outras cidades da Andaluzia (em Córdaba houve o registro de 2 mil mortes). Nos quinze anos seguintes, um clima de medo dominou a comunidade, e mais de cem mil judeus foram batizados pela Igreja e mencionados, a partir daí, de conversos.  

Localização estratégica

A opção de povoar Gibraltar com os conversos (em 1473 o território tinha em torno de mil habitantes que foram evacuados pela Coroa) surgiu por sua localização estratégica, no extremo sul da Península Ibérica. Com apenas 6,8 km², a cidade está situada aos pés de uma rocha de calcária de mais de 400 metros, ladeada pelo Mar Mediterrâneo, o Estreito de Gibraltar e o Oceano Atlântico. Os conversos teriam a obrigação de indenizar os moradores antigos e construir novas casas. Eles também seriam responsáveis pelo custo da defesa militar de Gibraltar, com uma guarnição composta de 800 homens.

A cessão do território para os conversos é narrada por Palencia em sua Crônica sobre o reinado de Henrique IV (escrita em latim), considerada uma das obras mais importantes da memória histórica da Espanha. A concessão não foi unanimidade para os conselheiros do Duque que inicialmente dissuadiram o nobre de tal iniciativa, visto que uma das exigências de Herrera era que os cristãos, antigos moradores de Gibraltar, fossem embora do local.



Os conselheiros também elencaram motivos militares, religiosos e pessoais para a não cessão do território aos conversos. Consideravam que eles não estavam preparados para defender Gibraltar de ataques por terra e mar; que os conversos andaluzes não eram cristãos fiéis e praticavam o judaísmo escondido, principalmente os de Córdoba; e que residindo em Gibraltar ficariam mais perto de Jerusalém e do Oriente, ganhando um porto livre para possíveis traslados e fugas.

Mais impostos

Mas, os conversos tinham um aliado na figura de Don Alfonso de Aguilar, um nobre influente casado com uma descendente de conversos. Na obra A History of the Marranos (1932), do historiador britânico Cecil Roth (1899-1970), é dito que o nobre mantinha laços comerciais importantes com os conversos de Córdoba que, por sua vez, patrocinavam suas tropas. Em troca, obtinham cargos públicos e a proteção contra acusações de práticas judaicas secretas.

O principal conselheiro de Dom Alfonso era justamente Pedro de Córdoba ou Pedro de Herrera, que se tornou o mediador para a compra de Gibraltar pelos conversos, já que o nobre mantinha, desde 1468, uma estreita amizade com Don Enrique de Guzmán, II Duque de Medina Sidonia, detentor da posse do território.

Pelo pacto liderado por Herrera, este teria o comando da fortaleza de Gibraltar e o mando de todas as funções militares e civis em nome do Duque. Teria que prover a tropa, e os conversos pagariam elevadas quantias ao Duque, apesar dos pesados impostos que já pagavam à Coroa.



De acordo com o historiador Antonio Paz y Meliá (1842-1927) - em sua introdução à Crônica de Palencio sobre Henrique IV, traduzida por ele do latim para o espanhol -, levando em conta o peso da moeda da época, “ los fondos netos (líquidos) obtenidos por el Duque de Medina Sidonia en 1474-1476 de los judíos asentados en Gibraltar ascendieron a un total de 35,90 kilos de oro”.

Na obra História social, política e religiosa dos judeus em Espanha e Portugal publicada em 1875, Amador de Los Ríos (1818-1878) chega a listar os nomes dos conversos mais ricos e influentes de Sevilha, a maioria deles atuantes no ramo de comércio e em serviços de arrendamento, recolhimento de impostos e locação. São citados: Juan Fernández Abolafio,  Diego de Susán, Ayllón Perote, os irmãos Sepúlveda y Cordobilla,  Manuel Sauli, Bartolomé de Torralba, Pedro Fernández Benedeva, Pedro Fernández Cansino, Gabriel de Zamora e Juan Delmonte.

É importante lembrar que até o século 13 os judeus podiam ter terras, eram agricultores e cultivavam vinhedos. Mas, com a proibição de os judeus  possuírem terras a situação mudou e eles se voltaram para as atividades econômicas, comerciais e financeiras.

Pérola de Sefarad

Sobre a compra de Gibraltar, Los Ríos faz um paralelo com a cidade de Lucena, conhecida como a pérola de Sefarad (Espanha). Povoada por judeus, sob o regime do califado de Córdoba (séculos 9 a 12) tornou-se um dos mais importantes centros do reino, nos aspectos econômico, cultural, filosófico e científico. O nome Lucena se origina do hebraico Eli Hoshana - הושענא אלי ( que D’us nos salve). O autor considera que o exemplo bem sucedido de Lucena pode ter influenciado a adoção dessa iniciativa para salvar os conversos alvos da animosidade e perseguição dos chamados cristãos velhos de Sevilha, incitados pelo Marqués de Villena (Don Juan Pacheco), também descendente de judeus e Mestre da Ordem Militar de Santiago, uma ordem religiosa militar chancelada por bula papal em 1175.




Fontes históricas como a do cronista Fernão Lopes (1385-1460), em sua Crônica de Fernando IV (1289-1312), rei de Castela, também narra que em 1310, por ocasião da primeira conquista de Gibraltar pelos castelhanos, cogitou-se o assentamento de judeus, cristãos e mouros no local, todos com os mesmos direitos. Porém o tema não aparece em crônicas posteriores e, em 1333, os mouros reconquistam Gibraltar e lá permanecem até 1462.

Lembrando que Gibraltar (da expressão árabe Jabal al-Tariq, que significa montanha do Tariq)  era dominada pelos mouros desde 711, e seu nome se reporta ao militar muçulmano que conquistou o local dos visigodos, Táriq ibn Ziade.  

Dificuldades em Gibraltar

Citando o relato da Crônica de Palencio como fonte, Diego Lamelas conta que o translado para Gibraltar por mar se apresentou muito perigoso para os conversos por causas dos ataques dos piratas que raptavam as mulheres e roubavam os bens. A travessia por terra era mais segura e em 14 de agosto de 1474 cerca de 4.350 conversos de Córdoba e Sevilha chegaram ao território. Herrera, então, dividiu a administração de Gibraltar entre os conversos, mas houve discordância entre eles e os originários de Sevilha regressaram as suas antigas moradas.

A mesma fonte registra que devido à posição geográfica de Gibraltar, situada no extremo sul da Península Ibérica e longe das principais cidades da Espanha, houve dificuldade para a construção das novas moradias, devido a falta de material. Os alimentos também chegavam com dificuldade e por altos preços, além do território ser constantemente assolado por investidas de corsários.  

Trato desfeito

Dois anos depois da chegada dos conversos, os conselheiros do Duque continuavam a insistir para que o trato com os conversos fosse anulado devido à fragilidade de defesa do território. Igualmente reafirmavam que os conversos em Gibraltar estavam livres para retornar às práticas judaicas. Também crescia em todo o reino a suspeita de que a rainha (Isabel de Castela, a católica) era protetora de judeus e filha de uma judia (Isabel de Portugal). Assim, o trato foi desfeito em agosto de 1476 e os conversos de Córdoba se viram obrigados a retornar, agora em penúria, para enfrentar as perseguições das quais haviam fugido.



Sobre o destino desses conversos, pouco se sabe, mas segundo Palencia, com a instalação da Inquisição, em 1 de janeiro de 1483, foi ordenado que todos os judeus de Sevilha, Córdoba e Cádiz abandonassem as residências e se mudassem para outras partes do reino. Isabel de Castela e Fernando de Aragão deram um prazo de 30 dias para o cumprimento da sentença, que foi prorrogado para seis meses pelos próprios inquisidores. Muitos fugiram para o reino muçulmano de Granada, que tinha sob a sua guarda províncias como Málaga e partes das provinciais de Córdoba e Sevilha.

Em 1487, com a tomada de Granada pelos reis católicos Isabel e Fernando, conversos de Córdoba e Sevilha, retornados de Gibraltar, foram encontrados no Castelo de Gibralfaro, em Málaga, uma das fortificações mais imponentes e inexpugnáveis da Península Ibérica. O cerco ao castelo durou três meses e com a vitória da Espanha os reis mandaram queimar imediatamente os conversos, sem o julgamento do Santo Ofício, de acordo com o cronista oficial do reino de Aragão, Jerónimo Zurita (1512-1580), em sua obra Anais do Reino de Aragão.

Porém, somente em 2 de janeiro de 1492 o último rei mouro de Granada, Boabdil,  entrega as chaves da cidade para os reis católicos, após meses de guerra e cerco à cidade. No livro Judíos españoles en la Edad Media, o historiador espanhol Luis Suárez Fernández registra que em 1488, com Tomás de Torquemada já nomeado Inquisidor-geral da Espanha, os conversos de Córdoba propuseram aos reis católicos ajudar com recursos na guerra contra o reino de Granada com a condição de que lá não fosse instalado o Santo Ofício. Porém, Torquemada influenciou os reis a não aceitar o trato e, pior, durante os próximos anos, a maioria dos conversos queimados na região de Andaluzia foram justamente os conversos oriundos de Córdoba e Sevilha.

Verdade histórica



Cinco séculos depois desse episódio que Lamelas classifica de “desconhecido e penoso da história da Espanha”, o importante a considerar, em sua opinião, é que Gibraltar, um ponto estratégico para a coroa espanhola, foi habitado exclusivamente durante dois anos por judeus espanhóis conversos e um deles detentor de toda autoridade civil e militar sobre o território.

Em um pequeno histórico sobre a vida de Palencia, Lamelas chama a atenção para o fato que o cronista foi educado no palácio do bispo de Burgos, Alfonso de Santa María, membro de uma importante família judaica conversa. Nomeado por Henrique IV cronista da Corte e seu secretário de Latim, Palencia trabalhou para o rei de 1456 a 1465. Também prestou serviços para o Duque de Medina Sidonia e foi reconhecido por seu colega renascentista, o jurista e cronista  Galíndez de Carvajal (1472-1528), como “o historiador mais verdadeiro da Espanha”. O historiador contemporâneo Paz Y Meliá vai mais além e homenageia Palencia como “a única fonte autêntica para o conhecimento daquela época”.



Finalizando, Lamelas avalia que a partir desse episódio, que efetivamente aconteceu e se perpetuou na memória dos conversos, Gibraltar funcionou como um ímã para os judeus espanhóis (sefarditas) e também para os judeus mizrahim (provenientes do Oriente e da África). Em 1704, após a conquista do território pelos ingleses, para lá acorreram principalmente os judeus de Marrocos, descendentes diretos daqueles expulsos da Espanha pela força do Decreto de Alhambra (1492), além de judeus sefarditas de Portugal, Itália e Holanda.

Em 1724 é fundada a Sinagoga Sha'ar Hashamayim ( Porta do Céu) por Isaac Nieto, de Londres, o primeiro rabino do território.  O templo se torna também o primeiro a funcionar na Península Ibérica após a expulsão dos judeus da Espanha e Portugal, em 1492 e 1497, respectivamente.

Sob a proteção da Rocha



A monografia de Lamelas foi traduzida para o inglês por Sam Benady, de 85 anos, judeu nascido em Gibraltar,oriundo de uma família que habita o território desde 1735. Impressionado com o episódio, publicou em 2005 o romance histórico The Keys of the City: An Episode in the History of Gibraltar, baseado nessa ocorrência. Em 2015, o livro foi traduzido para o espanhol sob o título Las llaves de Gibraltar.

Atualmente, Gibraltar, também conhecida como The Rock (A Rocha), em alusão ao rochedo de calcário que guarnece o território, abriga uma comunidade judaica pequena, mas atuante (perto de mil membros) de judeus sefarditas que representa mais de dois por cento da população local de 33 mil habitantes. Tem uma infraestrutura religiosa considerável, com quatro sinagogas, todas ortodoxas e em funcionamento, cemitério, escolas judaicas, micvê (para banhos rituais), lojas e restaurantes kosher.

Na história política moderna de Gibraltar destaca-se a figura de Sir Joshua A. Hassan (1915-1997), nascido no território e descendente de judeus de Marrocos, que foi o primeiro prefeito do território, e depois, por duas vezes, primeiro ministro-chefe. A comunidade sempre lembra que em 1964, quando Hassan assumiu o cargo, Gibraltar e Israel eram as duas únicas nações onde os chefes de Estado eram judeus.