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quarta-feira, 28 de abril de 2010

Diferentes...nós?

por Sheila Sacks
publicado no site da Federação Israelita do Rio Grande do Sul - FIRGS
Contar vantagem só dá prazer a uma única pessoa: quem conta. Não sugere diálogo e sim um monólogo egocentrista que dificilmente encontra receptividade e simpatia em quem escuta.

Em relação as nossas qualidades e capacitação, nós judeus temos muito o que falar quando se trata de demonstrar em números e percentuais que alcançamos um patamar privilegiado na escala dos titãs em todas as áreas do saber humano. Vira e mexe aparecem artigos listando nossas fantásticas marcas no ranking dos melhores cientistas, físicos, médicos, escritores, compositores, arquitetos, músicos, pintores etc na atualidade e no passado, ainda que representemos uma minoria ínfima no bolo da população terrestre, algo em torno de 0,2%.

O inconveniente dessas comparações é que 99% delas são enxertadas em textos induzidos, produzidos e veiculados por nós, judeus, enquanto proprietários, diretores, funcionários ou colaboradores de rede de jornais, revistas, rádio, tv e demais mídias eletrônicas. Se para alguns pode parecer uma falta de tato para com aqueles que nos leem (a grande maioria composta de não judeus e de pessoas comuns) ou ainda uma mal disfarçada arrogância no trato com nossas excepcionalidades, para outros que se julgam “melhores” informados essa combinação de poder econômico e mídia tem nome: lobby judaico. Mesmo que muitos possam alegar que colocar tais números na mesa é uma maneira direta e transparente de mostrar ao distinto público o currículo inquestionável de um povo cuja trajetória está intimamente ligada à evolução e ao progresso da humanidade, a experiência mostra que a tática do autoelogio é antipática, inconveniente e acirra suscetibilidades.

Prêmios e autobajulações não resolvem

Lançar mão de tal lógica de argumentação simplista e ingênua acrescida de outras mesmices que atrelam nossas contribuições científicas e culturais em prol do bem da humanidade a um assento honorável na arena da vida a salvo de trovões e trovoadas – como o mundo estivesse em infinito débito conosco -, no mínimo embaralha o jogo de relações humanas, sociais, religiosas e políticas a ser desenvolvido por aqueles que de alguma forma falam publicamente pelas comunidades judaicas.

Quais seriam os resultados pragmáticos dessas autobajulações no imaginário de um leitor ou espectador não-judeu? A aquiescência imediata aos judeus das benesses de uma existência estável, sem contratempos ou atribulações? É evidente que nem todos sabem que Einstein, Marx e Freud eram judeus. Muito menos que um terço do total de diretores norte-americanos ganhadores da estatueta do Oscar são judeus. Assim como também são judeus um terço dos que foram laureados com o prêmio Nobel nas áreas científica e médica. Ou que mais de 50% dos campeões de xadrez são judeus, assim como o são 50% dos jornalistas e escritores norte-americanos que até a atualidade receberam o prêmio Pullitzer.

Infortunadamente, prêmios, láureas, adulações, carreiras festejadas e empregos influentes não ajudaram a salvar os judeus quando a fúria nazista se abateu sobre a Alemanha e contaminou a Europa. A elite cultural judaica, os judeus ricos e pobres, todos foram nivelados de forma uniforme e ganharam o mesmo passaporte para o inferno: a estrela amarela no peito.

O imaginário coletivo não é favorável aos judeus

A história tem demonstrado em várias situações que o melhor preparo ou capacidade dos judeus em áreas do conhecimento humano pouco vai alterar a concepção geral das pessoas acerca de nós. No imaginário coletivo o judeu ainda é basicamente uma representação, um personagem nascido há dois milênios pela força de uma mitologia introduzida através de um processo de evangelização que o perpetuou de forma pejorativa, não obstante a realidade de toda uma pujante narrativa anterior vivida pela nação judaica dois mil anos antes deste marco histórico-religioso. Assim, criou-se ao longo do tempo uma estranha dissociação entre o que seria o povo hebreu - um agrupamento nômade, forte, rijo, guerreiro, de crença monoteísta e escaldado pelo fogo do deserto - e os ardilosos judeus engendrados como vilões da crucificação. Um único povo diabolicamente fracionado em duas metades antagônicas, como se isso fosse cabível sob o crivo da razão: cultuado e indesejável, dependendo das datas.

Esse mal-estar que perdura por vinte séculos polarizado no antissemitismo tornou-se o fermento biológico mais fácil e vulgar encontrado no mercado das especulações dogmáticas para inflar políticas de poder sectário, de proselitismo e autoritarismo. Diferente das celebrações judaicas onde a simbologia repercute o fato literal, como por exemplo a que evoca a força tirana do poderoso faraó na história de Moisés (Êxodo – Pentateuco), eximindo o povo egípcio da autoria dos infortúnios pelos quais os judeus passaram enquanto escravos no Egito, a paixão da crucificação concentrou-se na condenação ad aeternum da comunidade judaica ali existente (e de seus descendentes), constituída de múltiplas seitas, facções diversas, de rebeldes e adesistas, da qual todos faziam parte naquele contexto político inquieto e em ebulição, subjugados ao implacável tacão da Roma dos pagãos.

Crenças populares reforçam preconceito

Logo, acreditar que exista um interesse natural do não-judeu, e da sociedade em geral, em se desembaraçar de um legado de tamanha força religiosa e psicológica impingido de forma sistemática ao longo de gerações é apostar no vazio de um otimismo irresponsável. São vinte séculos de pregação acusatória em alto e bom som que transcende gerações e que dificilmente irá figurar prioritariamente na pauta de prováveis resgates de ideias pré-concebidas a serem revistas pela maioria das pessoas. Vencer e sublimar preconceitos demanda um grande potencial de energia e de vontade por parte de quem se dispõe a ir contra todo um conjunto de tradições e crenças populares que faz parte de sua identidade.

Portanto deve-se no mínimo louvar todos aqueles que demonstrem por atos públicos a efetiva necessidade de se revisar conceitos caducos acerca desse tema espinhoso e ainda tratado como tabu no seio de muitas famílias de classes sociais distintas. Observa-se que em conversas em restaurantes ou rodinhas de amigos abaixa-se naturalmente o tom de voz quando o termo “judeu” é pronunciado. No ambiente de trabalho geralmente há manifestações de surpresa contida diante da revelação de que esse ou aquele colega é judeu. Também aí quase que se murmura a palavra incômoda, o tal detalhe “diferente” e folclórico da biografia do sujeito. Abrir um canal mais amplo e aberto para uma abordagem sem eufemismos sobre a questão é sempre uma alternativa corajosa. Mas a grande maioria prefere se esquivar do confronto (no bom sentido) individual. É bem mais confortável ser judeu em toda a sua plenitude – com direito a reclamar de tudo, de todos e dos outros - em um ambiente judaico.

Brasil – Israel: Percalços de uma aproximação

Vivemos no maior país católico do planeta, com 150 milhões de fiéis, e que possui a maior colônia de descendentes árabes da América Latina, cerca de 10 milhões. As recentes visitas de autoridades e personalidades brasileiras a Israel devem ser assimiladas como uma valiosa oportunidade para o exercício de um melhor entrosamento humano e social entre as duas nações, em paralelo ao crescente avanço que já se verifica nos âmbitos econômico, tecnológico e cultural. Possíveis falhas, mal-entendidos, palavras e ações deslocadas que possam suscitar críticas não são peças estranhas nos processos de aproximação. Fazem parte da dinâmica de relacionamento daqueles que se engajam em processos dessa natureza.
Parabéns, pois, as nossas lideranças judaicas, assessores do Executivo, políticos, empresários, diplomatas brasileiros e israelenses que participam intensamente de fatos e acontecimentos que envolvem a comunidade judaica brasileira, os governos do Brasil e de Israel. O essencial, em se tratando de nossas lideranças, é que as mesmas estejam unidas, atentas e empenhadas em encontrar um senso comum, uma linha de prumo que, à parte as atividades sociais de eventos, celebrações e homenagens, propicie uma melhor interação com a própria comunidade e uma convivência cada vez mais igualitária, franca e prazerosa com o todo da sociedade brasileira.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Rosa dos tempos


por Sheila Sacks
Conto vencedor do concurso literário do clube Hebraica-Rio (2004)

O ano era 1993. O enviado do consulado olhava para a mulher a sua frente. Ela parecia surpresa diante dos cartões-postais sobre a mesa. Minutos antes, o homem tinha se apresentado, estendido um protocolo para que assinasse e entregue o pacote, agora aberto revelando o conteúdo.

A senhora gorducha de olhos claros e semblante sereno que se identificou como dona Rosa fez perguntas que não foram respondidas. O funcionário também não entendia o porquê daqueles postais estarem sendo devolvidos. A encomenda tinha sido despachada pelo governo do seu país, cruzado o oceano como correspondência consular e, aqui, carimbado para ser entregue em mãos. E só.

Passava das quatro da tarde e sombras irregulares manchavam a varanda. Dona Rosa acompanhou o homem alto de terno largo até o portão de saída. Há vinte anos trabalhava e morava naquela casa de idosos, rodeada de árvores centenárias, em um bairro distante do centro. Um emprego que gostava. Talvez porque tivesse crescido em uma instituição coletiva, com muita gente ao redor. Gente como a amiga Clara, que partiu em um navio de nome italiano, dez dias depois da Páscoa.

Os cartões-postais trazidos pelo funcionário de poucas palavras estavam endereçados à Clara. Eram dezenas de fotos de pontos turísticos do Rio. Anualmente, logo depois da Páscoa, Rosa enviava um ou mais cartões para Clara. Foi o combinado. Agora todos estavam estranhamente de volta a sua mesa. Sem explicação.

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Em 1953, o Lar das Crianças era uma instituição que abrigava órfãos e filhos de refugiados judeus da 2ª Grande Guerra. Sustentado pela comunidade judaica do Rio, o Lar acolheu Clara e Rosa quando ambas tinham onze anos. Nascidas na Europa, as meninas logo se tornaram amigas. A ideia de ir embora do Rio surgiu quando Clara se deu conta de que teria poucas chances de se casar e formar uma família. Sua mãe vivia entre delírios e choques elétricos em um manicômio público e seu pai era alcoólatra.

Clara tentou convencer Rosa a partir com ela. A amiga era órfã. Os pais tinham morrido em um dos vários campos de concentração da Polônia. Mas Rosa não acalentava grandes sonhos. O espelho e o bom senso limitavam as suas ambições. Ficaria no Rio, trabalhando no Lar e ajudando as crianças menores.

Dez dias depois da Páscoa, no final de abril, Clara embarcou no navio Leonardo da Vinci para um porto da Itália. De lá seguiria com outros jovens para a terra santa. Tinha dezessete anos, um rosto bonito e o sagrado ímpeto dos que se lançam à jornada. Sem passado e bem longe do Rio, encontraria o marido que tanto ansiava.

Na véspera, Clara chorou ao descolar a foto desbotada do Pão de Açúcar da parede ao lado de sua cama-beliche. “Prometa que vai me mandar todo ano um postal do Rio”, pediu Clara à Rosa. Já no ano seguinte Rosa enviava uma imagem do Alto da Boa Vista. No verso escreveu: O Rio é muito legal. Puxa vida, como a saudade dói.

Ano após ano Rosa endereçou os postais à terra santa, com a mesma frase no verso. Era como fosse um código de paixão e amizade. Escolhia sempre as fotos mais encantadoras do Rio. Procurava nas livrarias, bancas de jornal e até em agências de turismo. Nem o fato de Clara levar meses para dar notícias a incomodava. A amiga estava casada com um homem de negócios e o tempo, do lado de lá do oceano, tinha outra dimensão.

Por sua vez Rosa namorou dois rapazes, se apaixonou, desiludiu-se, não casou. Muitos anos depois, beirando aos quarenta, ela foi convidada para trabalhar em uma casa de idosos. Sua experiência no Lar das Crianças foi lembrada. Aceitou a tarefa com alegria. Agora cuidaria dos velhinhos.

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Nos primeiros dias de 1983 o oficial moreno com uma cicatriz no braço deu por findo o trabalho. Por algum tempo o processo dos postais do Rio ficou sobre a sua mesa. Em um país em guerra, assolado por ataques terroristas, qualquer fato inusitado levantava suspeitas. O envio sistemático de postais a partir de uma cidade da América do Sul, sempre na mesma data e com uma frase repetitiva por demais explícita, despertou a atenção do serviço de inteligência.

Peritos fizeram simulações de códigos tentando descobrir a mensagem que se escondia por trás da frase aparentemente inofensiva. Profissionais foram enviados à cidade praiana para investigar o autor da mensagem e seu possível envolvimento com algum grupo inimigo. A gerente atenciosa e boa praça da casa de idosos, conhecida como dona Rosa, teve seus passos monitorados e sua vida vasculhada. Tempos depois, o resultado final da delicada operação ficou registrado no volumoso processo encaminhado pelo oficial às patentes superiores.

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O ano de 1954 havia trazido mudanças inesperadas e radicais. Foi o que pensou a tenente Clara ao abrir a caixa de correio e sentir sob os seus dedos a textura em revelo de um cartão. Dez dias tinham-se passado desde do término da semana da Páscoa naquela primavera de 1963 e mais uma vez recebia um postal de Rosa. Há muitos anos trabalhava em uma base militar, mas estava irremediavelmente cega. Uma granada havia explodido o jipe em que viajava com mais três companheiros, poucos meses depois de sua chegada. Sobrevivera por milagre.

Depois de recusar uma pensão vitalícia do governo Clara aprendeu a leitura e escrita braile e retornou ao exército. Sua vida, a partir de então, estava limitada àquele posto de apoio, em algum ponto isolado do deserto.

Após receber o primeiro postal do Rio mas impossibilitada de vê-lo, Clara decidiu que Rosa jamais saberia da tragédia. Naquele mesmo ano escreveu uma carta à amiga contando que o plano de encontrar um marido vingou. Estava casada com um rico negociante de tapetes.

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Em 1999 a Páscoa trouxe melancolia à dona Rosa. Pela primeira vez em quarenta e cinco anos não saiu às ruas para procurar um postal. De fato, desde a visita do funcionário do consulado, há mais de cinco anos, a discreta e eficiente gerente do Lar dos Velhos tentava driblar a tristeza que se aninhava em sua alma. Comprava os postais e ensaiava enviar à Clara. Mas a possibilidade da amiga estar morta havia se transformado em certeza e os cartões se acumulavam na caixa de papelão embaixo de sua cama.

O ano de 2003 foi o derradeiro para dona Rosa. Ela morreu dez dias depois da Páscoa. Muitos velhinhos choraram. Seus poucos pertencentes foram divididos entre as ajudantes da cozinha. A coleção de postais foi encontrada por uma senhora voluntária que a mostrou ao diretor do asilo. O jovem advogado, sempre apressado em suas visitas e que já desconfiava da amiga fictícia de dona Rosa, não teve mais dúvidas. Recolheu os postais e os jogou no latão de lixo.

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Do outro lado do Atlântico, Clara se despediu do mundo com a imagem de um Rio de Janeiro banhado em luz. Ela permanecera no convés do navio até o horizonte esconder o colar de prédios que pareceu afundar nas águas ondulantes do oceano. Nunca mais pode ver as belezas do Rio apesar dos postais de Rosa. Sua morte, em 1973, constituiu-se em um mistério. Simplesmente dormiu e não acordou. A correspondência com as fotos do Rio encontradas em sua caixa de correios provocou perplexidade. A chegada de mais postais depois de sua morte aguçou a imaginação. Mas a sigilosa operação levada a efeito por agentes muito bem treinados desfez o enigma. Na página final do processo, datado em 28 de março de 1983, o corregedor agastado com todo aquele mal-entendido escreveu: “A investigação está encerrada. O material analisado não tem restrição e a partir desta data está liberado. Que se devolva a quem de direito e que se faça cumprir a presente determinação imediatamente e de forma adequada.”

Já era noite quando o militar fechou a porta de seu gabinete. Lá fora, como lanternas mágicas, as casas se iluminavam para a ceia da Páscoa.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O Guardião dos Manuscritos


por Sheila Sacks


A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto (e seus desdobramentos) já rendeu mais de cem mil títulos publicados em todo o mundo. Esse fantástico evento arqueológico ocorreu em 1947, um ano politicamente emblemático para a humanidade pela histórica decisão da Organização das Nações Unidas (ONU) que, em 29 de novembro, bateu o martelo e se decidiu pela partilha da Palestina.

Mas, por uma dessas incríveis coincidências, também foi nessa exata data de 29 de novembro de 1947 que teve início uma outra história com contornos de lenda. Na cidade santa de Jerusalém, na noite daquele glorioso dia, enquanto ouvia no rádio a empolgante notícia da criação do estado de Israel, um professor da Universidade Hebraica examinava em sua casa, perplexo, alguns pergaminhos que obtivera de um antiquário árabe da cidade de Belém. Chefe do Departamento de Arqueologia da universidade, Eleazar Sukenik (1889-1953) não teve dúvidas de que estava diante de uma das maiores descobertas do século. Naquele momento ele resolveu comprar os três manuscritos colocados à venda, aos quais vieram se somar, ao longo do tempo, outras dezenas de pergaminhos descobertos nas grutas do deserto da Judéia, situadas a poucos quilômetros das margens do Mar Morto.

Em seu livro “A Mensagem dos Rolos” (1957), o arqueólogo Yigael Yadin (1917-1984), filho de Sukenik e na época chefe de operações do exército clandestino judaico que lutava contra a ocupação britânica na Palestina, ressaltou o lado simbólico da descoberta dos primeiros manuscritos, ocorrida simultaneamente à criação do estado de Israel. “É como se os pergaminhos tivessem aguardando nas cavernas durante dois mil anos, desde a destruição do reino de Israel, até que o povo judeu retornasse a sua pátria e reconquistasse sua liberdade”, escreveu. Sete anos depois, em 1954, coube ao mesmo Yadin – que atingiu a patente de general e foi chefe do estado-maior das Forças de Defesa de Israel, de 1949 a 1952 - adquirir e trazer para Israel os outros quatro manuscritos daquele primeiro lote, obtido pelo seu pai em uma operação complexa e arrojada, tendo como cenário a cidade de Nova York.

Estudo dos manuscritos ajuda entender o Judaísmo e o Cristianismo

Hoje, toda essas preciosidades arqueológicas, culturais e religiosas de valor inestimável, pontuadas por mais de meio século de surpreendentes histórias paralelas de risco, persistência e coragem, encontram-se à disposição dos visitantes no Santuário do Livro do Museu de Israel, em Jerusalém. Seu curador e diretor é o rabino Adolfo Daniel Roitman, nascido na Argentina, que desde 1994 tem a grandiosa missão de cuidar desse acervo e que de forma extraordinária vem trabalhando na divulgação do conteúdo dos rolos, principalmente no seu ensino nas escolas. Realizando exposições e palestras, principalmente em universidades da Europa e do continente americano, Roitman acredita que os ensinamentos dos manuscritos são fundamentais para a compreensão da civilização ocidental, já que eles representam um momento especial na história da humanidade: a época do encontro entre o Oriente e o Ocidente, entre a cultura grega e a judaica. Segundo ele, a partir dessa época é que se originaram, de um lado o judaísmo rabínico e do outro o cristianismo que, juntamente com a cultura grega são as três bases de identidade do Ocidente.

Em 2008 entrevistei o rabino Roitman, após sua viagem ao México onde ministrou a aula magna na “Universidad del Claustro “ sobre “Mitos e Realidade dos Rolos do Mar Morto” e participou do “IV Colóquio Internacional Religión y Símbolo”. Da cidade santa de Jerusalém ele falou sobre esse tema apaixonante que atualmente dispõe de uma farta literatura para consulta e aprendizado, o que bem atesta o crescente interesse que o assunto desperta nas pessoas, independente de suas convicções e crenças. Vale dizer que o Santuário do Livro é hoje um dos pontos turísticos mais visitados em Israel.

Entrevista:
Por que considera importante ensinar e introduzir no currículo das escolas judaicas e laicas a cultura do Deserto e os Manuscritos do Mar Morto?

- Os manuscritos do Mar Morto são os documentos mais importantes que foram encontrados na terra de Israel e provavelmente também representem o descobrimento arqueológico mais importante do século 20. Entre 1947 e 1956 foram achados em 11 cavernas na área de Qumran, situada a 25 quilômetros a leste de Jerusalém, aproximadamente mil documentos, incluindo os mais antigos manuscritos bíblicos do mundo. Além disso, entre esses documentos foram encontradas centenas de obras não conhecidas que revelam uma riqueza espiritual judaica inusitada. Entre esses manuscritos estão calendários, peças litúrgicas, textos místicos, obras mágicas e exegéticas que lançam luz sobre a literatura de Israel na época antiga. E daqui, portanto, que toda essa maravilhosa fonte deve ser estudada pelas crianças e jovens com o objetivo de que conheçam o extraordinário legado espiritual do judaísmo antigo e dessa forma consolidem uma imagem mais abrangente, rica e diversificada do pensamento e da literatura do povo judeu, ampliando o seu acervo cultural e equilibrando a imagem rabínica com a realidade que elas conhecem.

Existem escolas secundárias em Israel ou em outros países que já adotaram o estudo dos Manuscritos como uma matéria dentro do currículo escolar?

- Lamentavelmente e apesar de que já se passaram 60 anos dessa descoberta, não se elaborou, ainda, uma estratégia sistemática de estudos desses textos. Contudo, por minha própria iniciativa, desenvolvemos em Israel um programa-piloto para ensinar os manuscritos dentro da grade curricular sobre estudos bíblicos nas escolas secundárias. Esse programa-piloto foi intitulado “O tema do Deserto na Bíblia e nos Rolos do Mar Morto”, e foi posto em execução com bastante êxito em três colégios secundários de Jerusalém. Além desse projeto, e neste caso por iniciativa da Universidade Hebraica, há alguns anos foi realizado um curso-piloto para alunos do curso secundário da escola Dekel-Vilnay, na cidade de Maale Adumim, a leste de Jerusalém. Contudo, ambos os programas educativos não tiveram prosseguimento, mas tenho esperança que o novo centro de informação e educação do Santuário do Livro, inaugurado em 2007, possa retomar esses projetos e dessa maneira alcançar o público de todas as idades para esse fabuloso mundo dos manuscritos.

Já manteve contato com as comunidades judaicas da América Latina no sentido de tornar possível o estudo dos Manuscritos nas escolas?

- Algum tempo atrás eu participei de um projeto educativo do “Centro Melton para Educação Judaica” da Universidade Hebraica, para o qual preparei um curso à distância, com 12 aulas, sobre o “Judaísmo do Segundo Templo” e do qual também fui o coordenador. O curso foi muito bem recebido pelos participantes, o que tem me motivado a pensar na possibilidade de desenvolver um curso semelhante sobre os rolos do Mar Morto. Cabe destacar que nesse projeto do Centro Melton participaram docentes de várias comunidades da América Latina, como as do México, Colômbia, Venezuela, Argentina e outras, possibilitando a esses educadores conhecerem a riqueza e a potencialidade do tema.

Qual o texto dos rolos que considera fundamental para o favorecimento de um clima de tolerância e fraternidade entre as religiões?

- Entre os manuscritos bíblicos mais antigos do mundo achados em Qumran foram encontradas 22 cópias do livro bíblico do profeta Isaías. Entre essas cópias, um rolo da caverna 1 tinha sido escrito há 2.100 anos. Esse profeta é o mais citado nos rolos do Mar Morto e, além disso, é o livro profético mais conhecido de todos os que foram descobertos. De acordo com o que se sabe esse profeta está identificado com a mensagem da Paz Universal, portanto, nesse momento eu creio que é o rolo mais adequado para comunicar ou favorecer um clima de tolerância e fraternidade entre as religiões. Cabe acrescentar, ainda, que esse livro também é o mais citado no Novo Testamento, o que demonstra igualmente que esse profeta era uma figura central para os primeiros cristãos (em suas origens, também judeus).

Palestras sobre os manuscritos bíblicos em universidades católicas

Adolfo Roitman formou-se em Ciências Antropológicas pela Universidade de Buenos Aires. Em 1986 concluiu o rabinato no Seminário Rabínico Latinoamericano, filiado ao “The Jewish Theological Seminary (JTS), de Nova York. Em Israel estudou na Universidade Hebraica de Jerusalém onde se graduou, com louvor, em “Religiões Comparadas” . Na mesma universidade, em 1993, obteve o seu doutorado em “Pensamento Judaico na Antiguidade”.
Casado e pai de três filhos, Roitman foi professor no Departamento de Pensamento Judaico na Universidade Hebraica e no “Schechter Institute of Jewish Studies”, de Jerusalém. É professor palestrante em diversas universidades norte-americanas (Hartford, New York, Texas Christian) e membro da “Society of Biblical Literature” e da “World Union of Jewish Studies”. Autor de dezenas de artigos veiculados em jornais e revistas internacionais sobre interpretação bíblica, literatura judaica, pensamento e religião e os pergaminhos do Mar Morto, Roitman também tem vários livros publicados, entre eles, “Os Sectários de Qumram”, “Imaginando o Templo: Pergaminhos Pedras e Símbolos” e “ O Santuário do Livro e o Mistério do Templo”.